RECONHECIMENTO
VALOR DA PROVA
APRECIAÇÃO DA PROVA EM JULGAMENTO
Sumário

I– O cuidado que o legislador impôs ao ato de reconhecimento, reforçado aquando da reforma do Código de Processo Penal operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, é expressivo da importância e da falibilidade deste meio de prova, quando não forem tomadas as devidas precauções.
II– Uma vez que o reconhecimento só tem valor probatório se obedecer à disciplina rígida estabelecida no artigo 147º do Código de Processo Penal, tal obediência deve emergir do respetivo auto, sob pena de invalidade ad substantiam, que acarretará para o julgador uma proibição de valoração, que o vincula em qualquer estado do processo e sem necessidade de iniciativa processual por parte do arguido (cfr. n.ºs 5 e 7).
III– A prova por reconhecimento – visando a identificação dos agentes dos atos ilícitos – é, em regra, realizada na fase de inquérito e, como tal, consubstancia um meio de prova antecipado ou pré-constituído e autónomo, a ser examinado em audiência de julgamento e a valorar no âmbito da livre apreciação da prova, no confronto com os demais meios probatórios, com observância do princípio do contraditório.
IV– O reconhecimento pessoal não se destina à confirmação da identidade de uma pessoa que foi já identificada pelo reconhecedor junto dos órgãos de polícia criminal mediante a apresentação de uma imagem ou fotografia, em formato físico ou digital, obtida por aquele pelos seus próprios meios, pois tal representa uma inversão dos pressupostos daquele meio probatório e dos papéis dos intervenientes.
V– É inquestionável que o mais decisivo elemento de identificação de uma pessoa passa pelo reconhecimento dos traços fisionómicos do rosto e das caraterísticas do cabelo, sem prejuízo de haver outras caraterísticas físicas, originárias, naturais ou adquiridas [como é o caso, a título exemplificativo, de deformidades, sinais, cicatrizes e tatuagens] e, até, de postura corporal, que sejam de tal forma singulares que tenham forte virtualidade distintiva e identificativa.
VI– Em situação em que os ofendidos não conseguiram ver o rosto dos indivíduos que os interpelaram, com exceção dos olhos, nem o cabelo, não resultando dos autos e da audiência de julgamento qualquer explicação plausível para, não obstante tal condicionalismo, e não referindo outros elementos de identificação absolutamente distintivos, conseguirem reconhecer o arguido como sendo um daqueles indivíduos, apesar de já o conhecerem antes no circunstancialismo que cada um descreveu, está irremediavelmente comprometida a validade da prova por reconhecimento, de que decorre a proibição da sua valoração.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.–RELATÓRIO


1.–No processo n.º 371/22.8PCAMD, do Juízo Central Criminal de Sintra - Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, em que é arguido EP, com os demais sinais identificativos dos autos, foi este submetido a julgamento perante tribunal coletivo, tendo, a final, sido proferido acórdão, no qual foi decidido, além do mais, condená-lo, pela prática, em coautoria material, na forma consumada e em concurso real, de dois crimes de roubo, previstos e punidos pelo artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão por cada um deles (ofendidos RT e PS) e, em cúmulo jurídico destas penas parcelares, na pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão e, ainda, a pagar ao ofendido RT a quantia de € 574,00 (quinhentos e setenta e quatro euros) e ao ofendido PS a quantia de € 602,00 (seiscentos e dois euros), acrescidas de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, contados desde a presente data até integral recebimento, arbitradas a título de indemnização [art. 82.º- A do Código de Processo Penal e art. 16.º n.ºs 1 e 2 da Lei 130/2015, conjugado com o art. 67.º-A, n.º 1, al. b) e n.º 3 do CPP e art. 1.º alínea j) do mesmo diploma legal].

2.–Inconformado com tal decisão, dela veio o arguido interpor recurso, apresentando, após a respetiva motivação, as seguintes conclusões e petitório [transcrição[1]]:
1.–EP, arguido nos autos à margem referenciados, notificado da Sentença condenatória proferido no âmbito dos presentes autos e não se conformando com o seu teor, vem, ao abrigo do disposto no artigo 427.º do Código de Processo Penal, interpor recurso do mesmo para o Tribunal da Relação de Lisboa.
2.–O presente recurso visa o reexame da matéria de direito – nos termos da alínea a) e b) do n.º 2 do art. 412.º do C.P.P., e o reexame da matéria de facto – nos termos das alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 412.º do C.P.P., tendo por base a gravação das provas efetuadas em audiência, designadamente das declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas RT, PS e MF.

3.–O Tribunal a quo julgou, parcialmente procedente por parcialmente provada, a acusação e, em consequência:
a)-Condenou o arguido EP pela prática, em coautoria material, na forma consumada e em concurso real, de dois crimes de roubo, previstos e punidos pelo artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão por cada um deles (ofendidos RT e PS);
b)-Operando o cúmulo jurídico das duas penas parcelares referidas em a), condenou o arguido EP na pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
c)-Condenou o arguido no pagamento das custas do processo, bem como nos demais encargos, fixando a taxa de justiça individual em 3 (três) Uc’s.
d)-Decidiu ainda condenar o arguido EP a pagar ao ofendido RT a quantia de 574,00 (quinhentos e setenta e quatro euros), e ao ofendido PS a quantia de 602,00 (seiscentos e dois euros), sendo cada um desses montantes acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, contados desde a presente data até integral recebimento (art. 82.º- A do Código de Processo Penal e art. 16.º n.ºs 1 e 2 da Lei 130/2015, conjugado com o art. 67.º-A, n.º 1, al. b) e n.º 3 do CPP e art. 1.º alínea j) do mesmo diploma legal).
4.–Ora, o arguido não se pode conformar com a factualidade dada como provada e com o presente recurso visa o Recorrente a modificação da matéria de facto provada, por considerar que as provas produzidas quanto à mesma não permitiam ao Tribunal dar como assente os factos respetivos.
5.–Em cumprimento no disposto na alínea a) do n.º 3, do artigo 412.º do C.P.P., o Recorrente identifica como pontos que considera incorretamente julgados os constantes da fundamentação de facto, designadamente, 1. a 13. e 19. “segunda parte).
6.–Em cumprimento no disposto no n.º 4, e na al. b) do n.º 3, do artigo 412.º, do C.P.P., o Recorrente indica como provas que impõem decisão diversa da recorrida, as declarações do Arguido e os depoimentos das testemunhas e ofendidos RT e PS, bem como da testemunha MF (sua mãe).
7.–O arguido negou os factos.
8.–Resulta do depoimento das duas testemunhas/ofendidos que os autores do ilícito usavam balaclavas que apenas lhes permitiam ver os olhos dos autores dos ilícitos.
9.–Resulta ainda dos autos, na participação da queixa-crime, confirmado pelas testemunhas/ofendidos em sede de Audiência de julgamento que a testemunha RT seria capaz de reconhecer (não referiu que o conhecia, ou seja, se o conhecia, não o reconheceria porque o conhecia) os autores e a testemunha PS não conseguia reconhecer os Autores.
10.–Os reconhecimentos presenciais feitos ao arguido são inválidos por não obedecerem aos formalismos legais previstos no Código do Processo Penal.
11.–A testemunha RT, refere que, “Identifiquei, não, não identifiquei logo, eu só identifiquei quando tipo, porque eles tinham dito quando soubessem, porque eu ainda não sabia o nome, antes de ir, quando eu fui à polícia, eles perguntaram o nome dele, e eu conhecia-o, e eu disse que o conhecia por música, mas já não tava a lembrar.”.
12.–A testemunha até ser ouvida no departamento de investigação criminal nunca fez qualquer menção de conhecer o arguido e, alegadamente, leva uma imagem do arguido no telemóvel quando é chamado a prestar declarações, ou seja, mesmo “sabendo” quem era, não se dirige à PSP, o que é de todo incongruente.
13.–Alega ser o arguido o autor porque já o tinha visto de máscara no bairro, onde reside a sua irmã, e por isso o reconhece, ora em momento algum, a não ser do Youtube, refere ter contato com o arguido, que quando o viu foi de máscara, como sabia que era o arguido e, pasme-se, refere que no bairro há mais pessoas que andam de máscara, mas que não foi nenhuma delas, ora um depoimento assim prestado, com o devido respeito não merece qualquer credibilidade.
14.–Do depoimento da testemunha resulta que o reconhecimento pessoal foi precedido de um reconhecimento fotográfico onde apenas lhe foi mostrada a fotografia do arguido, o que condiciona esse mesmo reconhecimento, para além do que infra se dirá nesta sede.
15.–No que se refere à testemunha PS este confirmou, igualmente, em sede de Audiência de Discussão e Julgamento que quando apresentou, juntamente com a sua mãe, queixa junto da PSP, disse não conseguir reconhecer os autores do ilícito, porque ambos usavam balaclava, o que é percetível.
16.–Porém, em sede de Audiência de julgamento e já anteriormente aquando do reconhecimento pessoal, a testemunha identifica o arguido como sendo um dos autores do ilícito, o que entra em contradição com a queixa apresentada e com o depoimento feito em Audiência de Discussão e Julgamento.
17.–Resulta do depoimento da testemunha que em data anterior aos factos teria sido abordado pelo arguido, e que este lhe teria pedido 1 (um) euro, faz este uma associação entre o facto anterior, o pedido de um euro por parte do arguido (esta declaração não foi confirmada pelo arguido que não foi confrontado com a mesma), e o autor do ilícito, fazendo assim uma associação que até à data não havia feito.
18.–Ora, se não conseguiu reconhecer nenhum dos autores e isso fez constar quando efetuou a participação do ilícito, como veio posteriormente a fazer essa associação? Tal facto só pode ter sido sugerido por terceiros, nomeadamente, pelos agentes da PSP.
19.–A testemunha não identificou peças de vestuário, que lhe reconheceu a voz, que o tinha visto antes de colocar a balaclava, ao invés, o reconhecimento foi feito pelos olhos, por ser alto e de cor, nenhuma das característica apontadas são por si só passiveis de um reconhecimento.
20.–A testemunha não conhecia o arguido (a não ser do alegado pedido do euro), não voltou a ver o arguido, não o conhecia do Youtube.

21.–No que tange ao reconhecimento pessoal efetuado pelas duas testemunhas e ofendidos, RT e PS, omite o Tribunal a quo o facto de este não ter cumprido com os formalismos legais, porquanto:
i)- O arguido tem uma altura de cerca de 1,85 metros, à data dos factos tinha 19 anos;
ii)- A testemunha EJ, um dos elementos integrantes da linha de reconhecimento, é agente da PSP, com cerca de 1,70 metros, e 31 anos de idade, a testemunha este presente em Audiência de Julgamento e o Tribunal a quo teve oportunidade de confirmar a desconformidade de tamanho e de idades entre ambos, o que ficou registado em áudio, pois foi somente para isso que foi arrolado como testemunha;
iii)- Quanto ao terceiro elemento da linha de reconhecimento, não foi possível levá-lo a Tribunal porquanto a morada indicada no auto de reconhecimento da PSP não existe, e qualquer das moradas tentadas, por semelhança, igualmente, não existia, tal facto também não pode deixar de ser valorado em favor do arguido que desta forma não pôde, também neste caso, mostrar à evidência que o reconhecimento era/é invalido;

22.–Pelo exposto, com o devido respeito, o Tribunal a quo, deveria ter dado como não provado, que o arguido, tivesse praticados os factos ocorridos em 22 de março de 2022 e em 25 de março de 2022 por falta de prova evidente e inequívoca, em detrimento da presunção de culpa do arguido.
23.–O Tribunal deu como provados, nomeadamente, os pontos 1. a 13. e 19. “segunda parte”, da Douta Sentença os quais não encontram suporte na prova produzida, ou na prova existente nos autos, razão pela qual, deveriam ter sido alvo de outra apreciação critica em Audiência de Julgamento e em consequência na Douta Sentença.
24.–O que vale dizer que a Sentença recorrida enferma de erro de julgamento e erro na apreciação e valoração da prova produzida e com o presente recurso visa o Recorrente a modificação da matéria de facto provada, por considerar que as provas produzidas quanto à mesma não permitiam ao Tribunal dar como assente os factos respetivos.
25.–O Tribunal incorre, aqui em manifesto lapso de troca de identidades, em erro quando refere que ofendido RT, que já conhecia o arguido, para além do mais, de o ver na rua, e do ofendido PS, que de igual modo já conhecia o arguido, como sendo o “Zé Bula”, com publicações no Youtube, e por residir no bairro onde morava a sua irmã, tendo trocado os depoimentos das testemunhas.
26.–Não é por acaso que, com vista à condenação do arguido, a fundamentação é parca e concisa, não foi efetuada qualquer análise critica, do depoimento das testemunhas/ofendidos e a sua contradição lógica.
27.–Para existir a condenação do arguido, seria necessário que se verificasse que a prova produzida, em audiência fosse inequívoca, de que o arguido teria praticado os factos pelos quais vinha acusado, assim não foi, nos termos em que a foi, deveria ter sido declarada a absolvição do arguido.
28.–Estamos perante um erro não só de julgamento, como também perante um erro de apreciação e valoração da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento que a não existirem sempre conduziriam a absolvição do arguido.
29.–Se é certo que no âmbito do direito penal vigora o princípio da livre apreciação da prova (art.º 127º do C.P.P.), o mesmo não pode confundir-se com a apreciação arbitrária da prova, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova, sendo, em concreto, reconduzível a critérios objetivos, obedecendo, antes, a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio. O princípio da livre apreciação da prova pelo tribunal, constitui, no fundo, um dever de perseguir a chamada verdade material e, no exercício desse dever, o tribunal não pode esquecer o princípio de a dúvida ser decidida a favor do réu - princípio do ín dubio pro reo.
30.–Ora, e em função do que acima se disse em relação ao depoimento das testemunhas conjugadas com o depoimento do arguido, ora Recorrente, de todo, podemos concordar com as conclusões e decisão do Tribunal a quo.
31.–O princípio in dubio pro reo consagrado na Constituição da República (art. 32º, nº 2) com transcrição na Lei Processual Penal, identifica-se com o da presunção da inocência do arguido e "impõe que o julgador valore sempre em favor dele um non líquet e ainda que em processo penal não seja admitida a inversão do ónus da prova em seu detrimento" (Anot. art. 126º, fls. 320 CPP, Maia Gonçalves), sempre e subsidiariamente, na decisão sobre os factos que respeitam ao arguido e na imputação respetiva, incumbia ao tribunal absolver o arguido.
32.–O que se requer agora ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, concretamente que seja anulada a decisão recorrida e proferida nova decisão que decida pela absolvição dos crimes pelo quais vem acusado o Arguido, por não ter este, preenchido os elementos objetivo e subjetivo do crime.
33.–A fundamentação de um ato decisório, decorre não só de um dever constitucional geral de fundamentação, mas também de outras garantias constitucionais, como o princípio da igualdade, o direito a um processo equitativo, o princípio da liberdade, desembocando nas garantias plenas de defesa.
34.–A qualidade das decisões jurisdicionais, passa por detetar as patologias de que estas podem padecer, de modo a assegurar a sua fiabilidade.
35.–O dever de fundamentar uma decisão judicial decorre, em primeiro lugar, do disposto no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da Républica Portuguesa, segundo o qual “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
36.–Ora nos presentes autos, conforme pôde constatar o Tribunal a quo, não foram cumpridos os formalismos legais, pelo menos, do reconhecimento presencial e muitas dúvidas, se suscitam, quanto ao reconhecimento fotográfico, vidé as declarações da testemunha RT que refere que lhe foi apresentada a fotografia do arguido antes do reconhecimento pessoal.
37.–O reconhecimento presencial, previsto no n.º 2 do artigo 147.º do CPP, tem lugar, obedecendo, entre outros, aos seguintes passos, na ausência da pessoa que deve efetuar a identificação, são escolhidos, pelo menos, dois cidadãos, que apresentem as maiores semelhanças possíveis – físicas, fisionómicas, etárias, bem como, de vestuário – com o cidadão a identificar, “o reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer”, n.º 7 do artigo 147.º do CPP.
38.–Assim, o reconhecimento de pessoas que não tenha sido efetuado nos termos que ficaram expostos, não vale como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorreu (n.º 7, do artigo 147.º, do C.P.P.), o que se traduz numa proibição de valoração de prova (sobre esta matéria, ver o Acórdão da Relação de Coimbra, de 5 de Maio de 2010, Processo 486/07.2GAMLD.C1, relator Gomes de Sousa, e bem assim o Acórdão da mesma Relação, de 10 de Novembro de 2010, Processo 209/09.1PBFIG.C1, relator Paulo Guerra, ambos disponíveis in www.dgsi.pt);
39.–Nos presentes autos os reconhecimentos foram realizados sem a observância do formalismo legal imposto pelo artigo 147º do C.P.P.;
40.–Reconhecimento “inquinado” pelo reconhecimento prévio de uma fotografia do arguido, pelo que, desde logo, sugestionados, não poderiam deixar de estar face a tão nítida visualização e memorização daquela, sendo que só após se procedeu então à diligência prevista no artigo 147º do CPP.;
41.–Na diligência de prova, supra relatada, não subsistem dúvidas que esta se realizou sem os formalismos legais, pelo que, neste quadro factual e circunstancial, afigura-se-nos, e tendo sempre em conta o princípio “in dúbio pro reo”, não pode considerar-se suficientemente ilidida a presunção de inocência do arguido.
42.–O princípio “in dubio pro reo”, decorre do princípio da presunção de inocência do arguido, com assento no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República, dando resposta ao problema da dúvida sobre o facto [e não sobre a interpretação da norma] e impondo ao julgador que o “non liquet” da prova seja sempre resolvido a favor do arguido.
43.–Nos presentes autos, a dúvida que fundamenta o apelo ao princípio “in dúbio pro reo” não é uma qualquer dúvida, é insanável, razoável e objetivável, é o que indubitavelmente acontece, pois permanece esse estado de dúvida insuperável, neste caso, que tem de ser valorado a favor do arguido, traduz-se num dos vícios enunciados no art.º 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, os quais são de conhecimento oficioso, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (vide, Ac STJ de 19.10.1995, DR, I,S-A, de 28.12.1995).
44.–Assim a violação do indicado princípio, por se traduzir na violação duma «lex artis» reconduz-se ao erro notório na apreciação da prova enunciado na alínea c) do n.º 2 do art.º 410.º do Código de Processo Penal (vide AC Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.1997, BMJ, nº 472, p. 497), o que se invoca.
45.–Assim, ao abrigo do disposto no artigo 410.º, n.º 2 al. c) do CPP, deve julga-se verificado o erro notório na apreciação da prova, e não sendo caso de se proceder ao reenvio do processo para novo julgamento nos termos do disposto no artigo 426.º, n.º 1 do CPP, procede-se á modificação da matéria de facto de acordo com o disposto no artigo 431.º, al. a) do CPP, dando-se como não provados todos os factos da acusação, nomeadamente, os que imputam ao arguido a prática do ilícito.
46.–Mesmo que assim se não entenda, o que, apenas e só, por mero dever de patrocínio se concebe, sempre se dirá que a pena de prisão efetiva aplicada ao arguido é deveras desadequada, desproporcional e excessiva.
47.–Pena que, considerando a idade, a integração familiar e profissional do arguido, se reputa como demasiado severa e excessiva, o cumprimento de uma pena de prisão efetiva será um enorme revês na vida do Recorrente;
48.–Nos termos do artigo 71.º, n.º 1, do aludido diploma legal, a “determinação da pena, dentro dos limites legais, far-se-á em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes”.
49.–Conforme dispõe o artigo 70.º do C.P., se ao crime for aplicável pena privativa ou pena não privativa da liberdade, deve o tribunal dar preferência fundamentada à segunda, sempre que se mostre suficiente para promover a recuperação social do delinquente e satisfaça as exigências de reprovação e de prevenção do crime.
50.–Nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da CRP, a lei só pode restringir os Direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
51.–Somos a discordar de qualquer pena, mas a ser aplicada, deve o “quantum” da pena ser reduzido e o modo do seu cumprimento através de suspensão na sua execução.
52.–Admitindo a culpa do arguido, o que por mero dever de patrocínio e cautela jurídica se admite, e bem assim as circunstâncias que militam a seu favor, aceitaríamos como admissível, justa e adequada a pena de 2 (dois) anos, porém, cujo cumprimento deveria ser suspenso na sua execução.
53.–O princípio que a doutrina tem denominado da necessidade das penas [da tutela penal] ou da máxima restrição das penas afirma que a legitimidade das penas criminais depende da sua necessidade, adequação e proporcionalidade, em sentido estrito, para a proteção de bens ou interesses constitucionalmente tutelados, não sendo só os princípios dogmáticos do direito constitucional-penal que nos obrigam a uma reflexão mais profunda sobre a eficácia das penas privativas de liberdade.
54.–Pelas razões expostas, caso entendam V. Exas., manter a condenação do arguido, julgamos que se mostram suficientes, justas e adequadas em função dos princípios político-criminais da necessidade e da proporcionalidade das penas e das finalidades destas, a aplicação ao recorrente de uma pena de prisão suspensa na sua execução, acompanhada de regime de prova e de todos os deveres e condutas que o tribunal entender conveniente.
55.–Mas mesmo que assim não se entenda, a pena de prisão aplicada poderá, ainda assim, ser objeto de uma pena de substituição.
56.–O tribunal não é livre de aplicar ou deixar de aplicar as penas de substituição previstas no C.P., a aplicação das penas de substituição não traduz um poder discricionário, mas antes um poder-dever ou um poder vinculado, tal como reconhecidamente sucede com a pena de suspensão de execução da prisão, tendo o tribunal sempre de fundamentar especificamente, quer a concessão quer a denegação da suspensão.
57.–O cumprimento da pena em regime de permanência na habitação, no limite e em caso de condenação, satisfaz cabalmente as finalidades das penas.
58.–Por esse motivo, entendemos que as finalidades da punição, no caso concreto, serão melhor alcançadas mediante a aplicação, caso seja condenado, ao recorrente, de pena de substituição de cumprimento em regime de habitação, do que através do cumprimento de prisão efetiva.
59.–Com a sentença proferida foi violado o disposto nos artigo 18º, n.º 2 da CRP, artigo 40.º, 43.º, 44.° do CP.
Assim sendo,
Farão V. Exas. Justiça».

3.–A Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância respondeu ao recurso, apresentando as conclusões que infra se transcrevem:
«(…)
2.–Verifica-se, desde logo da transcrição dos depoimentos prestado pelos ofendidos RT e PS, efectuada pelo próprio Recorrente (e que aqui se dá por integralmente reproduzida por uma questão de economia), que o primeiro (RT) já conhecia o Recorrente do Youtube como sendo o cantor de “Rap”, ali com o nome de “Zé Bula”, para além de o ter visto várias vezes no bairro da Reboleira, sendo que o Recorrente tem o hábito de andar com a máscara que trazia colocada no momento em que o abordou e assaltou.
3.–De salientar que, conhecendo o Recorrente do bairro, não lhe seria difícil identifica-lo aquando da prática dos factos, não obstante trazer uma “balaclava” que lhe deixava os olhos a descoberto, deixando, ainda, ver a cor da pele.
4.–Por seu lado, o ofendido PS esclareceu que o arguido já o havia abordado, em momento anterior, pedindo-lhe um euro.
5.–Referindo, ainda, que o reconheceu pela altura e pelos olhos.
6.–Tal ficou expresso no acórdão recorrido.
7.–De notar que, efectivamente, no ponto 2, 1º parágrafo, da “Convicção do Tribunal” se refere que o ofendido PS, que conhecia de igualmente modo o arguido, como sendo o “Zé Bula”, com publicações do Youtube, e por residir no bairro onde morava a irmã (o que corresponde ao depoimento do ofendido RT), mais à frente – parágrafo 6 – já se faz referência ao ofendido RT, pelo que tal “troca” de identidades se ficou a dever a mero lapso, o qual é facilmente perceptível.
8.–Note-se que, não obstante o Recorrente basear a sua discordância quanto aos factos dados como provado e por si impugnados, nos depoimentos das testemunhas RT, PS e MF, não fez, posteriormente, qualquer menção a esta ultima testemunha, mãe do arguido.
9.–Seria porque a mesma entrou em total contradição, quer pelo si declarado, quer pelo declarado pelo próprio arguido quer com o teor do relatório social?
10.–De facto, o seu depoimento não foi minimamente credível, tal foi a sua intenção de, não obstante saber que tal não correspondia à verdade, tentar comprovar que o arguido (seu filho) não teria praticado os factos que lhe foram imputados e pelos quais veio a ser condenado, porque se encontrava a trabalhar.
11.–O arguido, aquando das suas declarações, referiu que o terão implicado por ser da área e, segundo pensa, não estaria nos locais em causa no momento da prática dos crimes em causa (cfr. ficheiro áudio: 20230110095021_4658540_2871284, de 10.01.2023, inicio: 01:35 e fim 01:46 e 02:35 a 02:59).
12.–Em momento algum alegou que não podia estar no local dos roubos porque se encontrava a trabalhar, com horário rígido e bem vigiado, quer pelo seu patrão quer pela sua própria mãe.
13.–Efectivamente, a testemunha MF (mãe do arguido), quando prestou declarações referiu que o arguido, na altura dos factos, trabalhava num ferro velho, de segunda a sábado. Todos os dias tinha trabalho. Entraria as 8h/8:30h e saía às 17h. Na hora do almoço falava sempre com o arguido, bem como com o patrão (isto para tentar fazer crer que o arguido estava sempre controlado) (cfr. ficheiro áudio: 20230110103016_4658540_2871284, de 10.01.2023, inicio: 01:48 e fim 05:11).
14.–Porém, quando questionada sobre a data em que começou a trabalhar e em que deixou de o fazer, respondeu que tinha entrado no verão de 2021 e saíra em Fevereiro de 2022, antes de ter sido detido (foi detido no dia 03.06.2022), acrescentando, depois, quando confrontada com a data da sua detenção, que terá sido até ao mês de Maio ou Junho, dias antes da policia ter ido lá a casa (mesmo ficheiro, inicio: 10:30 a 12:31).
15.–Do Relatório Social resulta que o arguido, aquando da prática dos factos, se encontrava inativo em termos laborais, académicos ou ocupacionais. A ultima actividade laboral temporária e em regime informal, teria terminado cerca de um mês antes dos factos e teria durado cerca de 4 meses (cfr. fls. 4 do referido relatório).
16.–O reconhecimento de pessoas é um dos meios de prova previstos no C.P.P cuja finalidade é apurar o responsável pelo crime, ou seja, identificar a pessoa que foi vista a praticar o facto criminoso, ou que tenha sido vista antes ou depois do facto, em circunstâncias fortemente indiciadoras de ter sido o seu autor.
17.–É óbvio que o resultado probatório positivo, com o reconhecimento do arguido como autor dos factos criminosos em investigação, a traduzir já uma forte suspeição da sua culpabilidade, impõe ao legislador que prudentemente e de forma cuidadosa assegure as necessárias condições de genuinidade e seriedade do acto, impondo a observância de regras através das quais minimize o risco de precipitação ou de falta de rigor.
18.–No vertente caso foram verificados todos os requisitos exigidos.
19.–De salientar, desde logo, que ambos os ofendidos esclareceram que já conheciam o arguido.
20.–Numa primeira fase foi solicitado aos ofendidos que descrevessem o autor dos factos, o que eles fizeram – reconhecimento por descrição.
21.–Foram exibidas fotos de vários indivíduos ao ofendido PS sendo que, quanto ao ofendido RT foi o próprio que exibiu a foto através do seu telemóvel por o ter reconhecido como sendo o “Zé Bula” cantou com publicações no Youtube.
22.–Tendo, posteriormente, efectuado o reconhecimento do arguido.
23.–Diligência esta que, no que respeita ao ofendido RT nem seria necessário realizar tendo em consideração que a prova por reconhecimento pressupõe que não esteja identificado o agente do crime, sendo necessária a sua determinação (neste sentido vd. Acórdão do TRE de 08.03.2018, disponível em dgsi.pt).
24.–Verificando-se que, no que respeita às formalidades dos reconhecimentos efectuados, o acto processual em si não padece de qualquer nulidade ou irregularidade processual, o cerne da questão, suscitada pelo Recorrente, consiste em saber se tal acto, processualmente válido, serve como específico meio de prova, se cumpriu as normas atinentes à sua específica função probatória, se serve – enquanto acto processual próprio para obter o reconhecimento dos arguidos – para fundar a convicção do Tribunal ou se, ao invés, por ter violado uma regra de proibição de prova, deve ser afastado da fundamentação factual, se está “privado do seu valor como meio de prova”.
25.–É esse o regime que decorre dos arts.º 118.º, nº 3 e 122.º do Código de Processo Penal.

26.–Ora, de acordo com o decidido no acórdão do STJ, de 15.03.2007 (Cons. Santos Carvalho):
I-A semelhança dos indivíduos sujeitos ao acto de identificação não é um requisito essencial da validade do acto, pois o que se pede é que as pessoas (duas, pelo menos) que se chamam ao acto apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive no vestuário, com a pessoa a identificar (art.º 147.º, n.º 2, do CPP).
II-Assim, para além de se poder dizer que a “semelhança” nem sempre é objectivável, também nem sempre são possíveis as condições necessárias para a obter. E, por isso, a alegada ausência de semelhança dos indivíduos sujeitos ao reconhecimento não torna nula a prova obtida, de resto só existente quando se usam os meios proibidos de prova enunciados no art.º 126.º do CPP, antes acarreta uma maior fragilidade na livre apreciação que o julgador deve fazer das provas obtidas, nos termos do art.º 127.º do CPP, a ponto de poder nem ter qualquer valor (art.º 147.º, n.º 4).
27.–E não podia ser de outra forma. Não se pode exigir a semelhança documentada nem a formalização de itens de identificação humana a constar do auto de reconhecimento.
28.–Isso seria inviabilizar a realização de um meio de prova e deixar que os arguidos escolhessem os meios de prova que contra si podem ser apresentados.
29.–Apenas se pode exigir a inexistência de dissemelhança grave, manifesta, entre o arguido e os demais integrantes da linha de identificação que, essa sim, se demonstrada, constitui um caso de patente proibição de prova, equivalente aos casos de “reconhecimentos” físicos realizados sem o número mínimo de integrantes da “linha de identificação” previsto no art.º 147.º, nº 2 e na medida em que diminua ou exclua as hipóteses de diferenciação no acto de reconhecimento.
30.–A generalidade dos casos constituirá, no entanto, a regra reconduzível à livre apreciação da prova.
31.–Serão casos que, não merecendo uma abordagem formal que exclua a sua virtualidade absoluta como meio de prova, deverão ser resguardados para a livre apreciação da prova devidamente motivada (vd. Ac. TRE de 16.10.2012, disponível em degi.pt).
32.–E o caso em análise recai nesta regra geral de apreciação probatória e não contém qualquer proibição de prova.
33.–Face a tudo o exposto, há que concluir não assistir razão ao Recorrente, não havendo lugar à alteração dos factos impugnados tendo em consideração que foi feita prova, evidente e inequívoca, de que foi o autor dos crimes de roubo pelos quais veio a ser condenado.
34.–No caso em apreço, a prova foi apreciada segundo as regras do art.º 127.º do Código de Processo Penal, com respeito pelos limites ali impostos à livre convicção, não só de motivação objectiva segundo as regras da vida e da experiência, e sem que se vislumbre que na apreciação da prova o tribunal tenha incorrido em qualquer erro lógico, grosseiro ou ostensivo.
35.–Resulta claro, em face do que o tribunal a quo deixou extravasado no acórdão, que logrou convencer-se da verdade dos factos, que deu como provados “para além de toda a dúvida razoável”.
36.– A decisão em apreço baseia-se num juízo de certeza, não em qualquer juízo dubitativo.
37.– Ou seja, em momento algum a decisão impugnada revela que o tribunal recorrido tenha experimentado uma hesitação ou indecisão em relação a qualquer facto e da sua autoria. Ao invés, o tribunal recorrido afirma convictamente a matéria dada como provada.
38.–Nada há, pois, a censurar no processo lógico e racional que subjaz à formação da convicção do tribunal.
39.–O exame crítico das provas deve indicar no mínimo, e não necessariamente por forma exaustiva, as razões de ciência e demais elementos que tenham, na perspectiva do tribunal, sido relevantes, para assim se poder conhecer o processo de formação da convicção do tribunal (neste sentido, vd. Acórdão do TRC, de 20.01.2010, disponível em dgsi.pt).
40.–Ora, basta uma simples leitura do acórdão proferido para se concluir que, no mesmo, foram indicadas as razões de ciência e demais elementos que foram relevantes para a sua convicção.
41.–Efectivamente, o tribunal a quo, na sua motivação, elencou todos os elementos de prova que, em concreto, foram considerados para a matéria de facto dada como provada e às circunstâncias em que os mesmos ocorreram, designadamente os depoimentos das testemunhas conjugadas, de forma critica e devidamente conjugada com as regras da experiência comum.
42.–A motivação de facto revela uma avaliação objectiva, racional e ajuizada do conjunto da prova produzida.
43.–Pelo que o tribunal ponderou todas as provas, segundo critérios de objectividade e à luz das regras da experiência comum e da normalidade, no pleno uso do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código Processo Penal.
44.–Tendo em conta o alegado pelo Recorrente na motivação e conclusões do recurso, constata-se, desde logo, que o mesmo ignora, em absoluto, a explicitação do raciocínio lógico do tribunal a quo contida na motivação do acórdão recorrido, sendo que a alegação do recorrente traduz a sua pessoal e subjectiva valoração da prova produzida.
45.–Não existindo razões para afastar o raciocínio lógico do tribunal a quo.
46.–Consequentemente, o acórdão recorrido não padece dos apontados vícios.
47.–O crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210.º, n.º 1 do CP é punível, em abstracto, com pena de prisão de 1 a 8 anos.
48.–Não obstante o Recorrente, à data da prática dos factos, ter 19 anos de idade, o tribunal a quo afastou, desde logo, a possibilidade de lhe ser aplicado o Regime Especial dos Jovens Delinquentes consagrado pelo Dec. Lei nº 401/82, de 23 de Setembro, tendo em conta a circunstância de o arguido registar antecedentes criminais pela prática de crimes da mesma natureza, entendendo que da atenuação prevista, com referência aos artigos 73.º e 74.º do CP, não resultarão vantagens para a sua reinserção social.

49.–Com relevância para a determinação da medida da pena há a considerar:
▪ a não confissão do arguido, que em audiência de discussão e julgamento negou a prática dos factos;
▪ não elabora um juízo de autocensura;
▪ o facto de já ter antecedentes criminais pela prática de crimes da mesma natureza;
▪ pelo que as exigências especiais são muito elevadas;
▪ as necessidades de prevenção geral, que são elevadas, e a necessidade de tutelar o bem jurídico que se quer proteger;
▪ o grau elevado da ilicitude dos factos;
▪ a elevada intensidade do dolo, que foi directo;
▪ a não reparação dos prejuízos, apesar do período de tempo entretanto decorrido.
50.–Ponderando todos estes factores, entendeu o tribunal a quo por adequada aplicar ao Recorrente, a pena de 1 ano e 9 meses por cada um dos crimes de roubo.
51.–Muito perto do mínimo legal.
52.–E, em cumulo jurídico destas penas, fixada a pena única de 2 anos e 6 meses de prisão.
53.–Numa moldura penal abstracta entre 1 ano e 9 meses de prisão e os 3 anos e 6 meses, a pena concreta fixada no acórdão, é inteiramente justa, equilibrada e não merece reparo, mostrando-se conforme aos parâmetros gerais e concretos de fixação, segundo os art.ºs 40.º e 71.º, respectivamente, do CP.
54.–No caso dos autos, apesar de, perante a pena de 2 anos e 6 meses de prisão aplicada, ser admissível a suspensão da sua execução (art.º 50.º do Código Penal), tendo em consideração o que ficou dito, os tipos de crimes em causa, não só as exigências de prevenção geral positiva, como as exigências de prevenção especial positiva, consubstanciadas no fato do Recorrente já ter sido condenado por crimes da mesma natureza, não ter dado qualquer sinal positivo de arrependimento ou ter mostrado qualquer juízo crítico, não se afigurar como suficiente a simples ameaça da pena.
55.–Há, pois, que concluir pela necessidade de aplicação de uma pena de prisão efetiva.
56.–Efectivamente, atentos todos os factores, no momento da decisão, o Tribunal não pôde fazer um juízo e prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido.
57.–Tendo-se decidido por não suspender a execução da pena.
58.–Assim, atenta a pena aplicada, com a qual se concorda, afastada fica a possibilidade do Recorrente a cumprir em regime de permanência na habitação – art.º 43.º, n.º 1, al. a) do CP.
59.–No mais, não se mostrará violado qualquer preceito legal nem desrespeitado qualquer direito.
60.–Nesta conformidade, negando-se provimento ao recurso e mantendo-se o douto acórdão recorrido, será feita justiça.
Consequentemente, deve o Acórdão recorrido ser confirmado.
Porém Vossas Excelências, ao decidir, farão a costumada JUSTIÇA»

4.–Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:
«(…)
Concordamos integralmente com a douta Resposta ao recurso apresentada pela Exmª. Procuradora da República, na qual se demonstra que o percurso seguido pelo Tribunal na aquisição da convicção sobre a culpabilidade do arguido nos termos em que a considerou, assenta em critérios lógicos e objectivos e que, por isso, a douta decisão recorrida não merece qualquer reparo.

Apenas, em reforço do expendido pela Exmª Colega, aditaremos o seguinte:
Quando se trate de depoimentos de testemunhas, de declarações de arguidos, ou outros, o recorrente tem de individualizar, no universo das declarações e depoimentos prestados, quais as particulares passagens, nas quais ficaram gravadas as frases que se referem ao facto impugnado.
Mas, só isso não chega para o sucesso da impugnação ampla.
O recorrente terá ainda de indicar, com toda a clareza e precisão, o que é que, na matéria de facto, concretamente, quer ver modificado, apresentando a sua versão probatória e factual alternativa à decisão de facto exarada na decisão que impugna, e dizendo quais os motivos exactos para tal modificação, em relação a cada facto alternativo que propõe, o que exige que o recorrente apresente o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida e o correlacione comparativamente com o facto individualizado que considera erradamente julgado.
Com efeito, importa considerar que o recorrente tem o ónus de fazer referência às provas que impõem decisão diversa da recorrida (art.º 412º/3, b), C.P.P.), o que é bem diferente de se referir a provas que apenas podem conduzir a uma decisão diferente.
Não foi esse o procedimento do recorrente.
Na verdade, o problema posto pelo recorrente reconduz-se ao da apreciação da prova por parte do tribunal recorrido, de que trata o art.º 127°, do CPP, sendo certo que aos julgadores, no tribunal de recurso, está vedada a imediação e a oralidade em toda a sua extensão, contrariamente ao que ocorre no tribunal da 1ª instância que contacta com uma multiplicidade de factores, relativos: á percepção da espontaneidade dos depoimentos; da verosimilhança; da seriedade; das hesitações; da linguagem; do tom de voz; do comportamento; das reacções; dos trejeitos; das expressões e, até, dos olhares.
Assim, condicionados pela impossibilidade da captação desses elementos directos, resultantes da imediação da prova, perante duas ou mais versões dos factos, os julgadores do tribunal ad quem só podem afastar-se do juízo feito pelo julgador da primeira instância, naquilo que não tiver origem nestes dois princípios (oralidade e imediação), ou seja, naqueles casos em que a formulação da convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art.º 374º n.º 2, do CPP.
Revertendo para o caso concreto verifica-se que da análise probatória global, efectuada igualmente pelo tribunal “a quo”, não pode de todo concluir-se, como o arguido pretende, por uma errada apreciação da prova em termos de julgamento pelo tribunal a quo.
Com efeito, o Tribunal no caso concreto, para chegar à sua decisão, valorou um conjunto diverso de provas utilizando exactamente as regras da razão, fundadas na lógica e na experiência. Daí que não se vislumbra qualquer vício no seu modo de decidir e valorar essas provas, que ponha em causa o principio da livre apreciação da prova.” (vide, Ac. R C, de 25/11/2009, proferido no Proc. N.º 219/05.8GBPCV.C1).
O Acordão recorrido motivou a decisão da matéria de facto, esclarecendo o percurso lógico que trilhou na formação da sua convicção, indicando os meios de prova em que a fez assentar e esclarecendo as razões pelas quais lhes conferiu relevância.
Por outro lado, tal motivação não contraria as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos.
Assim, na verdade, o que o recorrente alega é que os meios de prova carreados e produzidos impunham que se fizesse uma ponderação diferente, valorando-se a versão do arguido em detrimento
Assim, não tendo o arguido logrado impugnar a decisão de facto de modo processualmente relevante e não enfermando a decisão de qualquer dos vícios a que alude o n.º 2 do art.º 410.º do CPP, mostram-se necessariamente fixados os factos considerados provados e não provados pela primeira instância.
Neste contexto, não encontramos motivo para divergir do douto Acordão recorrido e consideramos que as penas concretas aplicadas, correspondentes aos crimes cometidos pelo arguido, assim como a pena que resultou do cúmulo, se revelam inteiramente adequadas às exigências de prevenção geral e especial e consentidas pela culpa revelada pelo arguido nos factos provados, na exacta medida encontrada pelo tribunal de primeira instância.
Somos, por isso, de parecer que o recurso não merece provimento.»

5.–Foi cumprido o estatuído no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tendo o arguido respondido ao sobredito parecer, reiterando, em essência, a posição assumida no recurso.

6.–Colhidos os vistos e realizada a conferência, em consonância com o estatuído no artigo 419º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
*

II.–FUNDAMENTAÇÃO

1.–De harmonia com o disposto no 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões – deduzidas por artigos –, já que é nelas que o recorrente sintetiza as razões – expostas na motivação – da sua discordância com a decisão recorrida.
Contudo, o tribunal de recurso está, ainda, obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afetem o recorrente, nos termos dos artigos 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do Código de Processo Penal, e dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do mesmo diploma, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito [cfr. Acórdão do Plenário das Secções do STJ n.º 7/95, de 19.10.1995, e Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2005, de 20.10.2005[2]].
O objeto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior são, assim, definidos e delimitados pelas referidas questões, umas, suscitadas pelo recorrente e, outras, de conhecimento oficioso[3].

Da conjugação do disposto nos artigos 368º, 369º e 424º, n.º 2, todos do Código do Processo Penal e 608º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ex vi do estatuído no artigo 4º do Código de Processo Penal, resulta que o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objeto de recurso, não perdendo de vista a ordem lógica das consequências da sua eventual procedência, pela seguinte sequência:
Em primeiro lugar, as que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, as questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação ampla, se deduzida, nos termos do artigo 412º do Código de Processo Penal, por ser passível de correção, a que se segue denominada revista alargada, atinente aos vícios enumerados no artigo 410º, n.º 2, do mesmo diploma, uma vez que estes implicam o reenvio do processo à 1ª instância;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.

Tendo em perspetiva a ordem lógica ditada pela lei, no caso concreto, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, e não se vislumbrando quaisquer nulidades, nem (outros) vícios, de conhecimento oficioso, as questões a decidir reconduzem-se, essencialmente, às seguintes:
- Erro de julgamento e (in)validade da prova por reconhecimento;
- Erro notório na apreciação da prova e violação do princípio in dubio pro reo;
- Redução da pena de prisão;
- Suspensão da execução da pena;
- Substituição da pena de prisão por regime de permanência na habitação.

2.–No acórdão recorrido o tribunal a quo exarou o seguinte quanto à factualidade relevante para a decisão da causa e à respetiva motivação, bem como ao enquadramento jurídico-penal e determinação da pena – aspetos que relevam para a apreciação das enunciadas questões [transcrição]:

«II–FUNDAMENTAÇÃO

FACTOS PROVADOS

Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:
1.–No dia 22-03-2022, cerca das 09h30, na Estrada ......- A_____, o arguido, acompanhado de outro indivíduo de identificação não concretamente apurada, aproximou-se de RT.
2.–Ao chegarem junto de RT, o arguido e o outro indivíduo, colocando-se um no lado esquerdo e outro no lado direito do ofendido, perguntaram-lhe se tinha cartão bancário, ao que o ofendido disse que não.
3.–Mais disseram a RT, em tom sério, para lhes entregar o telemóvel, ao que o ofendido lhes entregou o telemóvel, da marca OUKITEL, modelo u7, no valor de pelo menos € 74,00 (setenta e quatro euros).
4.–Seguidamente disseram ao ofendido, em tom sério, para desbloquear o telemóvel e colocar o PIN de desbloqueio 0000, ao que este, com receio, acedeu.
5.–O arguido e o outro indivíduo colocaram ainda as mãos no interior da roupa do ofendido, de modo a aferir se o mesmo tinha mais objetos na sua posse.
6.–Seguidamente, na posse do aparelho, o arguido e o outro indivíduo abandonaram o local.
7.–No dia 25-03-2022, cerca das 13h 15, na Avenida ..... ..... -A_____, o arguido, acompanhado de outro indivíduo de identificação não concretamente apurada, em cumprimento de plano previamente acordado entre ambos, aproximou-se de PS.
8.–Ao chegarem junto de PS, o arguido e o outro indivíduo disseram ao mesmo "dá cá o telemóvel
9.–O ofendido entregou ao arguido e ao outro indivíduo o seu telemóvel, da marca SAMSUNG, modelo A21S, de valor não concretamente apurado, mas seguramente não inferior a €102,00 (cento e dois euros).
10.–Seguidamente disseram ao ofendido, em tom sério, para desbloquear o telemóvel e colocar o PIN de desbloqueio, ao que este, com receio, acedeu.
11.– O arguido e o outro indivíduo, na posse do telemóvel, abandonaram o local.
12.–Em ambas as situações o arguido representou e quis apoderar-se dos telemóveis dos ofendidos RT e PS, em conjugação de esforços com outro indivíduo, recorrendo à superioridade numérica, em tom agressivo, criando um estado de intimidação nos mesmos, de modo a apoderar-se dos objetos acima descritos, o que conseguiu ao assim atuar.
13.–Em ambas as ocasiões arguido atuou de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas criminalmente.

1.–Mais se provou:

14.–O arguido prestou declarações em julgamento e negou a prática dos factos.

1.–Condições Pessoais:

15.–O arguido é filho único, não tendo o pai mantido qualquer relacionamento com o mesmo desde criança.
16.–Integra o agregado familiar formado pela mãe, MF, com trinta e cinco anos, empresária de TVDE, MaF, padrasto, com trinta e cinco anos, colaborador para a mesma entidade por meio de tarefas administrativas, MC, irmã uterina, onze anos, estudante, e DC, irmão uterino, com cinco anos.
17.–Coabitam na morada dos autos, Rua (…) A____, tratando-se de um apartamento próprio, pertença da mãe e padrasto, o qual reúne boas condições de habitabilidade. O ambiente familiar apresenta-se aparentemente isento de conflitualidade relevante, sendo que o arguido, em contexto familiar, também aparenta um comportamento adaptado às regras e normas familiares, mantendo uma relação estável e funcional com os restantes elementos. Relativamente à data dos factos constantes nos autos, não existem alterações às suas condições habitacionais e familiares.
18.–O arguido obteve o 8º ano do ensino básico, registando posterior tentativa de conclusão do 9º ano no âmbito da frequência de curso de formação profissional de geriatria, do qual também viria a desistir.
19.–A sua inserção comunitária, em virtude das restrições inerentes à sua situação jurídico-penal atual (em cumprimento de uma medida de coação com obrigação de permanência na habitação com recurso a meios de vigilância eletrónica, sem permissão para se ausentar para efeitos de trabalho), não reflete neste momento quaisquer indícios do seu convívio persistente com grupo de pares. Contudo, existem indícios de que EV possa ser visitado por amigos/conhecidos na morada dos autos, que poderão pertencer ao grupo de pares com quem convivia no exterior, podendo alguns deles estar referenciados com comportamentos marginais, designadamente o consumo de estupefacientes.
20.–Relativamente à data dos factos constantes nos autos, o arguido encontrava-se inativo em termos laborais, académicos ou ocupacionais. A última atividade laboral temporária e em regime informal, teria terminado há cerca de um mês, consistindo na reciclagem de ferro por intermédio de uma sucata, onde terá permanecido cerca de quatro meses. Regista ainda uma experiência laboral anterior de curta duração na construção civil, durante o tempo em que esteve em França com a mãe e padrasto.
21.–O arguido não apresenta, ao longo do tempo, constrangimentos económicos significativos, dispondo do apoio familiar para o suporte das despesas pessoais.
22.–Em termos sociais, o modo de vida do arguido em relação a um passado recente, parece assinalado pelo contacto e convívio com outros indivíduos em contexto marginal e potencialmente delituoso, pressupondo, na altura, um período de maior instabilidade psicossocial, com referência a uma ressonância social menos adequada à criação de vínculos normativos.
23.–De modo subsequente, o arguido regista um trajeto de consumo de estupefacientes desde os quinze anos, situação que tem mantido de forma relativamente regular, sendo que neste momento, e sobretudo em virtude das circunstâncias decorrentes da presente situação jurídica, se apresentará mais dissipado, assumindo, contudo, o consumo pontual de cannabis.
24.–Neste âmbito, uma das consequências do seu comportamento aditivo ter-se-á refletido em potenciar alguns surtos alucinatórios, com recurso a acompanhamento médico, por meio de consultas de psiquiatria no Centro de Saúde de Queluz, entretanto cessadas por alegadas melhorias no seu quadro clínico.
25.–O arguido encontra-se sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação com recurso a meios de vigilância eletrónica, à ordem do presente processo, sem permissão de se ausentar para efeitos de trabalho e sem registo de anomalias no cumprimento das normas inerentes à mesma. Parecem também existir repercussões no arguido decorrentes da existência do presente processo judicial, que poderão refletir-se na tomada de consciência dos seus atos e suas consequências em contexto de vida parcialmente associado a comportamentos marginais e potencialmente delituosos.

Antecedentes Criminais:

26.–Do certificado de registo criminal do arguido constam as seguintes condenações anteriores:
a.-No Processo Comum Coletivo n. º (…), do Juízo Central Criminal de Lisboa, por acórdão datado de 28 de janeiro de 2022, transitado em julgado em 28 de fevereiro de 2022, foi condenado pela prática, no dia 22 de outubro de 2019, de um crime de roubo, p. e p. pelo art. 210.º, n.º 1 do Código Penal, na pena especialmente atenuada (por aplicação do Dec. Lei nº 401/82, de 23 de setembro) de 7 meses de prisão, cuja execução foi suspensa por 1 ano com regime de prova;
b.-No Processo Comum Coletivo n. (…), do Juízo Central Criminal de Sintra, por acórdão datado de 19 de abril de 2022, transitado em julgado em 20 de maio de 2022, foi condenado pela prática, no dia 22 de maio de 2021, de quatro crimes de roubo qualificado, p. e p. pelos artigos 210.º, n.ºs 1 e 2, al. b) e artigo 204.º, n.º 2, alínea f), ambos do Código Penal, na pena de 5 anos de prisão, cuja execução foi suspensa por igual período com regime de prova.

FACTOS NÃO PROVADOS

Do julgamento realizado nos presentes autos não resultou demonstrada a seguinte factualidade constante da acusação:
a.-Sem prejuízo da matéria assente em 1 que então o arguido estivesse munido de uma faca no interior do bolso.
b.-Sem prejuízo da matéria assente em 2., que o arguido e outro indivíduo se tivessem colocado, um na frente e outro nas costas do ofendido.
c.-Sem prejuízo da matéria assente em 6., que o arguido e o outro indivíduo tivessem dito ao ofendido, em tom sério, ' que se denunciasse os factos iriam fazer-lhe mal
d.-Sem prejuízo da matéria assente em 11., que o arguido e o outro indivíduo tivessem ainda dito ao ofendido para "não contar nada a ninguém", tendo-lhe ainda perguntado qual a escola que frequentava.
*

CONVICÇÃO DO TRIBUNAL

No que respeita à matéria de facto dada como provada e não provada formou o Tribunal a sua convicção na análise crítica e conjugada de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, bem como na prova documental constante dos autos e considerada igualmente analisada naquela sede.
Teve ainda em conta este Tribunal as regras da vida e da experiência comum, em obediência ao princípio da livre apreciação da prova ínsito no art. 127.º do Código de Processo Penal.
Assim, e em concreto,

1–O arguido prestou declarações em julgamento e negou a prática dos factos, adiantando como explicação para a situação de ter sido reconhecido como o autor dos episódios trazidos a julgamento a circunstância de "ser conhecido na área".
2–Assim, e considerando que os dois episódios em julgamento tiveram origem, respetivamente, nos autos de denúncia de fls. 3-5 e de fls. 132, contou este tribunal com os depoimentos do ofendido RT, que já conhecia o arguido, para além do mais, de o ver na rua, e do ofendido PS, que de igual modo já conhecia o arguido, como sendo o "Zé Bula", com publicações no Youtube, e por residir no bairro onde morava a sua irmã.
Nessa medida, esteve este tribunal particularmente atento aos depoimentos dos dois ofendidos que, de forma isenta e objetiva, descreveram, respetivamente, os episódios de que foram vítimas, deixando claras as circunstâncias em que se sentiram ameaçados e constrangidos com a atuação do arguido, então acompanhado por um outro individuo não identificado, e que por isso entregaram os seus pertences, nos termos e condições considerados assentes.
De qualquer modo, e quanto ao primeiro deles (RT), deixou expresso não lhe ter sido exibida qualquer arma nem sido feita qualquer alusão à sua presença, razão pela qual tanto faleceu, não obstante o ofendido ter referido que lhe pareceu ver o volume de uma faca no bolso do arguido.
Relativamente ao reconhecimento do arguido como tendo sido o autor das duas ocorrências, o mesmo não suscitou dúvidas a este tribunal, pese embora a alegação da defesa em sentido contrário.
A esse propósito atente-se, desde logo, na circunstância de qualquer um dos ofendidos já conhecer o arguido anteriormente.
Dessa forma, para o ofendido RT, o reconhecimento pessoal que realizou do arguido (cf. fls. 165-166) foi como que meramente confirmativo, porquanto, e mesmo levando este um capuz aquando da prática dos factos, certo é que "sempre o conseguiu identificar como sendo o Zé Bula". Acresce, ter sido o próprio ofendido quem levou um print de uma foto do arguido à polícia de modo a fazer conhecer a sua identificação ("depois é que os agentes foram ver no computador ").
Na mesma linha, também o reconhecimento pessoal realizado pelo ofendido PS do arguido (cf. fls. 167-168) foi meramente confirmativo, na medida em que esclareceu, a instâncias da defesa, que 'quando foi ao reconhecimento já tinha uma noção de quem poderia ser", o que é consentâneo com a circunstância, que igualmente explicou, de já ter sido "parado" antes pelo EV, que lhe pediu um euro ("dá-me! "), pelo que, e apesar da máscara que então usava, "o identificou pelo olhar, pela altura e viu que era uma pessoa de cor".
Nestes termos, assim se bastou, de forma segura, a convicção deste tribunal, em detrimento da negação dos factos pelo arguido, apenas acompanhado pela sua mãe (a testemunha MF), que o pretendeu colocar afastado dos mesmos, concretamente, no local do trabalho (um ferro velho em Queluz), o que, com o devido respeito pela sua condição de mãe, surge unicamente "atestado" pela própria.
Uma última palavra quanto ao valor dos telemóveis subtraídos, obtido, quanto àquele que foi subtraído ao ofendido RT, com base no seu depoimento, que o situou em €74,00, e quanto ao subtraído ao ofendido PS,que não o soube referir, por simples consulta do respetivo valor comercial, que nunca seria abaixo dos €102,00.
2— A propósito das condições sociais e pessoais do arguido, relevou este tribunal o relatório social para julgamento elaborado pela DGRSP, a solicitação deste tribunal.
3 — Finalmente, considerou-se o certificado de registo criminal do arguido, de onde constam duas condenações anteriores.
***

ASPECTO JURÍDICO DA CAUSA/ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL

1.–Enquadramento jurídico-penal

Há, pois, que determinar se as condutas imputadas ao arguido coincidem ou não com as punições legalmente previstas, mostrando-se o mesmo acusado da prática, em coautoria e em concurso real, dos seguintes crimes:

  • um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal;
  • um crime de roubo agravado, previsto e punido pelos artigos 210.º, n.ºs 1 e 2, al. b) e artigo 204.º, n.º 2, alínea f), ambos do Código Penal.
Segundo o n.º 1 do artigo 210.º do Código Penal, comete um crime de roubo  “quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair, ou constranger a que lhe seja entregue, coisa móvel ou animal alheios, por meio de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade fisica, ou pondo-a na impossibilidade de resistir, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos ", sendo que "a pena é a de prisão de 3 a 15 anos se se verificarem, singular ou cumulativamente, quaisquer requisitos referidos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 204”.

Não ficou assente, em nenhuma das situações trazidas a julgamento, que o arguido estivesse munido de qualquer arma, em concreto, no caso do episódio em que é ofendido RT, de uma faca no interior do bolso.
Nessa medida, os crimes imputados ao arguido mostram-se à partida desqualificados, porquanto não verificada a agravante a que alude o art. 204.º, n.º 2, al. f).
Sem prejuízo, e por referência ao tipo simples, trata-se de um crime complexo em que se ofendem quer bens jurídicos patrimoniais — o direito de propriedade e de detenção de coisas móveis — quer bens jurídicos pessoais — a liberdade individual de decisão e ação e a integridade física.
A conduta objetivamente típica consiste, pois, na subtração ou constrangimento para que seja entregue ao agente coisa móvel alheia, através do uso de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física ou pondo-a na impossibilidade de resistir.
No que toca à componente subjetiva do crime em análise, exige-se o dolo (artigo 14.º do Código Penal) para que o tipo seja plenamente preenchido, traduzindo-se o dolo na intenção do agente usar de violência, intimidação ou constrangimento para se apropriar da coisa alheia.
Ora, face aos factos dados como assentes, em que figuram como ofendidos quer RT, quer PS, verifica-se que tanto a tipicidade objetiva como a subjetiva do crime de roubo simples resultaram preenchidas pelas condutas do arguido.
Com efeito, em ambas as situações o arguido representou e quis apoderar-se dos telemóveis dos ofendidos, em conjugação de esforços com outro indivíduo, recorrendo à superioridade numérica, em tom agressivo, criando-lhes um estado de intimidação, de modo a apoderar-se dos respetivos telemóveis, o que assim conseguiu.
Estamos, pois, perante duas atuações com dolo direto — artigo 14.º do Código Penal.
Em ambas as ocasiões arguido atuou de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas criminalmente.
Ora, na inexistência de qualquer causa de justificação ou de exculpação, conclui-se que as condutas do arguido para além de típicas são ilícitas e culposas, devendo o mesmo ser condenado em conformidade pela prática, em coautoria material e em concurso real, de dois crimes de roubo simples, p. e p. pelo art. 210.º, n.º 1 do Cód. Penal.

2.–Medida da pena

Importa agora determinar, em concreto, qual a pena a aplicar ao arguido EV.
Para a realização desta operação haverá que atender a três fases distintas (Figueiredo Dias, Direito Penal Português - "As Consequências Jurídicas do Crime", 1993, páginas 198 e ss): delimitação da medida legal ou abstrata da pena aplicável ao caso; determinação, dentro daquela moldura legal, da medida concreta da pena a aplicar; escolha, de entre as penas postas à disposição no caso, da espécie de pena que efetivamente deve ser cumprida, através dos mecanismos das penas de substituição ou das penas alternativas (fase eventual, visto nem todas as penas oferecerem esta possibilidade).
A moldura penal abstrata que devemos ponderar para o crime de roubo simples é a de prisão de 1 a 8 anos.

> Regime Especial Jovens

Na determinação da medida concreta da pena haverá ainda de considerar que à data da prática dos factos o arguido tinha 19 anos, pelo que será de equacionar a possibilidade de lhe ser aplicado o Regime Especial dos Jovens Delinquentes consagrado pelo Dec. Lei no 401/82, de 23 de Setembro, em cujo artigo 4.º se prevê que se ao caso for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 72.º e 73.º do Código Penal, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.
Estamos perante situações excecionais, em que dos contornos do caso é possível concluir que o jovem condenado beneficiará, em termos de reinserção social, com a atenuação especial da pena.
Esse entendimento tem sido consagrado na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, segundo a qual a aplicação da atenuação especial prevista no citado diploma supõe a prova de que esse regime irá propiciar melhor o afastamento do crime, especialmente por este ser uma simples decorrência da idade do agente (cf. AC. do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de janeiro de 1991, in BMJ 403, págs. 139 a 143).
Ora, no caso dos autos, tendo em conta a circunstância de o arguido registar antecedentes criminais pela prática de crimes da mesma natureza, não estamos em crer que da atenuação prevista, com referência aos artigos 73.º e 74.º do CP, resultarão vantagens para a sua reinserção social.
E, pois, no nosso entender legítimo concluir por não ser de lhe atenuar especialmente a pena.

> Medida das Penas Parcelares

Fixada a moldura penal que corresponde em abstrato ao caso, há que determinar em concreto a medida que lhe caberá. Posto que, se terá de atender ao art. 71.º do C.P., que dispõe, no seu n.º 1, que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, far-se-á em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção.
No que respeita ao relacionamento entre aqueles dois critérios, defende Figueiredo Dias (obra citada, pág. 215), que à culpa compete fornecer o limite máximo da pena que ao caso deve ser aplicada, sendo em função de considerações de prevenção geral de integração e especial socialização, que deve ser determinada abaixo daquele máximo, a medida da pena.
De acordo com o art. 71.º, n.º 2, "na determinação concreta da pena, o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (...) ". Com efeito, os princípios da proibição da dupla valoração e do ne bis in idem implicam que não sejam de novo apreciadas, em sede de medida concreta da pena, as circunstâncias que outrora foram consideradas a propósito do tipo de crime.
Resta-nos, pois, analisar os factos praticados pelo arguido à luz deste comando legal.
Assim, há que atender:
- ao grau de ilicitude da atuação do agente, que se revestiu de gravidade, com recurso a evidentes formas de intimidação no âmbito de uma atuação concertada.
- ao grau de violação do bem jurídico protegido pela norma, bem como às consequências daí resultantes, que assumem importância efetiva, porquanto, e desde logo, não ocorreu a recuperação de nenhum dos objetos subtraídos;
- às condições económicas, sociais e culturais do arguido, tratando-se de um jovem adulto que aparenta dispor de escassas competências básicas no âmbito académico e laboral, registando o abandono precoce da escola e algumas experiências laborais pouco significativas para o próprio;
- ao dolo direto e intenso, como sucede naturalmente neste tipo de criminalidade, sendo a respetiva motivação associada à prática de criminalidade patrimonial;
- à postura do arguido, que, optando por prestar declarações em julgamento, negou a prática dos factos considerados assentes.
As necessidades de prevenção geral positiva são aqui de relevo apurado, dada a banalização crescente deste tipo de crimes, tudo exigindo uma resposta eficiente por parte dos tribunais de molde a restabelecer a confiança na população.
A culpa do arguido aponta para um ponto médio dentro da moldura penal respetiva, sendo as necessidades de prevenção especial de socialização exigentes, porquanto o arguido regista antecedentes criminais pela prática de crimes da mesma natureza (roubos).
Assim sendo, e atendendo ao grau da sua culpa, à exigência de prevenção de futuros crimes, fazendo apelo a critérios de justiça, este tribunal entende adequadas as seguintes penas concretas para os crimes cometidos pelo arguido: 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão por cada um deles.

> Medida da Pena Única

Haverá ainda que considerar o estatuído no artigo 77.º do Código Penal, que dispõe no sentido de que quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, para a determinação da qual serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade dos agentes.
Por via do n.º 2 do mesmo artigo, temos que a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
No caso concreto, a respetiva pena única tem como limite mínimo 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão e como limite máximo 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Ora, considerando as circunstâncias dos factos, essencialmente idênticas, ou pelo menos sem distinções relevantes, o lapso de tempo decorrido e situação pessoal atual do arguido, em obrigação de permanência na habitação à ordem dos presentes autos, as suas condições pessoais, a culpa e as necessidades de prevenção, julgamos adequada a seguinte pena única: 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.

> Substituição da Pena de Prisão: Suspensão da Execução da Pena de Prisão

De acordo com o disposto no artigo 50.º n.º 1 do Código Penal, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
E, segundo o n.º 5 da mesma disposição legal, o período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.
Perante este regime a pena de prisão aplicada ao arguido é suscetível de ser suspensa na sua execução.
Não se coloca, porém, a possibilidade de suspensão da respetiva execução, atento o preceituado no art. 50.º, n.º 1 do Código Penal, por se considerar que a execução da prisão em causa é exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes, isto considerando os antecedentes criminais do arguido, inclusive pela prática de crimes de idêntica natureza, tendo o mesmo, inclusive, cometido ambos os crimes pelos quais surge agora condenado no período da suspensão da pena de prisão em que se mostra condenado no âmbito do Processo Comum Coletivo n. 0 20116/21.9T8LSB, do Juízo Central Criminal de Lisboa (por acórdão datado de 28 de janeiro de 2022, transitado em julgado em 28 de fevereiro de 2022, foi condenado pela prática, no dia 22 de outubro de 2019, de um crime de roubo, p. e p. pelo art. 210.º, n.º 1 do Código Penal, na pena especialmente atenuada - por aplicação do Dec. Lei no 401/82, de 23 de setembro - de 7 meses de prisão, cuja execução foi suspensa por 1 ano com regime de prova).
Estamos, pois, em crer, que as finalidades da punição não poderão ser alcançadas pela simples censura do facto e pela ameaça da prisão, concluindo em conformidade pela efetividade da prisão.
(…)».

3.–Apreciação do recurso

Analisadas as conclusões do recurso e respetiva motivação, constata-se que o recorrente pretende, desde logo, impugnar a decisão da matéria de facto.
Conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 410º, 412º, n.º 3, e 431º do Código de Processo Penal, o sistema processual penal vigente consagra um duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando aos sujeitos processuais a possibilidade de reagir contra eventuais erros do julgador na livre apreciação da prova e na fixação da matéria de facto.
Perfilam-se duas formas distintas de impugnação da decisão factual:
- Uma, de âmbito mais restrito, comummente designada de revista alargada, contemplando os vícios da decisão recorrida previstos no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal; e
- Outra, a impugnação ampla da decisão da matéria de facto, em consonância com o disposto no artigo 412º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal.
No primeiro caso, dispõe o artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal que, “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso à matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida por si ou conjugada com as regras da experiência comum:
a)-A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b)-A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c)-Erro notório na apreciação da prova.”

Tais vícios têm, porém – tal como assinalado, de forma expressa, no enunciado preceito legal –, que resultar da própria decisão recorrida na sua globalidade, mais concretamente do texto da decisão recorrida, sem recurso a quaisquer outros elementos que lhe sejam externos, para os fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes no processo, advindos do próprio julgamento[4]. Constituem defeitos estruturais e intrínsecos da decisão, razão pela qual a lei exige que a sua demonstração resulte do respetivo texto, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, estando, por isso, excluída a possibilidade de consideração de outros elementos extrínsecos ou exógenos, ainda que constem do processo.
Neste âmbito da análise dos vícios decisórios, contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla da matéria de facto, o tribunal de recurso não aprecia a matéria de facto – no sentido da reapreciação da prova –, limitando a sua atuação, num exercício de exegese hermenêutica, à deteção dos vícios que a decisão recorrida evidencia e, não sendo possível saná-los, determina o processo para novo julgamento, em conformidade com o preceituado no artigo 426º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Ainda que não sejam invocados, os assinalados vícios da decisão são de conhecimento oficioso – acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95[5].

Debrucemo-nos, ainda que perfuntoriamente, sobre cada um dos aludidos vícios, densificando-os:
Verifica-se insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade dada como provada na decisão se revela insuficiente para fundamentar a solução de direito alcançada e quando o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, deixou de investigar toda a matéria de facto que, sendo relevante para a decisão final, podia e devia ter investigado. Note-se que, atento o preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 124º, n.º 1, 368º, n.º 2, e 374º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal, a matéria objeto da decisão é integrada por “todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis” e, ainda, se houver pedido de indemnização civil “os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil”, sendo tais factos, por conseguinte, essenciais.
Tal vício emerge, assim, quando ocorre a omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa. Tal lacuna de factos deve resultar da própria decisão recorrida, mediante a aferição interna que apenas atende ao que nela consta, e não se confunde, pois, com a eventual falta de provas que pudessem sustentar a demonstração da factualidade que ali foi dada como apurada[6].
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão pode traduzir-se numa multiplicidade de situações[7]:
- Oposição na matéria de facto provada – v.g., dão-se como provados dois ou mais factos que estão, entre si, em oposição, sendo, por isso, logicamente incompatíveis;
- Oposição entre a matéria de facto provada e a matéria de facto não provada – v.g., dá-se simultaneamente como provado e como não provado o mesmo facto;
- Incoerência da fundamentação probatória da matéria de facto – v.g., quando se dá como provado determinado facto e da motivação da decisão resulta, atenta a valoração das provas e o raciocínio lógico dedutivo exposto, que seria outra a decisão de facto correta;
- Oposição entre a fundamentação e a decisão – v.g., quando a fundamentação de facto e de direito apontam para uma determinada decisão final e, no dispositivo da sentença, consta decisão de sentido inverso.
Em qualquer dos casos a contradição tem que se reportar aos elementos relevantes do caso e revelar-se insanável ou irredutível, ou seja, que não possa ser ultrapassada ou esclarecida de forma suficiente com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.
Finalmente, o erro notório na apreciação da prova ocorre quando a decisão ostenta um erro de apreciação dos meios probatórios observável por um homem de formação média, que, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou, até, contraditórios.
O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre a prova vinculada – como é o caso, designadamente, da prova pericial [artigo 163º do Código de Processo Penal] e da prova documental autêntica [169º do Código de Processo Penal] – e/ou das legis artis.
E verifica-se, ainda, quando resulta patenteada no texto da decisão recorrida a violação do princípio in dubio pro reo, dela emergindo que o julgador se deparou com dúvida séria e inultrapassável e que, ainda assim, considerou provados os factos em causa. Com efeito, o princípio fundamental in dubio pro reo, como reflexo que é do princípio da presunção da inocência, consagrado no artigo 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, opera exclusivamente em sede probatória e pressupõe a existência de uma situação de non liquet, ditando que o julgador deve decidir a favor do arguido se, face ao material probatório produzido em audiência de julgamento, tiver dúvidas sobre a veracidade de factos em discussão relevantes para a decisão, sendo certo que não é qualquer dúvida que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido, tendo que assumir uma natureza irredutível, insanável, sem esquecer que, nos atos humanos, nunca se dá uma certeza contra a qual não haja motivos de dúvida[8].
Em suma, verifica-se o vício do erro notório na apreciação da prova quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente[9] e, muito menos, ao juiz “normal”, dotado de cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar.
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos de um homem médio pela simples leitura da decisão e que consiste, basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido[10] ou dar-se como não provado o que não pode deixar de ter acontecido.

Este tipo de erro, a ressaltar do teor da decisão, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se confunde com o erro de julgamento previsto no artigo 412º, n.º 3, que resulta da forma como o tribunal apreciou e valorou a prova produzida – em momento necessariamente anterior à redação do texto da sentença/acórdão –, aquando da ponderação  conjugada e exame crítico das provas de que resulta a formulação de um juízo que conduz à opção de fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto da decisão.
O erro de julgamento «ocorre, quando o tribunal considere provado um determinado facto sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova produzida, deveria ter sido considerado provado.
Neste caso de situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em primeira instância, havendo que a ouvir em 2ª instância»[11], remetendo-nos para o âmbito da impugnação ampla da matéria de facto prevista no artigo 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal. Aqui, os poderes de cognição do tribunal de recurso não se restringem ao texto da decisão recorrida – como acontece com o vício do erro notório da apreciação da prova –, alargando-se à apreciação do que se contém e do que se pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre delimitada pelo recorrente através do ónus da especificação a que aludem os n.ºs 3 e 4 do citado normativo legal.
Em síntese, «O erro de julgamento pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada, não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada, nos termos em que o foi; o erro notório na apreciação da prova, para além de ser ostensivo, prescinde da análise da prova produzida, para se ater tão-somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, o que significa impossibilidade de recurso a outros elementos, ainda que constantes no processo»[12].
O mecanismo adequado para tentar reverter o erro de julgamento em sede de recurso é, pois, a denominada impugnação ampla da decisão da matéria de facto, prevista no artigo 412º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal.
Visa-se, através de tal mecanismo, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente aos concretos «pontos de facto» que o recorrente considera incorretamente julgados, através da avaliação (ou reavaliação) das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida[13].
Contudo, cumpre sublinhar que, como vem assinalando a doutrina e a jurisprudência, «Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
E é exatamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objeto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendoque o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal:
3.–Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a)-Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c)-As provas que devem ser renovadas.

A referida especificação dos “concretos pontos de facto” traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados»[14].
Por seu turno, «a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida. Exige-se, pois, que o recorrente refira o que é que nesses meios de prova não sustenta o facto dado por provado ou como não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado[15].
Finalmente, «a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artº 410º, nº 2, do CPP e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artº 430º, do CPP).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes»[16], em consonância com o estabelecido nos nºs 4 e 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal, que assim regem:
«Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado em ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação» (n.º 4).
Neste caso, «o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa» (n.º 6).

De acordo com o decidido pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência n.º 3/2012[17], «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na ata do início e termo das declarações».
É, assim, possível «distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pelo recorrido e pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que, atualmente, se alcança com a indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação, como consta do n.º 4 do citado artigo 412º»[18].
Em termos práticos, havendo declarações de arguidos, assistentes, partes civis, depoimentos de testemunhas e esclarecimentos de peritos ou consultores técnicos, o recorrente tem de individualizar, no conjunto das declarações e depoimentos prestados, quais as particulares passagens nas quais ficaram gravadas as frases que, por si só ou conjugadas com outros meios de prova, impunham decisão diversa quanto ao facto impugnado.
E, no final, é necessário que dessa indicação resulte comprovada a insustentabilidade lógica ou a arbitrariedade da decisão recorrida e que a versão probatória e factual alternativa proposta no recurso é a [única] correta.
Nesse caso, concluindo-se que o tribunal a quo não podia ter dado os concretos factos como provados ou como não provados, haverá erro de julgamento e, consequentemente, modificação da matéria de facto, em conformidade com o desacerto detetado, nos termos previstos no artigo 431º, al. b), do Código de Processo Penal.
No entanto, se a convicção do julgador for objetivável face ao princípio da livre apreciação da prova e aos critérios de apreciação da validade e do valor probatórios e se a versão apresentada pelo recorrente for meramente alternativa e igualmente possível deverá manter-se a opção do julgador, por força da plenitude dos princípios da oralidade e da imediação da prova de que este beneficia.
Com efeito, importa ter presente que a decisão do recurso sobre a matéria de facto não pode ignorar, antes tem de respeitar, o princípio norteador da formação da convicção do tribunal da livre apreciação da prova, consagrado no artigo  127º Código de Processo Penal, segundo o qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, assim como a sua íntima conexão com os princípios da imediação e da oralidade, sobretudo quando tem de se analisar a valoração efetuada na 1ª instância da prova testemunhal ou por declarações.
Como decorrência do princípio da livre apreciação da prova, ressalvado o valor probatório específico dos documentos autênticos e autenticados, do caso julgado, da confissão integral e sem reservas e da prova pericial, no processo de formação da convicção do julgador este deve avaliar as provas de acordo com as regras da experiência – resultantes da acumulação de experiência do homem comum ao longo dos séculos sobre o normal acontecer das coisas – e a sua livre convicção pessoal, nomeadamente quanto à credibilidade de alguns meios de prova, na qual intervêm, a par com a atividade cognitiva, elementos não racionalmente explicáveis e, mesmo, puramente emocionais, mas, ainda assim, objetivável e motivável[19].
É por demais consabido que, em particular nos casos de prova por declarações e depoimentos, em regra produzidos oralmente, a credibilidade dos mesmos está intimamente conexionada com o respetivo conteúdo, mas, também, com a forma como foram prestados, sendo a imediação fundamental.
Atribuir, ou não, crédito ao que diz, ou não diz, uma pessoa convocada a prestar declarações ou depoimento é uma questão de convicção, condicionada por diversas circunstâncias.
Assim, importa, desde logo, ter em consideração que a declaração e o depoimento, quando realizados de boa fé, se traduzem no relato ao Tribunal da representação da realidade percecionada, interpretada e memorizada pelo declarante e pelo depoente, respetivamente, segundo as suas idiossincrasias. Quando o declarante e o depoente estão de má fé farão um relato adulterado do que percecionaram, interpretaram e memorizaram, em função do que é favorável aos interesses e objetivos que os movem.
Daí que, mais do que o declarante e o depoente dizem ou não dizem, importa o modo como o fazem, nomeadamente a postura corporal, os gestos e expressões fisionómicas, as hesitações nas respostas às questões que lhes são colocadas, o tom da voz, os olhares de cumplicidade trocados com um ou outro interveniente processual ou o desviar do olhar do interlocutor, enfim numa multiplicidade de pormenores que, a maioria das vezes, apenas a oralidade e a imediação permitem percecionar.
Como tal, tem de aceitar-se que existe uma impressão causada no julgador, um conhecimento de base subliminar, que só a imediação em primeira instância possibilita ao nível mais elevado e que, por isso, existirá sempre uma margem de insindicabilidade da decisão do juiz de primeira instância sobre a matéria de facto, em função de fatores que intervêm na apreciação da credibilidade de depoimentos que só são apreensíveis pelo julgador mediante o contacto direto com os depoentes na audiência[20].
Nessa “margem de insindicabilidade” entram os elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais que fazem parte do processo de formação da convicção, como antes sinalizámos.
Porém, se é certo que há elementos do juízo de credibilidade das declarações e depoimentos que escapam à 2.ª instância – como são os pertencentes à linguagem não-verbal, que só a 1.ª instância está em condições de percecionar pela imediação –, outros há que podem ser retidos na gravação áudio da linguagem verbal e percecionados naquela instância de recurso – como é o caso do juízo sobre a razão de ciência, a espontaneidade, a fluência, a segurança, a verosimilhança e a plausibilidade da narrativa efetuada pelo declarante/depoente –, importantes para determinar a sua credibilidade, que não dependem da imediação, mas antes do raciocínio lógico que o julgador deve efetuar e espelhar na fundamentação da sua convicção.
Assim, se na motivação da decisão de facto o tribunal de 1.ª instância explicitou, como lhe compete, as razões pelas quais deu credibilidade a um depoimento ou a uma declaração, a margem de “insindicabilidade” desse juízo pela Relação restringe-se àqueles elementos que estejam exclusivamente dependentes da imediação, e já não àqueles que não o estejam, sob pena de esvaziamento da via de impugnação ampla da matéria de facto.
Importa, ainda, ter presente que, mesmo que não haja prova direta de determinados factos, o tribunal não está impedido de formular a sua convicção acerca dos factos em discussão, de acordo com um critério de probabilidade lógica preponderante e da prevalência dos contributos que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum ou de extrair conclusões de um facto conhecido para determinar um ou mais factos desconhecidos, o que nos remete para o âmbito da prova indiciária, circunstancial ou por presunção, ou seja, a que se refere a factos diversos do tema da prova (prova direta), mas que permite, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto a esse tema.
Daí que se perante determinada situação as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis e o tribunal a quo – que beneficiou plenamente da imediação e da oralidade –, fundamentada e justificadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável: o recorrente, ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efetuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso – que está limitado na apreciação que pode fazer nos sobreditos moldes –, que opte por ela. E se a atribuição de credibilidade ou de falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não é racional, se mostra ilógica e é inadmissível face às regras da experiência comum[21].

Ora, no caso em apreço, o arguido/recorrente começa por se insurgir contra a apreciação que o tribunal a quo fez da prova produzida e da convicção que alcançou quanto aos factos que considerou provados, sendo os factos que entende incorretamente julgados os elencados sob os pontos 1 a 13 e 19, segunda parte, da fundamentação de facto.
Sustenta o recorrente, em síntese, que a prova por reconhecimento é inválida e que as suas declarações e os depoimentos das testemunhas e ofendidos RT e PS, bem como da testemunha MF (sua mãe), que especifica, impõem decisão diversa da recorrida.
Invoca, por conseguinte, o recorrente, desde logo, o erro de julgamento a que vimos aludindo e que apreciaremos de seguida.
O recorrente/arguido cumpriu o ónus de especificação que sobre si impendia nos moldes supra explicitados, indicando, além do mais, as passagens concretas dos depoimentos, cujos excertos transcreveu, que, por si só ou conjugadamente com outros e meios de prova, nomeadamente a prova por reconhecimento, do seu ponto de vista, impunham decisão diversa.
Procedemos, porém, à reprodução integral da prova oral produzida em audiência, em conformidade com o previsto no n.º 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal, para perceção da globalidade da mesma e contextualização dos excertos transcritos pelo recorrente.

Vejamos.

O arguido/recorrente assinala, em síntese, o seguinte: negou os factos; resulta do depoimento das duas testemunhas/ofendidos que os autores do ilícito usavam balaclavas que apenas lhes permitiam ver os olhos destes; resulta dos autos, das participações das queixas crime, confirmadas pelas testemunhas/ofendidos em sede de audiência de julgamento, que a testemunha RT seria capaz de reconhecer (não referiu que o conhecia, ou seja, se o conhecia, não o reconheceria porque o conhecia) os autores do ilícito e a testemunha Pedro não conseguia reconhecer os agentes do crime; os reconhecimentos presenciais feitos ao arguido são inválidos por não obedecerem aos formalismos legais previstos no Código do Processo Penal.
Como deflui da reprodução da prova oral produzida em audiência de julgamento, as únicas testemunhas que revelaram ter conhecimento direto dos factos objeto do processo delimitado pela acusação foram os ofendidos – RT e PS–, vítimas de tais factos, que os descreveram, sendo que, no que respeita à autoria dos mesmos, se referiram ao arguido como sendo um dos [dois] indivíduos que neles intervieram porque assim o identificaram em sede de reconhecimento presencial.
Assim sendo, a apreciação dos depoimentos dos ofendidos, maxime, o seu conteúdo objetivo – abstraindo de outros aspetos que, como antes sinalizámos, podem influir na sua credibilidade –, implica que se analise a validade de tais reconhecimentos pessoais, estando, ademais, esta dependente daquele conteúdo, além de outras circunstâncias que para tanto relevam e que infra detalharemos.

Dispõe o artigo 147º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “[r]econhecimento de pessoas”:
1–Quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa, solicita-se à pessoa que deva fazer a identificação que a descreva, com indicação de todos os pormenores de que se recorda. Em seguida, é-lhe perguntado se já a tinha visto antes e em que condições. Por último, é interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação.
2–Se a identificação não for cabal, afasta-se quem dever proceder a ela e chamam-se pelo menos duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar. Esta última é colocada ao lado delas, devendo, se possível, apresentar-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que procede ao reconhecimento. Esta é então chamada e perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual.
3–Se houver razão para crer que a pessoa chamada a fazer a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efetivação do reconhecimento e este não tiver lugar em audiência, deve o mesmo efetuar-se, se possível, sem que aquela pessoa seja vista pelo identificando.
4–As pessoas que intervierem no processo de reconhecimento previsto no n.º 2 são, se nisso consentirem, fotografadas, sendo as fotografias juntas ao auto.
5–O reconhecimento por fotografia, filme ou gravação realizado no âmbito da investigação criminal só pode valer como meio de prova quando for seguido de reconhecimento efetuado nos termos do n.º 2.
6–As fotografias, filmes ou gravações que se refiram apenas a pessoas que não tiverem sido reconhecidas podem ser juntas ao auto, mediante o respetivo consentimento.
7–O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer.”

Como sobressai do normativo transcrito, existem três modalidades de reconhecimento: o reconhecimento por descrição, o reconhecimento presencial e o reconhecimento por fotografia, filme ou gravação.
O reconhecimento por descrição, previsto no n.º 1, funciona como ato preliminar dos demais e nele não existe qualquer contacto visual entre os intervenientes, ou seja, entre a pessoa que deve fazer a identificação e a pessoa a identificar.
Quando a identificação realizada através do reconhecimento por descrição não for cabal, isto é, não for de molde a permitir a identificação imediata de uma concreta pessoa, há lugar ao reconhecimento presencial, que seguirá as exigências prescritas nos n.ºs 2 e 3, sendo que neste último preceito apenas se prevê uma forma de proteção da testemunha quando existam razões para crer que a pessoa que deve efetuar a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efetivação do reconhecimento.
Além do mais, o n.º 2 do artigo 147º impõe que na linha de reconhecimento devem estar, para além da pessoa a identificar, no mínimo, duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com aquela, sendo certo que o critério de seleção de em função de tais semelhanças resultará da descrição previamente efetuada pelo reconhecedor. As semelhanças com o suspeito deverão ser, pelo menos, de idade, sexo, cor de cabelo, de pele e de olhos, estatura, raça, de vestuário.
Este requisito visa, por um lado, «dificultar a identificação do suspeito por parte do identificante, diminuindo as possibilidades de este ser identificado: o suspeito terá duas em três possibilidades de não ser indicado. Relativamente a este requisito, não poderá ser analisado de modo estritamente formal, dado que pressupõe que o identificante não conheça os restantes sujeitos. De facto, se apesar de constarem da linha de reconhecimento dois ou mais figurantes, todavia, conhecidos da pessoa que procederá à identificação, a probabilidade de 66,6% de não ser indicado diminuirá e, dessa forma, não teremos por preenchido este preceito.»[22] Por outro lado, visa garantir a fiabilidade da perceção, da memória e da seriedade do identificante que, perante pessoas com caraterísticas semelhantes, terá que atentar de forma mais pormenorizada e ponderada em tais pessoas para identificar concretamente uma delas, diminuindo, assim, a margem de possibilidade de erro.
O reconhecimento por fotografia, filme ou gravação, previsto no n.º 5, só valerá como meio de prova quando for seguido de reconhecimento efetuado nos termos do n.º 2, como ali expressamente mencionado.
O reconhecimento de pessoas que não obedeça à minuciosa regulamentação contida no artigo 147º não vale como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorreu, como expressamente referido no n.º 7, que prevê uma proibição de valoração de prova.
Este segmento final do preceito – “seja qual for a fase do processo em que ocorreu” – foi introduzido aquando da reforma do Código de Processo Penal operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, na sequência do decidido pelo Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 137/2001, que julgara inconstitucional, por violação das garantias de defesa do arguido consagradas no n.º 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo 127º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de admitir que o princípio da livre apreciação da prova permite a valoração, em julgamento, de um reconhecimento do arguido realizado sem a observância de nenhuma das regras definidas pelo artigo 147º do Código de Processo Penal.
O cuidado que o legislador impôs ao ato de reconhecimento, reforçado aquando da mencionada reforma, é expressivo da importância e da falibilidade deste meio de prova, quando não forem tomadas as devidas precauções.
Como assinala Germano Marques da Silva, «[a] prova por reconhecimento é uma prova muito delicada e porque, em princípio, irrepetível, deve ser rodeada de cuidados especiais para assegurar a sua fiabilidade.»[23]
Com efeito, a prova por reconhecimento – visando a identificação dos agentes dos atos ilícitos – é, em regra, realizada na fase de inquérito e, como tal, consubstancia um meio de prova antecipado ou pré-constituído e autónomo, a ser examinado em audiência de julgamento e a valorar no âmbito da livre apreciação da prova, no confronto com os demais meios probatórios. Como decorrência, no exercício do princípio do contraditório, pode «ser questionado pelos sujeitos processuais – saber como ocorreu o reconhecimento, quem estava presente, que compunha o painel, o papel que tiveram os intervenientes, a facilidade com que procedeu ao reconhecimento etc.»[24]
Uma vez que o reconhecimento só tem valor probatório se obedecer à disciplina rígida estabelecida no artigo 147º do Código de Processo Penal, tal deve emergir do respetivo auto, sob pena de invalidade ad substantiam, que acarretará para o julgador uma proibição de valoração, que o vincula em qualquer estado do processo e sem necessidade de iniciativa processual por parte do arguido (cfr. n.ºs 5 e 7).
Debruçando-nos concretamente sobre o caso dos autos, foi realizada prova por reconhecimento de pessoas na fase de inquérito.
Analisemos, então, os autos de reconhecimento pessoal, ambos datados de 03.06.2022, no qual intervieram, na qualidade de reconhecedores, os queixosos/ofendidos, RT [a fls. 165/6] e PS[a fls. 167/8].
Constata-se, desde logo, que não é feita a descrição do autor dos factos de que os identificados RT e PS foram vítimas em consonância com o prescrito no n.º 1 do artigo 147º, antes se remetendo para a descrição efetuada por estes nos autos de inquirição que se encontram a fls. 11 e 138, respetivamente.
Atenta a sobredita remissão, analisados os referidos autos de inquirição, constata-se que, em ambos os casos, é efetuada a descrição de dois suspeitos nos seguintes moldes:

Auto de inquirição de RT :

«SUSPEITO 1
Indivíduo de aparência africana, que conhece como morador no Bairro (…) e que atualmente mora na B_____ de alcunha #ZÉ BULA# e cujo fotograma das redes sociais faz juntar aos autos.
SUSPEITO 1 [repetida a numeração por manifesto lapso]
Indivíduo caucasiano, aparentando cerca de 17 a 18 anos de idade, estatura media/baixa, morfologia normal e que trajava umas botas amarelas, brancas e pretas, roupa desportiva de cor preta. Esclarece ainda que tinha sotaque brasileiro. Afirma que não consegue vir a reconhecer o mesmo em função de ter uma balaclava a tapar o rosto.»

Auto de inquirição de PS:
«(…) dois indivíduos de sexo masculino, com idades entre os 18 e os 20 anos, de aparência africana, os quais trajavam roupas de cores escuras, sendo que os suspeitos vestiam sweatshirts com capuz, um de cor vermelha e outro de cor preta, ambos colocados na cabeça. Ambos os suspeitos usam máscaras cirúrgicas (…).»
Em ambos os autos de inquirição os inquiridos RT e PS confirmaram o teor dos autos de denúncia que apresentaram nas datas em que ocorreram os factos de que cada um foi vítima, sendo que também ali fazem alusão a dois suspeitos.
Atentemos, pois, no que consta dos autos de denúncia quanto a este aspeto:
Auto de denúncia apresentada por RT [em 22.03.2022]:
«(…) os suspeitos eram dois indivíduos, sendo um de aparência caucasiana, com cerca de 1,70 de altura, de estatura média e o outro de aparência africana, magro, com cerca de 1,80 de altura, ambos trajavam roupa escura. (…) informou que consegue reconhecer os suspeitos (…)»
Auto de denúncia apresentada por PS [em 25.03.2022]:
«(…) dois indivíduos do sexo masculino, com idades entre os 16 e 20 anos, de aparência africana, os quais trajavam roupas de cores escuras, (…) vestiam sweatshirts com capuz, um de cor vermelha e outro de cor preta, ambos colocados na cabeça. (…) usavam máscaras cirúrgicas de cor preta, sendo-lhe impossível proceder ao reconhecimento.»
Assim sendo, fazendo-se sempre a descrição de dois suspeitos, nos autos de reconhecimento pessoal, ao remeter-se genericamente para a descrição efetuada anteriormente nos autos de inquirição, fica sem se saber qual dos suspeitos o reconhecedor descreveu na diligência, sendo certo que, pelo menos, os indivíduos que abordaram o RT tinham caraterísticas físicas muito distintas. Ademais, as descrições efetuadas por ambos os ofendidos aquando da denúncia e da sua inquirição mostram-se muito parcas quanto a alguns aspetos, nomeadamente a(in)existência de cicatrizes, tatuagens e outras particularidades, que conviria concretizar melhor em sede de diligência de reconhecimento.
Não foi, pois, devidamente observado o disposto no n.º 1 do artigo 147º do Código de Processo Penal.
Ademais, alega o recorrente que tem 1,85 m de altura e a testemunha EJ, um dos elementos integrantes da linha de reconhecimento, é agente da PSP, com aproximadamente 1,70m de altura e tem 31 anos.
Efetivamente, pudemos confirmar pela reprodução da prova oral que, aquando do depoimento desta testemunha, se fez evidenciar as assinaladas dissemelhanças, além de outras, nomeadamente o tom de pele [mais clara, do arguido] e a forma do cabelo [do arguido, com rastas; da testemunha cortado rente].
Além disso, constata-se que no auto de reconhecimento levado a cabo pelo RT, este indicou que já conhecia, quer da escola, quer da área da Reboleira, a pessoa identificada com o n.º 2 que integrou a linha de reconhecimento.
Na senda do que supra expusemos, no que respeita ao número mínimo de participantes na linha de reconhecimento e à semelhança dos mesmos, forçoso é concluir que também não foram devidamente cumpridas as exigências elencadas no n.º 2 do artigo 147º.
Mas, problema maior se coloca e prende-se com a (im)possibilidade de os ofendidos terem condições para reconhecer algum dos indivíduos que os abordaram.
Para dilucidar tal questão importa atentar na sequência de atos processuais e nos depoimentos dos ofendidos em audiência de julgamento.

Vejamos.

O ofendido RT apresenta a denúncia em 22.03.2022, descreve os dois indivíduos nos termos supra transcritos, ou seja, de forma muito genérica, e afirma que consegue reconhecê-los.
Dois dias depois, em 24.03.2022, aquando da sua inquirição, o RT traz uma imagem, retirada das redes sociais, do aqui arguido, que conhece pela alcunha de “Zé Bula”, e diz que não conseguirá reconhecer o outro indivíduo porquanto o mesmo trazia uma balaclava a tapar o rosto.
Não se percebe, por isso, por que razão, quando dez a denúncia, disse que conseguia reconhecer os suspeitos, quando, afinal um deles usava uma balaclava, e não disse logo que conhecia o outro do youtube, ainda que não soubesse ou não se lembrasse do nome do mesmo.
Conforme consta do aditamento de 07.04.2022, sendo o “Zé Bula” conhecido na Esquadra de Investigação Criminal como sendo o aqui arguido, foi o RT confrontado com o cliché referente ao arguido, tendo o ofendido afirmado que não tinha dúvidas que é o suspeito n.º 1 que o “roubou”.
E na diligência de reconhecimento de pessoas, realizada em 03.06.2022, nas circunstâncias que antes analisámos, reconheceu o aqui arguido.
Em audiência de julgamento, na sessão de 10.01.2023, quando questionado expressamente a esse respeito, o RT referiu que o indivíduo que identifica como sendo o arguido trazia uma máscara que tapava a cara toda, com exceção dos olhos, respondendo afirmativamente à questão [colocada pela Ex.ma Procuradora da República] se se tratava daquele tipo de “capuz que só tem os olhos de fora” [cfr. 7m:3s da gravação do seu depoimento].
Ora, o RT nunca antes fizera menção de que o suspeito que identificou como sendo o arguido trazia uma máscara, vulgarmente conhecida por balaclava, tendo mencionado apenas que o outro suspeito tinha o rosto ocultado por uma balaclava, razão pela qual não o poderia reconhecer.
E, efetivamente, como decorre das regras da experiência comum, com pequenas variações consoante o modelo – que nalguns casos permite ver apenas os olhos e noutros uma pequena área em volta, nomeadamente as sobrancelhas –, é inquestionável que a balaclava oculta o rosto, a cabeça e o pescoço, sendo, aliás, por isso mesmo, utilizada, com crescente frequência, na prática de atos ilícitos, precisamente para obstar à identificação/reconhecimento dos agentes dos mesmos.
É certo que, invetivado a esclarecer como é que, atenta a ocultação do rosto pela balaclava, conseguiu identificar o indivíduo que diz ser o arguido, o RT explicou que quando passava no bairro onde aquele morava [e a sua irmã, o que é diferente do que consta do auto de reconhecimento, que ele próprio, RT, ali morava] já o tinha visto várias vezes com aquela máscara. Porém, questionado, admitiu que o arguido não era o único que ali andava com aquele tipo de máscara e que a que ele usava não tinha sinais distintivos que permitissem identificá-lo.
Note-se que na sobredita imagem/fotografia que o RT facultou à PSP aquando da sua inquirição em 24.03.2022 como sendo do “Zé Bula”, o indivíduo nela retratado apresenta o cabelo pelo ombro, com rastas louras nas pontas, resultando da dialética entre a juiz presidente do tribunal coletivo, o defensor do arguido e a testemunha EJ, agente da PSP que integrou a linha de reconhecimento, que o arguido, aquando da audiência de julgamento, também tinha o cabelo com rastas. Este pormenor é particularmente distintivo, por não ser usual, e nunca foi mencionado pelo ofendido RT, o que reforça a convicção que ambos os indivíduos que o abordaram traziam balaclavas, que lhes ocultavam o rosto, com exceção dos olhos, e também o cabelo. Daí que nenhuma menção ao cabelo tenha sido feita, quanto a qualquer um deles.
Relativamente ao ofendido PS, verifica-se que, na denúncia que apresentou em 25.03.2022, referiu que ambos os indivíduos vestiam sweatshirts com capuz, um de cor vermelha e outro de cor preta, ambos colocados na cabeça e usavam máscaras cirúrgicas de cor preta, sendo-lhe impossível proceder ao reconhecimento.
Aquando da sua inquirição em 29.04.2022, ou seja, quatro dias depois, mantendo a mesma descrição, já afirma que os conseguiria reconhecer se os voltasse a ver e, nessa data, efetuou o reconhecimento fotográfico do aqui arguido, conforme o respetivo auto de fls. 140.
Na diligência de reconhecimento de pessoas, realizada em 03.06.2022 [ou seja, na mesma data em que também o ofendido RT efetuou idêntica diligência] com os preditos condicionalismos, o PS reconheceu o aqui arguido como um dos autores dos factos.
Porém, na sessão da audiência de julgamento de 31.01.2023, PS já refere apenas que ambos os indivíduos que o abordaram estavam de máscara, cujas caraterísticas não especifica, e que “o outro tinha um gorro vermelho” e explica que, não obstante, anteriormente à ocorrência dos factos em causa, a pessoa que identifica como sendo o arguido havia-o interpelado, fazendo-lhe perguntas e pedindo-lhe dinheiro e, nessa ocasião, não tinha máscara e, por isso, reconheceu-o, pela cor [de pele], pela altura e pelo olhar, que não soube especificar apesar de invetivado a fazê-lo, acabando por admitir que não tinha qualquer particularidade.
Como ressalta à vista, o PS começa por referir, de forma coerente e plausível, que em face da circunstância de os indivíduos que o abordaram terem os capuzes das sweatshirts colocados na cabeça e usarem máscaras cirúrgicas pretas não os conseguia reconhecer, não se compreendendo como é que quatro dias depois, mantendo aquela descrição e sem acrescentar qualquer outro pormenor com valor identificativo, já afirma o contrário – que os consegue reconhecer se os vir –, vindo a fazer reconhecimento positivo do arguido e, na audiência de julgamento, já só faz referência às máscaras e ao gorro vermelho [e não aos capuzes das sweatshirts].
De igual modo é de salientar que também o Pedro não faz qualquer referência ao cabelo com rastas, o que é consentâneo com a primeira versão que apresentou – que os indivíduos traziam os capuzes colocados, que lhes ocultavam a cabeça e o cabelo, estando o rosto parcialmente ocultado pelas máscaras cirúrgicas pretas e, daí, que, obviamente, não pudesse reconhecê-los.
Outrossim não se pode ignorar que, apesar de o Pedro referir que já havia estado com o indivíduo que identifica como sendo o arguido, não conseguiu descrever nenhuma particularidade dos olhos deste, único elemento do rosto que mencionou. E também nada disse a respeito da voz, sendo certo que, de acordo com o seu relato, em ambas as ocasiões o tal indivíduo teria falado com ele, ou da linguagem corporal ou qualquer outra caraterística peculiar.
Ora, é inquestionável que o mais decisivo elemento de identificação de uma pessoa passa pelo reconhecimento dos traços fisionómicos do rosto e das caraterísticas do cabelo, sem prejuízo de haver outras caraterísticas físicas, originárias, naturais ou adquiridas [como é o caso, a título exemplificativo, de deformidades, sinais, cicatrizes e tatuagens] e, até, de postura corporal, que sejam de tal forma singulares que tenham forte virtualidade distintiva e identificativa.
Todavia, como somos levados a concluir pelas razões que vimos aduzindo, neste caso, nem o RT nem o PS conseguiram ver o rosto dos indivíduos que os interpelaram, com exceção dos olhos, nem o cabelo, não resultando dos autos e da audiência de julgamento qualquer explicação plausível para, não obstante tal condicionalismo, e não referindo outros elementos de identificação absolutamente distintivos – além do tom de pele, altura e idade aproximada –, conseguirem reconhecer o arguido como sendo um daqueles indivíduos, apesar de já o conhecerem antes no circunstancialismo que cada um descreveu.
Com efeito, resulta das regras da experiência comum que na localidade onde ocorreram os factos existem muitos indivíduos de origem africana, jovens, altos e magros, não permitindo estas caraterísticas, desacompanhadas de outras, individualizá-los.
Os aspetos que vimos assinalando suscitam, pois, fortes reservas quanto à assertividade da convicção dos ofendidos de que o arguido era um dos indivíduos que os abordaram e lhes retiraram os telemóveis.
Todavia, o tribunal a quo desvalorizou as perplexidades com que a defesa foi confrontando os ofendidos na audiência de julgamento e na fundamentação da sua convicção exarada no acórdão. Nesta, além de, no primeiro parágrafo do ponto 2, trocar o conteúdo dos depoimentos dos ofendidos RT e PS ou a identificação destes, bastou-se com o facto de ambos os ofendidos terem explicado as circunstâncias em que já anteriormente conheciam o arguido e, nessa medida, entendeu serem os reconhecimentos efetuados “meramente confirmativos”, pelas razões que ali se explicitam, sendo que também aqui se verificam imprecisões. Assim, no que respeita ao ofendido RT, a dado passo, afirma-se: «(…) e mesmo levando este um capuz aquando da prática dos factos, certo é que “sempre o conseguiu identificar como sendo o Zé Bula”. Acresce, ter sido o próprio ofendido quem levou um print de uma foto do arguido à polícia de modo a fazer conhecer a sua identificação (“depois é que os agentes foram ver no computador”)». Ora, como vimos, na audiência de julgamento, o RT mencionou espontaneamente uma máscara que tapava o rosto todo e que só deixava ver os olhos e respondendo afirmativamente à questão se se tratava daquele tipo de “capuz que só tem os olhos de fora”, ou seja, tipo balaclava. Em qualquer das descrições, não se trata de um mero capuz, que apenas oculta a cabeça e o cabelo. Portanto, o tribunal a quo partiu da premissa de que o indivíduo em causa tinha um capuz, e não algo que lhe ocultava totalmente a cabeça e o rosto, deixando apenas os olhos de fora e, daí, que não se tenha deparado com a perplexidade de como é que o ofendido podia reconhecer alguém, ainda que o conhecesse antes, sem lhe ver o rosto e o cabelo.
Por outro lado, o reconhecimento pessoal não se destina à confirmação da identidade de uma pessoa que foi já identificada pelo reconhecedor junto dos órgãos de polícia criminal mediante a apresentação de uma imagem ou fotografia, em formato físico ou digital, obtida por aquele pelos seus próprios meios, pois tal representa uma inversão dos pressupostos daquele meio probatório e dos papéis dos intervenientes.
Com efeito, o reconhecimento pessoal pressupõe o desconhecimento pelo reconhecedor da identidade do agente dos factos e visa alcançá-la mediante os procedimentos disciplinados no artigo 147º do Código de Processo Penal, levados a cabo pela autoridade que a ele presidir.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.11.2011[25], «Dada a relevância na formação da convicção probatória, a prova por reconhecimento, que tem como pressuposto fundamental a indeterminação prévia do agente do crime, deve obedecer ao formalismo rígido enunciado nos n.ºs 1 e 2 do art. 147.º do CPP.»
Neste sentido, em situação similar à que vimos aludindo no que concerne ao ofendido RT, decidiu o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa 23-06-2015[26], como se extrai do respetivo sumário:
«I.–À prova por reconhecimento são apontados riscos de falibilidade, na sua valoração devendo ser ponderadas as circunstâncias em que é realizada;
II.–Não tendo o ofendido, e quem no momento dos factos o acompanhava, conseguido identificar os agentes do crime, cabe às autoridades competentes realizar a investigação criminal, não se apresentando razoável incumbir aqueles de pesquisar no facebook as pessoas que possam ter praticado o crime;
III.–Tendo o ofendido e quem o acompanhava encontrado, em pesquisa por eles realizada no facebook, pessoas que vieram a indicar como os agentes dos factos, o reconhecimento de seguida realizado em relação a essas pessoas por elas próprias indicadas é merecedor de sérias reservas quanto à sua fiabilidade como prova da identidade dos autores dos factos ilícitos;
IV.–Sendo os próprios reconhecedores a escolher (por pesquisa no facebook) a pessoa concreta cujo reconhecimento lhes vai ser pedido, falta em relação a eles um pressuposto essencial à prova por reconhecimento: a indeterminação prévia do agente.
V.–Não existindo qualquer outro elemento de prova que corrobore a participação do arguido nos factos, aquele reconhecimento é insuficiente para formar uma convicção segura quanto a essa participação.»
Ante o exposto, afigura-se-nos que está irremediavelmente comprometida a validade da prova por reconhecimento, de que decorre a proibição da sua valoração.
É consabido que a prova por reconhecimento não se confunde com a identificação dos autores de atos ilícitos efetuada pelas testemunhas com base nos factos que viram presencialmente ou nos quais tiveram intervenção e dos quais, por isso, têm conhecimento direto.
Todavia, em audiência de julgamento, as únicas testemunhas que revelaram ter conhecimento direto dos factos objeto do processo foram os ofendidos RT e PS, cujos depoimentos, no que respeita à autoria de tais factos, não acrescentaram quaisquer elementos com virtualidade identificativa, assentando nos reconhecimentos que haviam efetuado, não tendo, ademais, logrado esclarecer ou justificar as incongruências com que foram confrontados.

Inexistem quaisquer outros elementos de prova que contribuam para identificar os autores dos factos de que o RT e o PS foram vítimas, nem se vislumbram outras diligências probatórias úteis.

Impõe-se, assim, inelutavelmente, em consonância com o disposto no artigo 431º, al. b), do Código de Processo Penal, modificar a decisão sobre a matéria de facto, no sentido de que os factos descritos na factualidade provada, relativamente a RT, em 22.03.2022, e a PS, em 25.03.2022, foram perpetrados, em ambos os casos, por dois indivíduos cuja identidade não foi possível apurar, eliminando-se qualquer referência concreta ao arguido.

Como decorrência, impõe-se a absolvição do arguido dos crimes de que vinha acusado, com as demais consequências.

Em face do desfecho da decisão sobre a primeira questão, fica, obviamente, prejudicada a apreciação das restantes supra elencadas.
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III.–DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto nos autos pelo arguido e, em consequência, revogar a sentença recorrida, substituindo-a pela decisão de total absolvição dos crimes e da indemnização arbitrada.

Não é devida tributação [artigo 513º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal].
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O arguido foi detido e sujeito à medida de coação de prisão preventiva, aplicada em sede de primeiro interrogatório, no dia 3 de junho de 2022, substituída pela medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica em 06.07.2022, executada em 08.07.2022, que se mantém até à data.
Em face do ora decidido, e atento o disposto no artigo 214º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Penal, extingue-se de imediato a medida de coação a que o arguido está sujeito.
Comunique-se, de imediato, pela via mais expedita, ao tribunal de 1.ª instância, ao TEP e à DGRSP (Vigilância Eletrónica), com cópia.
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(Elaborado pela relatora e revisto pelos signatários, sendo assinado eletronicamente pela relatora e pela 2.ª adjunta e manualmente pelo 1.º adjunto – artigo 94º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal)
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Lisboa,24 de maio de 2023


Isabel Gaio Ferreira de Castro
[Assinatura eletrónica certificada no canto superior esquerdo da 1.ª página]

Rui Gonçalves

Maria Elisa Marques
[Assinatura eletrónica certificada no canto superior esquerdo da 1.ª página]


[1]Todas as transcrições a seguir efetuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correção de erros ou lapsos de escrita manifestos e a alteração, nalguns casos, da ortografia utilizada e da formatação do texto, da responsabilidade da relatora.
[2]Publicados no Diário da República, I.ª Série - A, de 19.10.1995 e 28.12.1995, respetivamente.
[3]Vide Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág. 113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061
[4]Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 15.ª edição, página 822; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2.ª edição, Editorial Verbo, página 339; e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, 2007, Rei dos Livros, página 77.
[5]Publicado no DR, I-A, de 28 de dezembro de 1995
[6]Cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24.04.2018 e 12.06.2019, disponíveis para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[7]Vide o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01.06.2016, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[8]Vide Cristina Monteiro, In Dubio Pro Reo, Coimbra Editora, 1997, pág. 37.
[9]Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2.ª edição, Editorial Verbo, página 341;
[10]Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, 2007, Rei dos Livros, página 74.
[11]Acórdão da Relação de Coimbra, proferido no processo n.º 72/07.7JACBR.C1
[12]Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15.07.2004, processo nº 2150/04-5ª, citado por Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 15ª Edição, página 828
[13]Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31.05.2007, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[14]Acórdão da Relação de Coimbra, proferido no processo nº 72/07.7JACBR.C1, acessível em disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[15]Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11.07.2017, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[16]Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21.05.2015, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[17]In D.R. n.º 77, Série I, de 18-04-2012
[18]Cfr. citado acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.07.2017
[19]Neste sentido, vide Figueiredo Dias, in "Direito Processual Penal", 1º volume, Coimbra, ed. 1974, págs. 203 a 205
[20]Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 23.02.2016, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[21]Vide acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.09.2017 e de 09.01.2012 e do Tribunal da Relação de Évora de 21.04.2015, disponíveis em www.dgsi.pt.
[22]Vide, Marta Dinis Ferreira, na Dissertação de Mestrado sob o tema “Prova por Reconhecimento e Proibição de Prova”, na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, acessível no endereço repositório.ucp.pt [seguindo, nesta parte, de perto, o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 11/10/2011, proferido no proc. 849/09.7TBFAR.E1 (disponível no endereço www.dgsi.pt): «Diminuir o número dessas possibilidades não se traduz em reduzir a eficácia probatória do reconhecimento, significa retirar-lha em absoluto, nos termos previstos no nº 7 do artigo 147º do CPP.»)
[23]In Curso de Processo Penal, Vol. II, Verbo, 1993, págs. 149 a 151
[24]Cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04.11.2009, disponível para consulta no sítio da internet  http://www.dgsi.pt
[25]Disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[26]Acessível no sítio da internet http://www.dgsi.pt