DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
DEFENSOR
DISCRICIONARIEDADE
Sumário

I– A prestação de declarações para memória futura não está condicionada à prévia constituição como arguido do denunciado/suspeito.
II– Neste caso, a prestação de declarações para memória futura deverá, apenas ser precedida da nomeação de defensor e respectiva notificação para comparência à diligência, a fim de ser salvaguardado o princípio do contraditório.
III– Permite-se, com a nomeação do defensor, assegurar o exercício dos direitos que estão atribuídos ao arguido, e neste caso ao suspeito/denunciado que pode vir a assumir essa qualidade.
II– O “timing” no que tange à constituição do arguido é inerente à competência exclusiva do MP enquanto titular da acção penal, e responsável pela melhor estratégia aplicada à investigação, no âmbito do princípio que genericamente se apelida de acusatório, sendo que o sistema processual penal não atribui quaisquer poderes de ingerência nesta área ao JIC, com excepção de zelar pela salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias.

(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 3ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–RELATÓRIO


1.1.–No âmbito do processo de inquérito que, sob o número 220/23.0SXLSB corre termos no Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa – Juiz 8, na sequência de requerimento do MºPº, em que requeria que a ofendida AM fosse ouvida em declarações para memória futura e que fosse nomeado defensor ao denunciado/suspeito, foi proferido despacho pela Sr.ª JIC de 11.1.2023 com o seguinte teor decisório:
(transcrição)
”(…)
Assim, na senda do já consignado no despacho de fls. 39/40 e atenta a posição assumida pelo Ministério Público a fls. 45, afigura-se que, no caso em concreto, inexistem fundamentos que justifiquem e/ou possam tornar aceitável, proporcional e razoável, à luz do princípio do contraditório, que se proceda à tomada de declarações para memória futura, sem arguido constituído nos autos, quando se mostram reunidos todos os pressupostos para que tal já tivesse ocorrido e sem que o Ministério Público justifique o retardar do interrogatório e constituição de arguido.
Com estes fundamentos, indefere-se, por ora, a tomada de declarações para memória futura, nos termos requeridos pelo Ministério Público.
*

1.2.–Desta decisão veio o MºPº interpor recurso independente, em separado, nos termos e com os fundamentos que constam dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das seguintes conclusões:
(transcrição)
(…)
1–No presente inquérito investigam-se factos susceptíveis de integrarem a prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a) do Código Penal, em que é vítima AM, e denunciado/suspeito RA
2–Em cumprimento do disposto no artigo 28.º da Lei de Protecção de Testemunhas, que prevê que as declarações de vítima especialmente vulnerável deverá ser efectuada no mais curto espaço de tempo após a ocorrência dos factos ilícitos e sempre que possível deverá ser evitada a repetição da sua audição - obstando dessa forma à revitimização - em conjugação com o disposto nos artigos 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, 24.9 da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro e 271.º do Código de Processo Penal, in casu, foi requerida a tomada de declarações para memória futura da vítima AM
3–De igual forma, pelos motivos expostos no ponto 2, o Ministério Público como titular da acção penal e a quem cabe a direcção do inquérito, por razões de discricionariedade táctica na investigação, requereu à Mma. Juiz de Instrução, a tomada de declarações para memória futura da vítima AM, em momento anterior ao da constituição como arguido do denunciado/suspeito RA.
4–Pelo motivo do denunciado/suspeito RA ainda não ter sido constituído arguido, mais requereu o Ministério Público que fosse nomeado defensor àquele, e notificado para estar presente na diligência de tomada de declarações para memória futura, para cabal exercício do contraditório, nos termos do disposto no artigo 64.º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal.
5–A Mma. Juiz de Instrução, por despacho datado de 11 de Abril de 2023, indeferiu a requerida nomeação de defensor ao denunciado/suspeito RA, por entender, em síntese, que não sendo constituído arguido não há lugar a participação de defensor na referida diligência e, em consequência, indeferiu a tomada de declarações para memória futura de AM.
6–Entendendo a Mma. Juiz de Instrução indeferir a tomada de declarações para memória futura, em sequência do indeferimento da nomeação de defensor ao suspeito/denunciado RA, em momento prévio à sua constituição como arguido, fê-lo desde logo, desconsiderando que, nos termos dos artigos 53.º, n.º 2, alínea b) e 263.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, cabe ao Ministério Público a direcção da acção penal. sendo este quem decide a tempestividade e adequação das diligências probatórias a encetar na fase de inquérito. incluindo-se. o timing em que o denunciado/suspeito deverá ser constituído arguido.
7–Na verdade, inexiste qualquer base legal para que, em primeiro lugar, se constitua alguém como arguido, para posteriormente, serem requeridas e tomadas as declarações para memória futura da vítima. De salientar que, nos termos do artigo 58.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal se exige que recaia sobre determinada pessoa uma fundada suspeita de crime, para que seja constituída arguida, o que, regra geral, com um auto de denúncia/notícia/participação, não se verifica.
8–De facto, a tomada de declarações para memória futura, por si só, não protege a vítima, mas permite obter um depoimento mais "fresco" e recente da factualidade em investigação, evitando a revitimização e potenciando uma efectiva responsabilização penal do denunciado, caso se verifiquem indícios da prática de crime, de forma a melhor sustentar uma condenação, cumprindo e garantindo, escrupulosamente, o direito do contraditório.
9–É evidente que, a ausência do arguido constituído dificultará o exercício da defesa. Mas isso não é diferente do que acontece naquelas situações em que o defensor é nomeado para representar um arguido ausente que não conhece e que nunca prestou declarações no processo, ou um arguido não presente no momento da produção da prova (nas situações dos artigos 325.º, n.º 5, 332.º, n.ºs 5 e 6 e 334.º, n.º 4 do Código de Processo Penal).
10–Em nosso entendimento, a Mma. Juiz de Instrução ao recusar a nomeação de defensor ao denunciado/suspeito e em consequência, indeferir a tomada de declarações para memória futura, nos termos e com os fundamentos em que o fez, violou o disposto nos artigos 53.º, n.º 2, alínea b), 58.º, n.º 1, alínea a), 64.º, n.º 1, alínea f), 67.º-A, n.º 1, alínea b), e 271.º, ambos do Código de Processo Penal, 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, 24.º da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro, 20.º, n.ºs 1 e 2 e 32.º, n.ºs 1, 3 e 5 da Constituição da República Portuguesa, 6.º, n.º 3, alínea c) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e 47.º e 48.º, n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
11–Razão pela qual o despacho ora em crise, deve ser substituído por outro, onde se determine a nomeação de defensor ao denunciado/suspeito RA, e a designação de data para a tomada de declarações para memória futura de AM.
(…)
*

1.3.–Nesta instância, o Exmº. Procurador Geral Adjunto, na intervenção a que se refere o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, emitiu parecer no sentido da procedência o recurso interposto, sufragando o entendimento do MP da 1ª Instância.
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1.4.–Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.
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1.5.–Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c) do Código Processo Penal.
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II–FUNDAMENTAÇÃO

2.1.–Objeto do Recurso
Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
Assim, no caso vertente, o objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas conclusões, reconduz-se a apreciar se deve ser permitida a tomada de declarações para memória futura antes da constituição como arguido de suspeito identificado.
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2.2.–APRECIANDO

O crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, alínea b), n.º 2, alínea a), 4 e 5 do Código Penal, punível com pena de prisão, em que é vítima AM, sua namorada.
Este crime é punível com pena de prisão de 2 a 5 anos, e no quadro da Lei de Política Criminal é considerado de investigação prioritária[1] [2].
Por outro lado, importa dar boa nota do disposto nos art.ºs 1º, al. j) e 67º - A, n.º 3 do Código Processo Penal, dos quais resulta que o crime de violência doméstica integra o conceito de criminalidade violenta e as suas vítimas são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis[3].

Em caso semelhante ao presente recurso, o acórdão proferido por esta Relação, número 604/22.0PAVFX-A.L1-9, decidiu:
1.– É legal a prova antecipada de recolha de declarações para memória futura de uma menor de idade, vítima de denunciado crime de violência doméstica, por força do disposto no art.º 33º, da Lei 112/2009, de 16.09, e bem assim dos art.ºs 26º, n.º 2, e 28 da Lei 93/99, de 14.07 (Lei de Protecção de Testemunhas), 67.º -A, n.ºs 1, als. a), i) iii), e b), e 271º, ambos do CPP.
2.– Não está na disponibilidade do juiz de instrução (nem de qualquer outro) realizar, em sede de inquérito, um juízo de oportunidade do momento mais adequado para a realização de declarações para memória futura que tenham fundamento legal e que hajam sido solicitadas pelo Ministério Público, por esse juízo competir exclusivamente a quem detém a titularidade, direcção e realização do inquérito, ou seja, ao Ministério Público, sob pena de violação da estrutura acusatória do processo penal.
3.– A recolha de declarações para memória futura não exige a prévia constituição como arguido(s).

Não descortinamos quaisquer razões para divergirmos deste entendimento.
Efectivamente, nada obstava a que o tribunal a quo designasse dia e hora para a tomada de declarações à vítima, uma vez que, contrariamente ao que consta do despacho recorrido, não era necessário que o denunciado fosse constituído arguido para que pudessem ser tomadas declarações para memória futura à ofendida.
Urge também dizer que, cada vez mais se constata a necessidade de potenciar este tipo de declarações nas situações específicas para as quais a lei as prevê, pois, não raras vezes, a prova estriba-se unicamente nas declarações da ofendida, sabendo por quem vive como nós o dia-a-dia da prática judiciária, em inúmeros casos concretos os conflitos passam-se “entre muros”.
Assim, também entendemos que para aquela tomada de declarações não é necessário que tenha que existir já arguido constituído, mas apenas que, no pressuposto de que tal venha a suceder, seja nomeado um defensor. Com efeito, a lei obriga à sua presença para efeitos de garantir o contraditório.
Last but not least, não incumbe à Sr.ª JIC, nesta fase, intrometer-se na esfera de autonomia do Ministério Público. É que, é ao MP que incumbe estabelecer, por ser o titular da acção penal e a entidade a quem cabe a direcção do inquérito, o momento oportuno para a constituição do arguido no quadro de um poder de discricionariedade táctica ao nível da investigação criminal.
Como também se decidiu no acórdão proferido por esta Relação, no procº. 604/22.0PAVFX-A.L1-9, “…o despacho recorrido atentou contra a titularidade do exercício da ação penal por parte do Ministério Público, nomeadamente contra o poder de direção do inquérito, na vertente do poder de decisão sobre os meios de prova a produzir em sede de inquérito e o timing em que devem ser produzidos, não havendo justificação legal plausível que suporte a possibilidade de ao juiz de instrução ser legítimo um juízo de oportunidade do momento em que tais diligências de prova devem, em sede de inquérito, ser realizadas.”.

Termos em que, e sem outros considerandos por desnecessários, revoga-se o despacho sob censura que deverá ser substituído por outro em conformidade com o ora decidido. Ou seja, por despacho em que defere o requerido pelo MP, designando dia e hora para tomada de declarações para memória futura, com a celeridade exigível.
*

III–DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, os juízes desta Relação acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Publico, na sequência do que decidem revogar o despacho recorrido e determinar a sua substituição por outro que, deferindo o requerido, designe dia e hora para tomada de declarações para memória futura, com a celeridade aqui exigível.
Sem tributação.
Notifique.


Tribunal da Relação de Lisboa, 22-05-2023


(Texto elaborado e revisto pelo relator – artigo 94.º, n.º 2, do CPP).

O relator escreve de acordo com a anterior grafia.


Alfredo Costa
Rosa Vasconcelos
Francisco Henriques




[1]Lei n.º 55/2020, de 27 de Agosto de 2020 que “Define os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2020-2022, em cumprimento da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio, que aprova a Lei-Quadro da Política Criminal”.
[2]Cfr. alínea c) do artigo 4.º e alínea c) do art. 5º da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio.
[3]Cfr. artigos 20º, 21, nº 2 al. d), 24º do Estatuto da Vítima Especialmente Vulnerável, aprovado pela Lei n.º 130/2015 de 4.9, 14.º n.º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16.9.