ACÇÃO EXECUTIVA
NOMEAÇÃO DE BENS À PENHORA
PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
Sumário

I – Na execução sumária (regime pré-vigente ao da reforma da acção executiva) pertence, em exclusivo, ao exequente a faculdade, e o ónus, de nomear bens à penhora;
II – O funcionamento do mecanismo do artigo 837º-A, nº 2, do CPC (redacção do DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro), de cooperação do executado na feitura da penhora, pressupõe e exige que o exequente, justificada e consistentemente, alegue a séria dificuldade na identificação ou localização dos bens;
III – Limitando-se o exequente a requerer que, “atento o que ... dos autos consta”, sejam os executados notificados para, em prazo, virem aos autos identificar os seus bens penhoráveis, deve o requerimento ser indeferido.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1.
1.1. Banco … SA (antes denominado T SA) desencadeou acção executiva, para pagamento de quantia certa, fundada em sentença condenatória, contra B…  e esposa C….[1]
           
1.2. A instância executiva progrediu com normalidade.
Mas não foi possível, no entretanto, conseguir realizar o pagamento da quantia exequenda, uma vez que se não apurou património dos executados susceptível de ser penhorado.

1.3. A dado passo, o exequente formulou o requerimento:
«Banco  SA … vem, atento o que … dos autos consta, requerer a V.Exa. que, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 837º-A, nº 2, do Código de Processo Civil, se digne ordenar a notificação dos executados para, em prazo não superior a dez dias, virem aos autos identificar bens ou valores penhoráveis aos mesmos pertencentes, sob pena de não o fazendo, serem condenados nos autos como litigantes de má-fé.» (fls. 20).

1.6. No tribunal a quo este requerimento foi indeferido.
Em suma, apelou-se à disposição do artigo 837º-A do Código de Processo Civil; e acrescentou-se:
«…
… a nomeação de bens, à luz da versão do Código de Processo Civil aplicável ao caso dos autos, configurava uma mera faculdade, porquanto ao abrigo do disposto no artigo 811º, nº 1, o executado era notificado para pagar ou nomear bens à penhora.
Ao exposto acresce que a nomeação de bens à penhora pelo executado é expressamente qualificada pelo artigo 833º do Código de Processo Civil como uma faculdade.
Ora, …, a interpretação dada pela exequente no sentido de o artigo 837º-A, nº 2, possibilitar a notificação do executado para indicar bens, sob cominação de condenação em multa processual, surge, a esta luz, inaceitável, porquanto – a ser aceite – transfiguraria um acto processual qualificado expressamente pela lei como “faculdade”, numa verdadeira e própria obrigação.

Assim, … não resulta do supra citado artigo 837º-A, nº 2, do Código de Processo Civil, qualquer obrigação de nomeação de bens à penhora, a qual à luz do processo executivo em vigor nos presentes autos repugnou ao legislador.
…» (fls. 21 a 22).

1.7. Inconformado, agravou o exequente.
Em alegações, afirmou, em síntese, que:
a) A questão resume-se em saber se está ou não em vigor, na hipótese dos autos, o disposto no nº 2 do artigo 837º-A do Código de Processo Civil;
b) Este artigo tem a finalidade, sem prejuízo do que se dispõe no artigo 833º, de concretizar o princípio da cooperação, facultando a possibilidade de obter do executado informações indispensáveis à penhora;
c) Trata-se de um poder-dever, que o tribunal deve exercer sempre e quando, justificadamente, o exequente o requeira e solicite.
E concluiu que deve:
« Revogar-se o despacho recorrido, face até à justificação do indeferimento dele constante, violou frontalmente a norma insista no artigo 837º-A, nº 2, do Código de Processo Civil, julgando-se o presente procedente e provado, e substituindo-se o dito despacho por acórdão que defira o que requerido foi nos termos do artigo 837º-A, nº 2, do Código de Processo Civil …»

1.8. Não houve resposta.
Foi produzido despacho de sustentação (v fls. 25 a 26).

2. Delimitação do objecto do recurso.
É habitual dizer-se – e é verdade – que são as conclusões do recorrente que delimitam o objecto do recurso (artigo 684º, nº 3, do CPC).
No caso vertente a questão decidenda é, portanto, a de saber se o despacho que rejeitou a pretensão do banco exequente de que os executados fossem notificados para identificar bens ou valores penhoráveis deve, ou não, ser mantido; e, para tanto, instrumentalmente, verificar se a previsão normativa do artigo 837º-A, nº 2, do CPC, se encontra devidamente enquadrada.


II – Fundamentos
1. O contexto processual relevante para a decisão do recurso é o que se colige, desde já, do ponto 1. do relatório deste acórdão e que, segundo cre-mos, não há necessidade de aqui voltar a transcrever.
Vejamos, então, quanto à questão de fundo em causa.

            2. O mérito do recurso.

            2.1. O essencial da questão decidenda radica, como se disse, na disposição do artigo 837º-A do Código de Processo Civil, na redacção aplicável deste diploma, e que é a que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro.[2]
            Sob a epígrafe Averiguação oficiosa e dever de cooperação do executado é o seguinte o texto desse artigo:
            « 1. Sempre que o exequente justificadamente alegue séria dificul-dade na identificação ou localização de bens penhoráveis do executado, incum-be ao juiz determinar a realização das diligências adequadas.
            2. Pode ainda o juiz determinar que o executado preste ao tribunal as informações que se mostrem necessárias à realização da penhora, sob cominação de ser considerado litigante de má fé. »

            2.2. O contexto jurídico-normativo, pertinente a esta acção executi-va, é o da forma sumária de execução (artigo 465º, nº 2); portanto, o contido no bloco dos artigos 924º a 927º do CPC; embora, sem prejuízo da aplicação subsidiária das disposições do processo ordinário (artigo 466º, nº 3).
            A este respeito e sob a epígrafe Nomeação de bens à penhora é a seguinte, em particular, a redacção do artigo 924º:
            « Se a execução se fundar em decisão judicial condenatória ... o direito de nomear bens à penhora pertence exclusivamente ao exequente, que os nomeará logo no requerimento executivo, sem prejuízo do disposto no artigo 837º-A. »
            Significa que em execução sumária se subtrai ao executado a facul-dade de indicar os bens sujeitos à penhora, que o artigo 833º, nº 1, lhe concedia em sede de execução sob a forma ordinária. Por conseguinte, exclusivo direito do exequente, a exercitar logo no requerimento inicial, em reforço das suas faculdades promotoras da instância; mas sem prejuízo, naturalmente, quer das nomeações subsequentes, designadamente quando se verifique a insuficiência dos bens antes indicados (artigo 836º, nº 2, alínea a), e nº 3), quer ainda das de-mais possibilidades que haja no sentido de levar a bom resultado – quer dizer, à satisfação efectiva do crédito exequedo – os fins da acção executiva, destacando o preceito de modo expresso, precisamente, uma de tais possibilidades – aquela que se contém no questionado artigo 837º-A.
            Em suma, inequívoco que, pese embora o exequente possa contar com a cooperação dos serviços do tribunal, certo é a ele principalmente caber o impul-so processual; não estando de modo algum dispensado de usar de toda a diligên-cia no que respeita à averiguação da existência dos bens que viabilizem a acção.

            2.3. Aqui se enquadra, por conseguinte, o regime do artigo 837º-A.
            Cabendo ao exequente a iniciativa promotora do processo – o impulso da instância –, designadamente, descortinando e apresentando à penhora bens que dela sejam passíveis, se o não fizer, gera-se um bloqueio. Que, se censurável for ao exequente, envolverá, a mais das questões tributárias, ainda a consequên-cia processual de enfraquecimento da instância, por via da sua interrupção (ar-tigo 285º), porventura, da sua própria extinção, por deserção (artigos 287º, alínea c), e 291º, nº 1).
            Note-se que esse juízo de censura, ao que nos importa, pode ser relacionado com o desencadear da lide executiva; pois que ao accionar, com a cobertura normativa aplicável, o exequente já deve ter em vista a reunião das condições adequadas ao bom êxito da demanda; quer dizer, avançará para a execução na medida em que esteja minimamente seguro do apetrecho patrimonial do executado, necessário para a realização do crédito, ou, pelo menos, se ache habilitado a desenvolver todas as diligências no que respeite à averiguação desse património. É isto, na nossa óptica, que lhe é razoavelmente exigível; de tal maneira que, pelo que pensamos, se assim não for, então a lide para que avance, sem as mencionadas condições, terá algo de temerário e, por regra, haverá de ser ele, o exequente – quem assim accionou –, que terá de arcar com as consequências nefastas da frustração da demanda, em particular, com assunção do encargo das custas e, porventura, acabando por ver extinta – por deserção sequente da falta prolongada de impulso – a instância que desencadeou.
            A lei, porém, flexibiliza esta, já por si razoável, exigência.
            E precisamente mediante o regime do artigo 837º-A.
            Dessa maneira, se o exequente tiver séria e justificada dificuldade na averiguação do apetrecho patrimonial, passível de penhora, que seja necessário para o bom êxito da execução que desencadeou, poderá apoiar-se numa colaboração a prestar pelo tribunal, que deverá, então, desenvolver os procedimentos coadjuvantes ao exequente, que sejam adequados a ultrapassar as ditas dificuldades.
            Adiantamos já que nos parece ser esse o pressuposto essencial para o funcionamento deste mecanismo; seja para julgar preenchida a previsão norma-tiva do nº 1, seja para julgar preenchido o nº 2 – que haja séria dificuldade na identificação ou localização de bens penhoráveis do executado e, para além disso, obviamente, que o exequente justificadamente o alegue (artigo 837º-A, nº 1, proémio).
            Em homenagem ao seguimento da finalidade básica do processo executivo, que é a satisfação efectiva do direito do exequente, e tendo em conta que este é, afinal, titular de um direito já reconhecido ou, pelo menos, dotado de uma forte verosimilhança quanto à sua existência e conteúdo, é que se estabelece este dever de cooperação, contributo para a busca de uma verdade substancial e a exercitar dentro de certos limites, considerados exigíveis.[3]  E assim, com esses limites, na atenuação de outras regras e princípios – atenuação precisamente justificada por tais pressupostos – deverá o tribunal, por exemplo, ordenar investigações policiais, a recolha de informações junto de conservatórias, repar-tições de finanças ou entidades empregadoras; ou, por outro lado, determinar que o executado preste as informações necessárias para a identificação ou localização dos bens passíveis da penhora.[4]
            Por conseguinte, e para esse efeito, se exige um efectivo requerimento do exequente, devidamente fundamentado, de onde se permita inferir, com alguma consistência, que lhe não foi possível, mesmo usando de toda a diligência devida, encontrar os bens susceptíveis de penhora.[5]  É que só essa circunstância permite sobrepor ao que são as regras gerais – designadamente ao ónus de promoção e impulso – aquelas outras, que o bom êxito da execução justifica; e assim, por exemplo, pemitir que se possa exigir, dentro de certos limites, que também o executado deva concorrer para a justa e efectiva realização do direito do credor.[6]

            2.4. Quid juris, a esta luz, quanto ao caso dos autos?
No caso vertente, a única justificação que o exequente apresenta, para a pretensão que formula, é a de que « atento o que ... dos autos consta » – o que parece, na nossa óptica, claramente insuficiente.
            A fundamentação, que aqui se exige, há-de ter um conteúdo concreto e cariz verdadeiramente substancial, capaz de permitir ao tribunal fazer incidir sobre ela o seu juízo de apreciação. Está em causa o desencadear de um mecanismo que em particular onera o executado a prestar informações sobre a sua situação patrimonial, o que, em princípio, lhe não compete, mas antes ao exequente; e aliás acarreta para aquele uma pesada cominação.
            Ao exequente, como antes dissemos, incumbe impulsionar o proces-so; e se, por si só, o não consegue fazer, convém que consistentemente o justifi-que; mais até na execução sumária em que a nomeação de bens é da sua exclu-siva responsabilidade; e, daí, que para aceder à cooperação, como pretende, haja de justificar os esforços desenvolvidos e demonstrar, por alguma forma, as dificuldades encontradas.[7] 
            A verdade é que o desconhecimento de (outros) bens pertencentes aos executados, só por si, não significa necessariamente que estes não possuam bens penhoráveis; sendo ao exequente que o compete, com rigor e diligência, apurar; sob pena de ter de assumir as decorrências processuais nefastas da omissão.
            Por conseguinte, sendo a justificação meramente remissiva e tabelar que foi apresentada pelo exequente, inidónea a revelar que antes fôra usada toda a diligência exigível, no que respeita à averiguação dos bens penhoráveis dos executados, e a demonstrar a sua séria dificuldade na identificação e localização desses bens, outra não podia ter sido a decisão do tribunal a quo senão aquela que efectivamente tomou.[8]
            Improcede, portanto, o recurso de agravo interposto.

            2.5. As custas do recurso são encargo do banco agravante, que naquele decaiu (artigo 446º, nº 1 e nº 2, do CPC).

            3. Síntese conclusiva.
            É a seguinte a síntese conclusiva que pode ser feita, a propósito do que fica de essencial quanto ao mérito do presente recurso:

            I – Na execução sumária (regime pré-vigente ao da reforma da acção executiva) pertence, em exclusivo, ao exequente a faculdade, e o ónus, de nomear bens à penhora;
II – O funcionamento do mecanismo do artigo 837º-A, nº 2, do CPC (redacção do DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro), de cooperação do executado na feitura da penhora, pressupõe e exige que o exequente, justificada e consisten-temente, alegue a séria dificuldade na identificação ou localização dos bens;
            III – Limitando-se o exequente a requerer que, “atento o que ... dos autos consta”, sejam os executados notificados para, em prazo, virem aos autos identificar os seus bens penhoráveis, deve o requerimento ser indeferido.


III – Decisão
            Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar o recurso de agravo improcedente e, em consequência, manter o despacho recorrido.
            Custas a cargo do agravante.
 
Lisboa, 18 de Outubro de 2011

Luís Filipe Brites Lameiras
Jorge Manuel Roque Nogueira
José David Pimentel Marcos
---------------------------------------------------------------------------------------
[1] Embora, no rigor, se desconhece a data da interposição da acção executiva, intui-se, para lá de toda a dúvida, que tal terá acontecido no ano de 2002; portanto no quadro normativo precedente ao da reforma da acção executiva. É, seja como for, questão incontroversa.
[2] À execução vertente é aplicável, como inicialmente registámos (nota 1), o quadro normativo pré-vigente ao da reforma da acção executiva, implementada pelo Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março, a qual entrou em vigor a 15 de Setembro de 2003, e unicamente com incidência nos processos instaurados a partir dessa data. O artigo 837º-A, em causa, foi aliás revogado pelo artigo 4º do citado Decreto-Lei.
[3] Sobre as regras da indagação oficiosa dos bens penhoráveis e da cooperação do executado na realização da penhora, do artigo 837-A do CPC, ambas como manifestação do princípio geral da cooperação con-sagrado no artigo 266º, veja-se Abílio Neto, “Código de Processo Civil anotado”, 15ª edição, páginas 1148 a 1149; José Lebre de Freitas, “A Acção Executiva à luz do Código Revisto”, 2ª edição, página 199, Miguel Teixeira de Sousa, “Acção Executiva Singular”, 1998, páginas 24 a 25; J.P. Remédio Marques, “A penhora e a reforma do processo civil”, 2000, página 15; e José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, “Código de Processo Civil anotado”, volume 3º, 2003, página 401.
[4] J.P. Remédio Marques, “Curso de Processo Executivo Comum”, 1998, página 213; Fernando Amâncio Ferreira, “Curso de Processo de Execução”, 1999, páginas 136 a 137.
[5] Escreve-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Junho de 2004 que se compreende que assim seja porque o tribunal não é um mero instrumento das partes, no caso do exequente, para lhe viabilizar a penhora (proc.º nº 04B1569, in www.dgsi.pt). Ainda a propósito da necessidade de justifica-ção expressa da efectiva existência de dificuldade séria na identificação ou localização dos bens, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Outubro de 2004, proc.º nº 04B2677, in www.dgsi.pt.  
[6] Carlos Lopes do Rego, “Comentário ao Código de Processo Civil”, 1ª edição, página 558.
[7] Fernando Amâncio Ferreira, obra citada, página 137.
[8] É esta, aliás, a jurisprudência largamente maioritária no tribunal da relação da Lisboa. Vejam-se os acórdãos de 1 de Junho de 2010, proc.º nº 2092-A/2002.L1-7, e de 20 de Janeiro de 2011, proc.º nº 634-A/2002.L1-6, ambos in www.dgsi.pt; para lá, ainda, do acórdão proferido em 30 de Novembro de 2010, nesta mesma 7ª secção cível, no proc.º nº 1141-A/2000.L1, relatado pelo relator do presente.