RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
DUPLA CONFORME
INADMISSIBILIDADE
REJEIÇÃO DE RECURSO
Sumário


I. O acórdão do Tribunal da Relação que indeferiu nulidades ao arguido é uma decisão que não conhece do objeto do processo, tratando-se de uma decisão incidental, sem autonomia, do acórdão proferido pelo mesmo tribunal que confirmou integralmente o acórdão do tribunal coletivo da primeira instância, que o havia condenado na pena única de 6 anos e 8 meses de prisão.
II. Havendo, assim, dupla conformidade, não é admissível recurso para STJ do acórdão do Tribunal da Relação que indeferiu as nulidades do arguido, sob pena de estarmos ilegitimamente a contornar a lei processual sobre a (in) admissibilidade de recursos penais para o STJ.
III. Nesta conformidade, é de rejeitar o recurso interposto pelo arguido, por inadmissibilidade legal, nos termos do arts. 432.º n.º 1 b), a contrario, do C.P.P., com referência às alíneas c) e f) do n.º 1 do art. 400.º, do mesmo diploma legal, ficando, deste modo, prejudicada a apreciação das questões nele levantadas.
IV. Não obstando a tal, como é sabido, a circunstância de o recurso em causa ter sido admitido pelo tribunal a quo, pois, de acordo com o estatuído no art. 414.º n.º 3, do C.P.P., tal decisão não vincula o tribunal superior.

Texto Integral


Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça



I. Relatório

1. Por acórdão proferido pela ... Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, de 01/06/2022, na parte que ora releva, foi decidido não conhecer da arguição da nulidade insanável invocada pelo arguido AA no requerimento que apresentou em 03/02/2022 e julgar improcedente a arguição de outra nulidade insanável invocada pelo mesmo arguido no requerimento apresentado em 21/03/2022.

2. Inconformado, decidiu o arguido interpor, em 03/07/2022, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo a respetiva Motivação da seguinte forma, que passamos a transcrever:

1. Desde 23 de Fevereiro de 2016 que o Recorrente sendo inocente vive num verdadeiro pesadelo, sofrimento e percorre um verdadeiro calvário.

2. Esta, será, porventura, a última oportunidade que o ora Recorrente tem de clamar perante V. Exªs a sua Inocência e, por outro lado, será também, porventura, a última oportunidade que V. Exªs têm de corrigir um erro judiciário.


A) DA NULIDADE INSANÁVEL ARGUIDA EM 03.02.2022

3. O ora Recorrente tomou conhecimento do requerimento de impedimento / recusa/ afastamento que o seu co-arguido BB apresentara no dia ... .12.2021 sobre a Srª Juíza Desembargadora Relatora, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido.

4. Segundo aquele último requerimento, a Srª Desembargadora Relatora tem re-lações muito próximas, profissionais e de amizade, com o Juiz Sr. Dr. CC, que presidiu ao Coletivo de julgamento dos presentes autos na 1ª instância e com quem trabalhou durante vários anos na 1ª instância, integrando o mesmo Coletivo de julgamentos.

5. E também existem relações próximas entre a família "DD “com algumas das pessoas envolvidas diretamente nos factos em causa nos presentes autos, que assumem um papel de grande relevância, como sejam o caso do ilustre advogado Sr. Dr. EE, da sua filha Srª. Drª. FF, e do banqueiro Sr. Dr. GG, à data Presidente do ... de Administração do Banco Privado ....

6. Entendeu-se que essas suspeitas, são extremamente graves e constituem um motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade da Srª Juíza Desembargadora e que afetam, inevitavelmente, as garantias de defesa do arguido.

7. Isto é, foi posta em causa a imparcialidade, independência e isenção na apreciação do recurso.

13. Uma vez que quando o ora Recorrente teve conhecimento dessas suspeições já se mostravam ultrapassados os prazos previstos no artº 41º e 44º do CPP, já não seria possível requerer o impedimento ou recusa da Srª Juíza Desembargadora Relatora ao abrigo daqueles preceitos.

14. Este foi também o entendimento do Colendo STJ, que por douto Ac. de 12.01.2022 considerou o requerimento do Dr. BB intempestivo ou extemporâneo, e por essa razão não tomou conhecimento das suspeitas que recaíam e recaem sobre a Srª Desembargadora Relatora.

15. Sendo assim e ao contrário do que entende o Ac. de que ora se recorre, aquele Ac. do STJ apenas transitou em julgado na parte em que considerou intempestivo / extemporâneo o requerimento do co-arguido Dr. BB para afastamento / impedimento da Srª Juíza Desembargadora Relatora, pois quanto às fortes suspeitas que recaem sobre esta última não tomou conhecimento nem decidiu de mérito.

16. Temos a certeza absoluta que num Estado de Direito como é o nosso, não é admissível que recaiam fortes suspeitas sobre a imparcialidade de uma juíza que participa num Coletivo, ademais de um tribunal de recurso, e que essa participação, que afeta a nobre função de julgar, não seja susceptível de impugnação.

17. Estando ultrapassados os prazos para essa impugnação previstos nos artºs 41º e 44º do CPP, como é o caso, entendeu-se que essa situação apenas pode ser enquadrada no disposto no artº 119º, al. a) do CPP: violação das regras legais relativas ao modo de determinar a composição do tribunal de recurso.

18. Seria inconcebível que uma situação dessas passasse incólume, não fosse passível de impugnação e, por outro lado, se admitisse qualquer outra consequência para tamanha gravidade que não fosse uma nulidade insanável.

19. Analisando o elenco de nulidades insanáveis prevista no artº 119º do CPP apenas conseguimos enquadrar a suspeita em apreço na al. a) do referido normativo legal.

20. Na nossa leitura, “as regras legais relativas ao modo de determinar a respectiva composição “, tem um duplo alcance: por um lado, abrangem as normas referentes à distribuição dos processos e à organização interna do tribunal e, por outro lado, exige, obviamente, que o tribunal seja composto por juízes independentes, isentos e imparciais

21. É óbvio que não há nenhuma norma que diga expressamente que os juízes devem ser independentes e imparciais, como parece pretender o tribunal recorrido ao perguntar: qual é a regra preterida ou violada relativa à composição do tribunal?

22. A imparcialidade dos juízes é pressuposto da validade do processo.

23. Este pressuposto, dada a sua importância, tem carácter universal e consta do artº 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem aplicável “ ex vi “ do artº 8º da CRP : “ Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida. “

24. Por outro lado, este princípio da imparcialidade dos juízes decorre da independência dos tribunais e é assegurada, em concreto, através de um sistema de impedimentos, escusas e recusas que permite afastar de um processo o juiz que, em virtude de certas circunstâncias particulares, possa ver afetada a credibilidade da sua imparcialidade - cfr. artº 203º e 18º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP).

25. Esse sistema de impedimentos, escusas e recusas vem previsto nos artºs 39º a 47º do CPP, e entende-se que quando se verifique uma situação ali prevista, mas o interessado apenas tomou conhecimento ultrapassados os prazos previstos nos citados preceito, esse vício só pode ser subsumível na composição do tribunal porque recai sobre um dos seus elementos essa suspeição.

26. Por outro lado, é óbvio que admitir-se o absurdo da intervenção de uma Juíza suspeita num Coletivo, estariam a ser também violadas as garantias de defesa do Arguido, ora Recorrente, previstas no artº 32º, nº 1 da CRP.

27. Demonstrada que está a existência da referida nulidade insanável vamos agora ver o seu regime no qual estamos em total desacordo com o tribunal recorrido.

28. A nulidade insanável por nós invocada está prevista no artº 119º, al. a) do CPP e não uma das nulidades dependentes de arguição, previstas no artº 120º do CPP.

29. De tal modo é a sua gravidade que não é passível de arguição;

30. Só as nulidades dependentes de arguição, previstas no artº 120º do CPP, devem ser arguidas no prazo de 10 dias por força do disposto nos artº 105º do CPP “ podendo ainda socorrer-se do disposto no artº 107º-A do CPP “.

31. Às nulidades insanáveis previstas no artº 119º do CPP, como é o caso, devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento.

32. Tendo em conta, as razões anteriormente aduzidas, deveria o tribunal recorrido ter conhecido desta nulidade insanável, julgando-a procedente com as consequências legais expressas no nosso requerimento que aqui se dão por inteiramente reproduzidas.

33. Em consequência, não o tendo feito, como devia, o tribunal recorrido violou os artigos 119º, al. a) e 122º, nº 1 do CPP e, bem assim, o artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; artigos 8º, nºs 1 a 3, 18º, nº 1, 203º e 32º, nº 1 da Constituição da República de Angola (CRP); e violou os princípios jurídicos, constitucionais e legais: da imparcialidade, credibilidade e isenção dos juízes, o principio da confiança na justiça e o principio das garantias de defesa do arguido.

34. Em consequência:

- Deverá ser declarado nulo o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.11.2021 nos termos do disposto no artº 122º, nº 1 do CPP;

- Deverá ser reconhecida a inconstitucionalidade, decorrente e em correlação com aqueles normativos, por violação das garantias de defesa do arguido - cfr. artº 32º, nº 1 CRP.


B) DA NULIDADE INSANÁVEL ARGUIDA EM 21.03.2022

35. Neste requerimento arguimos a nulidade insanável do acórdão proferido pelo TRL em 24.11.2021, com base em impedimento previsto na nova redação do art.º 40.º do C.P.P., introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de Dezembro, que entrou em vigor em 21.03.2022.

36. Impedimento relativamente à Mma Juiza que integrou o Tribunal Coletivo na 1ª Instância, Sra. Dra. HH por, durante o inquérito, ter participado numa busca a um escritório de uma advogada nos presentes autos.

37. E, desse modo, a Mmª JIC Lic HH tomou, pelo menos, nesse momento conhecimento das razões de facto e de direito que determinarem essa busca, das pessoas envolvidas, tipificação dos crimes e restante informação, conforme se verificará da leitura:

a.- do despacho da JIC assinado pela Mª. Dra. II entregue à buscada, a fls. 388 a 398, 2o Vol,

b.- e da promoção do MP a fls. 357 a 384 do 2o Vol,

38. Esta questão já tinha sido suscitada aquando do recurso da decisão da 1ª Instância para o TRL, por se entender ser violadora dos princípios constitucionais da legalidade, das garantias de defesa do arguido e do acusatório plasmados nos artºs 29º, nº 4; 32º, nº 1 e 32º, nº 5 da CRP, respetivamente, tendo o TRL indeferido esse nosso requerimento no seu Ac. de 24.11.2021.

39. As razões da nossa discordância residiam e residem, fundamentalmente, na violação do princípio do acusatório, das garantias de defesa do arguido e nas garantias de imparcialidade do juiz resultantes da inexistência de qualquer impedimento que possa afetar essa imparcialidade;

40. Como foi o caso de, na altura do julgamento, ser expectável que algum dos juízes já tivesse um pré-juízo sobre o processo resultante de um seu contacto anterior.

41. O facto de a Mª JIC Lic HH ter participado no inquérito e, posteriormente, integrado o Coletivo de julgamento, mostra-se agora expressamente previsto como um impedimento no artº 40º, nº 1, al. a) com referência ao artº 268º, nº 1, al. c) do CPP, na redação dada pela nova Lei 94/2021 de 21.12.

42. E a nova redação dada àquele dispositivo legal é de aplicação retroativa, no caso dos autos, porque é mais favorável ao arguido.

43. O requerimento em apreço foi indeferido pelo tribunal recorrido, dizendo, em suma, o seguinte:

a - A questão suscitada já foi apreciada no Ac. do TRL de 24.11.2021 e “foi analisada à luz da lei na altura vigente, mostrando-se, assim, esgotado o poder jurisdicional quanto a tal questão, com o enquadramento legal na altura feito “;

b - A alteração legislativa introduzida no art.º 40.º do C.P.P. através da Lei n.º 94/2021, de 21 de Dezembro, entrada em vigor em 21.03.2022, não se aplica aos presentes autos porque:

c - Se a actual redacção do art.º 40.º do C.P.P. estivesse em vigor no momento em que se iniciou o julgamento da 1ª instância, por certo que a Mma Juiz Adjunta que integrou o Colectivo, Sra. Dra. HH não poderia intervir nesse julgamento;

d - Acontece, porém, que a redacção então vigente não previa o impedimento para tal participa-ção e daí que a mesma tivesse – e bem – integrado o Tribunal Colectivo.

e - A dimensão da recente alteração legislativa fez desde logo surgir inúmeros constrangimentos no funcionamento dos Tribunais, perante o elevado número de situações de impedimentos em situações que na realidade nenhuma justificação tinham, de tal forma que foi já aprovada em Conselho de Ministros proposta de lei que visa repor a redacção anterior ou alterá-la de forma bem mais reduzida.

f -Não se tratando ainda de Lei aprovada pela Assembleia da República, mas apenas de Proposta de Lei aprovada pelo Governo, é, no entanto, um elemento que deverá ser considerado para efeito de interpretação.

g - Estando manifestamente em causa uma lei processual, dúvidas não existem de que apenas vigorará para o futuro, salvaguardando-se a validade dos actos realizados ao abrigo da lei anterior - cfr. artº 5º, nº 1 do CPP -.

h - A segurança jurídica e o princípio da legalidade seriam completamente postos em causa se se anulassem actos válidos, praticados de acordo com a lei vigente no momento da sua prática, com o argumento de que tal salvaguardaria as garantias de defesa do arguido.

44. Com o devido respeito, discordamos, em absoluto, do entendimento do Tribunal recorrido:

i) não se esgotou o poder jurisdicional quanto a esta questão, e prova disso é que ainda está pendente o recurso interposto para o tribunal Constitucional e que já foi aceite;

ii) o poder jurisdicional decorre da função jurisdicional do Estado e que se traduz na administração da justiça pelos tribunais, sejam eles os tribunais comuns ou o tribunal Constitucional - vd. Títulos V e VI da CRP;

iii) encontrando-se os autos no Tribunal da Relação de Lisboa e não tendo ainda transitado em julgado nem a decisão da 1ª Instância nem o Ac. da Relação, entendemos que compete àquele tribunal apreciar qualquer questão ulterior que surja como seja o caso da entrada em vigor da Lei 94/21 de 21.12.2021.

45. A publicação da Lei 94/21 de 21.12. só nos veio dar razão ao entendimento que já tínhamos manifestado no recurso que interpusemos da decisão da 1ª Instância, sobre os impedimentos dos juízes por participação em processo e o respeito pelo princípio do acusatório, ao elencar, agora expressamente, no número de impedimentos, entre outros, o de impedir que um juiz que tenha presidido a uma busca durante o inquérito possa intervir no julgamento.

46. O legislador sentiu necessidade de, ao arrepio do que alguns tribunais vinham entendendo sobre a taxatividade do elenco dos impedimentos previsto no artº 40º, introduzir-lhe alterações por forma a que aí sejam consagradas, expressamente, outras situação de impedimento que possam comprometer a imparcialidade do juiz e respeitando o princípio do acusatório, como é o caso dos autos.

47. Ou seja, o próprio legislador viu-se obrigado a introduzir essas alterações por forma a garantir o respeito pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, supra referida, pelo princípio do acusatório, pela independência (imparcialidade) dos tribunais e pelas garantias de defesa do arguido, consagradas nos artºs 10º da DUDH; 32º, nºs 1 e 5, 8º, nºs 1 a 3 e 203º todos da CRP.

48. Sendo até reconhecido pelo Tribunal recorrido o seguinte:

a.“ Se a actual redacção do art.º 40.º do C.P.P. estivesse em vigor no momento em que se iniciou o julgamento, por certo que a Mma Juiz Adjunta que integrou o Colectivo, Sra. Dra. HH, se teria declarado impedida em face da intervenção que tivera na busca que foi realizada no dia 23.02.2016, ao escritório da advogada Sra. Dra. JJ, sito na Av. ..., ..., em ..., diligência a que presidira “

b. (…) A dimensão da recente alteração legislativa fez desde logo surgir inúmeros constrangimentos no funcionamento dos Tribunais, perante o elevado número de situações de impedimentos em situações que na realidade nenhuma justificação tinham, de tal forma que foi já aprovada em Conselho de Ministros proposta de lei que visa repor a redacção anterior ou alterá-la de forma bem mais reduzida.

c. Não se tratando ainda de Lei aprovada pela Assembleia da República, mas apenas de Proposta de Lei aprovada pelo Governo, é, no entanto, um elemento que deverá ser considerado para efeito de interpretação. “- vd. fls. 67 e 68, itálico nosso -.

49. Ora, o Coletivo da 2ª Instância admite e aceita que se na data em que se iniciou o julgamento na 1ª instância estivesse em vigor a atual redação do artº 40º do CPP, a Mmª Juiza Adjunta Drª HH não podia ter integrado o Coletivo da 1ª instância, porque estava impedida de o fazer.

50. Ao considerarem esta hipótese é evidente que esse impedimento resultaria da falta de independência e imparcialidade do Coletivo da 1ª Instância e, consequentemente, da violação dos direitos, liberdades e garantias dos arguidos.

51. E as considerações sobre a função jurisdicional e a falta de recursos humanos para o exercício dessa: é persecutório e representa uma inversão de valores colocar em primeiro lugar o funcionamento dos tribunais em detrimento da redução das garantias de defesa do Arguido plasmadas no normativos da CRP acima citados.

52. O que está em causa com a entrada em vigor da L. 94/21 de 21.12.2021 que alterou, além do mais, a redação do artº 40º do CPP - dando agora consagração expressa a vários impedimentos que possam afetar a independência e imparcialidade dos tribunais e respeitando o princípio do acusatório e, bem assim, as garantias de defesa - é o instituto da sucessão de leis no tempo.

53. Ou seja, no momento da prática e do julgamento dos factos vigorava uma lei processual penal e, neste momento, antes de ter transitado em julgado qualquer uma das decisões judiciais, entrou em vigor uma outra lei processual penal por forma a garantir a independência e a imparcialidade dos tribunais e as garantias de defesa do arguido.

54. Sobre a aplicação da lei processual no tempo, dispõe o art. 5º do CPP o seguinte:

“Artigo 5.º

Aplicação da lei processual penal no tempo

1 - A lei processual penal é de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior.

2 - A lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar:

a) Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa; ou

b) Quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo.”

55. Este normativo legal, segundo os Professores Pedro Caeiro, Figueiredo Dias, Taipa de Carvalho e Gomes Canotilho proclama no seu nº 1 a regra para aplicação da lei processual penal no tempo: que é a imediata aplicação da lei processual penal, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior.

56. Consagra-se, por esta via, e como regra o princípio tempus regit actum, o qual se conjuga com o princípio do respeito pelo anterior processado.

57. O tribunal recorrido chegou à regra consagrada no nº 1 deste normativo legal e parou aí em vez de ter continuado, e chegado às exceções consagradas no nº 2 deste preceito legal e, bem assim, os ensinamentos da doutrina que supra invocámos e são bem claros.

58. Vejamos então: a regra do nº 1 do artº 5º, tem duas exceções consignadas no n.º 2 daquele art. 5.º do CPP e decorre daqui, segundo o Professor Dr. Pedro Caeiro:

a. - a proibição da retroatividade in pejus;

b. - e a imposição da retroatividade in mellius;

59. A lei processual penal nova não pode ser aplicada retroativamente, quando da sua aplicação resulte um agravamento da situação processual do arguido e do seu direito de defesa, num processo pendente (ainda não transitado em julgado);

60. Mas a Lei processual penal nova deve ser aplicada retroativamente quando da sua aplicação resulte um benefício para a situação processual do arguido e para o seu direito de defesa, num processo pendente.

61. Ora no caso vertente é manifesto que da lei processual penal nova resulta um benefício para a situação do Arguido ora Recorrente pois vem nela consagrado, expressamente, o impedimento da então Mmª JIC HH poder participar, como participou, no Coletivo de julgamento.

62. Por isso e uma vez que ainda não ocorreu o trânsito em julgado, deve ser aplicada ao caso concreto a exceção prevista no artº 5º, nº 2, al. a) do CPP e não a regra do nº 1 deste preceito legal.

63. E, por conseguinte, não poderia a então Mª JIC HH ter integrado o Coletivo, como integrou, por estar impedida de o fazer.

64. Trata-se, afinal, como defendem aqueles Mestres do Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito Constitucional, de um afloramento e de uma extensão do princípio da legalidade previsto no art. 29º nº 4 da CRP e 2º, nº 4 do CP, que não é apenas exclusivo do direito criminal e é também extensível ao direito processual penal mormente quando estejam em causa normas processuais penais materiais - vd. neste sentido Castanheira Neves " Sumários de processo criminal ", pag. 68 e segs; Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 1974, p. 112 e Taipa de Carvalho in Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 3.ª edição, 2008, refere, a p.p. 349 e 351; vd. tb. neste sentido Acs. STJ de 28.11.2007; de 07.11.2012, entre outros.

65. E, bem assim, da manifestação dos princípios da salvaguarda das garantias de defesa do arguido e do princípio do acusatório consagrados nos artºs 29º, nº 4 e 32º, nºs 1 e 5 da CRP.

66. Atendendo à dicotomia normas processuais penais formais e normas processuais penais materiais, veja-se:

a) normas processuais formais: v.g. formas de citação ou convocação, redação dos mandados, formas de audição, prazos de notificação do arguido, horários das buscas. (regulamentam o desenvolvimento do processo), isto é, não produzem os efeitos jurídicos-materiais derivados das normas processuais materiais.

b) normas processuais materiais: as normas que contendem diretamente com os direitos de defesa do arguido ou do recluso; que limitam e ameaçam a sua liberdade.

67. No caso " sub judice " está em causa, como vimos, a aplicação do disposto no art. 40º do CPP que regulamenta os impedimentos do juiz e a consequente realização de um julgamento independente, justo e imparcial.

68. E os impedimentos do juiz estão intimamente ligados ao exercício da função jurisdicional e não se compadece com qualquer sombra de dúvida, mínima que seja, sobre a imparcialidade, isenção e independência do juiz, e daqui decorre que as normas processuais penais em apreço têm natureza substantiva ou material.

69. Sendo assim, cotejando o preceituado no art. 40º do CPP, antes e depois da entrada em vigor da Lei 94/2021 de 21.12, verifica-se que a sua atual redação é mais favorável ao Arguido porque consagra, expressamente, o impedimento da Drª HH ter participado no julgamento.

70. Impõe-se, pois, a aplicação do preceituado no artº 40º, nº 1, al. a) do CPP com referência ao artº 268º, nº 1, al. c) do CPP no caso vertente, com a retroatividade da lei processual penal nova in mellius de que falava o Dr. Pedro Caeiro.

71. Em consequência, deve ser aplicada a citada nova lei ao caso concreto com todas as legais consequências daí advenientes.

72. Porquanto a contrario, são violados os artºs 40º, nº 1, al) com ref. ao artº 268º, nº 1, al. c) ambos do CPP; 5º, nº 2, al. a) do CPP, 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; 8º, nºs 1 a 3; 29º, nº 4; 32º, nºs 1 e 5, 203º, nº 1 e 203º todos da Constituição da República de Angola (CRP), e, ainda, 2º, nº 4 do CP; e os seguintes princípios jurídico–constitucionais e legais: princípios da sucessão das leis no tempo e da aplicação da lei penal mais favorável ao arguido, princípio do acusatório e das garantias de defesa do arguido, principio da segurança jurídica, princípio da legalidade, e principio da imparcialidade do juiz.

Nestes termos e nos demais de Direito,

Deve o presente recurso ser recebido, e a final, ser revogada a decisão recorrida e substituída por uma outra que:

a) admita o incidente de nulidade suscitado a 03.02.2022; e

b) proceda à aplicação da nova lei no tempo aos presentes autos nos termos e conforme requerido a 21.03.2022, tudo com as legais consequências.

V. Exªs, apreciarão e decidirão como for de JUSTIÇA!!!

3. Por despacho da Senhora Desembargadora relatora, de 02/12/2022, foi tal recurso admitido, com efeito suspensivo.

4. O Ministério Público junto do TRL respondeu ao recurso, em 04/01/2023, levantando uma questão prévia sobre a irrecorribilidade do acórdão em causa para o Supremo Tribunal de Justiça, mas, para o caso de assim não se entender, defende que o recorrente não tem razão nas questões que coloca, devendo o recurso ser julgado improcedente.

5. Por sua vez, o Senhor Procurador-Geral Adjunto, neste Supremo Tribunal, emitiu, em 04/04/2023, douto e desenvolvido parecer, no qual sustenta, em síntese, que, embora seja defensável a posição do seu Colega junto do tribunal recorrido, deverá ser admitido o recurso do arguido, nos termos do art. 399.º, do C.P.P., mas ser mantida na sua totalidade a decisão recorrida, sendo, em consequência, julgado totalmente improcedente o recurso interposto.

Observado o contraditório, o recorrente veio responder, em 14/04/2023, ao mencionado parecer, manifestando a sua discordância em relação ao seu conteúdo e afirmando que a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, que confirmou o acórdão condenatório da primeira instância, ao contrário do referido pelo Senhor PGA, ainda não transitou em julgado.

6. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

1. Na parte relevante para o presente recurso, é do seguinte teor o acórdão recorrido (Transcrição):

Acordam, em conferência, os Juízes na ... Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


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I – RELATÓRIO

(…)

2 - Por requerimento 03.02.2022, vem o recorrente AA arguir a nulidade insanável do acórdão proferido por esta Relação de Lisboa, alegando terem sido violadas as regras de composição do Tribunal Colectivo.


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3 - E, por requerimento de 21.03.2022, vem ainda o Recorrente AA arguir a nulidade insanável do acórdão proferido por esta Relação em 24.11.2021, com base em impedimento previsto na nova da redacção do art.º 40.º do C.P.P., introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de Dezembro, entrada em vigor em 21.03.2022.

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4 - O Exmo Procuradora-Geral Adjunto junto deste Tribunal da Relação respondeu ao requerido pelo arguido BB, dizendo essencialmente que a apreciação da conduta dos Magistrados do Ministério Público e os seus reflexos na acusação não constitui uma questão de conhecimento oficioso e que resulta da simples leitura do acórdão posto em crise que o Tribunal ad quem equacionou, apreciou e decidiu as concretas questões suscitadas pelo recorrente em sede de recurso, razão pela qual se impõe o indeferimento da invocada nulidade, por omissão de pronúncia.

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5 - O Ex.mo PGA respondeu também aos requerimentos apresentados pelo arguido AA, dizendo essencialmente, quanto ao requerimento de 03.02.2022, que face ao alegado pelo arguido, partindo do sentido da decisão, inexiste qualquer nulidade, sendo ainda extemporânea a sua alegação, em face do trânsito em julgado do acórdão proferido por esta Relação, por já não ser passível de recurso ordinário, e, relativamente ao requerimento de 21.03.2022, sustentando que a questão foi decidida no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, mostrando-se assim esgotado o poder jurisdicional do juiz, dizendo ainda que, mesmo que se entendesse que a lei processual nova deveria ser aplicada retroactivamente, não o poderia ser no caso dos autos, por o processo não se encontrar já pendente, dado o trânsito em julgado do acórdão proferido em 24.11.2021, por não ser já passível de recurso ordinário.

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6 - Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

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II – Apreciando e decidindo

(…)

2.2. – Das nulidades invocadas pelo arguido AA

2.2.1. – Requerimento apresentado em 03.02.2022

No requerimento que apresentou em 03.02.2022, veio o arguido AA arguir a nulidade insanável prevista no art.º 119.º, alínea a), do C.P.P., afirmando terem sido violadas as regras legais relativas ao modo de determinar a composição do Tribunal de Recurso, acrescentando que tal nulidade é de conhecimento oficioso e deve ser declarada em qualquer fase do procedimento, o que, nos termos do disposto no art.º 122.º, n.º 1, do C.P.P., implica a nulidade do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 24.11.2021.

Fundamenta o seu pedido dizendo que existe um motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade da ora relatora, fazendo para o efeito apelo ao que foi alegado no incidente de recusa/impedimento da mesma juiz relatora intentado pelo arguido BB, concluindo que, para defesa da imparcialidade e confiança na Justiça, deveria a ora relatora ter pedido escusa e não ter participado no Tribunal de recurso, nos termos previstos no art.º 43.º, n.ºs 1 e 4, do C.P.P.

Notificado, respondeu o Ministério Público, pugnando pela improcedência da arguição de nulidade, por considerar, face ao alegado pelo arguido, que inexiste qualquer nulidade, já que o arguido faz depender a sua verificação do sentido da decisão, e ainda com base na sua extemporaneidade, considerando transitado em julgado o acórdão proferido por esta Relação, por já não ser passível de recurso ordinário.

Vejamos.

Como acima referimos, em matéria de nulidades em processo penal, vigora o princípio da legalidade, determinando-se nos n.ºs 1 e 2 do art.º 118.º do C.P.P. que a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, sendo que, nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular.

E, quanto às nulidades insanáveis - aquelas que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento -, para além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais, mostram-se as mesmas previstas no art.º 119.º do C.P.P., em cuja alínea a) podemos ler que constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais, a falta do número de juízes ou de jurados que devam constituir o tribunal, ou a violação das regras legais relativas ao modo de determinar a respectiva composição.

Assim, a violação das regras legais relativas ao modo de determinar a composição do Tribunal constitui nulidade insanável, a qual pode ser declarada em qualquer fase do processo.

Tal não significa, porém, que poderá ser alegada a todo tempo, isto é, sem qualquer limitação temporal.

Na verdade, nos termos previstos no art.º 105.º, n.º 1, do C.P.P., o sujeito processual que invocar a nulidade em causa deverá fazê-lo no prazo de 10 dias contados a partir da data em que teve conhecimento da mesma nulidade, podendo ainda socorrer-se do disposto no art.º 107.º-A do C.P.P.

Constituindo nulidade insanável, nos termos previstos na alínea a) do art.º 119.º do C.P.P., a falta do número de juízes ou de jurados que devam constituir o tribunal, ou a violação das regras legais relativas ao modo de determinar a respectiva composição, - nulidade invocada pelo arguido AA – não indica, porém, o mesmo qual a regra concretamente violada.

E nós também não vislumbramos qualquer violação das regras legais relativas ao modo de determinar a composição do Tribunal.

Na verdade, subido o processo à Relação de Lisboa para conhecimento dos recursos interpostos da decisão final proferida pela 1ª Instância, foi o mesmo processo à distribuição tendo, em tal acto, ficado determinado o juiz natural, no caso a juiz desembargadora relatora, bem como a juiz desembargadora adjunta e ainda a juiz desembargadora presidente da secção.

Tratando-se de juízas desembargadoras em exercício de funções numa das Secções Criminais do Tribunal da Relação de Lisboa, não se vislumbra que regra foi preterida ou violada na distribuição do processo.

Não vislumbramos nós e o requerente também a não indica.

O que, sob a capa da arguição da nulidade insanável prevista na alínea a) do art.º 119.º do C.P.P., vem o requerente invocar agora, também ele, é uma suposta suspeição da juiz desembargadora relatora com base em supostas e inverídicas ligações familiares e de amizade que lhe retirariam liberdade para decidir.

Pretende o requerente AA discutir de novo o que já foi conhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça, dizendo, para o efeito, que não recorre à figura do impedimento da juiz desembargadora relatora, porque – afirma - isso seria, obviamente, extemporâneo face ao preceituado no art.º 44.º do CPP, mas sim à figura da nulidade insanável, decorrente da violação das regras legais relativas ao modo de determinar a composição do tribunal de recurso, nos termos do disposto no art.º 119.º, alínea a), do C.P.P..

No requerimento que faz, confunde o arguido AA a figura do impedimento com a de recusa de juiz, o que se torna evidente com o apelo que faz ao art.º 44.º do C.P.P., normativo legal que prevê o prazo a observar em caso de recusa ou de escusa de juiz e não qualquer prazo para dedução do incidente de impedimento.

Aliás, alega ainda o arguido AA que a juiz desembargadora relatora deveria ter pedido escusa, nos termos previstos no art.º 43.º, n.ºs 1 e 4, do C.P.P., afirmando depois que está em causa nulidade insanável, de conhecimento oficioso, que deve ser declarada em qualquer fase do procedimento.

Porém, a nulidade insanável prevista no art.º 119.º, alínea a) do C.P.P. não se confunde com qualquer dos impedimentos previstos nos art.ºs 39.º e 40.º do C.P.P., nem com as situações de recusa ou de escusa a que alude o art.º 43.º do C.P.P., tratando-se de institutos jurídicos distintos que têm a sua própria e específica tramitação.

Ao longo do seu requerimento, o arguido AA repete os argumentos vertidos no requerimento que o arguido BB apresentou em 07.12.2021, já apreciado pelo Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 12.01.2022.

De tal resulta que a situação concreta posta em crise, independentemente do enquadramento jurídico dela feito, é a que foi conhecida pelo Supremo Tribunal de Justiça no seguimento de requerimento de recusa/afastamento/impedimento apresentado pelo arguido BB, sendo que, como tal tese não procedeu, tenta agora o arguido AA que a mesma volte a ser analisada sob a capa de um outro enquadramento jurídico.

Tratando-se de questão decidida, por decisão já transitada em julgado, é evidente que não poderá ser de novo apreciada.

Para além disso, é ainda evidente que sempre seria extemporânea a invocação em 03.02.2022 da nulidade em causa, já que, tendo a mesma como fundamento o vertido no requerimento que foi apresentado nos autos em 07.12.2021, há muito que se mostra esgotado o prazo de 10 dias, previsto no art.º 105.º do C.P.P., que o requerente teria para a invocar.

Nos termos e pelos fundamentos expostos, porque se trata de questão já decidida pelo Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 12.01.2022, já transitado em julgado, nada há a decidir quanto ao requerimento apresentado em 03.02.2022 pelo arguido AA.


*


2.2.2. – Requerimento apresentado em 21.03.2022

Por requerimento de 21.03.2022, vem ainda o arguido AA arguir a nulidade insanável do acórdão proferido por esta Relação em 24.11.2021, com base em impedimento previsto na nova da redacção do art.º 40.º do C.P.P., introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de Dezembro, entrada em vigor em 21.03.2022, impedimento que diz verificar-se relativamente à Mma Juiz que integrou o Tribunal Colectivo na 1ª Instância, Sra. Dra. HH, por, durante o inquérito, ter participado numa busca a um escritório de uma advogada, defendendo que a nova redacção dada àquele dispositivo legal é de aplicação retroactiva no caso dos autos.

Na sua resposta, considerou o Ministério Público que a questão foi decidida no acórdão proferido por este Tribunal da Relação, mostrando-se assim esgotado o poder jurisdicional do juiz, dizendo ainda que, mesmo que se entendesse que a lei processual nova deveria ser aplicada retroactivamente, não o poderia ser no caso dos autos, por o processo não se encontrar já pendente, dado o trânsito em julgado do acórdão proferido em 24.11.2021, por não ser já passível de recurso ordinário.

A questão relativa ao impedimento da Mma Juiz Sra. Dra. HH, invocado em sede de recurso, foi de facto conhecida por este Tribunal da Relação, no acórdão que proferiu nestes autos, no qual a propósito se lê (cfr. fls 886 e ss):

«2.3.3.1. - Da alegada nulidade do julgamento por violação das regras de composição do Tribunal Colectivo (recurso de AA)

Invoca o Recorrente AA a nulidade do julgamento, afirmando terem sido violadas as regras de composição do Tribunal Colectivo e designadamente o disposto nos art.ºs 40.º do C.P.P. e 32.º, n.ºs 1 e 5, da C.R.P.

Para tanto, alega que a Mma Juiz Adjunta que integrou o Colectivo, Sra. Dra. HH, interveio na busca que foi realizada no dia ….02.2016, ao escritório da advogada Sra. Dra. JJ, sito na Av. ..., ..., em ..., diligência a que presidiu, conforme decorre de fls. 600 a 603 (3.º Vol.), tendo então tomado conhecimento de alguns dos factos que posteriormente vieram a constar da pronúncia, daí concluindo que a sua imparcialidade ficou afectada, uma vez que formulou desde logo um pré-juízo de valor sobre o que se estava a passar, razão pela qual não deveria ter integrado o Tribunal Colectivo que presidiu ao julgamento destes autos.

Prosseguindo, diz também que o art.º 40.º do C. P. Penal contempla alguns casos em que se verifica o impedimento do juiz por participação em processo, afirmando ainda que, muito embora a presente situação não esteja expressamente prevista naquele normativo legal, impõe-se considerar que tal enumeração não é exaustiva, abarcando as situações em que o juiz julgador possa formular algum pré-juízo de valor sobre a matéria que irá julgar, o que afirma ter acontecido no caso dos autos, já que os mandados de busca são acompanhados da cópia do despacho que a determinou, o que significa que a entidade que presidiu a essa diligência tomou, pelo menos, nesse momento, conhecimento das razões de facto e de direito que determinaram essa busca, das pessoas envolvidas, tipificação dos crimes e restante informação, pelo que a mesma, tendo presidido à diligência de busca, teve necessariamente conhecimento do despacho que a determinou, que foi entregue à buscada, despacho que consta de fls. 388 a 398 ( 2.º Vol), bem como da promoção do Ministério Público de fls. 357 a 384 (2.º Vol.).

Por fim, diz ainda que, tratando-se de um processo mediático e que envolvia um Ex-Vice-Presidente da República de Angola e um Procurador da República em licença sem vencimento de longa duração, é legítimo e de acordo com as regras de experiência comum admitir que a Mma Juiz já teria tido conhecimento de alguns factos e naquele momento se inteirou de tudo o que se passava para presidir ao acto judicial, a fim de garantir o cumprimento da legalidade dos actos praticados na busca, como fez, tomando, desta forma, conhecimento de toda a matéria de fundo, formulando desde logo um pré-juízo de valor sobre o que se estava a passar que poderá ter afectado a sua imparcialidade, razão pela qual não deveria a Mma Juíza Dra. HH ter integrado o Colectivo no julgamento.

Conclui que foi violado o princípio do acusatório e as garantias de defesa dos arguidos plasmados nos art.ºs 32.º, nºs 1 e 5, da C.R.P., mostrando-se ainda violadas as regras legais relativas ao modo de determinar a composição do Tribunal Colectivo, o que se traduz na nulidade insanável de todo o julgamento, nos termos do disposto nos art.ºs 119.º, alínea a), e 122.º do C.P.P.

Na sua resposta, considerou o Ministério Público não se verificar a alegada nulidade, dizendo não ser de acolher a interpretação do referido preceito legal no sentido propugnado pelo Recorrente, já que, para que a diligência se realize com observância dos formalismos legais, não é necessário que o Juiz que preside à diligência afira da correspondência dos indícios de que tome conhecimento com o crime ou crimes indiciados, ou da consistência desses indícios como sucede na aplicação de medida de coacção privativa de liberdade, ou para a prolação de pronúncia, casos em que o comprometimento com a matéria de facto é imprescindível para a decisão.

Considerando que o art.º 40.º do C. P. Penal nunca poderia contemplar a situação em apreço, conclui ser de indeferir a arguição da nulidade do julgamento.

Vejamos.

Quanto às garantias do processo criminal, estabelece o art.º 32.º, n.ºs 1 e 5 , da C.R.P. que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso e que o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.

E determina-se na alínea a) do art.º 119.º do C.P.P. que constitui nulidade insanável, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, a violação das regras legais relativas ao modo de determinar a composição do Tribunal.

Por sua vez, quanto ao impedimento por participação em processo, estabelece o art.º 40.º do C.P.P.:

«Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver:

a) Aplicado medida de coacção prevista nos artigos 200.º a 202.º;

b) Presidido a debate instrutório;

c) Participado em julgamento anterior;

d) Proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea a), ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior.

e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta.»

Sustenta o Recorrente que se impõe considerar incluídas no citado art.º 40.º do C.P.P. outras situações, designadamente as em causa nos autos, em que a Mma Juiz Adjunta presidiu, na fase de inquérito, à realização de uma busca no escritório de uma advogada, ficando assim impedida de integrar o Tribunal Colectivo.

Pensamos que não lhe assiste razão.

Com efeito, vendo o teor do dispositivo legal transcrito e conforme reconhece o próprio Recorrente, é manifesto que a situação em análise não se mostra contemplada no art.º 40.º do C.P.P., normativo legal que prevê o impedimento de participação do juiz no processo se nele tiver aplicado medida de coacção prevista nos artigos 200.º a 202.º (proibição e imposição de condutas, obrigação de permanência na habitação e prisão preventiva), presidido a debate instrutório, participado em julgamento anterior, recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta e, ainda, se tiver proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão que aplique uma das referidas medidas de coacção, ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior.

Trata-se assim da intervenção do juiz em actos que impliquem uma análise da consistência dos indícios e uma tomada de posição quanto à verificação ou não de tais indícios, mostrando-se assim a análise da matéria de facto imprescindível para a tomada de decisão.

Nestas situações verifica-se um comprometimento do juiz com a análise da matéria de facto, sobre a qual é chamado a formular um juízo crítico, positivo ou negativo.

Tal não é manifestamente o caso dos autos em que a Mma Juiz se limitou a presidir à busca por forma a assegurar o cumprimento das normas legais relativas à própria busca, para protecção dos direitos dos arguidos e/ou da pessoa buscada, nenhuma posição assumindo relativamente à consistência ou inconsistência dos indícios constantes dos autos ou quanto à actuação das pessoas visadas.

A Mma Juiz não procedeu a qualquer análise da factualidade em causa, no sentido de sobre ela tomar qualquer posição.

E não é o mero conhecimento da factualidade que justificou a determinação da busca e a emissão dos correspondentes mandados que leva a qualquer tomada de decisão sobre essa factualidade.

Aliás, qualquer intervenção de um juiz na fase de inquérito, por mais inócua que seja relativamente à factualidade em causa, implica que tome algum conhecimento dos factos, sendo que o mero conhecimento da factualidade objecto do inquérito não significa qualquer tomada de posição sobre essa mesma factualidade.

Do mesmo modo, também não é a divulgação mediática de factos objecto de um processo crime que permite concluir que os juízes que tomaram conhecimento de tal divulgação estão impedidos de intervir nesse processo, sendo certo que, a assim ser, estaria descoberta a forma de afastar os juízes, todos os juízes, da decisão de tais processos.

Os impedimentos previstos na lei relativamente à intervenção de um juiz num processo crime encontram-se previstos nos art.ºs 39.º e 40.º do C.P.P., neles se identificando as situações que impedem que um juiz intervenha em determinado processo.

Tal não impede que outras normas do Código de Processo Penal prevejam, relativamente a situações bem definidas, o impedimento concreto de um juiz, como é o caso das situações previstas nos art.ºs 108.º, n.º 3, 288.º, n.º 3, e 460.º, n.º 2, por referência ao art.º 449.º, n.º 1, alínea b), todos do C.P.P., identificadas por Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, art.º 40.º, anotação 19.

E não se mostra necessária qualquer interpretação analógica do art.º 40.º do C.P.P. para as situações em que, mesmo não constando do elenco nele previsto, ainda assim evidenciem que determinado juiz não deveria participar no processo por forma a salvaguardar a confiança na sua imparcialidade.

É que a lei prevê também as situações em que um juiz pode ser recusado ou escusado de participar num processo, designadamente por nele ter intervindo anteriormente, como resulta do disposto no art.º 43.º do C.P.P., no qual se lê:

«1 - A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

2 - Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º

3 - A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.

4 - O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.ºs 1 e 2.

5 - Os actos processuais praticados por juiz recusado ou escusado até ao momento em que a recusa ou a escusa forem solicitadas só são anulados quando se verificar que deles resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo; os praticados posteriormente só são válidos se não puderem ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo.»

(sublinhados nossos)

Assim, de acordo com o art.º 43.º, n.ºs 1, 2 e 4, do C.P.P., a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada ou escusada quando existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, sendo que poderá constituir fundamento da existência de tal risco a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º

Quer isto dizer que sempre que exista motivo sério e grave de a participação do juiz no processo poder gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, poderá requerer-se a recusa desse juiz, ou solicitar o mesmo a sua escusa de participar em tal processo.

Assim, quanto aos motivos que poderão fundamentar um pedido de recusa ou de escusa não se verifica qualquer taxatividade, exigindo-se apenas que o motivo que fundamenta tais incidentes, de recusa ou de autos, em que a Mma Juiz Adjunta presidiu, na fase de inquérito, à realização de uma busca no escritório de uma advogada, ficando assim impedida de integrar o Tribunal Colectivo.

Pensamos que não lhe assiste razão.

Com efeito, vendo o teor do dispositivo legal transcrito e conforme reconhece o próprio Recorrente, é manifesto que a situação em análise não se mostra contemplada no art.º 40.º do C.P.P., normativo legal que prevê o impedimento de participação do juiz no processo se nele tiver aplicado medida de coacção prevista nos artigos 200.º a 202.º (proibição e imposição de condutas, obrigação de permanência na habitação e prisão preventiva), presidido a debate instrutório, participado em julgamento anterior, recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta e, ainda, se tiver proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha escusa, seja sério, grave e adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.

Como podemos ler no sumário do Acórdão do STJ de 09-12-2010, Procº 3755/05.2TDPRT.P1-A.S1: «II - O art. 43.º, n.º 1, do CPP não indica taxativamente os fundamentos de suspeição – e, na verdade, são várias as razões que podem levar a pôr em causa a capacidade de um juiz se revelar imparcial –, o que releva não é tanto o facto de o juiz conseguir ou não manter a sua imparcialidade, mas defendê-lo da suspeita de a não conservar, não dando azo a qualquer dúvida, por esta via reforçando a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados – cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1974, págs. 303/304.»

No caso em análise, em que a Mma Juiz Adjunta se limitou a presidir a uma busca no escritório de uma advogada, por forma a assegurar a legalidade da busca e a protecção dos direitos da pessoa buscada, sem qualquer tomada de posição ou decisão sobre a factualidade em causa nos autos, é manifesto que tal acto não põe em causa a sua imparcialidade.

A referida intervenção da Mma Juiz não tem virtualidade para, subjectiva ou objectivamente, gerar qualquer desconfiança quanto à sua imparcialidade.

E isso mesmo foi entendido quer pela Mma Juiz – que não requereu a sua escusa de intervir no processo – quer pelos arguidos e pelo Ministério Público – que não deduziram qualquer incidente de recusa de juiz -, donde decorre que uma e outros entenderam que tal acto processual não constituía motivo sério, nem grave, nem adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade da Senhora Juiz.

E, assim sendo, afigura-se incompreensível a arguição de nulidade agora invocada pelo arguido AA, sendo certo que o mesmo poderia ter lançado mão do incidente de recusa de juiz até ao início da audiência, nos termos previstos no art.º 44.º, n.º 1, do C.P.P., o que não fez.

E não o fez porque, por certo, concluiu que a dedução de um incidente de recusa de juiz com tal fundamento estaria votada ao insucesso.

Na verdade, a simples participação da Mma Juiz na busca em causa, não constituiu qualquer intervenção da mesma na análise da matéria de facto indiciada, nem a prolação de decisão que implique uma tomada de posição sobre essa matéria, em termos de a considerar, ou não, indiciada, resultando evidente, quer objectiva, quer subjectivamente, que a diligência em causa, por si só, não permite gerar qualquer desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Quanto à taxatividade dos impedimentos previstos nos art.ºs 39.º e 40.º do C.P.P., já se pronunciou o nosso Supremo Tribunal de Justiça em Acórdão de 07.07.2010, em cujo sumário podemos ler: «IV. O regime de impedimentos do processo penal previsto nos arts. 39.º e 40.º, para além de específico, é de enumeração taxativa. Não contém lacunas que devam ser integradas por analogia. Por tal motivo, não é lícito recorrer ao CPC, ex vi do art. 4.º do CPP, para integração do pretenso caso omisso. V. O que existe no CPP é a norma do art. 43.º, n.º 1, que prevê que a intervenção de um juiz no processo possa ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar a desconfiança sobre a sua imparcialidade.»

Verifica-se assim que o regime consagrado nos art.ºs 39.º, 40.º e 43.º do C.P.P. permite, no seu conjunto, dar resposta às diferentes situações que evidenciem que determinado juiz não deve intervir em determinado processo, assim salvaguardando quer os direitos de defesa dos arguidos, quer a confiança dos cidadãos na imparcialidade do juiz que intervém em determinado processo.

No caso em análise, é patente que o facto de a Mma Juiz Adjunta ter presidido a busca no escritório da advogada Sra. Dra. JJ, acautelando o cumprimento dos normativos legais aplicáveis e os direitos dos arguidos e da buscada, não constitui qualquer impedimento para integrar o Tribunal Colectivo que presidiu ao julgamento destes autos, não se mostrando, por isso, violadas as normas legais relativas ao modo de determinar a composição do Tribunal.

Consequentemente, sem necessidade de maiores considerações, não se verificando a violação de qualquer normativo legal ou constitucional, nem os indicados pelo Recorrente, nem quaisquer outros, improcede, sem qualquer dúvida, a arguição de nulidade do julgamento.»

Conforme decorre do excerto transcrito a questão foi apreciada no acórdão agora posto em crise e foi analisada à luz da lei na altura vigente, mostrando-se, assim, esgotado o poder jurisdicional quanto a tal questão, com o enquadramento legal na altura feito.

E, assim sendo, impõe-se apenas que analisemos se a alteração legislativa

introduzida no art.º 40.º do C.P.P. através da Lei n.º 94/2021, de 21 de Dezembro, entrada em vigor em 21.03.2022, tem aplicação aos presentes autos. Entendemos que não.

Vejamos porquê.

Inexiste qualquer dúvida de que o número de impedimentos de juiz por participação no processo foi alargado pela nova redacção dada ao art.º 40.º do C.P.P.

Com efeito, quanto aos impedimentos por participação em processo, passou a constar do referido art.º 40.º do C.P.P.:

«1 - Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver:

a) Praticado, ordenado ou autorizado ato previsto no n.º 1 do artigo 268.º ou no n.º 1 do artigo 269.º;

b) Dirigido a instrução;

c) Participado em julgamento anterior;

d) Proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea a), ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior.

e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta.

2 - Nenhum juiz pode intervir em instrução relativa a processo em que tiver participado nos termos previstos nas alíneas a) ou e) do número anterior.

3 - Nenhum juiz pode intervir em processo que tenha tido origem em certidão por si mandada extrair noutro processo pelos crimes previstos nos artigos 359.º ou 360.º do Código Penal.»

E estabelece-se no art.º 268.º do C.P.P., sob a epígrafe «actos a praticar pelo juiz de instrução»:

«1 - Durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução: a) Proceder ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido;

b) Proceder à aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção da prevista no artigo 196.º, a qual pode ser aplicada pelo Ministério Público;

c) Proceder a buscas e apreensões em escritório de advogado, consultório médico ou estabelecimento bancário, nos termos do n.º 3 do artigo 177.º, do n.º 1 do artigo 180.º e do artigo 181.º;

d) Tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida, nos termos do n.º 3 do artigo 179.º;

e) Declarar a perda a favor do Estado de bens apreendidos, com expressa menção das disposições legais aplicadas, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277.º, 280.º e 282.º;

f) Praticar quaisquer outros actos que a lei expressamente reservar ao juiz de instrução.

2 - O juiz pratica os actos referidos no número anterior a requerimento do Ministério Público, da autoridade de polícia criminal em caso de urgência ou de perigo na demora, do arguido ou do assistente.

3 - O requerimento, quando proveniente do Ministério Público ou de autoridade de polícia criminal, não está sujeito a quaisquer formalidades.

4 - Nos casos referidos nos números anteriores, o juiz decide, no prazo máximo de vinte e quatro horas, com base na informação que, conjuntamente com o requerimento, lhe for prestada, dispensando a apresentação dos autos sempre que a não considerar imprescindível.»

E, relativamente aos actos a ordenar ou autorizar pelo juiz de instrução, diz- se no art.º 269.º do C.P.P.:

«1 - Durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução ordenar ou autorizar:

a) A efetivação de perícias, nos termos do n.º 3 do artigo 154.º;

b) A efectivação de exames, nos termos do n.º 2 do artigo 172.º;

c) Buscas domiciliárias, nos termos e com os limites do artigo 177.º; d) Apreensões de correspondência, nos termos do n.º 1 do artigo 179.º;

e) Intercepção, gravação ou registo de conversações ou comunicações, nos termos dos artigos 187.º e 189.º;

f) A prática de quaisquer outros actos que a lei expressamente fizer depender de ordem ou autorização do juiz de instrução.

2 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo anterior.»

Da conjugação dos três normativos legais transcritos, e designadamente do referido na alínea a) do n.º 1 do art.º 40.º e nos art.ºs 268.º, n.º 1, e 269.º, n.º 1, alínea f), do C.P.P., resulta que a prática num processo de qualquer acto que seja da competência do juiz de instrução impede que o juiz que praticou tal acto venha a participar no julgamento que decorrer nesses autos.

Assim, se a actual redacção do art.º 40.º do C.P.P. estivesse em vigor no momento em que se iniciou o julgamento, por certo que a Mma Juiz Adjunta que integrou o Colectivo, Sra. Dra. HH, se teria declarado impedida em face da intervenção que tivera na busca que foi realizada no dia 23.02.2016, ao escritório da advogada Sra. Dra. JJ, sito na Av. ..., ..., em ..., diligência a que presidira.

Acontece, porém, que a redacção então vigente não previa o impedimento para tal participação e daí que a mesma tivesse – e bem – integrado o Tribunal Colectivo.

A dimensão da recente alteração legislativa fez desde logo surgir inúmeros constrangimentos no funcionamento dos Tribunais, perante o elevado número de situações de impedimentos em situações que na realidade nenhuma justificação tinham, de tal forma que foi já aprovada em Conselho de Ministros proposta de lei que visa repor a redacção anterior ou alterá-la de forma bem mais reduzida.

Não se tratando ainda de Lei aprovada pela Assembleia da República, mas apenas de Proposta de Lei aprovada pelo Governo, é, no entanto, um elemento que deverá ser considerado para efeito de interpretação.

No caso em apreço, sustenta o arguido AA que a nova redacção do art.º 40.º do C.P.P. deve ser aplicada retroactivamente aos presentes autos, dai concluindo que se verificava o impedimento da Senhora Juiz Adjunta e, consequentemente, a verificação da nulidade insanável consistente na violação das regras legais relativas ao modo de determinar a sua composição.

Confunde, também aqui, o requerente os impedimentos por participação em processo com as regras legais relativas ao modo de determinar a composição do Tribunal.

Ora, os impedimentos previstos nos art.ºs 39.º e 40.º do C.P.P. tem o seu regime previsto nos art.ºs 41.º e 42.º do C.P.P., nos quais se determina em que termos tais impedimentos podem ser declarados ou requeridos, em que prazos e quais os seus efeitos.

Coisa diferente é a arguição de nulidades – sanáveis e insanáveis – cujo regime se mostra previsto nos art.ºs 118.º a 122.º do C.P.P., neles se prevendo também os termos e prazos em que podem ser arguidas e os seus efeitos.

Se determinado crime for julgado por um Tribunal Singular quando o devia ser por um Tribunal Colectivo, haverá violação das regras legais relativas ao modo de determinar a composição do Tribunal, verificando-se, consequentemente, a nulidade insanável prevista no art.º 119.º, n.º 1, alínea a), do C.P.P.

Se um juiz se declara impedido ou não reconhece impedimento que lhe seja oposto, decisão que neste último caso é passível de recurso, há que observar o disposto nos art.ºs 41.º e 42.º do C.P.P..

Trata-se de institutos jurídicos diferentes, com soluções jurídicas igualmente distintas, não podendo resolver-se qualquer situação de impedimento com recurso ao que se encontra previsto em matéria de nulidades.

Assim, nunca o caso dos autos poderia ser visto como uma nulidade por violação regras legais relativas ao modo de determinar a composição do Tribunal sendo certo que participaram no julgamento os juízes a quem os autos foram distribuídos e com competência para tal.

Acresce que, estando em causa lei processual, há que aplicar o disposto no art.º 5.º do C.P.P., relativo à aplicação da lei processual penal no tempo, no qual se lê:

«1 - A lei processual penal é de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior.

2 - A lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar:

a) Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa; ou

b) Quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo.»

(sublinhado nosso)

Assim, de harmonia com o previsto no n.º 1 do referido art.º 5.º do C.P.P., sendo a lei processual penal de aplicação imediata, tal aplicação não põe em causa a validade dos actos realizados na vigência da lei anterior.

E nos termos previstos no n.º 2 do mesmo art.º 5.º poderá limitar-se a aplicação da lei processual nova apenas aos processos que se iniciarem após a sua entrada em vigor se da aplicação imediata aos processos pendentes pudesse resultar um agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa ou a quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo.

No caso em apreço, há que aplicar o n.º 1 do referido art.º 5.º do C.P.P. que determina que a lei nova não põe em causa a validade dos actos realizados na vigência da lei anterior.

E, assim sendo, inexistindo no momento em que foi realizado o julgamento qualquer impedimento que obstasse à participação da Mma Juiz Adjunta na realização do julgamento destes autos, é manifesto que a validade da sua intervenção, que se mostra de acordo com a lei então vigente, não pode ser posta em causa por uma lei processual que entrou em vigor muito depois de terminado o julgamento.

Estando manifestamente em causa uma lei processual, dúvidas não existem de que apenas vigorará para o futuro, salvaguardando-se a validade dos actos realizados ao abrigo da lei anterior.

A segurança jurídica e o princípio da legalidade seriam completamente postos em causa se se anulassem actos válidos, praticados de acordo com a lei vigente no momento da sua prática, com o argumento de que tal salvaguardaria as garantias de defesa do arguido.

As garantias de defesa do arguido são salvaguardadas quando se respeitam as normas legais e constitucionais vigentes no momento da prática dos actos, o que foi manifestamente o caso, dúvidas não existindo de que, no momento em que teve lugar o julgamento destes autos, inexistia qualquer impedimento que obstasse à participação da Mma Juiz Adjunta no Tribunal Colectivo que presidiu àquele julgamento.

Por outro lado, não se vislumbra a violação de qualquer regra relativa ao modo de determinar a composição do Tribunal Colectivo, nem a mesma vem indicada pelo requerente.

Consequentemente, sem necessidade de outras considerações, improcede a invocada nulidade insanável por violação das regras legais relativas ao modo de determinar a composição do Tribunal.


*


III – DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da ... Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em:

(…)

b) Não conhecer da arguição de nulidade insanável invocada pelo arguido AA no requerimento que apresentou em 03.02.2022;

c) Julgar improcedente a arguição de nulidade insanável invocada pelo arguido AA no requerimento que apresentou em 21.03.2022;

d) Custas pelos Requerentes BB e AA, com taxa de justiça que se fixa, quanto a cada um deles, em 2 UC (duas unidades de conta) - (art.º 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e tabela III ao mesmo anexa).


*


Elaborado em computador e integralmente revisto pela relatora (art.º 94.º, n.º 2, do C.P.P.)

*


 Lisboa, 01.06.2022

(assinado digitalmente)

2. Resulta dos autos que o arguido AA foi condenado por acórdão do Juízo Central Criminal ... -J..., da comarca de Lisboa, de 07/12/2018, pela prática de um crime de corrupção passiva, na forma qualificada, na pena de 4 anos de prisão, de um crime de branqueamento na pena de 5 anos de prisão, de um crime de violação de segredo de justiça na pena de 1 ano e 2 meses de prisão e de um crime de falsificação de documento na pena de 1 ano e 4 meses de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de 6 anos e oito meses de prisão.

Foi ainda condenado na pena acessória de proibição de exercício de funções por um período de 5 anos.

Na sequência da interposição de recurso do arguido, foi por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24/11/2021, mantida a condenação proferida pela primeira instância, nos seus exatos termos (crimes e penas).

Por sua vez, o Tribunal Constitucional, por decisão sumária nº 518/2022, de 22/07/2022, confirmada por acórdão do mesmo Tribunal, datado de 04/11/2022 (acórdão nº 742/2022), não admitiu o recurso interposto pelo arguido.

Ora, como bem observa o Senhor Procurador-Geral Adjunto, do Tribunal da Relação de Lisboa, na sua Resposta ao recurso do arguido, o acórdão de 01/06/2022, ora recorrido, que não conheceu uma nulidade invocada pelo arguido e julgou improcedente uma outra nulidade que este também invocou é uma decisão que não conhece do objeto do processo, tratando-se de uma decisão incidental, sem autonomia, do acórdão proferido pelo mesmo Tribunal, em 24/11/2023, que confirmou integralmente a decisão da primeira instância que condenou o arguido numa pena única de 6 anos e 8 meses de prisão, verificando-se, assim, a dupla conformidade.

Logo não é recorrível, pois, caso fosse, ainda segundo o ilustre magistrado, seria deixar “entrar pela janela o que a lei não permite que entre pela porta”.

Acrescente-se que uma eventual nulidade do acórdão da Relação não constitui fundamento da admissibilidade do recurso. A nulidade só pode ser arguida e constituir objeto de recurso se a decisão for recorrível, o que, conforme atrás dissemos, não o é, no caso em apreço.

Refira-se também, a propósito, que idêntico entendimento foi perfilhado muito recentemente num acórdão deste Supremo Tribunal, de 15/03/2023[1], relatado pela Senhora Conselheira Ana Barata Brito, alicerçado, nomeadamente, na fundamentação de um outro acórdão mais antigo, de 28/02/2007, cujo relator foi o Senhor Conselheiro Henriques Gaspar, em que se desenvolveu: “a recorribilidade (ou irrecorribilidade) está referida a “processo” e não a decisões mais ou menos contingentes sobre incidências processuais, não sendo admissível recurso para o STJ de uma decisão proferida num processo para cuja decisão final a irrecorribilidade está expressamente estabelecida. (…) Estando em causa um processo em que foi proferida já decisão final que não admite recurso para o STJ, não pode, por segunda via e lateralmente, transformar-se a irrecorribilidade da decisão sobre a culpabilidade e a pena em recorribilidade de uma decisão sobre nulidades arguidas posteriormente. (…) A garantia constitucional do direito ao recurso, como uma das garantias de defesa previstas no art. 32.º, n.º 1, da CRP, significa e impõe que o sistema processual penal deve prever a organização de um modelo de impugnação das decisões que possibilite, de modo efectivo, a reapreciação por uma instância superior das decisões sobre a culpabilidade e a medida da pena, ou a reapreciação das decisões proferidas num processo que afectem, directa, imediata e substancialmente, direitos fundamentais, como sejam as decisões relativas à aplicação de medidas de coacção privativas da liberdade. (…) Salvaguardados estes limites que definem o núcleo do direito, a garantia constitucional não impõe, nem um determinado modelo de recursos (por exemplo, um segundo grau de recurso), nem a recorribilidade total, estratificada e avulsa, de todas as decisões, nomeadamente as que não definem a culpabilidade ou a pena, como são todas as decisões que não ponham termo à causa, ou as proferidas posteriormente à decisão final, proferida em recurso, e irrecorrível.”

Ora, em sintonia com tal pensamento e indo ao encontro da posição do Senhor Procurador-Geral Ajunto da Relação de Lisboa, na questão prévia que suscitou na sua peça processual, determina-se a rejeição do presente recurso, nos termos do disposto nos art. 432.º n.º 1 b), a contrario, do C.P.P., com referência às alíneas c) e f) do n.º 1 do art. 400.º, do mesmo diploma legal, ficando, deste modo, prejudicada a apreciação das questões nele levantadas.

Saliente-se, por último, e para finalizarmos, que a tal não obsta a circunstância de o recurso ter sido admitido pelo tribunal a quo, pois, de acordo com o estatuído no art. 414.º n.º 3, do C.P.P., tal decisão não vincula o tribunal superior.

III. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em rejeitar, por inadmissibilidade legal, o recurso interposto pelo arguido AA do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 01/06/2022 (Cfr. arts. 414.º n.º 2, 420.º n.º 1 b) e 432.º n.º 1 b), todos do C.P.P.).

Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC, a que acrescerá mais 3 UC (art. 420.º n.º 3, também do C.P.P.).


Lisboa, 17 de maio de 2023


(Processado e revisto pelo relator)

Pedro Branquinho Dias (Relator)

Teresa de Almeida (Adjunta)

Ernesto Vaz Pereira (Adjunto)

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[1] No proc. n.º 1642/19.6JAPRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.