NULIDADE DE SENTENÇA
REJEIÇÃO DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
USO INTEGRAL DO IMÓVEL
COISA COMUM
Sumário

1 - Há lugar à rejeição da impugnação da decisão de facto quando, não obstante nas conclusões da alegação o recorrente indica os concretos pontos do elenco de factos não provados que pretende ver incluídos no elenco de factos provados, omite por completo a identificação dos meios de prova que, no seu entender, determinam tais alterações, quer nas conclusões da alegação, quer no corpo da mesma.
2 - O disposto no nº 1 do art.º 1406º do Código Civil deve ser interpretado no sentido de a limitação ao uso integral da coisa por qualquer um dos consortes se expressar na correspondente necessidade da sua concreta utilização por qualquer um dos demais consortes, daí emergindo os interesses conflituantes.
3 - Tratando-se de uma coisa que, pela sua própria natureza, não permite o uso directo simultâneo, mas apenas o uso integral (como é o caso de um prédio urbano destinado a habitação e indivisível em várias unidades habitacionais autonomizáveis), o uso integral por um dos consortes só constituirá um acto ilícito na medida em que se possa afirmar assistir a outro consorte um interesse juridicamente relevante ao mesmo uso integral, com vista ao aproveitamento imediato das aptidões naturais da coisa (já que é nisso que se consubstancia o uso).
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

AMN intentou acção declarativa com processo comum contra JC, pedindo que seja reconhecida como comproprietária do prédio urbano que identifica, sito no concelho de Sintra, bem como do respectivo recheio, e que se condene o R. no reconhecimento desse direito e na entrega do mesmo à A., livre e devoluto de pessoas e bens, bem como a pagar-lhe a quantia que se vencer, no montante mensal de € 1.500,00, desde Julho de 2011 até efectiva entrega do imóvel.
Alega, em síntese, que:
. A. e R. foram casados e divorciaram-se em 30/10/2012, pertencendo o imóvel em questão ao património comum do dissolvido casal;
. O R. usufrui do mesmo em exclusivo desde Junho de 2011, tendo-o afectado a sua habitação própria e permanente, sem consultar a A. e não a autorizando a usufruir do mesmo;
. Em 2012 a A. tentou acordar com o R. o gozo do imóvel, o que o R. recusou;
. O R. alterou a configuração do imóvel sem o conhecimento ou consentimento da A.;
. A conduta do R. impede a A. de utilizar o imóvel ou até de o rentabilizar economicamente, tendo em conta que o valor de renda mensal de um imóvel com as características do mesmo rondará €3.000,00.
Regularmente citado, o R. apresentou contestação com reconvenção, aí alegando, em síntese, que:
. Desde Julho de 2011 A. e R. deixaram de viver em comum, o que ocorreu por iniciativa da A. quando estabeleceu que, havendo duas casas, ficaria a viver na casa de Lisboa e o R. ficaria a viver no imóvel em causa nos autos;
. Entretanto a A. comunicou-lhe que deixaria de contribuir para o pagamento dos empréstimos bancários contraídos para adquirir o terreno e para construir a casa e todas as demais construções que integram o imóvel em causa nos autos;
. Desde Julho de 2011 passou a ser o R. quem suportou todas as despesas com tal financiamento;
. Porque o R. não conseguia suportar sozinho o financiamento em questão e a renda do imóvel onde passou a residir, viu-se obrigado a rescindir tal arrendamento e a ir habitar com os filhos para o imóvel em questão nos autos, não obstante tal o obrigar a percorrer diariamente a distância de 65,2 quilómetros;
. Em todo este período a A. nunca manifestou perante o R. ou os seus filhos qualquer atitude reveladora de desagrado pelo facto de estes terem passado a habitar no imóvel em questão nos autos;
. A A. sempre manteve as chaves do prédio, nunca as tendo entregue ao R. e sendo livre de aceder ao prédio em questão, não o fazendo apenas porque não quer, já que o R. nunca mudou fechaduras ou códigos de alarme, que são do conhecimento da A.;
. Quanto ao recheio, o mesmo é propriedade exclusiva do R. em consequência da transacção celebrada com a A. no processo de inventário para partilha dos bens comuns do casal dissolvido;
. O valor locativo mensal do imóvel não corresponde a €3.000,00 e nunca correspondeu.
Conclui pela improcedência da acção e, em reconvenção, pede a condenação da R. no pagamento dos juros à taxa legal vencidos e vincendos sobre 50% das prestações dos empréstimos por si pagas, perfazendo os vencidos o montante de € 10.777,17.
A A. apresentou réplica, aí invocando a prescrição dos juros peticionados e que se venceram até Janeiro de 2014, mais impugnando a matéria da contestação que entende corresponder a matéria de excepção. Conclui pela improcedência da reconvenção e como na P.I.
Com dispensa da audiência prévia foi fixado o valor da causa, admitida a reconvenção, proferido despacho saneador tabelar e conhecido parcialmente o mérito da causa, através de sentença com o seguinte dispositivo:
Julga-se a presente acção parcialmente improcedente, por parcialmente não provada, e, em consequência, absolvo o Réu do pedido referente ao reconhecimento da qualidade de comproprietária do imóvel descrito na 1.ª Conservatória de Registo Predial de Sintra sobre o n.º (…) e condenação do mesmo na sua entrega à Autora, livre e devoluto de pessoas e bens.
Custas a final”.
Desta sentença que conheceu parcialmente do mérito da causa não foi interposto recurso, tendo a mesma transitado em julgado.
Foi ainda identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Após realização da audiência final foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
Face ao exposto:
a) julgo a presente acção totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência absolve-se o réu do pedido.
b) julgo a reconvenção improcedente por não provada e, em consequência, absolvo a autora do pedido reconvencional.
Custas da acção pela Autora e da reconvenção pelo Réu”.
A A. recorre desta sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
1. Advém o presente Recurso da Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo notificada a 23.11.2022 que julgou a presente acção totalmente improcedente, por não provada e em consequência, absolveu o R. do pedido, porquanto entendeu, em suma, que:
d) “(…) a Autora se auto-prescindiu e se auto despejou do uso do imóvel. Não encontramos nenhum facto objectivo e sólido que nos permita afirmar que o Réu, por qualquer acto, privou ou se opôs à utilização do imóvel pela Autora.”;
e) “Dos factos provados resulta à saciedade que o Réu não impediu a Autora, seja por coacção física, seja por coacção moral, de usufruir da casa de Sintra, que constituía a casa de fins-de-semana do casal.”;
f) “Com efeito, sendo lícita a ocupação por parte do Réu e não tendo o mesmo privado a Autora do seu uso, nenhuma indemnização há a fixar
2. A ora Recorrente não pode conformar-se com a Decisão proferida que, face à factualidade e prova documental e testemunhal constante dos presentes Autos e às especificidades do caso sub judice, concluiu ter sido a Recorrente a responsável pela não utilização do imóvel de que é também proprietária em Sintra.
3. O Douto Tribunal pura e simplesmente não relevou, nem valorizou os motivos e as razões, ponderosas, que levaram a Recorrente a não poder usufruir da casa de Sintra concluindo, de forma simplista, que fora por opção da mesma.
4. Não obstante terem ficado sobejamente provadas as razões que inviabilizaram a Recorrente de poder continuar a utilizar a casa de Sintra – aliás assentes e reconhecidas na Sentença e na respectiva fundamentação – a M. Juiz entendeu que as mesmas não eram as bastantes para concluir que a utilização exclusiva pelo Recorrido constituiu actuação ilícita.
5. A nulidade da sentença prevista na alínea c) do nº. 1 do artº. 615 do CPC, ocorre quando os fundamentos invocados pelo Juiz deveriam logicamente conduzir ao resultado oposto ao que vier a ser expresso.
6. O que é o caso dos presentes Autos!
7.- O Recorrido – por decisão unilateral – ao instalar-se na casa de Sintra, que em 2013 até afectou à sua habitação própria e permanente, sem consultar a Recorrente, impediu-a de poder livremente usufruir da casa que é também a sua. – Pontos 4, 6, 7, 8, 11 e 29 dos Factos Provados
8. A Sentença recorrida, salvo o devido respeito, não fez a devida apreciação da prova, nem da mesma retirou as conclusões que se impunham, considerando as particularidades do caso concreto.
9.E que de resto decorrem claramente da respectiva Fundamentação de Facto, tendo em conta que o Douto Tribunal deu como provado que o Recorrido tinha plena consciência que a sua utilização da casa de Sintra na qual em 2013 até instalou a sua residência permanente, era razão bastante para impedir que a Recorrente fruísse também da mesma.
10.A conduta do Recorrido foi assim propositada e intencional para privar a Recorrente de utilizar a casa de Sintra - o que logrou alcançar - pelo que deveriam/teriam de ter sido dados como PROVADOS os factos constantes das alíneas a), h), i e j) de A.2 e assim a ilicitude da ocupação do imóvel pelo Recorrido.- vide Petição Inicial, Docs. juntos sob os nºs. 5 e 6 com a PI – certidão dos Autos de Inventario e fundamentação de facto da Sentença.
11.Da fundamentação supratranscrita da douta Sentença do Tribunal ad quo, não foi correctamente valorada a convicção da M. Juiz decorrente da factualidade dada como provada, pelo que existe clara contradição com a decisão da Sentença proferida.
Ou seja,
12.A Decisão ora em recurso está eivada de nulidade já que tendo em conta a factualidade dada como provada nos Autos e a fundamentação de facto constante da mesma, não poderia o Douto Tribunal ter decidido conforme a Sentença de que se recorre, julgando a acção totalmente improcedente e absolvendo o Recorrido do pagamento de qualquer tipo de compensação a favor da Recorrente.
13.Nulidade nos termos da alínea c) do nº. 1 do artº. 615º do CPC.
Certo é que,
14.Pelo menos em Março de 2016 e no âmbito dos supra-referidos Autos de Inventário, a ora Recorrente na Reclamação à Relação de Bens apresentada pelo Cabeça de Casal e em expressa manifestação da sua oposição à utilização unilateral da casa de Sintra, peticionou como compensação que entendeu ser‑lhe devida pela ocupação exclusiva, o pagamento de uma indemnização correspondente a metade do valor de mercado da renda do referido imóvel, tendo em conta que do mesmo não podia usufruir por se encontrar a ser utilizado unicamente pelo seu ex-marido, face ao inesperado deste ter vindo relacionar um crédito sobre o património comum relativo a metade do pagamento das prestações do empréstimo contraído por ambos para a respectiva aquisição.
15.O Recorrido, pelo menos a partir de 1 de Março de 2016, tomou conhecimento da oposição da Recorrente.
16.Factualidade esta que de resto se encontra provada no ponto 4 de A1 – (factos provados com relevância para a decisão da causa), por força da prova documental junta aos Autos, concretamente dos documentos 5 e 6 juntos com a petição inicial, de fls. 15 e segs., tal como decorre da Sentença em recurso.
17.Posição que também reiterou expressamente com a instauração em 21 de Novembro de 2018 dos presentes Autos, peticionando a condenação do ora Recorrido a pagar à Recorrente, o valor reclamado a título de compensação pela detenção exclusiva do imóvel.
18.A partir de 1 de Março de 2016 – data do pedido da A. nos autos de inventário - ou, no limite, (o que apenas se admite por mera hipótese, sem conceder) a partir da citação em 2018 do ora Recorrido para os presentes Autos, o mesmo tomou conhecimento da posição da Recorrente.
Pelo que, repete-se,
19.Pelo menos, desde 2016 sempre teria o Tribunal que dar como provada a conduta ilícita do ora Recorrido, não consentida pela ora Recorrente, privando-a do seu direito de usar, fruir e dispor do imóvel que é também sua propriedade.
20.Donde, a factualidade constante das alíneas h), i) e n) de A.2-Factos não provados – deveria ter sido dada como PROVADA, pelo menos, a partir de 2016, com base nos documentos 5 e 6 juntos com a petição inicial de fls. 15 e segs e que o Douto Tribunal deu como provados.- Ponto 4 de A.1, o que se argui e requer no âmbito do presente Recurso.
Pelo que,
21. Deverão ser dados como provados os seguintes factos de A.2:
a) O Réu não consultou a Autora nem esta autorizou o facto provado em 7, ou seja, o afectar o imóvel para sua residência permanente;
h) A A. foi forçada a prescindir do uso da casa de Sintra;
i) O Reu ou a utilização da casa pelo Reu como sua habitação não permite à Autora o uso do referido imóvel;
j) Em Janeiro de 2012 a Autora tentou acordar com o Réu o gozo da casa, o que este recusou, pelo que a Autora receosa de confrontos e conhecedora do feitio hostil do R. se tenha visto forçada a não usufruir da casa de Sintra.
n) A Autora encontra-se despojada, pelo menos desde 2016, da posse do imóvel.
22. O objecto do presente Recurso encontra-se assim circunscrito às seguintes questões:
a) Saber se a Sentença proferida pelo Tribunal a quo é nula por oposição entre os fundamentos e a decisão;
b) Saber se deve ser reapreciada a matéria de facto impugnada face à prova produzida, nomeadamente a documental constante dos Autos;
c) Saber se a Autora/Apelante dever ser indemnizada pelo uso do imóvel de que é também proprietária.
23. Para tanto haverá que apreciar e ponderar tendo em conta a factualidade provada nos Autos e a Fundamentação de Facto da Sentença:
- Se o Recorrido impediu a Recorrente de exercer os mesmíssimos direitos sobre o bem e, com isto, agiu ilicitamente constituindo-se na obrigação de indemnizar;
- Se é possível considerar a conduta do Recorrido como ilícita, não pelo uso do imóvel de Sintra, mas pela inibição da Recorrente de fazer igual uso do mesmo;
- Se a Recorrente se auto-prescindiu e se auto despejou do uso do imóvel.
24. Decorre da factualidade provada nos Autos relevante para a apreciação do presente recurso que:
- A Recorrente e o Recorrido são proprietários do prédio urbano sito em Rua (…), concelho de Sintra, (…), com o valor patrimonial de € 189.050,00.
-A Recorrente e o Recorrido foram casados no regime da comunhão de bens adquiridos, tendo o seu casamento sido dissolvido na sequência da convolação do Divórcio Litigioso - que correu termos no Juiz 4 do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, (…), homologado por Sentença de 30 de Outubro de 2012, transitada em julgado.
- De forma a proceder à partilha dos bens do dissolvido casal e porque não houve entendimento do dissolvido casal, correm termos Autos de Inventário, no Juiz 8 do Tribunal de Família e Menores de Lisboa (…).
- No âmbito dos Autos de Inventário, a 01.03.2016 a Recorrente apresentou Oposição à Relação de Bens Comum do Casal onde alegou o seguinte:
1. Desde Junho de 2011 que o Cabeça de Casal, por sua única iniciativa, tem habitado e usufruído em exclusividade, o imóvel pertença dos ex-cônjuges e descrito sob a verba nº 19 da Relação de Bens, tendo aí inclusive a sua morada fiscal.
2. Assim, afectou o referido imóvel para sua habitação própria e permanente, não tendo sequer consultado a interessada ora Reclamante, nem autorizando que esta dele usufrua.
5. Sendo tal imóvel bem comum e não podendo a Reclamante dele usufruir, estando este a ser utilizado unicamente pelo cabeça de casal, reclama aquela, a título de rendas vencidas pelo uso exclusivo do imóvel pelo Cabeça de Casal, a quantia total de €82.500,00 - assim calculada: de 1 de Julho de 2011 a 30 de Março de 2014 = 55 meses x € 1.500,00 = € 82.500,00.
- Em Setembro/Outubro de 2013 mudou a sua residência para a casa de Sintra, afectando o referido imóvel para sua habitação própria e permanente, ali registando inclusivamente a sua morada fiscal, do qual após a separação ocorrida em 2011, por sua iniciativa, passara a usufruir em exclusividade.
25.Para a Recorrente, de personalidade recatada e avessa a conflitos, a mera possibilidade de se confrontar e de coabitação com o ex-marido no mesmo espaço, ainda que em fins-de-semana, era para si insustentável, sabendo que a presença de ambos na mesma casa seria motivo de confrontos, mal-estar e discussões, o que, de resto, é do senso comum e decorre das regras de experiência da vida.
26.Decorre expressamente da fundamentação de facto da Sentença em recurso “... a não utilização da casa pela Autora tinha como justificação o feitio da Autora, avessa a confrontos e por forma a evitar qualquer “encontro não desejado” com o Réu.
27.Sendo que é a própria Julgadora que conclui, tal como se lê na fundamentação de facto da Sentença, “...sem prejuízo de ser do conhecimento do R. que a sua presença seria determinante para que a Autora deixasse de ir”!
28.O Recorrido tinha assim total conhecimento e consciência que a sua presença – no pós divorcio– sempre seria – e continua a ser – o bastante para que a Recorrente não pudesse, nem conseguisse utilizar e fruir da casa de Sintra.
29.O que é, aliás, reconhecido ao longo da Fundamentação e de Facto e na Decisão em recurso.
30.A Sentença proferida pelo Tribunal a quo é assim nula por oposição entre os Fundamentos e a Decisão.
31.A oposição da Recorrente à utilização (abusiva) do imóvel de Sintra pelo Recorrido, face às circunstâncias específicas do caso dos Autos, resulta expressamente transmitida, quer nos Autos de Inventário em Março de2016, quer com a instauração em 21.11.2018 dos presentes Autos.
32.Tal como ficou provado o Recorrido passou a residir permanentemente na casa de Sintra desde Setembro/Outubro de 2013, onde se mantém a residir até à data.- (pontos 7, 11 e 29 de A.1. dos factos com relevância para a decisão da causa)
Sendo que,
33. Nunca seria exigível e muito menos desejável ou sequer defensável que ex‑cônjuges continuem a partilhar e a utilizar um imóvel comum a pretexto de, tal como se decidiu na Sentença em recurso... apenas por no entendimento sufragado pela M. Juiz “não se ter provado coacção moral ou física por parte do Reu que impedisse a utilização e fruição do imóvel pela Autora...”.
34. E tal como é reconhecido na Sentença em recurso “... a Autora, por questões relacionados com o seu temperamento, personalidade e sensibilidade não tolerou a hipótese de se poder “cruzar” ou “encontrar” com o Reu na casa de ambos.
35. E, por essa razão, concluiu a M. Juiz que a Autora “autoexcluiu-se do uso da casa “...
36. Reconhecendo-se, contudo, na Sentença que “... o Reu conhecia a Autora, sabia da sua forma de ser e de estar e que por isso saberia que ao viver para a casa estaria de certa forma a comprometer o seu uso pela Autora.
Ou seja,
37. O Tribunal, não obstante, reconhecer que o Recorrido tinha total consciência de que a sua presença inibia e impedia a Recorrente – atento o seu temperamento e personalidade avessa a confrontos - de utilizar a fruir da casa de Sintra, o que, como resulta das regras de experiência comum, é absolutamente normal entre ex‑cônjuges, e não uma especial característica do temperamento da Recorrente, pelo qual deva ser penalizada,
38. Ainda assim sanciona a actuação do Recorrido que claramente se aproveitou da circunstância do feitio e da extrema sensibilidade e do receio de confrontos e desavenças por parte da Recorrente, na situação de pós-divorcio, para utilizar de forma exclusiva o imóvel que é propriedade comum de ambos.
39. O Tribunal a quo face à factualidade dada como provada entendeu que:
. “Dos factos provados resulta à saciedade que o Réu não impediu a Autora, seja por coacção física, seja por coacção moral, de usufruir da casa de Sintra, que constituía a casa de fins de semana do casal.”-
. A Autora, por questões relacionadas com o seu temperamento, personalidade e sensibilidade não tolerou a hipótese de se poder “cruzar” ou “encontrar” com o Réu na casa de ambos. E por isso autoexcluiu-se do uso da casa.” (sublinhado nosso)
. “Poder-se-ia dizer que o Réu conhecia a Autora, sabia da sua forma de ser e de estar, e que por isso saberia que ao ir viver para a casa estaria de certa forma a comprometer o seu uso pela Autora.” (sublinhado nosso)
. “Sem qualquer juízo de desvalor para a personalidade e temperamento da Autora, o facto é que não podemos imputar as opções que derivam dessa mesma forma de ser ao Réu, só porque ele as conhecia.
40. A Recorrente, após a separação do dissolvido casal e porque não fora possível acordar entre ambos a utilização do imóvel de Sintra, até à partilha ou venda a terceiros e para obstar e por receio de possíveis situações de confronto com o Recorrido, viu-se forçada a não o utilizar.
41. Não apenas pelo seu temperamento ou personalidade, mas também pelo justificado receio de eventuais comportamentos e da postura habitualmente agressiva do Recorrido.
42. O Recorrido, conhecedor do feitio avesso a conflitos e ao confronto por parte da Recorrente, instalou-se e tomou posse da casa de Sintra, bem sabendo que a sua utilização impediria que a Recorrente fruísse da mesma, para dessa forma aproveitar‑se da sua utilização exclusiva, sem o pagamento de qualquer compensação à A.
43. Actuação esta reconhecida na Sentença em recurso e que, contudo, foi pela mesma sancionada.
Pelo que,
44. O entendimento adoptado na Decisão recorrida é, salvo o devido respeito, injusto e contrário à Lei.
45. O Tribunal ignorou e negligenciou particularidades relevantes do caso sub judice, nomeadamente a situação de a Recorrente e o Recorrido serem um casal divorciado.
É que,
46. Seria uma violência inaceitável impor à Recorrente “dividir” ou “partilhar o uso” da casa de que é também proprietária com o ex-marido, de quem, após 30 anos de casamento tumultuoso, se divorciou.
47. À Recorrente não pode assim ser imputada a responsabilidade de não ter usufruído da sua casa, ou de como é referido na Sentença em recurso de se ter “auto‑despejado” ou “auto-excluído” apenas .... porque optou por se proteger e não se colocar numa provável situação de confronto com o ex-marido no mesmo espaço.
48. Mais do que por uma questão do seu feitio e temperamento, que o Recorrido bem conhecia, assiste à Recorrente o direito de não querer “partilhar” o mesmo espaço com o seu ex-marido, sem que tal resulte de uma renúncia ao direito a ser compensada pela utilização exclusiva por este do imóvel de ambos.
49. Relativamente à qualificação do comportamento do Recorrido, o Tribunal entendeu que: “Dos factos provados resulta à saciedade que o Réu não impediu a Autora, seja por coacção física, seja por coacção moral, de usufruir da casa de Sintra, que constituía a casa de fins-de-semana do casal”.
Ora,
50. A actuação do Recorrido que conhecia a Recorrente, sabia da sua forma de ser e de estar e que por isso saberia que ao ir viver para a casa estaria de certa forma a comprometer o seu uso pela Recorrente, tal como se aliás se lê na Fundamentação de Facto da Sentença em recurso, constitui motivo bastante para que a Recorrente se visse coagida a não utilizar a casa de Sintra.
51. Constituindo assim tal conduta do R. uma forma de coacção e assim uma actuação ilícita!
52. Dispõe o art.º 1406º do Código Civil – “Na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito.
53. A ocupação exclusiva do Recorrido na casa de Sintra, nomeadamente a partir de Setembro/Outubro de 2013 em que na mesma fixou a sua residência permanente – sem o consentimento e conhecimento da Recorrente - privou esta de exercer, de forma livre, o mesmíssimo direito que lhe assiste.
54. O Tribunal assim o deveria ter entendido, face à factualidade provada e à própria fundamentação da Sentença na qual se lê que “... poder-se-ia dizer que o Réu conhecia a Autora, sabia da sua forma de ser e estar e que por isso saberia que ao ir viver para a casa estaria de certa forma a comprometer o seu uso pela Autora”.
E ainda que,
55. “A Autora, por questões relacionadas com o seu temperamento, personalidade e sensibilidade não tolerou a hipótese de se poder “cruzar” ou “encontrar” com o Réu na casa de ambos”. “E por isso autoexcluiu-se do uso da casa” ... sic
56. Fundamentação essa que obviamente assentou na convicção e no reconhecimento pelo Tribunal de que para a Recorrente, era absolutamente intolerável partilhar a utilização da casa de Sintra com o seu ex-marido!
57. O Tribunal concluiu assim que a actuação do Recorrido não foi ilícita porquanto este “...não impediu a Recorrente, seja por coacção moral, seja por coacção física de usufruir da casa Sintra que constituía a casa de fins-de-semana do casal,
58. Contrariamente aos argumentos aduzidos em sede da Matéria de Facto e na Fundamentação da Sentença – ou seja, que a presença do Recorrido, seu ex marido a residir na casa de Sintra, constitui para a Recorrente uma ameaça ao seu bem-estar emocional e bem estar que é para si intolerável e intransponível.
59. O facto de a Recorrente não poder utilizar a casa pelas razões já sobejamente expostas - e até reconhecidas na Sentença em recurso - não significa que tenha perdido interesse no imóvel ou que não pretenda que o mesmo tenha um destino – partilha ou venda a terceiros - para que o produto da sua meação lhe consinta amealhar para a sua velhice.
60. Assim, em momento algum a Recorrente mostrou desinteresse pela casa de Sintra, ou sequer ponderou deixar de poder usufruir da mesma ou de lhe dar destino, para que o Recorrido ali se instalasse a residir permanentemente.
61. O que de resto, repete-se, é comprovado pela Reclamação à Relação de Bens nos Autos de Inventário em Março de 2016 e coma instauração dos presentes Autos em Novembro de 2018 que são a prova evidente e óbvia da expressa oposição da Recorrente à utilização exclusiva da casa de Sintra pelo ex-marido ora Recorrido, por demais sem qualquer compensação.
62. É assim ininteligível o entendimento da Sentença da “licitude” da ocupação exclusiva da casa de Sintra pelo Recorrido quando se encontra documentalmente provada nos Autos, pelo menos desde 2016 – ponto 4 em A.1 - a expressa oposição da Recorrente a tal “ocupação”, reiterada em 2018 com a instauração dos presentes Autos.
63. Ainda que o Tribunal não tenha dado como provada a intenção da Recorrente de utilizar a casa de Sintra após a separação, não podia ter ignorado a posição da mesma, pelo menos a partir de 2016.
64. Refira-se que relativamente à Fundamentação da Sentença no que concerne ao não ter sido julgada provada a factualidade descrita sob a alínea o), ou seja quando na Sentença se refere que “relativamente ao facto o) é mister afirmar que não se provou qualquer interpelação ao Réu ou que a Autora alguma vez tivesse instado o Réu a ceder-lhe a utilização da casa, seja directamente seja por interposta pessoa ...
65. Esclarece-se que a Recorrente interpelou o Recorrido, desde logo em 2016 com a Reclamação à Reclamação de Bens em sede do Inventario acima referenciado, em que de forma inequívoca demonstrou a sua posição e o seu desagrado e discordância quanto à ocupação do Recorrido da casa de Sintra,
66. Posição que reiterou também expressamente com a instauração em 2018 dos presentes Autos, o que o Tribunal não podia ignorar.
Pelo que,
67. Deverá ser dada após reapreciação também como PROVADA a factualidade da alínea o) nos seguintes termos: – “Apesar de instado por diversas vezes, o R. persiste em não ceder à A. o prédio agindo como seu único proprietário” bem como, e tal como acima se alegou,
68. Também dada como PROVADA a factualidade das alíneas h), i) e n) de A.2- Factos não provados – pelo menos, a partir de 2016, com base nos documentos 5 e 6 juntos com a petição inicial, de fls. 15 e segs e que o Douto Tribunal deu como provados. Ponto 4 de A.1, reapreciação da prova que se argui e requer no âmbito do presente Recurso.
69. Entende a Recorrente que, salvo o devido respeito, o Douto Tribunal não aplicou a lei de forma correcta, ignorando aspectos e especificidades do caso concreto que impunham uma decisão diferente.
70. Nos termos do art.º 9º do Código Civil - Interpretação da lei –:
1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
71. "É indiscutível que toda a norma jurídica carece de interpretação mesmo nos casos em que parece evidente um "claro teor literal" (…).
72. “Com efeito, resulta do artº 9º do Código Civil que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico” - Ac. do STJ de 24.03.2015
73. No caso em apreço, a situação de pós divórcio da Recorrente e Recorrido e à conflitualidade traumática da vivência conjugal até à separação, inviabiliza, em absoluto, a utilização simultânea do mesmo imóvel por ambos os ex-cônjuges.
74. E o preceituado no art.º 1406º do CC deveria/teria de ter sido interpretado tendo em conta a realidade particular e concreta dos presentes Autos.
75. Segundo o Prof. Doutor J. Oliveira Ascensão em (in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 57, Dezembro de 1997). “Há um elemento essencial que é a base de toda a interpretação: é a própria ordem social em que o texto se situa. De facto, a lei vigora numa ordem social. As palavras da lei são indecifráveis se não forem integradas naquela ordem social. O espírito da lei é o que resulta dessa integração. Os chamados elementos lógicos da interpretação ― histórico, sistemático e teleológico ― só têm sentido à luz dessa ordem social.
76. O Tribunal entendeu que a utilização exclusiva pelo Recorrido do imóvel em causa -desde 2011 - é legítima, pois que a lei apenas restringe a utilização da coisa comum na circunstância de “se privar os outros consortes do uso a que têm direito”.
77. O que, salvo devido respeito pelo referido entendimento da Douta Decisão foi rigorosamente o que sucedeu:
78. A permanência e a ocupação exclusiva do Recorrido na casa de Sintra impediram a utilização da mesma pela Recorrente.
79. Conduta que viola reiteradamente o artº. 1305º do Código Civil, privando a Recorrente do seu direito de usar, fruir e dispor da sua parte no imóvel, ou seja, privando-a do seu direito de propriedade da casa de Sintra.
80. E foi precisamente neste aspecto que a Recorrente entende que o Tribunal falhou, pois que tendo reconhecido as razões/motivos sobejamente descritos pelos quais a Recorrente não utilizou a casa de Sintra, e que aliás decorrem da Sentença, não considerou o comportamento do Recorrido como impeditivo de tal utilização pela Recorrente.
81. O Acórdão do TRL de 12.04.2016 refere que:
II - Na ausência de qualquer acordo, qualquer consorte pode utilizar a coisa, dentro dos fins a que se destina e sem privar os demais dessa utilização.
IV - A privação da utilização pelos demais consortes tem de ser apreciada em concreto e não em abstracto pela mera consideração da natureza ou fins a que a coisa se destina.
82. “Tendo em atenção os factos apurados, dos quais se pode concluir pela existência de um clima de alguma animosidade entre as partes e a ausência de acordo dos consortes nesse sentido, é óbvio que está excluída a possibilidade de utilização simultânea da fracção.” (sublinhado nosso)
83. A esta situação se referem os Professores Pires de Lima e Antunes Varela (in “Código Civil Anotado”, Vol. III, 1987, pg. 357), quando mencionam as “dificuldades práticas e teóricas quanto ao uso directo promíscuo de prédios urbanos que não se prestem a divisão” mais referindo que “ o único recurso a adoptar, na falta de acordo, será o do gozo indirecto, que consistirá em regra na locação da coisa, com a consequente repartição dos proventos dela entre os consortes.”
84. “Refere a esse respeito o Professor Carvalho Fernandes (in “Lições de Direitos reais”, 2ª ed., 1997, pg. 328): “Como é evidente, os problemas surgem, quanto a este limite, nos casos em que não se mostre praticável um fraccionamento do uso. Suponha-se uma situação de compropriedade que tenha por objecto uma fracção autónoma e esta não permita o uso simultâneo de todos os comproprietários.
85. “No caso de compropriedade de uma casa de habitação, não podendo aos comproprietários ser imposto o dever de coabitarem uns com os outros, ou é materialmente possível dividir o uso, habitando cada um uma parte determinada da casa, ou a única alternativa será o gozo indirecto, que se traduzirá, em regra, na locação do imóvel, a terceiro ou a um dos consortes, conforme decidir a maioria, no exercício dos poderes de administração que o artº 1407º lhe confere.”
86. “O que nenhum comproprietário pode é, a pretexto de que a lei lhe faculta o uso integral da coisa, comportar-se como se fosse proprietário exclusivo, privando os demais consortes do uso a que, tal como ele, têm direito.” (sublinhado nosso)
87. O que é o caso dos presentes Autos!
88. A utilização/ocupação exclusiva do Recorrido do imóvel impede objectivamente e no caso concreto a Recorrente de usar do prédio de forma igual, ficando assim a mesma privada dessa utilização a que igualmente tem direito.
89. Neste sentido a Recorrente está privada do direito que lhe assiste de usar também da coisa, ou seja, a casa de Sintra, com a privacidade a que tem direito.
90. Na situação dos Autos discute-se a coabitação ou utilização do mesmo espaço comum entre ex-cônjuges!!
91. O que não é aceitável e muito menos defensável!
92. Apesar do Recorrido alegar que a Recorrente, por manter na sua posse as chaves do imóvel, era “livre de aceder ao prédio em questão não o fazendo apenas porque não quer”, não procede obviamente tal argumento - também defendido na Sentença em recurso – pois bem sabe que se trata de uma liberdade “condicionada”.
93. Independentemente da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, a ocupação do imóvel pelo Recorrido verificou-se sem o acordo da Recorrente, pelo que teria sempre a mesma de ter sido considerada ilícita pelo Tribunal.
94. No limite desde Março de 2016, por força da oposição expressa manifestada pela Recorrente nos Autos de Inventário – provada documentalmente na Sentença em recurso – ponto 4 de A. 1
95. Está assim sobejamente demonstrada a ilicitude da ocupação exclusiva da casa de Sintra por parte do Recorrido.
96. Importa ainda referir que a privação do uso do referido imóvel causou – e causa – um dano à Recorrente.
97. A utilização exclusiva do Recorrido da casa de Sintra há cerca de 12 anos causou elevado prejuízo à Recorrente, pois que não lhe permitiu – nem permite - o gozo da habitação, ou da mesma retirar os seus devidos proveitos como sejam, o seu arrendamento ou venda a terceiros, recebendo a devida e justa compensação, o que, pelo menos, sempre lhe permitiria amortizar as prestações do empréstimo que o R. também reclama
98. A Recorrente viu o exercício do seu direito enquanto proprietária absolutamente frustrado, direito este constitucionalmente consagrado e que a Decisão sub judice na interpretação seguida, viola o que se invoca para os devidos efeitos.
99. A Recorrente foi privada do uso da casa de Sintra pelo menos desde 2013 quando o Recorrido – ex-marido - se instalou permanentemente no referido imóvel, impedindo qualquer hipótese de utilização ou rentabilização por parte da Recorrente.
100. No entendimento defendido no Acórdão do TRL de 26.05.2022: “Em conformidade com qualquer uma das duas teses, o lesado terá direito a indemnização desde que alegue e que prove que “a detenção ilícita da coisa por outrem frustrou um propósito real — concreto e efectivo — de proceder à sua utilização.
101. No caso em apreço a Recorrente foi privada do uso directo e indirecto do imóvel do qual é também proprietária, em prol do uso directo que o Recorrido fez do imóvel em questão.
102. Pelo menos desde 2016 que a Recorrente no âmbito dos Autos de Inventário ainda pendentes, demonstrou com a Oposição apresentada à Relação de Bens, a sua intenção na utilização do imóvel, quer directa, quer indirectamente, já que se mantinha privada do uso do mesmo.
103. E em 2018 na Acção Declarativa de condenação com forma de processo comum contra o Recorrido peticionando a condenação deste no pagamento de um montante a título de indemnização pela detenção abusiva da referida imóvel.
104. No entendimento do citado Acórdão a ocupação assume carácter ilícito quando viola o direito de outrem por acção ou por omissão,
105. O que é o caso dos presentes Autos! É que,
106. Ainda que o Recorrido não tenha utilizado a força para privar a Recorrente do uso da casa de Sintra,
107. O facto de ali residir permanentemente constitui no caso concreto dos Autos, uma clara forma de impedimento.
108. No caso sub judice o Recorrido não só privou a Recorrente do uso da casa, como não a compensou pela sua utilização exclusiva.
109. Provado está que a Recorrente manifestou expressamente a sua oposição sobre o uso exclusivo por parte do Recorrido, desde pelo menos 2016 no âmbito dos Autos de Inventário e em 2018 na Acção Declarativa de condenação com forma de processo comum,
110. Pelo que deveria daí o Tribunal ter retirado as devidas ilações, o que não fez.
O R. apresentou alegação de resposta, aí pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
O tribunal recorrido admitiu o recurso interposto pela A. e pronunciou-se sobre a nulidade arguida pela mesma, nos termos do art.º 617º, nº 1, do Código de Processo Civil, julgando a mesma improcedente.
***
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem‑se com:
. A nulidade da sentença recorrida, por oposição entre os fundamentos e a decisão;
. A alteração da decisão quanto à matéria de facto;
. A verificação do direito da A. a ser indemnizada pelo prejuízo sofrido em consequência da actuação ilícita e culposa do R.
***
Na sentença recorrida considerou-se como provada a seguinte matéria de facto (procede-se à correcção de erros de escrita revelados no contexto dos autos):
1. O prédio urbano em propriedade total composto de rés do chão com seis divisões, cozinha, três casas de banho, lavabos, hall, corredor e terraço, garagem e telheiro, sito na Rua (…), concelho de Sintra, (…) encontra-se inscrito a favor de A. e R., por compra a (…), através da ap. 4 de 1997/10/16.
2. A A. e o R. foram casados no regime de comunhão de adquiridos tendo o seu casamento sido dissolvido na sequência da convolação do divórcio litigioso – que correu termos no Juiz 4 do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, (…), para divórcio por mútuo consentimento, homologado por sentença de 30-10-2012.
3. Do dissolvido casal existem bens a partilhar, pelo que corre termos no referido processo, apenso A., autos de inventário.
4. Nesse mesmo processo de inventário a A., em 01-03-2016 juntou aos autos oposição à relação de bens comuns do casal onde alegou e relacionou entre outros bens o seguinte:
1. Desde Junho de 2011 que o cabeça de casal, por sua iniciativa, tem habitado e usufruído em exclusividade, o imóvel pertença dos ex-cônjuges e descrito sob a verba n.º 19 da Relação de Bens, tendo aí inclusive a sua morada fiscal.
2. Assim, afectou o referido imóvel para sua habitação própria e permanente, não tendo sequer consultado a interessada ora reclamante, nem autorizado que esta dele usufrua.
3. O referido imóvel é uma moradia de luxo, sito numa das melhores zonas de Sintra, com vista desafogada para o Palácio da Vila, Monserrate e Castelo dos Mouros, com uma área bruta de construção de 321 m2 implantada num terreno com a área total de 1404 m2.
4. O valor da renda mensal para uma moradia com estas características ronda, no mínimo, € 3000.
5. Sendo tal imóvel bem comum e não podendo a reclamante dele usufruir, estando este a ser utilizado unicamente pelo cabeça de casal, reclama aquela a título de rendas vencidas pelo uso exclusivo do imóvel pelo cabeça de casal, a quantia total de €82.500,00, assim calculados: 1 de Julho de 2011 a 30 Março de 2014= 55 meses x €1.500,00= €82.500,00.
6. Deverá assim ser acrescentada uma nova verba à relação de bens nos seguintes termos: deve o cabeça de casal, JC (…) a AMN (…) a quantia de €82.500,00, a título de rendas vencidas pelo uso exclusivo do imóvel descrito na verba n.º 19, que o cabeça de casal usufrui”.
5. Por despacho proferido na conferência de interessados de 06-4-2018 nos supra referidos autos de inventário foi decidido que: “Questionada nesse particular a ilustre mandatária da requerente informou o Tribunal não ter meios probatórios para apresentar no que tange ao crédito de compensação de que se arroga titular.
Assim tendo sido e em face da posição assumida pelas partes, não resulta a existência da alegada dívida atestada documentalmente, pelo que remeto as partes para os meios comuns, de harmonia com o preceituado no art.º 1355.º do Código de Processo Civil, não podendo a mesma ser tomada em conta- cf- o seu artigo 1360.º”.
6. Desde Junho de 2011 que, do ex-casal, apenas o R. passou a utilizar o imóvel pertença dos ex-cônjuges, tendo aí a sua morada fiscal.
7. O R. afectou o referido imóvel para sua habitação permanente.
8. Desde Junho de 2011 que apenas o R. e os filhos de A. e R. usam o referido prédio.
9. Até à separação de A. e R. estes residiam numa casa dos pais da A., não tendo quaisquer encargos com a aquisição da mesma.
10. Após ter saído da casa de morada de família em Junho de 2011 o R. passou a residir num apartamento T1 nas Twin Towers em Lisboa até Outubro de 2012, e posteriormente num outro apartamento T2 no mesmo edifício, deslocando-se pontualmente ao imóvel de Sintra.
11. Posteriormente, entre Setembro/Outubro de 2013 o R. abandonou o apartamento onde residia nas Twin Towers com uma filha, passando a residir no prédio de Sintra.
12. Em 21-11-1997 A. e R., no estado de casados, celebraram o contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca sobre o prédio urbano constituído por terreno para construção, com a área de mil quatrocentos e quatro metros quadrados, sito nos limites da Zibreira, (…) Sintra, (…), o qual na mesma escritura foi dado como garantia da importância mutuada no valor de 40.000.000$00.
13. O referido empréstimo no valor de 40.000.000$00 foi celebrado pelo prazo de 20 anos, tendo-se convencionado a sua liquidação em 240 prestações mensais, constantes e sucessivas de capital e juros, vencendo-se a mesma 30 dias após a conclusão das obras, tendo sido posteriormente contraídos outros mútuos, com a mesma instituição bancária, respectivamente de 10.000.000$00 e €30.000,00, por escrituras públicas outorgadas em 27-03‑2001 e 28-10-2002.
14. Em altura não concretamente apurada o R. autorizou que familiares seus usassem a casa de Sintra.
15. O R. colocou num dos alpendres da casa uma cortina de vidro amovível e transparente.
16. Se colocada no mercado de arrendamento a moradia em causa poderia render uma quantia mensal não concretamente apurada.
17. Em Julho de 2018, no âmbito da perícia determinada no âmbito do processo de inventário, o imóvel em questão foi avaliado no montante de €500.000,00.
18. Desde Julho de 2012 que o R. vem suportando os encargos com a amortização dos empréstimos contraídos, tendo vindo relacionar os respectivos créditos sobre a A. no respectivo processo de inventário.
19. A decisão de separação ocorreu por iniciativa da A. comunicada ao R. em Março de 2011.
20. Nessa ocasião, e face à necessidade de o R. arranjar uma casa onde residir, a A. chegou a sugerir que aquele fosse para a casa de Sintra.
21. Desde Julho de 2011 que a A. deixou de contribuir com qualquer montante para o pagamento dos empréstimos contraídos para adquirir o terreno e construir a casa e construções que integram o prédio.
22. Os apartamentos referidos em 10. eram situados em local próximo da residência que era a residência do casal e família e onde ainda hoje a A. vive.
23. A fim de não ter de suportar a renda do apartamento e a prestação dos empréstimos, o R. foi residir com uma das filhas para a casa de Sintra, não obstante trabalhar em Lisboa e aqui ter de se deslocar diariamente.
24. A A. nunca manifestou perante o R. ou seus filhos atitude reveladora de desagrado pelo facto de o R. ter passado a habitar no prédio em discussão nos autos.
25. O R. nunca impediu a A. de usufruir e gozar da habitação do prédio, nunca mudou as fechaduras, códigos de alarme da porta de acesso ao interior do prédio, mantendo-se tudo igual aquilo que estava aquando da separação.
26. A A. mantém as chaves do prédio em seu poder.
27. A A. é livre de aceder ou de habitar não ao prédio, não o fazendo por não querer cruzar-se ou privar com o R.
28. Desde Julho de 2011 a A. deslocou-se algumas vezes ao prédio, acedendo ao mesmo utilizando as suas chaves, nomeadamente para ir buscar bens pessoais seus.
29. A A. tomou conhecimento que o R. estava a residir na casa de Sintra logo em Outubro de 2013.
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Na sentença recorrida considerou-se como não provada a seguinte matéria de facto (procede-se à correcção dos erros de escrita revelados no contexto dos autos):
a) Que o R. não tenha consultado a A. nem esta dado a sua autorização para o facto referido em 7.;
b) Que a A., durante toda a sua infância, adolescência e idade adulta jovem sempre tenha usufruído de uma casa de fim de semana;
c) Que sempre tenha entendido que seria possível para a dinâmica familiar e para quebrar a rotina da semana de trabalho dispor também de outra habitação para aí passar as férias e o fim de semana, fora de Lisboa;
d) Que a A., os filhos e o R. sempre usufruíram da casa de praia dos pais da A. na Costa da Caparica, onde passaram as férias e alguns fins de semana, até ao falecimento do pai da A. em 1992;
e) Que enquanto viveram na casa doada pelos pais da A., A. e R. tenham feito poupanças e que durante 3 anos, nos seus tempos livres aos fins de semana, a A. e R., sempre que podiam, tenham procurado um terreno ideal para adquirirem e nele construírem uma casa de fins de semana;
f) Que a A. sempre tenha tido predilecção pela zona de Sintra, até porque foi muitas vezes com os seus pais aos saloios em Almoçageme e ao ceramista Carlos Viseu, do qual herdou dos pais algumas peças;
g) Que a construção do prédio tenha durado cerca de dois anos por a obra ter estado embargada durante algum tempo;
h) Que a A. seja forçada a prescindir do uso da casa de Sintra;
i) Que o R. ou a utilização da casa pelo R. como sua habitação não permita à A. o uso do referido imóvel;
j) Que em Janeiro de 2012 a A. tenha tentado acordar com o R. o gozo da casa, o que este recusou, pelo que a A., receosa de confrontos e conhecedora do feitio hostil do R., se tenha visto forçada a não usufruir da casa de Sintra;
k) Que o R. tenha decidido alterar a configuração do imóvel, tendo que furar a tijoleira do terraço;
l) Que a moradia em causa seja uma moradia de luxo;
m) Que à data da propositura da acção a moradia em questão, mobilada, tivesse um valor locatício mínimo de €3.000,00;
n) Que a A. se encontre despojada do acesso e da posse do imóvel;
o) Que apesar de instado por diversas vezes, o R. persista em não ceder à A. o prédio agindo como seu único proprietário;
p) Que a A. tenha comunicado ao R. que deixaria de contribuir com qualquer montante dos seus rendimentos para pagamento dos empréstimos contraídos para aquisição do terreno e construção da casa;
q) Que as prestações mensais dos empréstimos suportada pelo R. de Julho de 2011 a Dezembro de 2018 tenham sido nos montantes referidos no art.º 6º da contestação;
r) Que até Junho de 2011 A. e R. colocassem cada um deles 50% da prestação mensal, na conta bancária conjunta de onde esta era debitada;
s) Que tenha sido com grande sacrifício que o R. tenha vindo a suportar sozinho as prestações dos empréstimos;
t) Que no ano de 2013 face à dificuldade em pagar as prestações, o R. conseguiu que o banco aceitasse conceder um ano de carência da amortização do capital e que a A. se tenha recusado a subscrever os documentos necessários para o efeito, impossibilitando a referida prerrogativa;
u) Que caso o prédio tivesse sido posto à venda nos anos de 2011, 2012 e 2013 dificilmente o produto da mesma seria suficiente para pagar o montante em dívida ao banco;
v) Que o acesso ao prédio por familiares do R. tenha sido permitido após consulta da A. sobre tal matéria;
w) Que durante o período em que familiares do R. permaneceram no prédio a A. tenha ido lá visitá-las e com elas conviver, acedendo ao prédio com as suas chaves;
x) Que o contrato de hipoteca celebrado com o banco, credor hipotecário, consagre expressamente a impossibilidade de arrendar o prédio, por parte de A. e R.
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Da nulidade da sentença
Segundo a al. c) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil, a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou quando ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Relativamente a uma eventual oposição entre os fundamentos e a decisão tomada, é sabido que tal vício ocorre quando “a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto” (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume V, Coimbra Editora, reimpressão, 1981, pág. 141). Ou seja, o vício em questão corresponde ao erro lógico da argumentação jurídica, surgindo quando o resultado do silogismo judiciário aponta num sentido e a decisão aponta no sentido oposto. Na expressão do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6/12/2017 (relatado por Tomé Gomes e disponível em www.dgsi.pt), trata-se de um vício que “requer uma relação de exclusão recíproca – um dizer e desdizer – entre aqueles dois termos da equação discursiva”. Do mesmo modo, na expressão do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/7/2021 (relatado por Fernando Baptista e disponível em www.dgsi.pt), tal vício “distingue-se do erro de julgamento em virtude de neste não existir qualquer vício de raciocínio do julgador, mas apenas um erróneo julgamento da matéria de facto, por a prova produzida não consentir esse julgamento de facto, mas antes outro (error facti) ou por o juiz ter incorrido numa incorrecta aplicação das normas ao caso concreto, que demandava a aplicação de outras, ou ter incorrido na errónea interpretação das aplicáveis (error iuris)”.
Reconduzindo tais considerações ao caso concreto dos autos, logo se antevê que a circunstância de, “não obstante terem ficado sobejamente provadas as razões que inviabilizaram a Recorrente de poder continuar a utilizar a casa de Sintra”, ter sido entendido pelo tribunal recorrido “que as mesmas não eram as bastantes para concluir que a utilização exclusiva pelo Recorrido constituiu actuação ilícita”, não corresponde ao referido vício de raciocínio, mas antes ao referido erro de julgamento.
Do mesmo modo, a circunstância de não ter sido “correctamente valorada a convicção da M Juiz decorrente da factualidade dada como provada”, emergente da “fundamentação supratranscrita da douta Sentença” não corresponde à invocada “contradição com a decisão da Sentença proferida”, mas antes ao referido erro de julgamento.
Do mesmo modo, ainda, a conclusão de “que tendo em conta a factualidade dada como provada nos Autos e a fundamentação de facto constante da mesma, não poderia o Douto Tribunal ter decidido conforme a Sentença de que se recorre, julgando a acção totalmente improcedente”, reconduz-se à manifestação de desacordo da A. com o julgamento efectuado.
Ou seja, em qualquer uma das perspectivas abordadas pela A., não se está perante qualquer situação em que se verifique qualquer deficiência do silogismo judiciário, não encerrando as mesmas o referido “dizer e desdizer”, na medida em que toda a argumentação (de facto e de direito) que a sentença recorrida encerra está em linha com a conclusão da não demonstração do direito indemnizatório que a A. faz valer em juízo. Ou, dito de outra forma, aquilo que a A. invoca mais não é que o error iuris, situação que não se confunde com o referido vício de raciocínio do julgador e, por isso, insusceptível de gerar a nulidade da sentença recorrida.
Em suma, improcedem as conclusões do recurso da A., no que respeita à invocada nulidade da sentença recorrida.
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Da alteração da matéria de facto
Decorre da conjugação dos art.º 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 640º, nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, que quem impugna a decisão da matéria de facto deve, nas conclusões do recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em causa que estão errados e, ao menos no corpo das alegações, deve, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o recurso (reforçando a lei a cominação para a omissão de tal ónus, pois que repete que tal tem de ser feito sob pena de imediata rejeição na parte respectiva) e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão.
A respeito do disposto no referido art.º 640º do Código de Processo Civil, refere António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pág. 196-197):
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exactidão, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
(…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou incongruente”.
E, mais adiante, afirma (pág. 199-200) a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, designadamente quando se verifique a “falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto”, a “falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados”, a “falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou neles registados”, a “falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda”, bem como quando se verifique a “falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”, concluindo que a observância dos requisitos acima elencados visa impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
Do mesmo modo, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 770) afirmam que “cumpre ao recorrente indicar os pontos de facto que impugna, pretensão esta que, delimitando o objecto do recurso, deve ser inserida também nas conclusões (art.º 635º)”, mais afirmando que “relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, o recorrente tem o ónus de indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder apresentar a respectiva transcrição”.
E, do mesmo modo, vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça (como no acórdão de 29/10/2015, relatado por Lopes do Rego e disponível em www.dgsi.pt) que do nº 1 do art.º 640º do Código de Processo Civil resulta “um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação (…) e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes (…)”.
Por outro lado, e impondo-se a especificação dos pontos concretos da decisão que estão erradamente julgados, bem como da concreta decisão que deve ser tomada quanto aos factos em questão, há-de a mesma reportar-se, em primeira linha, ao conjunto de factos constitutivos da causa de pedir e das excepções invocadas. É que, face ao disposto no nº 1 do art.º 5º do Código de Processo Civil, a decisão da matéria de facto tem por objecto, desde logo, os factos essenciais alegados pelas partes, quer integrantes da causa de pedir, quer integrantes das excepções invocadas. Todavia, e porque do nº 2 do mesmo art.º 5º resulta que o tribunal deve ainda considerar os factos instrumentais, bem como os factos complementares e concretizadores daqueles que as partes hajam alegado, e que resultem da instrução da causa, daí decorre que na decisão da matéria de facto devem esses factos ser tidos em consideração.
Tal não significa, no entanto, que a decisão da matéria de facto (provada e não provada) deve comportar toda a matéria alegada pelas partes e bem ainda aquela que resulte da prova produzida, já que apenas a factualidade que assuma juridicidade relevante em razão das questões a conhecer é que deve ser objecto dessa decisão.
Isso mesmo enfatizam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 721),  quando explicam que o juiz da causa deve optar “por uma descrição mais ou menos pormenorizada ou concretizada, de acordo com as necessidades do pleito, desde que seja assegurada uma descrição natural e inteligível da realidade que, para além de revelar o contexto jurídico em que se integra, permita a qualquer das partes a sua impugnação”. E mais explicam (pág. 722) que “o regime consagrado no CPC de 2013 propugna uma verdadeira concentração naquilo que é essencial, depreciando o acessório, sendo importante que o juiz consiga traduzir em linguagem normal a realidade apreendida, explicitando, depois, os motivos que o determinaram, com destaque para a explanação dos factos instrumentais que o levaram a extrair as ilações ou presunções judiciais”.
Assim, e como tal delimitação deve estar igualmente presente na apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto (neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/5/2017, relatado por Fernanda Isabel Pereira e disponível em www.dgsi.pt, quando conclui que “o princípio da limitação dos actos, consagrado, no artigo 130.º do CPC, para os actos processuais em geral, proíbe, enquanto manifestação do princípio da economia processual, a prática de actos no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – que não se revelem úteis para alcançar o seu termo”, e bem ainda que “nada impede que tal princípio seja igualmente observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir”), só há lugar à apreciação dos pontos indicados como impugnados na medida em que, não só devam constar do elenco de factos provados e não provados, no respeito pelo disposto no art.º 5º, nº 1 e nº 2, al b), do Código de Processo Civil, mas igualmente correspondam a factos com efectivo interesse para a decisão do recurso.
Revertendo tais considerações ao caso concreto em apreciação, pode-se desde logo afirmar que a A. deu cumprimento ao ónus primário de especificação acima referido, já que nas conclusões 10., 21. e 67. da sua alegação concretiza quais os pontos do elenco de factos não provados que entende deverem passar a constar do elenco de factos provados, e que correspondem aos pontos a), h), i), j), n) e o).
Todavia, quer nas conclusões da sua alegação, quer no corpo da mesma, a A. omite por completo a identificação dos meios de prova que, no seu entender, determinam as alterações pretendidas.
Com efeito, e no que respeita à prova gravada, a A. não faz qualquer referência à mesma, seja identificando um qualquer depoimento testemunhal, seja identificando quaisquer passagens da gravação dos diversos depoimentos prestados na audiência final.
Do mesmo modo, e no que respeita à prova documental constante dos autos, a A. limita-se a afirmar que “a factualidade constante das alíneas h), i) e n) de A. 2- Factos não provados – deveria ter sido dada como provada, pelo menos, a partir de 2016, com base nos documentos 5 e 6 juntos com a petição inicial, de fls. 15 e segs e que o Douto Tribunal deu como provados.- Ponto 4 de A.1”.
Ora, os referidos documentos 5 e 6 mais não são que a cópia do requerimento de oposição identificado e reproduzido no ponto 4. dos factos provados, a par da cópia da acta da conferência de interessados identificada no ponto 5. dos factos provados. E aquilo que foi concretizado pela A. nas conclusões 10. e 21. da sua alegação não corresponde à referida afirmação conclusiva, no sentido da matéria das al. h) e i) dever ser dada como provada, “a partir de 2016”. Pelo que não se pode afirmar qualquer correspondência entre a referida invocação documental e a alteração concretizada nas conclusões da sua alegação, única circunstância em que seria possível concluir pelo cumprimento (ainda que imperfeito) do ónus de especificação em questão, na sua vertente secundária.
Por outro lado, e no que respeita à matéria da al. n), a mesma encerra um juízo puramente conclusivo e de natureza jurídica (mesmo que limitado temporalmente a 2016), pelo que, face ao acima explicitado, não deve tal conclusão integrar o elenco de factos provados, ainda que se logre retirar a mesma da realidade documental em questão.
Em suma, torna-se manifesto que a impugnação da A. mais não representa que a afirmada “mera manifestação de inconsequente inconformismo”, desde logo por falta de especificação dos concretos meios probatórios que justificam as alterações pretendidas à decisão de facto.
Assim, e no que respeita à impugnação da decisão de facto suscitada pela A., a mesma é integralmente rejeitada.
***
Do direito da A. à indemnização devida pelo R.
Na sentença recorrida ficou assim afirmada a não verificação do direito em questão:
Está provado nos autos que Autora e Réu, no estado de casados, em regime de comunhão de adquiridos, compraram o prédio objecto de discussão na presente acção, a qual consistia numa casa de fins de semana e férias, e cuja aquisição se encontra registada a favor de ambos.
Como se refere no Ac. do STJ de 21-04-2009 (processo 09A0635) “os bens comuns constituem uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afectação, a lei concede um certo grau de autonomia, e que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito sobre ela”.
Adere-se por isso, e como já se referiu na decisão de mérito anterior, à doutrina da propriedade colectiva, segundo a qual o património colectivo pertence em comum a várias pessoas, mas sem se repartir entre elas por quotas ideais, como na compropriedade. Enquanto que a compropriedade é uma comunhão por quotas, a propriedade comum é uma comunhão sem quotas. Os vários titulares do património colectivo são sujeitos de um único direito, de um direito uno, o qual não comporta divisão mesmo que ideal. Como refere Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (in “Curso de Direito da Família”, vol. I, 2.º ad., pág. 506) “Não tem pois, cada um deles, direito de que possa dispor ou que lhe seja permitido realizar através da divisão de património comum”.
Assim já foi decidido num acórdão do STJ de 20-11-2003, Revista n.º 3014/03 - 7.ª Secção, Relator Quirino Soares, no qual se afirmou que “VI - A acção reivindicatória, que o art.º 1311, CC, prevê, serve a pretensão do proprietário não possuidor contra o possuidor não proprietário, ou a do proprietário possuidor contra o detentor, e está, inclusive, ao dispor do comproprietário face a terceiro, mas não foi concebida, nem podia sê-lo, para ser usada entre comproprietários.» (e, dizemos nós, por maioria de razão não pode ser usada entre consortes).
Por esta razão e com base nesta fundamentação o Tribunal julgou improcedente o pedido da Autora de a declarar comproprietária do prédio, na medida em que o mesmo constitui bem comum do ex-casal, integrando a comunhão patrimonial a dividir em sede de inventário (e não de divisão de coisa comum, como ocorreria se estivéssemos perante um bem em regime de compropriedade). E por essa mesma razão julgou o tribunal improcedente o pedido de condenação do Réu na restituição e entrega do imóvel à Autora, na medida em que, sendo o bem comum, os dois têm direito de o usar e fruir até à sua partilha.
Relegou-se para momento posterior ao julgamento a questão do pedido indemnizatório.
Poder-se-á questionar o porquê, na medida em que os dois outros pedidos foram julgados improcedentes e se entendeu que a ocupação e uso do Réu eram lícitos.
Entendeu-se, e por isso se relegou para final a decisão, que caso o Réu tivesse impedido a Autora de gozar e fruir do imóvel, relativamente ao qual esta tem um direito igual ao daquele, poderia ser responsável pela ilicitude/ilegitimidade dessa sua conduta.
E é esta, e apenas esta a questão que resta decidir nesta sentença: se o Réu impediu a Autora de exercer os mesmíssimos direitos sobre o bem e, com isto, agiu ilicitamente constituindo-se na obrigação de indemnizar.
Isto porque na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, estabelece o art. 1406.º do CC que a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela.
Assim, no pressuposto que não haveria acordo dos ex-cônjuges e consortes do bem quanto ao uso do imóvel pelo Réu – o que nem isso resultou provado –, ainda assim tal não faria com que a ocupação do Réu fosse ilícita. Tal resulta claro do disposto no n.º 1 do art.º 1406.º do CC.
O art.º 1406.º do CC apenas excepciona a circunstância de “se privar os outros consortes do uso a que têm direito”. Só a prova de que o Réu teria privado a Autora do uso do imóvel poderia ser juridicamente relevante para efeitos de um eventual pedido indemnizatório – neste sentido Ac. STJ de 15-02-2007, Revista n.º 4630/06 - 2.ª Secção, Relator Bettencourt de Faria (Relator).
Colocada assim a questão resta saber se, sim ou não, o Réu impediu o uso pela Autora.
Em caso afirmativo, cumprirá indagar se com isto gerou alguma responsabilidade da sua parte que o constitua na obrigação de indemnizar.
Dos factos provados resulta à saciedade que o Réu não impediu a Autora, seja por coacção física, seja por coacção moral, de usufruir da casa de Sintra, que constituía a casa de fins de semana do casal.
Aquilo que aconteceu foi algo diverso e que do ponto de vista jurídico não pode, de forma alguma, ser imputado ao Réu. A Autora, por questões relacionadas com o seu temperamento, personalidade e sensibilidade não tolerou a hipótese de se poder “cruzar” ou “encontrar” com o Réu na casa de ambos. E por isso autoexcluiu-se do uso da casa. Quer antes do Réu passar a residir nela, quer depois do Réu passar a residir na mesma com uma das filhas do casal.
Poder-se-ia dizer que o Réu conhecia a Autora, sabia da sua forma de ser e de estar, e que por isso saberia que ao ir viver para a casa estaria de certa forma a comprometer o seu uso pela Autora. Mas se assim fosse, porque razão nos dois anos em que o Réu viveu nas Twin Towers a Autora não usou a casa? Se assim fosse porque razão, tendo o Réu comunicado os fins de semana em que estaria a trabalhar fora, não haveria a Autora de usufruir da casa?
Sem qualquer juízo de desvalor para a personalidade e temperamento da Autora, o facto é que não podemos imputar as opções que derivam dessa mesma forma de ser ao Réu, só porque ele as conhecia.
Repare-se que a Autora mantém as chaves de acesso e o código de alarme, que o Réu disse expressamente aos filhos para não alterarem para o caso de a mãe querer ir lá a casa e ter livre acesso.
Não se podendo imputar ao Réu qualquer conduta ilícita, impeditiva do direito da Autora, terá o pedido indemnizatório da Ré de necessariamente improceder.
Com efeito, sendo lícita a ocupação por parte do Réu e não tendo o mesmo privado a Autora do seu uso nenhuma indemnização há a fixar”.
Já a A. entende que a simples circunstância de se estar perante um imóvel destinado a habitação, aliada à circunstância de o R. ter a sua habitação permanente instalada no mesmo, leva a concluir que a A. não pode retirar qualquer benefício do mesmo, como lhe assiste, por ser igualmente proprietária desse imóvel, em comum com o R. E, nessa medida, a forma como o R. vem utilizando o imóvel, para sua habitação própria e permanente, representa uma utilização ilegítima, assim estando demonstrada a actuação ilícita e culposa do R., tornando-o responsável pelo prejuízo causado à R., correspondente à impossibilidade de obter metade do valor locativo do imóvel.
Ou seja, a A. não coloca em crise que a questão que permanece litigiosa se prende com o apuramento de uma conduta do R. que conduza a afirmar que “impediu a Autora de exercer os mesmíssimos direitos sobre o bem e, com isto, agiu ilicitamente constituindo-se na obrigação de indemnizar”, antes assentando a sua discordância na interpretação do disposto no art.º 1406º do Código Civil, por ser a partir desse preceito legal que se pode afirmar a ilicitude da actuação do R.
Antes de mais importa recordar que o art.º 1404º do Código Civil dispõe que as regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles, aqui se integrando “a comunhão que se estabelece entre os cônjuges, após a dissolução da sociedade conjugal e enquanto não se faz a partilha, nos regimes de comunhão” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, volume III, 2ª edição revista e actualizada, 1987, pág. 350).
Assim, é por esta via que o disposto no art.º 1406º do Código Civil é aplicável à regulação da utilização do imóvel em causa nos autos, uma vez que o mesmo integra tal comunhão conjugal.
Nessa medida, dispõe tal preceito que “na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito”.
Como explicam Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil anotado, volume III, 2ª edição revista e actualizada, 1987, pág. 356-359), “o artigo 1406º trata do uso da coisa comum, sendo o uso, como utilização directa da coisa ou como aproveitamento imediato das aptidões naturais dela, conceito distinto da fruição, que visa fundamentalmente a utilização da coisa como instrumento de produção”. E mais explicam que “quanto à fruição (…) o artigo 1405º, 1, consagra a regra da proporcionalidade (…). Relativamente ao uso, o artigo 1406º admite o princípio da solidariedade: a cada um dos comproprietários, seja qual for a sua quota, é lícito servir‑se dela, utilizá-la na sua totalidade e não apenas em parte”. Todavia, tais autores advertem que “a possibilidade de uso integral da coisa, como se, nesse aspecto, o contitular da propriedade fosse titular único da coisa, vale apenas como princípio supletivo e nos termos que adiante se desenvolvem”. E mais adiantam como casos de conciliação dos interesses conflituantes dos consortes o acordo para o uso por partes ou fracções da coisa, ou para o uso por turnos, ou ainda o “uso directo promíscuo ou simultâneo”. Mas alertam que se podem levantar “dificuldades prática e teóricas, quanto ao uso directo promíscuo de prédios urbanos, que não se prestem a divisão”, pois que, “desde que a nenhum dos comproprietários pode ser imposto o dever de co‑habitar com os outros, não sendo o prédio divisível em fracções autonomizáveis (…), a qualquer deles será lícito opor-se a uma deliberação da maioria nesse sentido, alegando que o uso pretendido ou exercido pelos outros o priva do direito que ele tem a usar também a coisa (…). Nestes casos, o único recurso a adoptar, na falta de acordo, será o do gozo indirecto, que consistirá em regra na locação da coisa, com a consequente repartição dos proventos dela entre os consortes. Quando assim seja, já nada obstará a que o locatário possa ser um dos comproprietários, se a maioria, no exercício dos poderes de administração que a lei lhe confere, assim o entender”. Já “na falta de acordo, vigora o princípio do uso integral da coisa”, sujeito à limitação que é imposta pelo fim da coisa e à limitação “ditada pela necessidade de facultar aos outros consortes a possibilidade de igualmente se servirem dela”. E quanto a esta última limitação, explicam ainda tais autores que o preceito, ao falar “no uso a que os outros consortes têm direito”, permite a interpretação segundo a qual “a existência do direito pressuporá, neste caso, a existência da necessidade correspondente”.
Ou seja, da doutrina em questão pode desde logo retirar-se que, no que respeita ao uso da coisa comum feito por qualquer um dos consortes, o mesmo só será ilícito na medida em que não corresponder ao acordado entre todos, quanto a tal uso. E, na falta de acordo quanto ao uso em questão, a utilização directa e exclusiva por um dos consortes só será ilícita na medida em que impossibilite cada um dos demais consortes de a poder utilizar, sendo tal direito potestativo aferido em razão da correspondente necessidade concreta de utilização da coisa comum.
Assim, pode desde já afirmar-se que a limitação ao uso integral da coisa por qualquer um dos consortes se expressa na correspondente necessidade da sua concreta utilização por qualquer um dos demais consortes, daí emergindo os interesses conflituantes.
Todavia, se não se constata qualquer interesse juridicamente relevante à utilização concreta da coisa por um qualquer consorte, não assiste a este o direito a impor qualquer limitação ao uso integral que vem sendo feito por outro consorte.
E tratando-se de uma coisa que, pela sua própria natureza, não permite o uso directo simultâneo, mas apenas o uso integral (como é o caso de um prédio urbano destinado a habitação e indivisível em várias unidades habitacionais autonomizáveis), o uso integral por um dos consortes só constituirá um acto ilícito na medida em que se possa afirmar assistir a outro consorte um interesse juridicamente relevante ao mesmo uso integral, com vista ao “aproveitamento imediato das aptidões naturais” da mesma (já que é nisso que se consubstancia o uso, por contraposição à fruição, nos termos acima explicitados).
Ou seja, só nessa circunstância é que é possível afirmar que o direito ao uso integral da coisa se encontra a ser violado por aquele que a está a utilizar em exclusivo.
Esta mesma conclusão se pode retirar do acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 12/4/2016 (relatado por Pedro Brighton, disponível em www.dgsi.pt e igualmente mencionado pela A. na sua alegação), quando aí se afirma que “a melhor interpretação do art.º 1406º nº 1 do Código Civil implica que a utilização exclusiva apenas esteja vedada quando, em concreto, o uso por um comproprietário prive o outro de usar a coisa numa concreta utilização pretendida.
Caso contrário, a mera falta de estipulação consensual poderia privar todos os consortes do uso da coisa em benefício de nenhum deles, pois até o uso indirecto poderia estar vedado.  O que, do ponto de vista sócio-económico seria absurdo, podendo até constituir abuso de direito”.
A referida conclusão pode ainda ser retirada do acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 26/5/2022 (relatado por Nelson Borges Carneiro, disponível em www.dgsi.pt e igualmente mencionado pela A. na sua alegação), quando aí se refere que “apesar de a apelada/ré poder utilizar a fracção na sua totalidade, tal direito, tem a limitação legal de não privação do uso pelo outro consorte”, mais se referindo, quanto ao caso concreto, que “a licitude da utilização da fracção pela apelada/ré apenas poderia cessar pela pretensão da apelante/autora utilizar a fracção, quer directamente, nela habitando, quer indirectamente, locando-a, por exemplo, ou de outro modo usufruindo dela”, e assim se concluindo que “o uso pressupõe uma utilização e a impossibilidade (concreta) desta analisa-se ou numa diminuição patrimonial ou numa frustração de aumento do património; é nesta diferença patrimonial concreta e efectiva, resultante quer da diminuição, quer do não aumento, em que consiste o dano da privação do uso”.
Reconduzindo tais considerações ao caso concreto dos autos, constata-se que a utilização que vem sendo dada ao imóvel pelo R., de acordo com o fim a que o mesmo se destina (trata-se de um prédio urbano que, atenta a sua composição, se destina a habitação unifamiliar), só será susceptível de ser considerada como uma actuação ilícita na medida em que daí resulte a privação da R. de fazer igual uso dele, seja directo (ou seja, a utilização para o fim habitacional unifamiliar a que se destina), seja mesmo indirecto (ou seja, arrendando-o para habitação).
Dito de forma distinta, apenas na medida em que se verifique a necessidade de a A. utilizar concretamente o imóvel, segundo o fim a que o mesmo se destina, é que se poderá afirmar que o R. privou a A. de tal uso.
Sucede que da factualidade provada não resulta demonstrado, por qualquer forma, que alguma vez a A. pretendeu utilizar o imóvel em questão para aí habitar ou, sequer, para o fazer habitar por terceiros, dando-o de arrendamento.
É que, desde logo, resulta provado que aquando da separação do casal foi o R. que saiu da casa de morada de família (pertencente aos pais da A.), aí permanecendo a residir a A.
Do mesmo modo, resulta provado que aquando dessa separação a A. sugeriu ao R. que fosse morar para o imóvel em questão (da propriedade comum do casal), face à necessidade de o mesmo ter de encontrar um novo local onde residir, atenta a sua saída da casa de morada de família.
Do mesmo modo, ainda, resulta provado que a A. nunca manifestou qualquer desagrado pela circunstância de o R. ter acolhido tal sugestão e ter instalado a sua residência permanente no imóvel em questão.
Do mesmo modo, ainda, resulta igualmente demonstrado que o R. nunca tomou qualquer atitude que possa ser interpretada como uma qualquer oposição a que a A. acedesse ou passasse a habitar nesse imóvel, sendo que, inclusive, a A. continua a ter acesso ao interior do mesmo, não só mantendo em seu poder chaves de acesso mas já as tendo mesmo usado, por algumas vezes, aí se deslocando para ir buscar bens pessoais que lá se encontravam.
É certo que está demonstrado que a A. não passou a habitar no imóvel, após a separação do casal, nem aí acede, desde que o R. nele habita permanentemente, porque não quer cruzar-se nem privar com o R. Mas tal não pode ser interpretado como significando que o R. tem algum tipo de comportamento ou atitude para com a A. que corresponde a um qualquer acto de privação da utilização do imóvel pela A. para o fim habitacional a que o mesmo se destina. Nem tão pouco pode significar, como pretendido pela A., que o R. só instalou a sua residência permanente no imóvel em questão porque tinha consciência que essa sua presença era o bastante para que a A. não pudesse nem conseguisse utilizar o mesmo imóvel, como era sua vontade (não demonstrada). O que é o mesmo que dizer que a ilicitude da actuação do R. não pode ser qualificada a partir de um pretenso (e não demonstrado) aproveitamento dessa circunstância para utilizar de forma exclusiva o imóvel.
Do mesmo modo, é assim que deve ser interpretada a afirmação da auto‑exclusão, referida na sentença recorrida, que mais não corresponde que à afirmada desnecessidade concreta de utilização do imóvel pela A., sendo para tal irrelevante se o R. tinha ou não (e admite-se que tivesse) consciência da recusa da A. em estar na sua presença.
Ou seja, o que se pode afirmar, a partir da factualidade apurada, é que não se vislumbra qualquer interesse concreto e objectivo da A. em utilizar o imóvel como habitação, tal como o R. o vem fazendo.
Nem sequer se vislumbra, a partir da factualidade provada, que em algum momento, após a separação e até ao presente, a A. tenha manifestado alguma vontade em usar o imóvel como sua habitação e se tenha deparado com uma qualquer oposição do R. à concretização dessa sua vontade.
É certo, igualmente, que nos autos de inventário a A. apresentou o requerimento de 1/3/2016, aí invocado ser credora do R. da quantia correspondente a metade do valor locativo do imóvel, que invocou não poder usufruir, em razão da utilização habitacional que, já então, lhe vinha sendo dada pelo R.
Mas o contexto processual em que tal requerimento é apresentado, associado à ausência de qualquer afirmação no sentido de se tornar necessário o arrendamento do imóvel por tal valor, como forma de ultrapassar uma situação conflituante de direitos, no que respeita à utilização exclusiva do mesmo, permite concluir que aquele requerimento não expressa qualquer manifestação do referido interesse juridicamente relevante quanto ao uso integral do imóvel, do mesmo modo que nem sequer se consegue afirmar qualquer manifestação de “desagrado e discordância” quanto a esse uso integral pelo R.
E seria por qualquer uma dessas formas que se poderia afirmar que o direito da A. à utilização directa e exclusiva do imóvel havia entrado em conflito com o direito do R. de igual natureza e dimensão qualitativa, sendo imposta à A. a circunstância de ser o R. quem está a efectuar tal utilização do imóvel para o seu fim habitacional e, nessa medida, daí emergindo a privação da referida utilização, a configurar-se como a violação do direito da A. em consequência da actuação do R.
Pelo que só neste circunstancialismo é que seria possível afirmar a actuação ilícita e culposa do R., a fazer surgir o direito da A. à reparação do prejuízo emergente dessa conduta.
Por último, a invocação, em sede do presente recurso, da violação do direito de propriedade da A., carece de qualquer sentido e oportunidade, quando é tão só a questão do uso do imóvel que está em causa, uma vez que as questões relacionadas com a afirmação do direito de propriedade da A. e sua violação pelo R. já foram objecto de conhecimento, pela sentença transitada em julgado e acima referenciada.
Do mesmo modo, torna-se irrelevante que a A. continue a ter interesse no destino a dar ao imóvel, designadamente na sua venda a terceiros, porque o que está em causa é o uso do imóvel pelos seus proprietários comuns (a A. e o R.), e não o poder de disposição do mesmo (seja através da sua alienação, seja através da sua adjudicação a um dos ex-cônjuges, em sede de partilha).
Assim, e ficando por demonstrar que a conduta do R. corresponde a qualquer situação de concreta e efectiva privação do direito da A. ao uso integral do imóvel em questão dos autos, não assiste à mesma o invocado direito à reparação desse (inexistente) dano de privação do uso, em medida correspondente a metade daquele que seria o valor locativo do imóvel.
O que é o mesmo que dizer que improcedem na sua totalidade as conclusões do recurso da A., não havendo que fazer qualquer censura à sentença recorrida.
***
DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso da A. e mantém-se a sentença recorrida.
Custas do recurso pela A.

25 de Maio de 2023
António Moreira
Carlos Castelo Branco
Orlando Nascimento