DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
FALTA DE DESCRIÇÃO DE FACTOS NÃO INDICIADOS
CASO JULGADO
IRREGULARIDADE
Sumário

I - A enumeração dos factos não suficientemente indiciados é essencial no despacho de não pronúncia, por ser sobre esses factos que se forma caso julgado no sentido de ser inadmissível a reabertura do processo após o termo da instrução.
II - O vício resultante da omissão de factos indiciados e não indiciados no despacho de não pronúncia é a irregularidade que se integra no disposto no artigo 123.º, n.º2, do Código de Processo Penal e que permite que se ordene a respetiva reparação oficiosamente, pois impede o reexame da causa pelo Tribunal de recurso e atinge a validade do despacho proferido.

Texto Integral

Processo nº2910/17.7JAPRT.P1

1. Relatório
No processo nº2910/17.7JAPRT do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Instrução Criminal do Porto, Juiz 4, foi em 5/08/2022 proferido despacho de não pronúncia dos arguidos dos arguidos A..., SA, AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, B..., SA, II, JJ, KK e LL, pela pratica de qualquer ilícito criminal e, designadamente, o crime de burla qualificado, p. e p. pelo artigo 217 e 218 nº 2 al. d) do Código Penal.
Inconformada veio a assistente C..., LDA interpor o presente recurso, das conclusões do qual se extraem os seguintes argumentos:
« 1. A Recorrente é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à indústria de construção civil, empreitadas de obras públicas e compra e venda de bens imóveis.
2. Por seu turno, as sociedades arguidas B... e A... são duas sociedades que se dedicam a projectos de construção civil e obras públicas, sendo o os arguidos AA, CC, MM, DD, EE, GG, e HH membros do Conselho de Administração da A... e os arguidos II e JJ membros do Conselho e Administração da sociedade comercial denominada B... e o arguidos KK e LL trabalhadores ao serviço da sociedade arguida denominada A... à data dos factos que infra se descrevem.
Em data que a assistente não sabe precisar mas que se situa algures em Julho de 2013, a REN, SA lançou um concurso limitado com prévia classificação tendo em vista a celebração de um contrato destinado à execução da ' Empreitada de Construção Civil para a instalação Inicial do Poste de Corte de ... 400 KV' — cfr. doc. nº1 junto com o RAI.
4. Por deliberação do Conselho de Administração da REN datado de 20.11.2013 foi decidido adjudicar ao consórcio formado pelas sociedades A... SA e B..., SA a execução dos trabalhos para a instalação inicial do Poste de Corte de ..., tendo o respectivo contrato de empreitada sido formalizado a 13.12.2013 - facto este resultante do doc. nº 2 junto com o RAI.
5. Conforme decorre da cláusula 26, ponto 1, do contrato de empreitada celebrado entre a RtN e o referido consórcio este poderia subcontratar entidades terceiras para a execução de trabalhos compreendidos na empreitada - facto este resultante do doc. Nº 2 junto com o RAI.
6. E da cláusula 132 cuja epigrafe é "erros ou omissões do Projecto ou de outros documentos" decorre o seguinte:
O Empreiteiro deve comunicar à Fiscalização da Obra quaisquer erros ou omissões dos elementos da solução da obra por que se rege a execução dos trabalhos que detete no decurso da execução da empreitada
O Empreiteiro tem a obrigação de Executar todos os trabalhos de suprimento de erros e omissões que lhe sejam ordenados pelo Dono da Obra, o qual deve entregar ao Empreiteiro todos os elementos necessários para esse efeito.
Só pode ser ordenada a execução dos trabalhos de suprimento de erros quando o somatório do preço atribuído a tais trabalhos com o preço de anteriores trabalhos de suprimento de erros e omissões c de anteriores trabalhos a mais não exceder 50% do preço contratual.
O Dono da Obra é responsável pelos trabalhos de suprimento dos erros e omissões resultantes de elementos que tenham saido por si elaborados ou disponibilizados ao Empreiteiro.
O Empreiteiro é responsável por metade do Preço dos trabalhos de erros e ou omissões cuja detecção era exigível na fase de formação do contrato, excepto pelos que hajam sido identificados pelos concorrentes na fase de formação do contrato do Contrato mas que não tenham sido expressamente aceites pelo Dono da Obra.
O Empreiteiro é ainda responsável pelos trabalhos de suprimentos de erros e omissões que, não sendo exigível a sua detecção na fase de formação do contrato, também não tenham sido por ele identificados no prazo de 30 dias a contar do data em que lhe fosse exigível a sua deteção.
Os atos administrativos do Dono da Obra ou os acordos entre este e o Empreiteiro que impliquem quaisquer modificações do objecto do contrato que representem um acumulado superior a 15% do preço contratual devem ser imediatamente publicitados, pelo Dono da Obro. no portal da internet dedicado aos contratos públicos, devendo a publicidade ser mantida até 6 meses após a extinção do contrato.
A publicitação referida no número anterior é condição de eficácia dos atos administrativos ou acordos modificativos, nomeadamente para efeitos de quaisquer pagamentos" - facto este resultante do doe. n9 2 junto com o RAI.
7. No dia 30.10.2013, a Recorrente recebeu no seu escritório um email que lhe foi remetido pelo trabalhador ao serviço da sociedade comercial denominada B..., de nome NN, um com o seguinte conteúdo:
"Bom dia Eng.® OO
De acordo com o solicitado pelo meu colega Eng. LL, vimos por este meio solicitar a V/. Ex.as a apresentação de proposta para a execução dos trabalhos de especialidade (terraplanagens e D...), tudo de acordo com ficheiros enviados em anexo, referente á OBRA supracitado, esperando assim contar com a vossa ajuda para podermos vencer este processo, sendo este um bom cliente em todos os sentidos.
A vossa proposta deverá dar entrada nos nossos serviços até ao dia 12 de Novembro de 2013 por fax n.º ..., e-mail ... ou via correio paro a morada Alameda ..., n.º ... ... ..., ao cuidado de NN.
No caso de a vosso proposta não cumprir com os requisitos técnico/dimensionais previstos no projecto deverão enviar referencias documentadas das suas divergências para que possamos convenientemente analisar a vossa proposta como uma solução alternativa.
Para esclarecimento de qualquer dúvida queiram, por favor, ligar para o LL,....
PARA ACEDER AOS ELEMENTOS (PEÇAS ESCRITAS E DESENHADAS) CARREGUE NO SEGUINTE LINK PARA FAZER O DOWNLOAD:
htto://...
Com os Melhores Cumprimentos:
NN" — facto resultante do doc. nº1 junto com o requerimento remetido aos presentes autos a 06.10.2017.
8. No dia 02.12.2013, a Recorrente recebeu novo email, desta feita remetida pelo trabalhador ao serviço da A..., PP, com o seguinte teor:
"Ex.mos Srs.
Solicitamos a W. Ex.as, a apresentação da melhor proposta de preços unitários para o movimento de terras, conforme mapa de quantidades que junto anexo para a obra cm referencia.
Links para download de peças desenhadas do Projecto:
... (o link somente estará disponível no período de 2 dias de forma que aconselho a transferir os elementos para o computador).
Mapa de quantidades —em anexo.
Os preços unitários deverão englobar todos os encargos com o pessoal, nomeadamente seguros, transportes, equipamento de protecção e segurança individual (EPI'S) alojamento e alimentação.
A proposta deverá mencionar as condições de pagamento, bem como outras condições que julguem importantes.
Em caso de celebração do contrato, haverá lugar a retenção/prestação de garantia nos pagamentos a efectuar pelo consórcio- A.../B... para bom cumprimento das prestações do Adjudicatário.
Data limite para apresentação de proposta: 09 de Dezembro de 2013 (na impossibilidade de darem cotação agradeço que declinem).
Com os melhores cumprimentos,
PP" - facto resultante do doe. Nº2 junto com o requerimento remetido aos presentes autos a 06.10.2017.
9. Foram anexados a ambos os mapa de quantidades dos trabalhos a executar mapas esses onde surgem descritos os diferentes tipos de trabalhos que a ofendida deveria executar, mas também as despectivas quantidades, pelo que, incumbia à ora ofendida apenas indicar os preços pelos quais se propunha realizar os trabalhos de escavação e terraplanagem.
10. Em data e local não concretamente apurados, e na sequência do pedido de apresentação de um orçamento feito pelas sociedades arguidas, A... e B..., o representante legal da Recorrente, QQ, o seu filho RR e a trabalhadora ao serviço da Recorrente, OO e reuniram com os ora arguidos II, KK, LL e SS.
11. Nessa reunião, os representantes da assistente e os representantes das sociedades arguidas sobre o orçamento apresentado pela assistente para a execução dos trabalhos, os trabalhos que teriam que executar e que metodologias seriam adoptadas para executar os mesmos, sobre a experiência e o equipamento que a mesma possuía para executar a obra tendo os mesmos entregue aos representantes da denunciada listagem do mesmo e quantidades de explosivos a utilizar na obra- facto resultante dos depoimentos das testemunhas OO, RR, SS bem como do doc. nº 4 junto com o requerimento remetido aos presentes autos a 01.02.2018 e nº 3 junto com o RAI.,
12. Em 19.12.2013, a assistente, na sequência do convite que lhe foi dirigido pelos elementos do Consórcio e de reuniões entretanto realizadas com responsáveis da apresentou aos mesmos um orçamento para a execução dos trabalhos de escavação e aterro que, sumariamente, infra se discriminam:
Escavação:
- desmatação, incluindo o corte e/ou arranque de árvores e arbustos, respectivo transporte a qualquer distância para fora dos terrenos da REN e restantes operações necessárias para o efeito;
- decapagem de terra vegetal, com espessuras variáveis com transporte a local a definir pela fiscalização para posterior aplicação nas zonas de trabalho, incluindo todas as operações necessárias para o efeito;
- decapagem de terra vegetal, com espessuras variáveis, com transporte a vazadouro para fora dos terrenos da REN, a qualquer distância, incluindo todas as operações necessárias;
- Escavação, incluindo carga, transporte e descarga dos produtos escavados para a execução dos mesmos,
- Escavação, incluindo carga, transporte e descarga dos produtos escavados para vazadouro, a qualquer distância, fora dos terrenos da REN;
- Escavação em abertura de caixas de pavimentos, incluindo remoção e transporte de terras e vazadouro, a qualquer distância, fora dos terrenos da REN.
Aterros
- Espalhamento e compactação dos produtos escavados misturados, ou não, com solos de empréstimo, com eventual recurso a taqueamento, para execução dos aterros nas condições das cláusulas técnicas, incluindo todas as operações necessárias para o efeito;
-Regularização de taludes em escavação, incluindo todas as operações necessárias para o efeito;
- Regularização de taludes em aterro, incluindo todas as operações necessárias para o efeito;
- Espalhamento, batimento, regularização de terra vegetal nos taludes, incluindo carga, transporte, descarga e restantes operações necessárias para o efeito.
13. Conforme resulta do referido orçamento, a realização dos trabalhos supra indicados nas quantidades igualmente discriminadas naquele documento ascenderia a € 760.000,00 - facto resultante do doe. nº3 junto com o RAI
14. No dia 03.01.2014, a assistente celebrou com as sociedades arguidas A... e B... o Contrato de Subempreitada n.º ... — facto resultante do contrato de subempreitada junto com a participação-crime.
15. Através do referido contrato, a assistente comprometeu-se a executar os trabalhos de movimentação de terras melhor discriminados na lista de quantidades e preços unitários anexa ao referido contrato, entre os quais se incluía a desmatação e decapagem do terreno, escavações, aterros, escarificação e compactação de solos, saneamento, regularização de talude, espalhamento, batimento e regularização de terra vegetal nos taludes (vide clausula 13 das condições especiais do contrato de subempreitada) - facto resultante do contrato de subempreitada junto com a participação-crime.
16. Resulta da cláusula 2.1 das condições especiais do referido contrato que a subempreitada teria o preço máximo de € 760.000,00, valor esse que incluía erros e omissões que fossem da responsabilidade da assistente, e que, se os erros e omissões fossem da responsabilidade do Dono da Obra o preço máximo só seria alterado se os elementos do Consórcio fossem indemnizados pelo dono da obra- facto resultante do contrato de subempreitada junto com a participação-crime.
17. O prazo contratualmente previsto para a execução dos trabalhos era de 3 meses (vide cláusula 3. 1 condições especiais do contrato de empreitada)- facto resultante do contrato de subempreitada junto com a participação-crime
18. As partes acordaram ainda, no referido contrato, que os trabalhos a facturar pela assistente deveriam ser aprovados pelas sociedades B... e A... até ao dia 20 de cada mês e até ao limite dos trabalhos insertos nos autos de vistoria e medição aprovados pelo dono da obra.
19. Do contrato em apreço resulta ainda que o auto de medição deveria ser assinado pelos representantes de ambas as partes até ao dia 20 de cada mês, e que este depois de assinado pela ofendida e pelos representante das sociedades arguidas A... e B... deveria ser entregue à assistente para servir de suporte à emissão e validação de factura, obrigando-se a assistente a emitir duas facturas: uma de valor correspondente a 51% do valor do auto em nome da A..., SA e outra no valor correspondente a 49% do valor do auto em nome da B..., SA - facto resultante do contrato de subempreitada junto com a participação-crime .
20. As partes acordaram também que, para garantia do exacto e pontual cumprimento das obrigações contratuais, a assistente deveria prestar uma garantia bancária, à primeira solicitação, de valor equivalente a 10% do valor total da empreitada, e que o prazo de garantia dos trabalhos de seria de 10 anos, no caso dos trabalhos de aterro, e 5 anos, no caso dos trabalhos de escavação - facto resultante do contrato de subempreitada junto com a participação-crime.
21. Em meados de Janeiro de 2014, a assistente deu inicio à execução dos trabalhos de escavação, nomeadamente de desmatação do local onde iria ser erigido o Posto de Corte, e tratou logo de providenciar pela obtenção da licença para utilização de 10.000 Kg de explosivos, na esteira, aliás, do que já havia feito o arguido KK- facto resultante dos docs nºs 5 e 6 juntos com o RAI.
22. Em meados de Março de 2014 ano, a assistente obteve a licença para utilização de explosivos e respectivo produto, e logo após ter rececionado as quantidades de explosivos por si encomendada para proceder à realização do desmonte de rocha que os estudos geológicos levados a cabo por empresa contratadas pela REN referiam existir no local dos trabalhos, a ofendida prontamente deu inicio a esses mesmos trabalhos facto resultante do email remetido pelo arguido KK à REN a 21.03.2014.
23. Porém, o avanço dos trabalhos, os representantes da assistente tomaram conhecimento da discrepância entre os resultados e conclusões dos estudos geológico-geotécnico efectuados a pedido da REN e que instruíam o caderno de encargos e o tipo de solo e rocha do local a escavar - facto resultante do email remetido pelo arguido KK à REN a 21.03.2014 e das atas das reniões havidas no decurso da obras juntos com o RAI sob os does nºs 9 a 27 do RAI.
24. De acordo com relatório de prospecção geológica-geotécnica junto com a participação-crime que serviu de base ao orçamento elaborado pela Requerida, que:
"- os terrenos interessados à nova plataforma são granitos decompostos, silto-arenosos
- ocorre superficialmente uma cobertura de terra vegetal com espessura média de 0,40m, podendo atingir pontualmente os 0.90m;
- subjacente aos solos de cobertura ocorrem materiais resultantes da alteração dos maciços graníticos com espessura variável, de características geomecônicas razoáveis.
- o "bedrock" é composto por granitos medianamente alterados e decompostos, com resultados no ensaio SPT frequentemente superior a 60. Estas formações surgem a cotas muito variadas devido a vários afloramentos, sendo a profundidade máxima detectada de 9,00m.
- os materiais provenientes da escavação dos granitos decompostos poderão ser utilizados para a execução dos aterros, desde que a sua granulometria se insira no fuso granulométrico definido. A escavação destes materiais poderá ser globalmente realizada com meios ligeiros, podendo pontualmente, ser necessário o recurso a ripper para o desmonte de zonas mais rígidas.
- os granitos poderão ser usados como solo para fundação de aterros
- os materiais escavados poderão apresentar um teor em humidade elevado, pelo que não é de excluir a necessidade de serem aplicadas medidas para reduzir o teor de humidade dos solos, especialmente, se as escavações forem realizadas ern época de elevada pluviosidade.
- embora não tenha sido detectada na prospecção, verifica-se no local a existência de diversas linhas de água, pelo que poderão ocorrer pequenos horizontes fraca qualidade que poderá ser necessário sanear" - facto resultante do relatório geológico geotécnico junto com a participação-crime.
25. À medida que os trabalhos foram progredindo, a assistente foi constatando que o solo do local onde iriam ser executados os trabalhos de escavação e aterro não apresentava as características descritas no relatório de prospeção geológica-geotécnica com base no qual foi elaborado o orçamento entregue a 19.12.2013 pela mesma às sociedades arguidas e que para executar os trabalhos de escavação seriam necessários mais meios humanos, mais maquinaria, quantidades de explosivos muito superiores às inicialmente previstas e o recurso a outras técnicas de escavação e terraplanagem, cujos custos não foram contemplados no orçamento elaborado pela ofendida a 19.12.2013 e que teve por base os dados constantes do relatório de prospecção geológica-geotécnica segundo o qual o terreno a escavar era composto por granitos decompostos, silto-arenosos, pelo que, de acordo com o referido relatório, a escavação destes materiais poderia "ser globalmente realizada com meios ligeiros, podendo, pontualmente, ser necessário o recurso a ripper para o desmonte de zonas mais rígidas' (sublinhado nosso)- facto resultante do relatório geológico-geotécnico junto com a participação-crime.
26. A assistente após ter procedido aos primeiros trabalhos de escavação encontrou a reduzida profundidade rochas muito pouco a medianamente alteradas e maciços com diaclasamento muito espaçado, solo esse que só pode ser desmontado com recurso sistemático a explosivos, metodologia que obriga sempre a um tratamento primário com recurso a estaqueamento, e comprometia as metodologias de execução da terraplanagem previstas no contrato celebrado entre a ofendida e as sociedades ora denunciada - facto resultante dos registos fotográficos juntos sob os docs nºs 5 a 10 com o requerimento remetido aos presentes autos a 01.02.2018 e relatórios periciais junto com a participação-crime da lavra do Eng. TT e UU relatório pericial elaborado no âmbito do Proc. nº 1177/17.1T8STS.
27. Os representantes da assistente assim que se aperceberam do desfasamento existente entre as conclusões do relatório geológico-geotécnico e o tipo de solo encontrado in situ informaram as sociedades ora denunciadas da referida situação, tendo igualmente informado os elementos do Consórcio de que não estando a referida situação prevista no projecto e planeamento da obra, os custos da sua execução aumentariam significativamente, tendo os representantes das sociedades ora denunciadas informado a ofendida que iria reportar a situação à REN, SA - facto resultante dos depoimento da testemunha SS.
28. No dia 21.03.2014, o arguido KK denunciado enviou para a REN, SA um email em que além de solicitar uma nova declaração para utilização de explosivos, desta feita, para 50 000Kg de explosivos, aquele comunicou ao representante da dona da obra que "a primeira estimativa foi com base no elementos que tínhamos no altura, nomeadamente estudo geotécnico. Tudo indicava que o solo embora bastante rochoso serio perfeitamente ripável. Acontece que mesmo à superfície é impossível de ripar o solo, tendo como única alternativa o utilização de explosivos para o desmonte.
Desta forma solicito com urgência a nova declaração para podermos obter com maior urgência o novo licença"- facto resultante do doc. nºs 7 e 8 junto com o RAI.
29. No dia 01.04.2014 teve lugar uma reunião entre os elementos do consórcio e a dona da obra em que os representantes das sociedades denunciadas II, VV, LL, KK, WW e XX, fizeram saber aos representantes da dona da obra que "o Consórcio alerta para o facto de que o desmonte de rocha tem resultado em material com pouco saibro. A quantidade de rocha expectável no estudo geotécnico tem-se revelado, até à data com quantidades muito superiores e cotas superiores às previstos. Caso se mantenha esta situação o Consórcio ira solicitar a vinda do projectista à obra para em conjunto ser definida uma solução" doc. junto a fls 1100.
30. Na reunião seguinte, que teve lugar a 15.04.2014, os representantes da dona da obra fizeram saber aos representantes das sociedades arguidas, os ora arguidos II, GG, LL e KK e WW, que "o projectista não tem disponibilidade imediata paro se deslocar à obra. Pelo que o REN comunicou que caso se mantenha a necessidade do prestação de esclarecimentos pelo projectista, no que diz respeito à interpretação do estudo geotécnico, os dúvidas dever ser apresentados por escrito de formo o ser facilitada a informação inerente."- facto resultante do doc. nº 9 do RAI.
31. Idêntica posição foi adoptada pela REN, SA nas reuniões que tiveram lugar a 29.04.2014, 27.05.2014 e 18.06.2014, reuniões essas onde estiveram presentes os seguintes representantes das sociedades denunciadas: o arguido II, o arguido LL, o arguido KK, WW e XX — facto resultante dos doc.s nºs 10, 11 e 12 junto com o RAI.
32. Ante a constatação pela ofendida da existência de discrepâncias entre as conclusões extraídas pelos autores do relatório geológico-geotécnico quer sobre o tipo de rocha a escavar quer sobre as metodologias a adotar para proceder à respetiva escavação e o material a escavar encontrado in situ, a assistente solicitou a 14.05.2014 ao representante da sociedade ora denunciada A..., o arguido KK com conhecimento ao arguido LL a realização de uma reunião para discutirem aspectos relacionados com a escavação. — facto resultante do doc. nº 13 junto com o RAI
33. A assistente solicitou a um técnico do Departamento de Engenharia Geotécnica do ..., especialista na área de Desmontes de Maciços Rochosos e Escavações Subterrâneas, de nome TT, que elaborasse um relatório sobre a falta de correspondência entre a escavabilidade expectável e a escavabilidade efectiva de algumas zonas geotécnicas, nomeadamente a ZG1, do local onde estava prevista a instalação do Posto de Corte de ...- vide relatório pericial junto com a participação-crime da autoria do Eng. TT.
34. A sociedade arguida B..., SA solicitou ao Departamento de Engenharia da Universidade de Aveiro, mais concretamente ao Prof. Dr. UU que elaborasse igualmente parecer técnico sobre as condições de escavabilidade dos maciços e metodologia de execução dos aterros vide relatório pericial junto com a participação-crime da autoria do Prof. UU.
35. Os autores do estudo inicial que desembocou na elaboração do relatório geológico-geotécnico levaram a cabo três tipos de prospeção: oito poços de reconhecimento; quatro sondagens de furação à rotação seis perfis de refracção sísmica, num total de 18 pontos de prospecção sendo que desses 18 pontos de prospecção, apenas 7 se situavam na zona de escavação, ou seja, no referido relatório apenas se encontrava representada 39% do volume de prospecção, pelo que, a amostra recolhida pelos autores do relatório geológico-geotécnico não era representativa do tipo de solo a escavar - facto resultante do relatório elaborado pelo Eng TT junto com participação-crime e do relatório pericial elaborado no âmbito do Proc. nº 1177/17.1T8STS.
36. Dos 8 poços de reconhecimento, poços esses que permitem avaliar qualitativamente as formações superficiais do maciço interessado, bem como a profundidade a que se ira encontrar maciço impenetrável à pá, apenas três foram feitos na área de escavação, ou seja, os poços P3. P4 e P6, e desses 3 poços, 2 apresentam pouca profundidade (o poço P3 tem lm de profundidade e o P4 1, 70m, sendo que, apenas o poço P6 atingiu a cota da plataforma - facto resultante do relatório elaborado pelo Eng TT junto com participação-crime e do relatório pericial elaborado no âmbito do Proc. nº 1177/17.1T8STS.
37. O tipo de prospecção realizado pelos técnicos que elaboraram o relatório geológico-geotecnico que instruía o caderno de encargos é mais expedito e relevante até, num momento inicial de prospecção técnica, pois permite a obtenção de informações relevantes para a concepção do plano de prospecção dos métodos de maior alcance, mas não permite a caracterização geológica-geotécnica do maciço tendo em vista a sua classificação do ponto de vista da escavabilidade - facto resultante do relatório elaborado pelo Eng TT junto com participação-crime e do relatório pericial elaborado no âmbito do Proc. nº 1177/17.1T8STS.
38. Dos seis perfis sísmicos de refracção realizados pelos autores do relatório de prospecção geológica- geotécnica, apenas dois interceptaram uma zona de escavação significativa, e das quatro sondagens realizadas apenas uma, a 52, está localizada na zona a escavar, e mesmo essa, que começa na cota 719 e termina na cota 710, apresenta 12 m de maciço por identificar - facto resultante do relatório elaborado pelo Eng TT junto com participação-crime e do relatório pericial elaborado no âmbito do Proc. n° 1177/17.1T8STS.
39. No dia 4 de Junho de 2014, a assistente remeteu aos trabalhadores ao serviço das sociedades arguidas LL e KK o parecer técnico por si solicitado ao Laboratório de Geotecnia e Materiais de Construção do Departamento de Engenharia do Porto- facto resultante do doc. nº14 junto com o RAI.
40. Na sequencia dos resultados dos estudos efectuados pelos peritos contratados pelas assistente e pela sociedade arguida B..., a assistente solicitou ao perito por si contratado que elaborasse um relatório de agravamento de custos, relatório esse que ficou concluído a 06.06.2014 e que foi remetido à Requerida e à B..., SA a 09.06.2014 — facto resultante do doc. nº 15 junto com o RAI.
41. De acordo com o relatório ora em causa, os sobrecustos do trabalho de escavação e aterro resultantes de erros do relatório geológico-geotécnico ascenderiam a C 786 289, 00- facto resultante do relatório de sobrecustos junto com a participação-crime.
42. No dia 17 de Junho de 2014, o arguido KK remeteu à assistente um email a informar que a reclamação de sobrecustos apresentada pela mesma estaria a ser analisada pela administrações das sociedades arguidas - facto resultante do ponto 16 do RAI.
43. No dia 24 de Julho de 2014, a assistente remeteu novo email ao arguido KK a reportar as dificuldades financeiras que estava a atravessar resultantes do atraso numa resposta à reclamação por si realizada - tacto resultante do doe. n9 18 junto com o RAI.
44. No dia 24 de Julho de 2014, o arguido KK enviou um email à assistente a informar que a reclamação apresentada pela assistente estava a ser resolvida - facto resultante do doc. nº 19 junto com o RAI.
45. No dia 25 de Julho de 2014, na sequência da recusa do fornecedor de fogo, a empresa E..., de continuar a fornecer fogo para a obra, por atrasos no pagamento do respectivo fornecimento, a trabalhadora ao serviço da assistente, OO, remeteu novo email ao arguido KK dando nota da insuficiência dos valores pagos pelas sociedades arguidas para fazer face às reais despesas da obra.
46. No dia 12 de Agosto de 2014, quando os trabalhos que a assistente estava a executar estavam prestes a terminar o arguido GG, em representação das sociedades arguidas A... e B... alegando existir um desfasamento entre o que estava previsto e o que se verifica in situ formalizou por escrito junto da REN, SA uma reclamação escrita para obtenção do pagamento dos sobrecustos da obra que o mesmo computou em € 951962,80 - facto resultante do doc. nº 23 junto com o RAI.
47. Nos dias 26.08.2014, os representantes da REN e das sociedades arguidas reuniram tendo os primeiros comunicado aos segundos que não tinham ainda uma posição sobre a reclamação apresentada - facto resultante do doc. n° 24 junto com o RAI.
48. No dia 09.09.2014 os representantes da REN e das sociedades arguidas reuniram tendo os primeiros comunicado que em princípio a resposta a reclamação da REN já existiria e seria remetida brevemente às sociedades arguidas- facto resultante do doc. nº 25 junto com o RAI.
49. No dia 23.09.2014 realizou-se nova reunião de obra entre os representantes da REN e das sociedades arguidas em que estiveram presentes os arguidos KK e LL, tendo os representantes da sociedade arguida informado os representantes da REN, SA que já tinham recebido a resposta à reclamação apresentada - facto resultante do doc. nº 26 junto com o RAI.
50. No dia 08.10.2014, através de carta remetida pela Administração da A..., foi comunicado à assistente que a REN não tinha aceitado a reclamação de sobrecustos e que as sociedades arguidas não iriam proceder ao pagamento de qualquer quantia uma vez que na clausula 7, nº 4 do contrato consta que não poderia haver lugar a reclamações por erros e omissões do projecto, mapa de medições e cadernos de encargos porquanto os mesmos teriam que ser obrigatoriamente apresentados pela assistente antes da celebração do contrato de subempreitada e o contrato celebrado entre a assistente e as sociedades arguidas tinha sido celebrado de acordo com o principio back-to-back- facto resultante do doc. nº 27 junto com o RAI.
51. No dia 10.10.2014, a administração da A... remeteu nova carta à assistente, acompanhada de carta da REN datada de 29.08.2014 e de uma nota técnica datada de 25.08.2014 da responsabilidade da F..., empresa responsável pela elaboração do relatório geológico-geotécnico- facto resultante do doc. nº 28 junto com o RAI.
52. No dia 13.01.2015, o arguido KK remeteu à REN, SA uma listagem de trabalhos a mais e a menos entre os quais se incluem trabalhos a mais de aterro, no valor de € 199.800,00- facto resultante do depoimento da testemunha SS e do doc n.º 30 junto com o RAI.
53. O montante de € 199.800,00 que consta da listagem de trabalhos a mais como não corresponde a uma contrapartida financeira pelos trabalhos a mais de aterro mas a uma compensação financeira da REN, SA às sociedades arguidas pelo cumprimento dos prazos contratualmente definidos para realização da obra - facto resultante do depoimento da testemunha SS.
54. A recusa de pagamento às sociedades denunciadas, B... e A..., dos trabalhos de correção resultantes de erros do relatório geológico geotécnico causou à assistente um prejuízo no montante de € 1.716.454,18 - facto resultante dos docs nº 34 e 35 do RAI.
55. Em virtude da falta de pagamento do valor correspondente à execução dos trabalhos a mais a assistente viu-se obrigada a apresentar junto do extinto Tribunal Judicial da Comarca de Montalegre um plano especial de revitalização da empresa que correu termos naquele mesmo tribunal sob o n° 85/153.5T8MTR -facto resultante do doe. 35 do RAI.
56. O arguido LL, trabalhador ao serviço da sociedade arguida B..., agindo em representação e no interesse desta, ao solicitar à assistente que apresentasse um orçamento para execução dos trabalhos de escavação e aterro do Posto de Corte de ..., orçamento esse em cuja elaboração laborou a ora assistente em manifesto erro provocado pelos ora arguidos , II. LL, KK, que, não obstante o conhecimento prévio que os mesmo tinham acerca do tipo de solo a escavar e metodologia que deveria ser adoptada na execução dos trabalhos e que o relatório geológico-geotécnicos continha conclusões acerca da escavabilidade do solo e metodologia a seguir que não correspondiam à realidade que a assistente a veio a encontrar na execução dos trabalhos, omitiram, no decorrer das negociações que antecederem a outorga do contrato de subempreitada, informações aos representantes da ofendida que sabiam serem falsas sobre essa matéria, socorrendo-se para o efeito das conclusões do relatório atrás mencionado, levando a assistente a apresentar um orçamento e a outorgar um contrato para a execução que os mesmos sabiam que era financeiramente desajustado para a execução dos trabalhos e claramente ruinoso para a mesma porquanto correspondia a apenas 1/3 do valor necessário para a execução da obra quiseram, e lograram, causar grave prejuízo à ora ofendida pondo em causa sua própria sustentabilidade financeira.
57. O arguido KK não só omitiu informação relevante que era pelo menos do seu conhecimento desde a data da apresentação pela G... da sua reclamação por erros e omissões, no período das negociações que antecederam a celebração do contrato celebrado entre a assistentes e as sociedades arguidas como no decorrer da execução dos trabalhos e assim que a assistente reportou às sociedades arguidas a existência de discrepâncias entre o solo encontrado in situ e o descrito no relatório geológico-geotécnicos, o referido arguido KK, sempre que a assistente lhe dava conta das dificuldades financeiras que estava a sentir decorrentes dos sobrecustos da obra, lhe asseverava que estava a providenciar junto da REN, SA pela assunção pela dona da obra do pagamento do sobrecusto da obra resultante de erros e omissões do projecto, quando tal facto não correspondia à realidade, dado que, não obstante terem sido, por diversas vezes instadas a apresentarem por escrito a respectiva reclamação, somente a 12.08.2014, quando os trabalhos estavam prestes terminar e, mais uma vez por insistência da dona da obra tal pedido foi formalizado.
58. As sociedades arguidas, A... e B..., nunca tiveram, conforme resulta das condutas adotadas pelos arguidos AA, MM, CC, DD, EE, FF, YY, II, JJ, KK e LL antes e no decorrer da execução do contrato, qualquer intenção de proceder ao pagamento à assistente de qualquer quantia pelos sobrecustos da obra por esta suportados, tendo agido, em comunhão de esforços e ante um plano previamente gizado com o claro propósito de causar à ora assistente o prejuízo decorrente do sobrecusto da obra, prejuízo esse que se computa em € 1.716.454,18, destruindo assim a capacidade financeira da ora assistente que se viu obrigada a apresentar um PER e locupletando-se com igual valor.
59. Os arguidos agiram livre e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, e com o propósito concretizado de obter para as sociedades arguidas um enriquecimento que quer os seus representantes legais, AA, MM, CC, DD, EE, FF, YY, II e JJ quer os seus trabalhadores, KK e LL sabiam ser ilegítimo, porquanto resultava o mesmo de grave prejuízo financeiro que pôs em causa a saúde financeira da ora Recorrente, e tal não corresponder a qualquer gasto por suportado pelas sociedades arguidas na execução da obra.
60. Ao agir nos moldes supra descritos em representação e no interesse das sociedades arguidas B... e A..., os arguidos AA, MM, CC, DD, EE, FF, YY na qualidade de representantes legais da sociedade arguida A... e II e JJ, na qualidade de representantes legais da sociedade arguida B... e os trabalhadores ao serviço das mesmas LL e KK incorreram, em autoria material, como co-autores na prática de um crime de burla qualificada, p. e. p. pelo art. 218 nº2, al. d) do CP.»
Conclui no sentido de que caso não se considere nula a decisão instrutória devem ser inventariados os factos suficientemente indiciados nos moldes acima descritos e, consequentemente, pronunciar-se os arguidos AA, MM, CC, DD, EE, FF, YY na qualidade de representantes legais da sociedade arguida A... e II e JJ, na qualidade de representantes legais da sociedade arguida B... e os trabalhadores ao serviço das mesmas LL e KK, e as sociedades A... e B... em autoria material, como co-autores na prática de um crime de burla qualificada, p. p. pelos artigos 217 nº 1, 218 nº2, al. d) do CP.
Considera a recorrente que a decisão recorrida violou o disposto no art. 217 nº 1, 218 n° 2, al. d) do CP, 308 nº 2, 283 nº 3 al. b) do CPP, 6º da CEDH e 20 da CRP.
O recurso foi admitido em 7/02/2023 e em primeira instância responderam ao recurso o MP e os vários arguidos.
O MP considera que ao abolir totalmente da decisão instrutória a descrição dos factos indiciados e não indiciados, nem o fazendo sequer sinteticamente ou por remissão a decisão recorrida enferma de um vício processual sanável que urge ser corrigido.
Não permitindo conhecer por via dessa omissão os concretos factos que foram tidos por indiciados e não indiciados, não permite qualquer apreciação/juízo crítico sobre o mérito do despacho de não pronúncia proferido, afetando, por isso, a validade da própria decisão recorrida.
Tendo a assistente/recorrente suscitado a nulidade em causa no prazo para o recurso, entende o MP que deve ser declarado nulo o despacho de não pronúncia e, em consequência a Sr.ª Juiz de Instrução suprir tal invalidade nos termos do artigo 122 do CPP, com vista à sanação do vicio para que se elenquem os factos indiciados e não indiciados.
Quanto ao mérito para o caso de se entender que se pode suprir o vício em sede de recurso, emite opinião no sentido de que não existem indícios da pratica de crime por parte dos arguidos pelo que deverá manter-se a decisão e negar-se provimento ao recurso e pugna pelo não provimento do recurso e considera que a decisão de não pronúncia fez uma correta apreciação das provas e interpretação do direito.
Os arguidos responderam ao recurso em conjunto com exceção da sociedade B..., S.A, que o fez separadamente.
A arguida B... imputa defeitos ao requerimento de abertura da instrução que entende não estar estruturado como acusação e concordam com a decisão recorrida no sentido que não estão preenchidos os elementos, quer objetivos quer subjetivos, do ilícito típico de burla qualificada, porquanto não se identifica uma intenção inicial e pré-ordenada de prejudicar o património da recorrente.
Os restantes arguidos também entendem não merecer censura o critério seguido pela decisão instrutória que pretendem ver mantida e para além disso alegam que não se mostram sequer alegados elementos relevantes para o crime de burla : «Terão, assim, de constar da acusação factos integradores de qualquer astúcia praticada pelos arguidos; que essa astúcia seja causa do erro ou engano da vítima por via de circunstâncias demonstrativas (nexo de causalidade); que a prática dos actos lesivos da vítima seja consequência do erro ou engano, face a circunstâncias explicativas que o prejuízo patrimonial resulta dos actos de astúcia (nexo de causalidade); que houve a intenção de obter um enriquecimento ilícito e maldoso. Mas não se vê qualquer desses factos e circunstâncias, nem o alegado nexo de causalidade, desde logo porque a relação nasceu de concurso, houve vários concorrentes e para todos foram dadas as mesmas informações - o projecto, o caderno de encargos e as demais peças escritas e desenhadas do concurso de empreitada da iniciativa da REN. E não importa saber se, porventura, o consórcio teve maior ou menor lucro com o negócio, pois o resultado obtido pelos arguidos é legítimo, independentemente do valor. Só deixará de o ser se obtido por qualquer meio enganoso de que resulte desvio patrimonial do lesado para o autor do delito, como se expressou em Acórdão do T.R. Porto de 13/07/2016. Certo é que nada disso consta da queixa, do requerimento de instrução nem agora das alegações de recurso. Apenas se encontram aí opiniões e afirmações gratuitas e não factos e circunstâncias claras, objectivas e convincentes.»
Nesta Relação a Sr.ª Procuradora-geral-adjunta emite parecer no sentido de que se verifica o vício de irregularidade da decisão recorrida previsto no art. 123 nº2 do CPP, pelo que se impõe a respetiva revogação e substituição pelo tribunal a quo, por outra que supra aquela irregularidade, enumerando todos os factos indiciados e não indiciados, por referência ao requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente.
Cumprido o disposto no art. 417 nº2 do CPP vieram responder as sociedades arguidas A..., SA, e B..., S.A. A arguida A... salienta que não formam carreados para os autos factos suficientes para eventual pronúncia criminal.
Mais afirma que foi dada à recorrente informação de que teria fazer uso de explosivos para desmontar a cota de rocha e que ao fornecer à assistente todas as peças do concurso a arguida nada escondeu transferindo para a assistente a informação que constava do concurso.
A arguida B... discorda do parecer do MP porquanto entende que o RAI apresentado não contém factos com a estrutura de uma acusação.
No entanto considera que o Tribunal recorrido atendeu à prova produzida fazendo uma apreciação critica da mesma e fundamentando a sua decisão.
Pugna pela improcedência do recurso e manutenção do decidido.
Apresentou também resposta ao parecer a assistente, ora recorrente, alegando que face à total ausência de enunciação dos factos indiciados e não indiciados não resta outra solução que proceder à revogação da mesma quer o vício seja de nulidade ou irregularidade.
2 - Fundamentação
A) Circunstâncias com interesse para a decisão:
São os seguintes os fundamentos da decisão recorrida que passamos a transcrever:
«Nos presentes autos instaurados por C..., Ld.ª, contra A..., SA, AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, B..., SA, II, JJ, KK e LL, correu termos o inquérito que se impunha, tendo o Ministério Público proferido, no final do mesmo, despacho de arquivamento, nos termos do art. 277º, nºs 1 e 2 do CPP, conforme consta de fls. 1450 a 1457 do processo.
A Assistente por discordar do despacho de arquivamento proferido, veio requerer a abertura da instrução, por requerimento que faz a fls. 1465 a 1493 dos autos.
Recebido o RAI, por despacho exarado a fls. 2056 e ss., procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas na parte final do RAI, melhor identificadas a fls. 1492, vº, e 1493, constando os seus depoimentos das atas que os documentam, juntas de fls. 2740 a 2744 e 2781, 2782 a 2783, 2784 a 2785, 2786 a 2787, 2799, 2880, 2843 a 2845, 2846 2853, 2857 a 2861, 2863 a 2865 e 2867 a 2869 dos autos.
Com o Rai foram juntos 35 documentos.
Durante a fase da instrução foram ainda juntos os documentos constantes de fls. 1579 a 1877, 2120 a 2141, 2149 a 2557.
Realizou-se o debate instrutório com observância das formalidades legais, tal como resulta da ata que o documenta, junta de fls. 2893 a 2894.
Isto posto, compete agora proferir decisão instrutória nos moldes previstos no art. 309º do CPP.
O Tribunal é competente.
O Ministério Público tem legitimidade para exercer a ação penal.
Não existem nulidades, exceções ou questões prévias de que cumpra conhecer.
Como resulta do disposto no nº 2 do art. 287º do CPP, o requerimento de abertura de instrução, não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos, que através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no art. 283º, nº3 al.s b) e c) do CPP.
Resulta do art. 283º nº3 do CPP que “a acusação contém, sob pena de nulidade: ...b) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; ...c) a indicação das disposições legais aplicáveis; ...”.
Dispõe, o art. 309º do CPP, que a decisão instrutória é nula, na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento de abertura da instrução.
O processo penal rege-se pelos princípios do acusatório e do contraditório.
Dos preceitos legais suprarreferidos, e tendo em conta os princípios mencionados, resulta que o requerimento de abertura da instrução, quando requerida pelo assistente, na sequência de despacho de arquivamento do Ministério Público, deve conter todos os elementos de uma acusação, descrevendo os factos que consubstanciem o ilícito, cuja prática imputa ao arguido.
Como refere o Prof. Germano Marques da Silva em “Do processo Penal Preliminar”, fls. 254, o requerimento de abertura da instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente, uma acusação (alternativa ao arquivamento) ou à acusação decididos pelo Ministério Público), acusação que vai, “dada a divergência com a posição assumida pelo Mº Pº, necessariamente ser sujeita a comprovação judicial”.
Sobre a mesma questão veja-se ainda José de Souto Moura in “Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo Código de Processo Penal”, ed. Almedina, 1988, pag. 120 “se o assistente requerer a instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será a todos os títulos inexequível. O juiz ficará sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver acusados.
Aquilo que não está na acusação e que no entendimento do assistente lá devia estar pode ser mesmo muito vasto. O juiz de instrução “não prossegue” uma investigação nem se limitará a apreciar o arquivamento do Ministério Público, a partir da matéria indiciária do inquérito. O juiz de instrução responde ou não a uma pretensão”.
Resulta do exposto que é o requerimento de abertura da instrução que vai delimitar o objeto da fase de instrução, sendo que o arguido tem de estar identificado e conhecer todos os factos situados no espaço e no tempo que em concreto lhe são imputados para que se possa defender, bem como a indicação do ilícito pelo qual se pretende a sua pronúncia.
O requerimento de abertura da instrução formulado pelo assistente, na sequência de um despacho de arquivamento do Ministério Público, é mais que uma forma de impugnar o despacho de arquivamento do Ministério Público (para o qual existe a reclamação hierárquica) uma vez que consubstancia, uma verdadeira acusação.
Sem a descrição de factos concretos situados no espaço e no tempo que consubstanciem uma conduta penalmente punível, a identificação do seu agente e a indicação do ilícito pelo qual se pretende ver aquele pronunciado a instrução não tem objeto, ou seja não pode haver instrução.
Sem instrução, o debate e a decisão instrutória constituem uma impossibilidade jurídica e os atos instrutórios atos inúteis, sendo que ainda que fossem apurados factos concretos e a data da sua ocorrência, se tal viesse a constar da decisão instrutória esta seria nula, por violação do disposto no art. 309º suprarreferido.
No caso subjudice no requerimento apresentado nos autos pela assistente, constante de fls. 1465 a 1493, a mesma refere as suas razões de discordância do despacho de arquivamento do Ministério Público. Ao longo do aludido requerimento a assistente alude a diversas situações e factos que imputa aos arguidos, e que, na sua ótica, refere serem subsumíveis ao crime de burla qualificado, previsto e punível pelo 218º, nº2, alínea d), do Código Penal. Em suma, para a apontada qualificação jurídica a denunciante/assistente imputa à sociedade A..., SA, e aos respetivos membros do conselho de administração aí identificados, e bem assim aos demais arguidos, também aí melhor identificados, a prática do crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º e 218.º, n.º 2, al. d) do Código Penal, sustentando, em síntese, que: Por deliberação do conselho de administração da REN datado de 20/11/2013, foi decidido adjudicar ao consórcio formado pelas sociedades A... SA e B..., SA, execução dos trabalhos para a instalação inicial do Poste de Corte de ..., tendo o respetivo contrato de empreitada sido formalizado a 13/12/2013; Em 19/12/2013, a denunciante apresentou um orçamento elaborado com base no teor dos relatórios de prospeção geológico-técnica que integrava o caderno de encargos do referido concurso, para execução dos trabalhos de escavação; No decurso dos trabalhos de escavação levados a cabo pela Assistente, veio a verificar-se a existência de discrepância entre os resultados dos estudos geológicos-geotécnicos efetuados a pedido da REN e o tipo de solo e rocha a escavar; Sendo que a execução dos trabalhos de escavação demandariam custos com maquinaria e outos superiores ao orçamentado. Situação que foi reportada ao consórcio A... e B...; Posteriormente a denunciada A... informou a denunciante que o orçamento apresentado abrangia terrenos de qualquer natureza, sendo que apenas teria direito a qualquer compensação no caso em que este viesse a receber compensação por parte do dono da obra; Por via dos erros evidenciados nos estudos geológicos a denunciante registou custos superiores ao orçamentado, ascendendo o valor a mais de 2,24 do valor inicial do contrato que era 760.000,00, não tendo obtida qualquer compensação por parte do consórcio constituído pela denunciada A... e B..., ficando lesada no correspondente montante.
Vejamos.
Quanto ao crime de burla dispõe o art. 217º do Código Penal que o pratica quem:
«1 - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2 - A tentativa é punível.
3-O procedimento criminal depende de queixa.
4 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 206.º e 207.º».
Já no que tange ao art. 218º do Código Penal, estabelece o referido preceito que:
«1 - Quem praticar o facto previsto no n.º 1 do artigo anterior é punido, se o prejuízo patrimonial for de valor elevado, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.
2. A pena é a de prisão de dois a oito anos se:
a) O prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado;
b) O agente fizer da burla modo de vida;
c) O agente se aproveitar de situação de especial vulnerabilidade da vítima, em razão de idade, deficiência ou doença; ou
d) A pessoa prejudicada ficar em difícil situação económica.
3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 206.º
4 - O n.º 1 do artigo 206.º aplica-se nos casos do n.º 1 e das alíneas a) e c) do n.º 2.»
Desta feita, para que se verifique a prática de um crime de burla terão de se encontrar preenchidos os elementos constitutivos objetivos e subjetivos do tipo legal, e que são:
1º - o intuito de o agente obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo;
2º - o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocado, e;
3º - que assim se determine o ofendido à prática de atos que causem, a ele ou a outra pessoa, um prejuízo patrimonial.
A burla integra, assim, “um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento”, tratando-se de um crime material ou de resultado, em que a consumação passa “por um duplo nexo de imputação objetiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de atos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio) e, depois, entre os últimos e a efetiva verificação do prejuízo patrimonial” (Cfr. A. M. Almeida Costa, Comentário Conimbricense ao Código Penal, tomo II, pág. 293).
O dolo compreende a previsão do facto e a vontade de o executar, dirigido à prossecução de um fim que é, neste caso, um enriquecimento ilegítimo. Este enriquecimento tem de ser um enriquecimento infundado, sem causa, desprovido de motivo. O enriquecimento ilegítimo é equivalente a um acréscimo injusto do valor patrimonial.
No que concerne ao processo de engano, exige o legislador que o mesmo seja gerado através de astúcia, causando esta o engano do burlado sobre factos, o que implica, como é evidente, que se exige uma indução astuciosa para a prática de factos, todo um tipo de comportamentos, de maquinação, de manha, de artifício fraudulento, de cenário enganador, de montagem ardilosa, os quais, aos olhos de quem vai ser burlado, sustentem uma aparência de credibilidade e correção de posturas, que a levam a cometer atos dos quais irá decorrer o necessário prejuízo patrimonial. Não basta assim a mera mentira, desligada de quaisquer outros elementos, para se poder falar em criação astuciosa de factos em sede de burla.
Neste sentido, ensina o Prof. Beleza dos Santos in RLJ, ano 76, pág.23, que a mentira, dissimulação ou silêncio do agente devem ser astuciosos, mesmo que se limitem a determinar as condições de atuação do sujeito passivo ou a aproveitar condições que lhes confiram particular credibilidade. Em sede de elementos subjetivos do tipo, se já foi dissecada a viciação volitiva da vítima, que é levada a atuar de forma a prejudicar-se a si própria ou a terceiro, importa acrescentar que a par do chamado dolo genérico - conhecimento dos elementos objetivos do tipo e vontade de realização típica - exposto no Artº 14 do C. Penal, em qualquer uma das suas modalidades, exige-se o já referido dolo específico, consubstanciado no referido propósito que anima o agente de obter um enriquecimento patrimonial que sabe não ser legítimo.
Isto posto, revertendo ao caso sub judice temos que em sede de inquérito procedeu-se à audição do legal representante da denunciante, QQ (cfr. 1023 a 1025) e foram inquiridas as testemunhas TT e ZZ (cfr. fls. 1346 a 1347 e 1401 a 1403).
Do compulso dos autos resulta que, aquando do seu depoimento, o representante legal da denunciante confirmou o teor da denúncia apresentada, tendo prestado esclarecimentos a propósito da mesma. Reiterou, para além do mais, a confiança no estudo técnico apresentado pelo consórcio, bem como se sentiu enganado por quem não lhe comunicou o que deveria saber sobre aspetos essenciais de um negócio de monta, que provocaram à empresa denunciante avultadíssimos prejuízos.
Por sua vez, a primeira das testemunhas inquiridas, o Eng. TT, engenheiro geotécnico, docente do ISEP, referiu, em síntese, que baseou o seu estudo nos relatórios geotécnicos da F..., empresa que procedeu ao estudo inicial (e solicitado pelo dono da obra REN), estudos esses que apontavam para a predominância de terreno escavável sem recurso a explosivos e que traduziu a premissa de contratar a empresa C.... Esta testemunha elaborou um estudo em que concluiu tratar-se da mesma extensão predominante, consignando no seu relatório que os dados sobre os quais assentavam tais conclusões estavam errados, na medida em que os métodos utilizados, sendo válidos, não conseguiram determinar as reais condições do terreno. Mais referiu que que tal terá sucedido por razões que desconhece, mas que não considera credível qualquer má fé na execução de um trabalho técnico desta natureza. A testemunha concluiu dizendo que “estamos em face de uma discussão técnica e não de intencionalidade sob qualquer má fé, sendo certo que as suas conclusões foram confluentes com as do seu colega da Universidade ..., também chamado a emitir parecer técnico sobre o mesmo assunto, neste caso pelo próprio consórcio de que faz parte a A...” (cfr. fls. 1347).
Pela segunda testemunha supra identificada, Engº ZZ, foi dito, em suma, que no caso concreto tratou-se do estudo geotécnico para construção de uma subestação (posto do corte). Mais referiu que …“a prospeção geológica é essencial e pressuposto da elaboração do parecer. Refere que o estudo foi baseado nas normas estabelecidas conforme doc. nº 1 junto aos autos. Na prática para elaboração do estudo e parecer são feitos vários ensaios com diferentes tipologias, devendo proceder-se à análise crítica de cada um deles e será isso que conduzirá à elaboração do estudo geológico. De acordo com o resultado dos ensaios foi feita a caracterização do terreno. Na prática os ensaios consistem na escavação de furos (ensaios com a broca SPT), normalmente a 20 metros de profundidade, fazendo-se testes de propagação ou de ondas para perceber as características do subsolo. O que se conclui dos ensaios é que se verifica existir uma fração do terreno que poderá ser escavada com meios ligeiros e outras que implicariam o uso de equipamentos como explosivos e martelo pneumático, conforme se pode constatar no mapa junto como doc. nº5 do anexo A. Relativamente ao estudo do LNEC, parece que globalmente não coloca em causa o estudo geotécnico elaborado.
No relatório relativo às condições técnicas especiais (cfr. doc. nº3, páginas 8, 16, 17 do anexo A) onde já se prevê a utilização de explosivos.
Relativamente a esta questão se observarmos o caderno de encargos da REN, já prevê em algumas passagens a possibilidade na utilização de explosivos.
Juntou aos autos o doc. nº3 que consiste numa nota técnica elaborada na sequência da contestação, em fase de execução da obra, formulada pelas entidades executantes junto da REN, tendo esta entidade solicitado ao depoente a realização da referida nota técnica, com vista a defender o estudo originalmente desenvolvido, em contraponto, como o teor das conclusões vertidas nos relatórios juntos aos autos, elaborados pela Universidade ... e pelo ISEP, relativamente à caracterização do terreno, estudos esses realizados a pedido das entidades executantes da obra (A... e C...).
Quanto à eventual suborçamentação realizada por parte do Consórcio A... B..., que concorreu à empreitada, a verdade é que, por vezes, os orçamentos são realizados pelo mínimo com vista à aceitação pelo dono da obra (no caso concreto a REN), podendo estar relacionado, também, com a pretensão de conseguir ganhar a empreitada, o que por vezes, leva à elaboração de orçamentos mais modestos, mas que na fase de execução da obra se mostram insuficientes para suportar os custos.
As empresas de terraplanagem, como a C..., não possuem, a maior parte das vezes, conhecimentos técnicos para interpretar os estudos geológicos elaborados, o que conduz a análises simplistas dos mesmos.
Relativamente aos estudos encomendados pela B... à Univ. de Aveiro e as C... ao ISEP, os mesmos são algo tendenciosos, como é o caso do relatório elaborado pelo ISEP a pedido das C..., referindo a questão da insuficiência dos ensaios realizados no estudo solicitado à F... pela REN.
No que concerne ao relatório da Univ. de Aveiro, elaborado a pedido da B..., o mesmo é tecnicamente pouco fundamentado, concluindo que se verifica existir uma divergência entre o estudo geotécnico realizado pela F... e as reais condições/características geológicas do terreno em causa.
O depoente realça que o estudo por si elaborado cumpre as normas estabelecidas para o efeito, indo mesmo além do número de ensaios recomendado por tais normas (cfr. doc. nº1).
Por outro lado, os estudos ignoram o cenário geológico resultante do estudo geológico-geotécnico, no âmbito do qual é patente que o grande volume de escavação está na Zona ZG1, que de acordo com a legenda do respetivo desenho (planta junto aos autos ano final do anexo A, planta que é parte integrante do estudo geológico) a sua escavabilidade apenas é exequível com auxílio de explosivos e martelo pneumático, o que não é tido em consideração ignorado pelos estudos do ISEP e da Univ. de Aveiro.”
Foram igualmente juntos os documentos referidos na parte final da denúncia (cfr. fls. 33/66) constantes de fls. 70 a 96, 97 a 115, 116 a 228, 231 a 256, 257 a 307, 308 a 310, 311, 312 a 324 e 325 a 429, bem como demais documentação anexa ( cfr. fls. 435 a 468, 473 a 511, 519 a 584, 592 a 672, 681 a 698, 703 a 705, 724 a 809, 816 a 827, 831 a 847, 852 a 944, 973 a 1008, 1029 a 1150, 1155 a 1348, 1415 a 1447).
Mostram-se também juntos aos autos, de fls. 1368 a 1375 a resposta aos quesitos do LNEC, bem como a documentação constante do Anexos A) a C).
E, em face desta prova produzida em sede de inquérito, o Ministério Público chegou à conclusão que inexistiam indícios suficientes da prática de qualquer crime por parte dos vários denunciados, designadamente do crime de burla qualificada, previsto e punível, pelo artigo 217º e 218º, nº2 al. d) do Código Penal que a assistente imputa aos arguidos na parte final do RAI.
Nesta sede de instrução foram inquiridas as várias testemunhas arroladas no RAI, melhor identificadas a fls. 1492, vº, e 1493, de entre elas as testemunhas o Eng. TT e Engº ZZ já ouvidas em sede de inquérito. Ambas as testemunhas prestaram pertinentes esclarecimentos a propósito da questão fulcral em apreciação nos autos, depoimentos que se nos afiguraram revestidos de isenção técnica.
O primeiro reiterou a sua posição vincada no inquérito, assumida perante a Policia Judiciária (cfr. fls. 1348), de que a questão fulcral coloca-se no estudo inicialmente elaborado pela F..., viciado por deficiente tratamento de dados e/ou falhas na realização de um trabalho, que por ser único suporte técnico à data, na linha das boas práticas, determinou todas as posições subsequentes, sendo que, as conclusões apresentadas por esse estudo, indicavam predominância de terreno escavável sem recurso a meios dispendiosos, ao contrário do que veio a verificar-se, não se encontrando o processo técnico ferido de qualquer intencionalidade.
O segundo - ZZ - membro do Conselho da sociedade comercial denominada F..., SA, sociedade responsável pela elaboração do estudo geológico-geotécnico que instruía o caderno de encargos da obra, referiu que não existem discrepâncias entre a conclusão da prospeção geotécnica e o solo onde a obra decorreu, sendo previsível a existência de uma elevada percentagem de solo de natureza rochosa e era previsível porque o local era uma região montanhosa acidentada e as peças do concurso (designadamente do relatório geológico-geotécnico) previam a existência de rocha desmontável com recurso a explosivos.
As identificadas testemunhas reiteraram, pois, o que já haviam dito no processo, tendo mantido, na essência, os depoimentos que haviam prestado no inquérito.
Relativamente às demais testemunhas inquiridas, designadamente RR, filho do sócio-gerente da assistente, e OO -engenheira ao serviço da assistente -, ambos acompanharam quer as negociações que conduziram à celebração do contrato de subempreitada quer a execução dos trabalhos, tendo revelado a forma como aquelas decorreram.
Por sua vez as testemunhas AAA, BBB, trabalhadores ao serviço da assistente estiveram presentes na execução dos trabalhos desde o inicio da obra até ao seu terminus, tendo revelado as dificuldades que a assistente teve na execução do contrato em apreço, relatando todos os constrangimentos que se vieram a verificar e as dificuldades que a assistente sentiu na execução dos trabalhos a que se havia vinculado, nada sabendo de relevante relativamente ao que se havia passado nas negociações do contrato e na celebração do mesmo.
De igual modo, as testemunhas CCC, DDD, EEE, FFF, funcionários de outras sociedades, conjuntamente com a assistente executaram respetivamente os trabalhos de perfuração suplementar, a operação de carga e a operação de redução do calibre do material desmontado, apenas tiveram conhecimento dos constrangimentos que a assistente vivenciou na execução dos trabalhos contratados, designadamente das dificuldades financeiras que aquela enfrentou a propósito de tal execução, nada sabendo de concreto relativamente à demais materialidade em discussão nestes autos, mormente no concernente aos contornos do relacionamento que foi entabulado entre a assistente e as sociedades arguidas.
Foram também ouvidas as testemunhas GGG e HHH, ambos trabalhadores ao serviço da REN e representantes da dona da obra nas reuniões havidas entre esta e os representantes das sociedades denunciadas, os quais relataram a forma como, nas reuniões em que estiveram presentes, se processaram as negociações entre assistente e as sociedades arguidas relativamente ao contrato de sub-empreitada que vieram a firmar.
Por último as testemunhas SS, trabalhadora ao serviço da A... e representante da dona da obra nas reuniões havidas entre o dono de obra e os representantes das sociedades denunciadas, e a testemunha WW, trabalhadora ao serviço da B... e representante da mesma nas reuniões havidas entre o dono de obra e os representantes das sociedades denunciadas, nos respetivos depoimentos procuraram esclarecer a forma como, nas reuniões em que tiveram intervenção, decorreram as negociações entre as partes e o que aí ficou acordado.
Portanto, as testemunhas acima mencionadas, na essência, depuseram sobre os contornos do relacionamento comercial que veio a ser estabelecido entre assistente e sociedades arguidas, tendo, de igual modo, tido conhecimento da forma como os trabalhos foram sendo executados por banda da assistente.
Sucede, porém, que da exegese dos aludidos depoimentos, e bem assim dos documentos juntos na instrução, não resulta que tenha existido qualquer elemento do tipo de burla na medida em que este pressupõe erro ou engano sobre factos astuciosamente provocados por quem pretenda obter enriquecimento ilegítimo, assim provocando prejuízo.
É facto que, como a este propósito sublinham Simas Santos/Leal Henriques[1], aquele enriquecimento ilegítimo «pode ocorrer por diversas formas: mediante um aumento patrimonial dos bens de terceiro ou do agente (...); mediante uma diminuição do passivo patrimonial do agente ou de terceiro (...); mediante a poupança de despesas, que são satisfeitas pelo lesado (...)». Essencial é, sempre, que o enriquecimento obtido não corresponda, objectiva ou subjectivamente, a qualquer direito.
Por seu turno, no que concerne ao elemento «uso de erro ou engano, astuciosamente provocado», importa realçar que o mesmo se traduz, desde logo, na mentira que provoca no lesado ou em outra pessoa uma falsa representação da realidade, sendo essa mentira utilizada intencionalmente pelo agente do crime como forma de provocar essa «ilusão».
Seguindo a lição de Miguez Garcia/Castela Rio[2] «[o] agente engana mistificando, induzindo em erro, provocando uma contradição entre a representação e a realidade».
Ora, no caso vertente, apelando aos elementos que podem ser colhidos nos autos deles não emerge que esteja suficientemente indiciado o dito elemento subjetivo do mencionado tipo incriminador, na justa medida em que os subsídios probatórios adrede produzidos não permitem afirmar que efetivamente qualquer um dos arguidos, no seu relacionamento com a assistente, tenha usado de erro ou engano, astuciosamente provocado com o propósito de a determinar a praticar atos que lhe causassem prejuízo patrimonial.
É certo que os autos evidenciam que no relacionamento negocial (mormente na fase negociatória que veio a culminar com a celebração do ajuizado contrato de sub-empreitada) entre a assistente e as sociedades arguidas se registaram diferendos quanto às informações que estas últimas lhe terão fornecido com vista à execução dos trabalhos que lhe foram adjudicados, verificando-se outrossim terem sido posteriormente percecionadas desconformidades entre a extensão e dificuldade dos trabalhos inicialmente previstos e aqueles que, após intervenção no terreno, se vieram a constatar serem necessários para a cabal realização da obra adjudicada, com o inerente aumento dos custos para essa execução.
No entanto, estando em causa crime essencialmente doloso não evidenciam os autos, com a necessária segurança e suficiência, indícios que legitimem razoavelmente a conclusão de que a atuação dos arguidos em todo o relacionamento estabelecido com a assistente seja de molde a considerar que tenham agido intencionalmente com o assinalado propósito de a enganar, estando-se antes em presença de questões que, na sua essência, dizem respeito ao eventual inadimplemento de deveres informacionais, erro na formação da vontade e alteração superveniente de circunstâncias, questões essas que, pela sua natureza, devem ser dirimidas não em sede criminal mas antes perante a jurisdição civil. Aliás, dos autos resulta que o objeto desta instrução está a ser discutido já no foro cível, correndo termos sob o processo com o nº 5827/16.9T8PRT, J7, da Central Cível desta Comarca do Porto.
Desta feita, da análise desta prova produzida em sede instrução somos levados a concluir que a mesma não tem a virtualidade de acrescentar conclusão diferente da que foi extraída dos subsídios probatórios que adrede foram recolhidos durante o inquérito e que conduziram ao despacho de arquivamento prolatado pelo Ministério Público, motivado por insuficiência de indícios da prática do crime ali denunciado.
Na verdade, da prova reunida, não é possível concluir que o processo técnico esteja ferido por qualquer intencionalidade, inexistindo indícios objetivos de que os arguidos tinham conhecimento das condições de escavabilidade por parte da contratante, somente tendo conhecimento do que o estudo revelara.
Deste modo, sufragamos inteiramente o entendimento preconizado pelo Ministério Público no seu despacho de arquivamento, quando aí escreve que “dos autos não resulta indiciado que os denunciados tenham atuado com uma intenção inicial e pré-ordenada de enganar, prejudicar a denunciante C....
Desta sorte, nada mais havendo nos autos, em termos de provas ou indícios, para além do exposto, o que se nos afigura manifestamente escasso, bem se consente a dúvida, persistente e fundada, sobre se os denunciados praticaram o apontado crime de burla. De resto, também não se indicia a prática de qualquer outro crime.
Assim estamos perante mero incumprimento das condições ajustadas, por preço aparentemente pouco ajustado, quer ao volume de obra contratada, quer à qualidade pretendida.
Desta forma, a conduta dos denunciados apenas tem consequências ao nível do foro civil, devendo aí ser apreciada, já que em obediência aos princípios constitucionais da subsidiariedade e da ultima ratio do direito penal, este só deve intervir quando a proteção dos bens jurídicos não possa alcançar-se por meios menos gravosos para a liberdade.
Consequentemente, no desfecho desta fase de instrução a conclusão não pode ser diferente daqueloutra a que chegou o Ministério Público no final do inquérito, já que das diligências de prova efectuadas, não foi possível apurar, com a necessária suficiência e consistência, indícios que apontem no sentido da existência (ou não) do crime de que os arguidos vêm denunciados, ou, dito de outro modo, inexistem indícios suficientes com idoneidade para formular uma acusação e sustentá-la, com mais probabilidade de condenação que absolvição, em sede de julgamento, contra os arguidos, nos termos do art. 283º, nº1 do CPP.
Como, a este propósito, tem sido entendido, quer pela jurisprudência, quer pela doutrina, “indícios suficientes” são aqueles que relacionados e conjugados, persuadem o Juiz da culpabilidade do arguido, fazendo antever, com razoável grau de probabilidade a sua ulterior condenação. A decisão de pronúncia deve, pois, ser precedida por um juízo de prognose, devendo apenas ser remetidos para julgamento os casos em que seja manifesta uma futura decisão condenatória. É que “tendo em conta as gravosas consequências da simples sujeição de alguém a julgamento, exige-se que a acusação e a pronúncia assentem numa alta probabilidade de futura condenação do arguido” - AC da RP, de 20/10/93, CJ, T. IV, pág., 261.
Efetivamente, na densificação do conceito de “indícios suficientes” a jurisprudência pátria vem decidindo que as provas recolhidas nas fases preliminares do processo penal não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas, tão só, da decisão processual no que respeita à prossecução do processo até à fase de julgamento. O juízo de probabilidade razoável de condenação enunciado no nº 2 do art. 283º do CPP, aplicável à pronúncia ou não pronúncia, não equivale ao juízo de certeza exigido ao Juiz na condenação. Os indícios são suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição (cfr. por todos, o AC da RC, datado de 23/5/2018, nº conv. 80/16.7GBFVN.C1)
No mesmo sentido também o AC da RP, datado de 7/12/2016, nº conv. 866/14.7PDVNG.P1, refere, “Com vista ao despacho de pronúncia a avaliação da prova, pelo juiz de instrução, é feita de forma indireta, sem imediação, sem oralidade, sem concentração e sem contraditório, tendo por base um texto escrito. A avaliação do seu valor probatório não conduz, por isso, ao mesmo grau de certeza que se adquire no julgamento. A avaliação da suficiência dos indícios que o juiz de instrução tem de fazer no momento da decisão instrutória da pronúncia, exige somente que conclua ser maior a probabilidade de condenação do que de absolvição. Existem indícios suficientes quando predomina a probabilidade de condenação (teoria da probabilidade dominante)”.
Assim, perante a falta de indícios suficientes, impõe-se, pois, o arquivamento, do processo, sendo tal, aliás, igualmente, uma imposição do princípio “in dúbio pro reo” que vigora no processo penal português, por força da sua consagração no art. 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa – de onde resulta que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.
Na verdade, a existir qualquer dúvida quanto à prática dos factos ilícito-típicos, sempre a mesma teria que ser resolvida a favor dos arguidos, for força da aplicação do aludido princípio in dubio pro reo (no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido), o que determinaria, em sede da fase de julgamento, naturalmente, a absolvição dos arguidos.
E, este princípio constitucional tem aplicação em todas as fases processuais em sede penal, incluindo na fase de instrução (cfr., por todos, o AC da RC, datado de 23/05/2018, nº conv. 80/16.7GBFVN.C1, in www.dgsi.pt, onde se decidiu que: “O Juiz de Instrução, aquando da prolação do despacho de pronúncia ou não pronúncia, deve ter presente na valoração da prova o princípio in dubio pro reo”.
A este propósito, veja-se, igualmente, o AC da RL de 16.11.2009, proferido no âmbito do proc. n.º 3555/09.TDLSB.L1-5, disponível no mesmo site, em cuja fundamentação se cita, além do mais, o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 439/02, que considerou que “a interpretação normativa dos artºs. 286º, nº1, 298º e 308º, nº1, todos do Código de Processo Penal, que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, previstas no art.º 32.º, n.º2, da Constituição”.
Destarte, impõe-se proferir despacho de não pronúncia dos arguidos a propósito de tal materialidade.
Como quer que seja, cabe ainda referir nesta oportunidade - tendo-se presente as considerações de direito tecidas supra - que a presente instrução se mostrava, desde logo, votada ao insucesso por inobservância dos requisitos previstos nas als. b) e d) do nº3 do 283º do CPP, aqui aplicável por força do disposto no art. 287º do, nº3 do mesmo diploma legal.
Com efeito, pese embora da exegese do RAI apresentado a fls. 1465 a 1493, resultem, na ótica da assistente, factos que eventualmente se possam reconduzir à previsão do crime supra enunciado, o certo é que a verdadeira acusação exigida pelo art. 283º, nº 2 do CPP, não se basta com esse tipo de alegação factual, sendo imprescindível também a recolha de indícios suficientes da imputação efetuada aos agentes, acompanhada da indicação de provas que sustentem a aludida alegação relativa ao ilícito em causa, o que não foi cumprido. Efetivamente o RAI nos casos como o dos autos deve configurar uma verdadeira acusação de tal forma que o Tribunal de Instrução Criminal em obediência estrita aos princípios constitucionais do acusatório e da vinculação temática faça, se for esse o caso, sua pronúncia o elenco de factos e o enquadramento jurídico-penal que deles for feito em tal peça processual. Portanto o RAI tem de conter uma acusação alternativa com todos os elementos necessários à imputação do crime e responsabilização penal dos arguidos, não resultando in casu do requerimento de abertura de instrução esses elementos essenciais na sua globalidade, como por exemplo: 1. A imputação subjetiva dos factos e a configuração da comparticipação criminosa dos arguidos, e da imputação da responsabilidade penal às pessoas coletivas. E, como já se adiantou supra, tal situação compromete desde logo os direitos de defesa dos arguidos visados com esta instrução, o que impõe a prolação do despacho de não pronúncia.
Importa, ainda, neste conspecto, referir que quanto ao âmbito da instrução - o qual é legalmente balizado pelo art. 286º do CPP - esta “visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento “.
Conforme ensina Lacerda Costa Pinto[3], a fase da instrução visa apreciar a decisão anterior do Ministério Público, quer seja uma decisão de arquivamento, quer seja uma decisão de acusação. Visa-se, no fundo, aferir a bondade da pretensão acusatória ou do arquivamento do processo realizado pelo Ministério Público.
Sendo a instrução (fase facultativa do processo comum), constitucionalmente da competência do juiz e portanto de uma entidade independente, não pode ser concebida senão nos moldes em que o Código a concebe: como comprovação judicial da decisão de deduzir ou não acusação tomada pelo MP; como atividade materialmente judicial, que não como atividade materialmente policial ou de averiguações. Decerto que durante a instrução o juiz pode levar a cabo atos singulares de averiguação no uso do seu poder-dever de investigação (arts. 288º nº 4 e 289º nº 1 do CPP), mas, só na medida requerida pela sua função de esclarecimento de um tema que lhe é proposto, pela sua função judicial [4].
Como refere J. Souto Moura [5] “… a instrução não é uma segunda fase investigatória, desta feita levada a cabo pelo juiz, e mais nada “.
A propósito dos atos de averiguação que o juiz pode encetar no âmbito da instrução, exarou-se no Ac. da R.G. de 1/2/2010 no proferido no proc. nº 333/06.2GBVAVV que “tais diligências não visam substituir a «investigação» do inquérito. Destinam-se a dissipar e esclarecer eventuais dúvidas existentes no espírito do juiz (e não na perspetiva subjetiva das partes) sobre a decisão que vai tomar. Discordando da solução do Ministério Público, o arguido ou o assistente submetem a questão ao juiz, para que este decida se o processo segue para julgamento ou é arquivado. É nisto que consiste a essência da «comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito».
No mesmo sentido, entre muitos outros, exarou-se no Ac. da R.P. de 21/10/2009 proferido no proc. nº 2600/02.5TDPRT que “A instrução é uma instância de controlo e não de investigação, embora no seu âmbito possa ser feita investigação (cfr. v.g. art. 288º nº 4 ). O juiz investiga autonomamente, mas dentro do acervo factual que lhe é apresentado no requerimento de abertura da instrução. Tal requerimento delimita os poderes de atuação o juiz. A instrução destina-se a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento e não a completar, ampliar ou prolongar o inquérito ou à feitura de uma outra investigação dos factos, levada a cabo pelo juiz, diferente da do MP”.
No mesmo sentido, decidiu o Ac. da R.P. de 27/6/20076 onde se exarou que “(…) a instrução não é uma segunda fase investigatória, suplementar do inquérito, destinada a averiguar a existência de um crime e a determinar os seus agentes. Tais finalidades reservou-as a lei exclusivamente para o inquérito, dirigido pelo Ministério Público, a quem cabe a iniciativa da ação penal”.
Na esteira destas considerações resulta, pois, que a presente instrução, com o assinalado âmbito, não pode, pois, estender-se a factos novos que consubstanciem novos ilícitos criminais que não foram considerados quer no despacho de arquivamento, quer no requerimento de abertura de instrução, sendo certo que, conforme vem sendo recorrentemente sublinhado na casuística (cfr., por todos, acórdão do STJ de 11.09.2019, no processo nº 47/17.8YGLSB, acessível em www.dgsi.pt), o juiz de instrução não deve investigar, mas apenas exercer o controlo do despacho de arquivamento do Ministério Público.
Como assim, não se vislumbram, pois, razões objetivamente sustentadas que importem decisão diversa daquela que foi acolhida no despacho de arquivamento prolatado nos autos.
Uma última palavra se justifica quanto à formalidade da presente decisão e desnecessidade de inventariar factos indiciados e não indiciados.
Dispõe-se no nº 1 do art. 308º do CPP que se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia. Despacho que começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais que possa conhecer, nº 3 da citada disposição legal.
Ora, despacho nos termos da al. b) do nº 1 do art. 97º do CPP, é a decisão judicial que conhece de qualquer questão interlocutória ou quando puserem termos ao processo fora do caso previsto na alínea anterior (al. a)).
Ou seja, a decisão instrutória é um despacho, não é uma sentença, sendo que quanto à decisão instrutória de não pronúncia, trata-se esta sempre de “uma decisão de conteúdo estritamente processual, na qual o tribunal não conhece do mérito da causa, mas simplesmente da não verificação dos pressupostos necessários para que o processo possa prosseguir para julgamento. (…) Constitui, do ponto de vista formal, uma absolvição da instância, ou seja, uma decisão que não põe termo à causa” – AC. do STJ, datado de 18/01/2006, proc. nº 3613/05, 3ª secção.
Como decisão interlocutória o seu formalismo está prescrito nos artigos 97º 5, 307º, 1 e 308, 1, do CPP, que exigem a análise da prova, no sentido do apuramento, ou não, de indícios suficientes da prática do facto, sendo que a decisão pode ser feita por remissão (para a acusação ou para o RAI), nos termos definidos pelo artigo 307º, 1, in fine, sendo que como se refere no Ac. do S. T. J. de 03/04/91, proc. nº 41612, "a lei apenas exige a motivação ou fundamentação, no sentido de permitir ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz", ou ainda como refere Marques Ferreira, in Jornadas de Direito Processual Penal, 229-230: "os motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados, nem os meios de prova, mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido...". E sendo os artigos 307º e 308º do CPP normas especiais que regulam o formalismo da decisão instrutória, não se verifica qualquer omissão, sendo esses e só esses os pressupostos a que deve obedecer a decisão instrutória, não se justificando a aplicação analógica do nº2 do artigo 374º do CPP, requisitos da sentença, sendo que a hipótese da remissão acima referida afasta com clareza tal aplicação analógica.
Não se trata, pois, aqui, nesta fase processual, de factos provados ou não provados, indiciados/imputados ou não indiciados/imputados como numa sentença, sob pena de violação, com a pronúncia, do princípio fundamental em que assenta todo o direito penal: da presunção de inocência, pois, como refere Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, pág. 356, no comentário a este princípio: "A dúvida sobre a culpabilidade do acusado é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim". Trata-se, tão só e apenas nesta fase de, como refere a lei, art. 308º, nº 1 do CPP, "recolha, ou não de indícios", ou seja, de análise da prova.
Face ao exposto, pelas razões enunciadas, porque não resulta suficientemente indiciada a prática de qualquer ilícito criminal por parte dos arguidos A..., SA, AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, B..., SA, II, JJ, KK e LL, designadamente o crime de burla qualificado, p. e p. pelo artigo 217º e 218º, nº 2 al. d) do Código Penal, e bem assim por aplicação do princípio “in dubio pro reo”, não se pronunciam os arguidos pela prática do aludido crime, e determino o oportuno arquivamento dos autos.»
B) Fundamentação de direito:
Cumpre apreciar as questões que são suscitadas pela recorrente nas conclusões do recurso:
1) saber se o despacho de pronúncia deveria ter enunciado os factos indiciados e não indiciados.
2) saber se os arguidos deveriam ter sido pronunciados pela prática do crime que lhes é imputado no RAI.
Vejamos!
1.
Na decisão instrutória a Sr.ª Juiz de Instrução expressamente afirma a desnecessidade de enumerar os factos indiciados e os não indiciados por o despacho de pronúncia não ser uma sentença e essa enumeração constituir risco de violação da presunção de inocência constitucionalmente consagrada.
Estamos de acordo que o despacho de pronúncia não é uma sentença e por isso não lhe é aplicável o disposto nos artigos 374 nº2 e 379 do CPP.
Porém, o nº 2 do art. 308 do CPP estende expressamente o regime do art. 283 nºs 2, 3 e 4 ao despacho de pronúncia.
A parte final do citado preceito: «sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo anterior.», parece excluir da necessidade de enumeração dos factos o despacho de não pronúncia, e daí que tenham surgido duas correntes de jurisprudência.
Uma corrente considera que o despacho de não pronuncia apenas tem de conter uma análise critica das provas uma vez que não servirá como delimitador do objeto de uma audiência de julgamento, além do que apenas forma caso julgado formal, nada impedindo a reabertura do inquérito para obtenção de novos meios de prova.
Neste sentido os Acórdãos desta Relação de 16/01/2002, relatado por Miguez Garcia e o Ac. de 14/02/2007, relatado por Ernesto Nascimento.
A outra corrente considera obrigatória a narração dos factos não indiciados porque é sobre esses factos que incide o efeito de caso julgado.
Neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, (Ed.2007 Universidade Católica), ponto 10 das notas ao art. 308: «A narração dos factos que não estão suficientemente indiciados no despacho de pronúncia é fundamental, porque é sobre esses factos que incide o efeito de caso julgado. A delimitação objetiva e subjetiva rigorosa dos factos no despacho de não pronúncia constitui, pois, garantia última da segurança jurídica do arguido.»
Com a mesma orientação veja-se o Código de Processo Penal Comentado por António Henriques Gaspar, Henriques dos Santos Cabral e outros, Ed. De 2004, ponto 4 dos comentários ao art. 308:
«O despacho de não pronúncia por insuficiência de indícios deverá fixar expressamente quais os factos que considera não suficientemente indiciados. É que sobre tais factos forma-se caso julgado forma-se caso julgado, em termos de ser inadmissível a reabertura do processo face à eventual descoberta de novos factos ou meios de prova, ao contrário do que acontece com o inquérito arquivado, que pode ser reaberto se forem descobertos novos factos (art. 279 nº1).
Esses elementos novos só poderão ser considerados por meio de recurso de revisão, previsto nas als. a) e b) do nº1 do art. 449 (únicos casos de revisão pro societate). Neste sentido, ver Damião da Cunha, “ne bis in idem e exercício da acção penal”, “Que futuro para o processo penal?” (…)
A diferença de tratamento das duas situações radica na diferente natureza das decisões: o despacho de arquivamento constitui uma decisão “unilateral” do MP, que põe termo a uma fase processual caracterizada pela falta de contraditório. Pelo contrário a decisão instrutória de não pronúncia é proferida após um debate público, contraditório e tematicamente vinculado. Por isso a tomada de posição sobre aqueles factos pelo juiz de instrução terá de beneficiar do princípio do caso julgado, como decisão jurisdicional que é.»
Na jurisprudência defendendo a posição que o despacho de não pronúncia por insuficiência de factos indiciados constitui uma decisão de mérito que tem, por isso, força vinculativa, dentro do processo em que foi proferida, mas também fora dele, constituindo caso julgado res judicata e por essa razão este despacho de não pronúncia tem de especificar os factos em relação aos quais existe prova indiciária suficiente e aqueles em relação aos quais não existe, pois só através dessa seleção e enumeração é possível o conhecimento da questão em recurso, citamos o Ac. da Relação de Lisboa de 28/09/2017 relatado por João Abrunhosa de Carvalho e da Relação do Porto de 14/06/2017 relatado por Eduarda Lobo.
No caso em apreço, a decisão recorrida é completamente omissa quanto aos factos alegados no requerimento de abertura da instrução que considera suficientemente indiciados e os não suficientemente indiciados, por a Srª Juiz de Instrução expressamente entender que essa enumeração era desnecessária.
Não podemos concordar com tal entendimento e sendo certo que é o RAI que fixa o objeto do processo, ou seja, a temática dentro da qual se irá desenvolver a atividade de investigação do Juiz de Instrução, a referida omissão afeta a decisão proferida.
De acordo com sumário do Ac. da Relação de Évora de 01/03/2005 relatado Por Orlando Afonso : «III - Para que o Tribunal da Relação possa fazer uma valoração lógica da gravidade, precisão e concordância dos indícios necessita saber quais os indícios tidos por assentes pela 1ª instância, para, em operação posterior, confrontando a prova carreada à instrução, se pronunciar num ou noutro sentido.
IV - O despacho de pronúncia ou de não pronúncia há-de conter, ainda que resumidamente, os factos que possibilitaram chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência da prova indiciária.»
E citando parte do texto desse mesmo Acórdão:
«Não compete ao Tribunal da Relação concatenar os factos apurados e substituir-se à Mmª Juiz de Instrução na prolação de despacho de pronúncia ou não pronúncia mas tão somente, por força do recurso, em vista de factos indiciários descritos, corroborados ou não por outros elementos dos autos, decidir se todos eles são suficientes ou insuficientes para o proferimento de um despacho de pronúncia ou não pronúncia a levar a efeito sempre em primeira instância. A ausência de factos descritos impede a análise pelo Tribunal “ad quem” da bondade da solução encontrada em sede de instrução.»
Tal irregularidade é de tal modo grave que impede o reexame da causa pelo Tribunal de recurso, e por esse motivo, atinge a validade do despacho proferido e ora recorrido, integrando-se no disposto no art. 123 nº2 do CPP que dispõe: «Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do ato praticado.»
Nestes termos no caso concreto urge ordenar a remessa dos autos à primeira instância para reparação da referida irregularidade consistente na falta de descrição dos factos suficientemente indiciados e dos não indiciados.
Atenta a solução dada à primeira das questões fica prejudicado o conhecimento da segunda questão recursiva que supra foi elencada.
3. Decisão:
Pelo exposto, acordam os juízes na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto, em julgar inválida a decisão recorrida, nos termos do art. 123 nºs 1 e 2 do CPPP, que deverá ser substituída por outra que proceda à reparação da irregularidade consistente na insuficiente fundamentação da decisão instrutória por falta da enumeração dos factos indiciados e dos não indiciado, por referência ao requerimento de abertura da instrução elaborado pela assistente, assim se concedendo provimento parcial ao recurso interposto por C..., LDA.
Sem tributação.

Porto, 24.5.2023
Paula Guerreiro
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo
____________
[1] In Código Penal Anotado, 3.ª edição, 2.º Volume, Parte Especial, Editora Rei dos Livros, 2000, pág. 839.
[2] In Código Penal – Parte geral e especial com notas e comentários, Almedina, 2014, pág. 915.
[3] Cfr.Direito Processual Penal, pág. 145.
84] Cfr. J. Figueiredo Dias in " Sobre os Sujeitos Processuais no Novo Código de Processo Penal, Jornadas de Processo Penal,...Coimbra, Almedina, 1992, pág. 16.
[5] Cfr. ob. Cit, pág. 125.