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IN DUBIO PRO REO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
MODIFICAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
FURTO
Sumário
I) O princípio da presunção de inocência tem assento constitucional e na sua aplicação no domínio probatório é designado habitualmente por in dubio pro reo, traduz-se em que, numa situação de falta de prova sobre um facto, a dúvida resolve-se a favor do arguido Desse princípio decorre que "todos os factos relevantes para a decisão que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à "dúvida razoável" do tribunal, também não podem considerar-se como "provados". II) A violação deste princípio constitui um verdadeiro erro notório na apreciação da prova. III) É o que sucede no caso dos autos, quanto ao apuramento do número e valor dos bens furtados, pois, segundo todas as regras de experiência comum, o que se pode concluir da prova documental e testemunhal produzida, é que a própria recorrida não tem qualquer certeza sobre tais factos. IV) Ora, perante tal situação de dúvida, impunha-se também a dúvida razoável do tribunal a quo, por relativamente a esses concretos factos, não ter sido produzida qualquer outra prova, para além da relativa aos bens recuperados. V) Essa dúvida tem que ser julgada a favor da recorrente, em nome daquele princípio constitucional e, por isso, a apurada conduta delituosa da arguida não integra o crime de furto qualificado que lhe era imputado.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na Secção Criminal deste Tribunal: Relatório
Nos autos de processo comum com intervenção do tribunal singular que correram termos pela Instância Local de Valença – Secção de Competência Genérica (Unidade 2) da Comarca de Viana do Castelo, foi a arguida Maria J., por decisão de 6/11/2014 (fls. 463 a 473), condenada pela prática, de um crime de furto qualificado p. e p. pelos art.ºs 203º n.º 1 e 204º n.º 1 alínea a), do Código Penal (a partir de agora, apenas designado por CP), na pena de 400 dias de multa, à taxa diária de 5,00 euros, e ainda a pagar à demandante civil Eva M., a quantia que se vier a apurar em execução de sentença, com o limite de 8.325,00 euros, a título de danos patrimoniais, quantia acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação para contestar o pedido civil e até integral pagamento, e ainda a de 500,00, a título de danos não patrimoniais. Desta decisão interpôs a arguida o presente recurso (fls. 485 a 511), no qual, e nas suas conclusões (pelas quais se afere o âmbito do recurso), alega: Ter sido feita uma errada apreciação da prova, designadamente quanto aos factos 2, 3 e 5 a 7, que deveriam ter sido dados como não provados, perante o depoimento da testemunha Maura P. e a documentos juntos aos autos; ser a decisão recorrida nula por falta de fundamentação (designadamente quanto à pena aplicada) e de exame crítico da prova e estar ferida de todos os vícios previstos no n.º 2 do Art.º 410º do Código de Processo Penal (a partir de agora apenas designado por CPP), nomeadamente quanto ao montante de indemnização civil, face ao depoimento da assistente; violação dos princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo; inconstitucionalidade por força do art.º 32º da CRP, do artigo 358º do diploma legal supra citado. Como questão prévia do seu recurso, alega as nulidades decorrentes de, na data do julgamento, a arguida ainda estar em prazo para declarar se autorizava a realização da audiência na sua ausência, indeferimento de todas as diligências de prova por si requeridas, em audiência, e de a sentença não ter sido lida publicamente, ao arrepio do disposto no n.º 3 do art.º 372º do CPP.
A Magistrada do M.P. junto do tribunal recorrido respondeu ao recurso interposto, a fls. 527 a 539, pugnando pela sua total improcedência.
A Ex.mª Senhora Procuradora-Geral Adjunta junto deste tribunal não emitiu parecer, por ter sido requerida a audiência.
Foram colhidos os vistos legais, e procedeu-se à audiência, que decorreu pela forma constante da acta, cumprindo decidir.
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Na decisão recorrida, foram as seguintes a fundamentação de facto e a motivação desta (que se transcrevem integralmente): II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO. a) Factos provados. 1. A arguida Maria J. e a ofendida Eva M. eram amigas e tinham os filhos a estudar no mesmo colégio em Espanha, sendo que, nessa qualidade, a primeira frequentava com frequência a casa do noivo da segunda, sita em …, …, Valença. 2. Em momentos que não foi possível precisar, mas até ao dia 27 de Outubro de 2010 e nas duas semanas que o antecederam, a arguida apoderou-se de diversas peças em ouro de Eva M., que se encontravam acondicionadas em dois joalheiros num quarto sito no piso superior da residência acima mencionada, concretamente:
- uma medalha com Santa,
- uma medalha com pedra,
- uma medalha com anjo,
- um berloque mina,
- um berloque ½ lua,
- um berloque estrela,
- um berloque coração maciço,
- um berloque pássaro com coração,
- um berloque flor,
- um berloque pedra lilás,
- um berloque ferradura,
- um berloque trevo,
- um berloque golfinho,
- um fio de corda,
- uma pulseira três tiras três argolas,
- uma pulseira de argolas com seis berloques,
- uma pulseira de rolo quatro argolas duplas,
- uma pulseira ouro amarelo/ouro branco com nó duplo,
- uma pulseira bolas minhotas,
- uma pulseira friso,
- uma pulseira espinha com seis argolas ovais,
- uma pulseira ouro branco e amarelo,
- uma pulseira ouro amarelo de anilhas,
- uma medalha de ouro amarelo,
- um pingente de ouro amarelo,
- uma pulseira ouro amarelo malha branco,
- um pingente dedal em ouro,
- um pingente sino em ouro,
- dois brincos de ouro,
tudo em valor que não foi possível concretizar mas superior a 50 (cinquenta) unidades de conta. 3. A arguida, ao apoderar-se de tais objectos em ouro e fazendo-os coisa sua, actuou livre, consciente e deliberadamente, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que agia contra a vontade e sem autorização do respectivo dono. 4. A arguida sabia igualmente que tal conduta não lhe era permitida por lei. 5. Na posse de tais objectos em ouro, a arguida Maria J., no dia 22 de Outubro de 2010, vendeu os seguintes:
- uma pulseira ouro branco e amarelo,
- uma pulseira ouro amarelo de anilhas,
- uma medalha de ouro amarelo,
- um pingente de ouro amarelo,
- uma pulseira ouro amarelo malha branco,
- um pingente dedal em ouro,
- um pingente sino em ouro,
numa ourivesaria em Espanha, denominada …, SL, sita na Rua C…, n.º 13, Galerias …, …, Espanha, pelo valor de € 300,00 (trezentos euros). 6. De forma a reaver tais objectos, que identificou como sendo seus, a ofendida Eva M., no dia 15 de Novembro de 2011, em hora que não foi possível apurar, descolou-se à referida ourivesaria em …, Espanha e pagou pelas ditas peças em ouro € 150,00, ficando a firma … com o prejuízo do restante valor das peças. 7. As peças de ouro subtraídas tinham um valor sentimental inestimável para a ofendida porquanto tinham sido oferecidas por familiares seus, pelo que o seu desaparecimento causou-lhe desgosto e angústia, o que sucedeu também pelo facto se ter sentido traído, uma vez que acolheu em sua casa a arguida e nela depositou toda a sua confiança. 8. A arguida é primária. 9. Não trabalha.
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b) Factos não provados.
Com relevância para a boa decisão da causa não se provou que:
- os objectos referidos no ponto 3 dos factos provados tinham o valor global de € 8.668,70 (oito mil seiscentos e sessenta e oito euros e setenta cêntimos);
- a ofendida não se sentiu bem a andar na rua, nomeadamente quando se deslocava a …, onde diariamente levava o seu filho menor ao colégio frequentado pela filha da arguida.
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c) Motivação.
Na formação da sua convicção o Tribunal teve em conta o teor do depoimento da testemunha Eva M., ofendida, que explicou que, à data dos factos, mantinha uma relação de confiança com a arguida, já que esta frequentava a sua casa (e do seu namorado, em …, … com alguma assiduidade. Esclareceu que esse relacionamento nasceu do facto de os filhos de ambas frequentarem o mesmo colégio.
Quanto aos factos, referiu que no dia 27 de Outubro de 2010 a arguida se encontrava em sua casa e que, a dado momento, insistiu com a ofendida para ir à casa de banho do andar de cima da habitação com o pretexto de pretender lavar as suas "partes íntimas", ao que aquela acedeu apesar de ter estranhado tal atitude uma vez que existia uma casa de banho no piso térreo da casa. Referiu que a arguida, logo que desceu do primeiro piso, quis de imediato ir-se embora. A ofendida referiu ainda que a arguida já conhecia o local onde aquela tinha guardadas (em dois joalheiros) as suas jóias em ouro, uma vez que já lhas tinha exibido noutra ocasião pois a arguida, a pretexto de pretender observar as diferenças entre o ouro espanhol e o ouro português (é sabido que o ouro português tem um grau de pureza superior ao do ouro espanhol), insistiu várias vezes com a ofendida para que lhe exibisse as suas peças, o que aquela, como vimos, acabou por fazer.
A ofendida referiu ainda que, logo que a arguida manifestou vontade imediata de ir embora de casa daquela, subiu ao primeiro piso e constatou a falta de variadíssimas peças em ouro que tinha acomodadas nos referidos joalheiros. Explicou que na altura não teve o impulso de confrontar de imediato a arguida com o sucedido porque, perante as evidências, não raciocinou de forma escorreita. Parece-nos que tal justificação, podendo afigurar-se numa primeira análise algo estranha, não põe de modo algum em causa a credibilidade do depoimento da ofendida Eva M., pois parece-nos razoável que esta, perante uma tal quebra de confiança, ao que se soma o facto de não ter presenciado directamente a subtracção de que foi alvo, não tenha de imediato confrontado a arguida com o desaparecimento das jóias. Aliás, a conduta prudente da ofendida é coonestada pelas diligências que depois encetou, como explicou, no sentido de averiguar se a arguida havia alienado as peças em ouro em alguma ourivesaria (o que explica também que apenas também tenha apresentado a queixa-crime apenas no dia 17 de Novembro de 2010, o que aliás fez, note-se, apenas dois dias depois de ter confirmado que a arguida, como veremos, vendeu algumas das peças subtraídas num estabelecimento comercial em …. Com efeito, José M., dono de uma joalharia, confirmou no seu depoimento que a ofendida é sua cliente e que há cerca de 3 anos atrás, em Outubro ou Novembro, se recorda que aquela se deslocou ao seu estabelecimento comercial procurando saber se a arguida ali tinha ido para vender peças em ouro. O depoente confirmou que, efectivamente, a arguida ali tinha estado na semana anterior para que o mesmo lhe avaliasse umas peças em ouro que trazia consigo, o que nem chegou a fazer porque o que a arguida pretendia na realidade era vendê-las e a testemunha, segundo afirmou, não compra ouro, tendo-lhe sugerido para o efeito um estabelecimento comercial existente nas Galerias …, em ….
O depoente confirmou ter transmitido tais informações à ofendida quando esta o interpelou nos termos aludidos, pelo que aquela se deslocou às ditas Galerias …, onde veio a recuperar alguns dos objectos subtraídos.
Sobre tal matéria foi fundamental o depoimento da testemunha L. funcionária no dito estabelecimento comercial (que se dedica, segundo informou, à compra e venda de ouro, detida pela firma …, que de forma que se nos afigurou desinteressada e credível referiu que conhece a arguida e que esta é cliente do sobredito estabelecimento comercial e já lá foi quatro ou cinco vezes para vender peças em ouro. Referiu que conheceu a ofendida apenas quando esta se deslocou à loja onde trabalha, altura em que aquela a informou que a arguida lhe tinha subtraído peças em ouro. A depoente esclareceu que, perante tal circunstância, falou com o seu chefe e pôs todo o ouro que tinha guardado na loja à frente da ofendida e que esta, de entre um manancial de peças em ouro, seleccionou alguns artigos que coincidiam com a declaração de compra e venda de fls. 5 que a depoente então foi consultar e que se reporta, como explicou, à data em que a arguida ali se deslocou para vender as peças em causa.
Assaz relevante foi a afirmação, espontânea, da testemunha L… no sentido de que, apesar de a ofendida lhe ter mencionado o nome da arguida quando a interpelou nos termos descritos, em momento algum lhe transmitiu que a conhecia ou que a mesma ali tinha estado, o que fez somente depois de a ofendida ter seleccionado as peças que apontou como sendo suas e depois de ter constatado que correspondiam àquelas que constavam descritas na declaração de compra e venda de fls. 5. O que quer dizer que em nenhum momento a ofendida foi sugestionada pela funcionária do estabelecimento em causa quanto à identidade da pessoa que lhe havia vendido as peças em ouro que a ofendida haveria depois de identificar como suas.
A depoente L… referiu também que o número do DNI (corresponde ao cartão de cidadão espanhol) que consta da dita declaração de venda o retirou do documento de identificação que a arguida então lhe apresentou. Neste conspecto adiante-se desde já que o facto de as assinaturas apostas nas declarações de compra e venda de artigos em ouro de fls. 276 a 279 (onde vem identificada a arguida por referência ao seu n.º de DNI, que corresponde ao n.º que consta da fotocópia de tal documentação de identificação que a própria fez juntar aos autos) serem claramente distintas da assinatura da arguida aposta no seu cartão de identificação/DNI (fls. 279 e 280), não quer dizer, por si só, que não foi aquela a apô-las em tais documentos. Será até normal, de acordo com as regras da experiência comum, que qualquer pessoa que venda ouro furtado em condições semelhantes às descritas não aponha a sua assinatura de acordo com a que habitualmente usa, já que se assim o fizesse estaria a deixar pistas importantes a quem seguisse o caminho dos bens subtraídos (refira-se que o Tribunal não conferiu valor probatório algum às ditas declarações de compra e venda de artigos em ouro - senão que atestam, em conjugação com o depoimento de L…, que a arguida vendeu artigos em ouro mais do que uma vez na loja em que aquela trabalha em … - uma vez que se reportam a datas - meses de Abril e Setembro de 2010 - que nada têm que ver com os factos em análise, pois a ofendida delimitou o espaço temporal em que os mesmos ocorreram entre o dia 27 de Outubro de 2010 e as duas semanas que o antecederam, já que nessa altura se recorda de ter conferido os seus joalheiros e de não ter dado pela falta de qualquer peça).
A tese sustentada pela defesa da arguida - uma cabala montada contra esta, apoiada em documentos forjados – não mereceu qualquer apoio na prova produzida. Aliás, é de estranhar, em face de tal alegação, que a arguida não tenha comparecido em audiência de discussão e julgamento para apresentar a sua versão dos factos e defender a sua versão dos factos. Obviamente que tal circunstância não pode prejudicá-la, mas também não pode beneficiá-la. Do silêncio da arguida (que no caso resulta de não ter comparecido, de forma voluntária, na audiência, mas de a ter inequivocamente acompanhado, como resulta dos diversos requerimentos efectuados pelo seu Ilustre mandatário ao longo do julgamento) não pode ser retirado qualquer efeito probatório. Nem para prova da acusação nem do seu contrário. Como refere Costa Andrade (in Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, pág. 129) “se o arguido exerce o seu direito ao silêncio (ou não comparece, voluntariamente, na audiência, acrescentamos nós), ele renuncia (faculdade que lhe é reconhecida) a oferecer o seu ponto de vista sobre a matéria em discussão, nessa medida vinculando o tribunal à valoração exclusiva dos demais meios de prova disponíveis no processo”. De resto, temos a registar que só no decurso da audiência de discussão e julgamento é que a arguida, já bem ciente dos factos de que estava acusada (requereu inclusivamente a abertura da instrução), apresentou queixa contra desconhecidos junto das autoridades policiais espanholas dando conta de que alguém vem usando a sua identidade para efectuar vendas de peças em ouro (cfr. fls. 266 a 268), postura que não pode deixar de causar a maior estranheza pois normal seria que o tivesse feito bem antes da fase do julgamento. Trata-se claramente de um esforço inócuo no sentido de tentar desviar atenções do essencial. Não obstante, registamos também que na queixa que apresentou a arguida não só afirma que em momento algum o seu documento de identificação antigo se extraviou e que nem sequer é titular de carta de condução, pelo que também por aqui a sua tese não tem qualquer sustentação.
Prosseguindo, tendo sido lida, com o acordo de todos os sujeitos processuais, o depoimento que a testemunha L. prestou no inquérito (fls. 20 e 21), verificamos que, no essencial, está em consonância com o que prestou na audiência de discussão e julgamento. Existe uma dissonância mínima entre um e outro que se prende com o momento em que apresentou à ofendida todo o ouro que tinha para aquela apontar as peças que afirmara terem sido subtraídas, tendo esclarecido que já não se recorda bem se foi logo no dia 15 de Novembro de 2010 ou dois ou três dias depois que expôs à ofendida o ouro nos termos aludidos (como referiu no inquérito). Trata-se de uma minudência que se justifica pelo lapso de tempo já decorrido e que, de resto, não abala em nada o depoimento sério e escorreito que a testemunha prestou.
A depoente L. explicou ainda que a declaração em questão (fls. 5) não está assinada pela arguida compradora porque se esqueceu de lha dar a assinar, razão porque consta manuscrito no canto inferior direito, com a sua letra, que se olvidou de lha dar a assinar.
No que tange com o reverso da declaração em análise, explicou que a ofendida não queria pagar qualquer montante para reaver os objectos em ouro que havia identificado como seus (como é natural, uma vez que lhe haviam sido furtados), mas que foi o seu namorado que se predispôs a pagar o montante de 150,00 € ali referido com o acordo da empresa pois esta não queria ficar com o prejuízo todo, ao que aquela acedeu. Nada de anormal vislumbramos em tal postura, já que o que a ofendida queria era obviamente reaver os seus bens e, de resto, dois dias depois apresentou queixa-crime contra a arguida.
Sobre a data em que os factos ocorreram, e porque a ofendida Eva afirmou no seu depoimento que foi no dia 27.10.2010 que a arguida subiu ao primeiro andar da casa e depois deu conta da falta das suas jóias – sendo certo que a declaração de compra e venda de fls. 5 data de 22.10.2010 –, explicou aquela que cerca de duas semanas antes daquele dia 27 verificou os locais onde guardava as suas jóias em casa e não deu conta que faltasse o que quer que fosse. Nessa medida, a ofendida defendeu, com a razoabilidade que os factos permitem sustentar, que as jóias não foram todas elas subtraídas no dia 27.10.2010, mas também numa outra ou outras ocasiões em que a arguida se deslocou a casa da ofendida, como era habitual fazer no âmbito da relação de confiança e mesmo de amizade que existia entre ambas. Daí que não se vislumbre qualquer contradição entre o depoimento da ofendida no que tange com o momento em que se apercebeu de que tinha sido "assaltada" e a data em que a arguida vendeu em .. os bens em ouro que a ofendida viria a identificar como seus nos termos já expostos.
No que tange com as características dos artigos em causa, a ofendida remeteu tal matéria para as relações de bens que fez juntar aos autos a fls. 26 e ss., confirmando o seu teor. É verdade que no requerimento que acompanha esse documento se refere que seguem "fotografias identificativas dos objectos furtados". Mas é verdade também que a ofendida logo esclareceu – como aliás bem resulta da análise de tais fotografias, onde presos aos objectos se observam etiquetas com o preço dos mesmos - que as fotografias não reproduzem os bens efectivamente desapossados, mas bens com características idênticas aos mesmos, pois que, segundo esclareceu, se dirigiu às ourivesarias onde haviam sido adquiridos e pediu que lhe indicassem valores para peças idênticas (fornecendo e indicando aos ourives, antes de mais, as características das mesmas), não tendo defendido em momento algum que as peças ali fotografadas eram as mesmas que lhe haviam sido subtraídas.
Sobre o valor das peças subtraídas a ofendida foi manifestamente equívoca, o que demonstrou de forma clara a sua boa-fé nos autos – disse que não estava preocupada em ver-se indemnizada pelo valor dos bens em causa mas mais em reavê-los, dado o grande valor sentimental dos mesmos – e vincou a credibilidade do seu depoimento. Assim, apesar de na relação sobredita ter sido atribuído aos bens em causa um valor próximo dos 9.000,00 €, a ofendida declarou em audiência que o valor global dos mesmos se fixará entre os 3 e os 5.000,00 €, já que aquele valor foi atribuído pelos joalheiros com quem contactou. A lisura da ofendida é também patente quando afirma que, relativamente a uma pulseira de ouro branco e amarelo que lhe foi subtraída, a sua sogra, que lha havia oferecido, pagou pela mesma a quantia de 600,00 €, sendo que o joalheiro que consultou lhe atribuiu um valor de 1.101,00 € porque a peça que o ourives lhe exibiu tinha dimensões mais generosas do que aquela que a sogra lhe tinha oferecido. Ou seja, a ofendida poderia ter-se limitado a confirmar os montantes atribuídos aos bens em causa por semelhança com outros de características idênticas, mas não o fez, tendo ao invés sustentado de forma séria o valor global que reputa adequado às características (tendo em conta, como vimos, por exemplo, a dimensão das peças) dos bens de que se viu desapossada.
Em face de tal circunstância não foi possível apurar o valor preciso de cada uma das jóias em causa, mas foi possível concluir que o valor global das mesmas era certamente superior a 50 UC, o que se alcança por recurso a regras de experiência comum tendo em conta o número de peças subtraídas e o metal de que são compostas (ouro), sendo certo também que a testemunha L. referiu que só as quatro peças que o estabelecimento comercial onde trabalha adquiriu à arguida (por 300,00 €) ascende a pelo menos 1.500,00 € (e explicou também que o ouro português é assaz mais valioso do que o espanhol), sendo que a sua razão de ciência no caso é relevante uma vez que trabalha no ramo em questão. Acresce que o valor da onça de ouro em Outubro de 2010 era de cerca de 1.300,00 dólares (conforme consulta ao sítio do Banco de Portugal na Internet), ou seja, já naquela altura estava a um preço muito elevado, o que, e apesar de não ter sido alegado o peso concreto dos bens em questão, é um factor a que teremos de atender no que tange com a fixação do valor aproximado dos bens em questão (note-se que só os bens que a arguida vendeu em … tinham um peso de cerca de 21 gramas e uma onça de ouro tem pouco mais de 31 gramas), sem descurar outrossim o facto de não estarmos perante peças em bruto, mas trabalhadas, lhes confere óbvia e necessariamente um valor superior ao mero valor do metal nobre que as compõe.
A ofendida disse ainda ter recuperado algumas das peças em ouro em causa no dia em que se deslocou a …. Uma análise perfunctória da declaração de compra e venda de fls. 5 pode levar a crer que existe desconformidade entre os bens aí elencados e aqueles que estão descritos na acusação, o que é verdade apenas tão-somente no que respeita ao "Aro" ou anel referido na declaração mencionada, que a ofendida não identificou como sendo de sua pertença. Quanto aos restantes, a ofendida confirmou ter recuperado os bens descritos no libelo acusatório, tendo inclusivamente exibido os mesmos na audiência. E, na verdade, estão em causa três pulseiras (uma delas com medalha da Virgem - na declaração, "medalla do virgen" -, outra em ouro amarelo com pingentes - na declaração, "pulsera con abalorios" e uma outra em ouro amarelo e ouro branco - na declaração, "pulsera en oro amarillo y oro blanco" -, como consta de declaração de fls. 5 e está em conformidade com a relação de bens n.º 2 e fotografias que as acompanham apresentada pela ofendida nos autos a fls. 31 e 32), e um pingente de cores (na declaração, "abalorio do colores"), também reproduzida pela fotografia de fls. 32. De resto, a testemunha L. referiu de forma firme e segura que a ofendida apontou e identificou inequivocamente as peças que lhe haviam sido subtraídas e que as mesmas coincidiam com as que a arguida lhe tinha vendido no estabelecimento onde trabalha no dia 22 de Outubro de 2010.
O depoimento da testemunha Maria V., que disse ser namorada do irmão da ofendida, foi relevado na medida em que confirmou a presença da arguida em casa daquela no dia 27.10.2010, tendo referido ainda que a dado momento se deparou com a ofendida num pranto dizendo que lhe faltavam as jóias. A depoente confirmou ainda que naquele dia a arguida subiu ao primeiro piso da casa para ir ao quarto de banho (que fica perto do quarto da ofendida Eva, onde a mesma guardava as jóias), como a ofendida havia também referido no seu depoimento. Confirmou também que arguida e ofendida tinham uma relação de proximidade - andavam sempre juntas - e que aquela última andou angustiada por causa do sucedido, designadamente porque sentiu a atitude da arguida como uma verdadeira traição à confiança e amizade que nela depositava.
Jorge M., irmão da ofendida, referiu que na data em causa se encontrava a pintar a casa da irmã e que se recorda que, quando estava de saída, aquela comunicou, chorando, que tinha dado falta das jóias. Confirmou também (a par da ofendida Eva e da depoente Maria V. que naquela altura apenas se encontravam em casa o próprio, a namorada, a ofendida e a arguida.
O depoimento de R…, ex-marido da arguida, não abalou a convicção do Tribunal acerca da autoria dos factos descritos na acusação. Limitou-se a e emitir juízos puramente subjectivos, assentes no conhecimento que adquiriu da personalidade da arguida enquanto viveram como casal (disse que a arguida é uma mulher religiosa, que é …). Referiu também que a ofendida Eva pediu à arguida cópia do DNI desta para se domiciliar na casa do casal em …, para assim receber mais perto as notificações do Estado Espanhol. Mesmo a admitir-se que a ofendida tenha feito uma tal solicitação à arguida, isso nada adianta no que aos factos ocorridos diz respeito, tanto mais que se apurou que entre aquelas existia um clima de amizade e cumplicidade e, por isso, um tal pedido não seria de estranhar. É evidente que a afirmação do ex-marido da arguida é tudo menos inocente, pois, de modo dissimulado, pretendia sustentar a tese de que é a ofendida quem se vem servindo dos elementos de identificação da arguida para alegadamente a prejudicar. Sucede que não houve o menor indício probatório de que a ofendida venha actuando duma forma tão torpe, nem foram sequer invocados motivos plausíveis para que assim agisse (o depoente limitou-se a justificar a sede de vingança da ofendida no facto de esta ter pedido à arguida que fosse testemunha falsa num processo, o que aquela terá recusado), sendo as insinuações do dito R. claramente gratuitas e pecas de fundamento. Anunciou o depoente ainda que a ex-mulher tinha objectos em ouro mas que nunca vendeu tais artigos, o que é claramente desmentido pela factualidade que a testemunha L. narrou no seu depoimento.
Em face do exposto, o Tribunal ficou convencido, pela conjugação da prova produzida e a que fizemos referência, que a arguida praticou os factos em análise. A tal não obsta a inexistência de prova directa que tenha incidido sobre os mesmos. Com efeito, para além da prova directa do facto, a apreciação do Tribunal pode assentar em prova indirecta ou indiciária, a qual se faz valer através de presunções. No recurso a presunções simples ou naturais (artigo 349.º do Código Civil), parte-se de um facto conhecido (base da presunção), para concluir presuntivamente pela existência de um facto desconhecido (facto presumido), servindo-se para o efeito dos conhecimentos e das regras da experiência da vida, dos juízos correntes de probabilidade, e dos princípios da lógica.
“As presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas; são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a exactidão no caso concreto” (cfr. Cavaleiro Ferreira, in Curso de Processo Penal, I, pág. 333 e ss.), isto é, na dúvida, funcionará o princípio in dubio pro reo.
Nessa medida, sendo permitido em processo penal o recurso a prova por presunções, porque não proibida por lei (artigo 125.º do CPP), as normas dos artigos 126.º e 127.º do CPP podem ser interpretadas de modo a permitir que possam ser provados factos sem que exista uma prova directa deles. Basta a prova indirecta, conjugada e interpretada no seu todo.
É que, como se refere impressivamente no Ac. do STJ de 12.09.2007 (processo n.º 07P4588, acessível em www.dgsi.pt), “Quem comete um crime busca intencionalmente o segredo da sua actuação pelo que, evidentemente, é frequente a ausência de provas directas. Exigir a todo o custo, a existência destas provas implicaria o fracasso do processo penal ou, para evitar tal situação, haveria de forçar-se a confissão o que, como é sabido, constitui a característica mais notória do sistema de prova taxada e o seu máximo expoente: a tortura” (J. M. Asencio Melado, Presunción de Inocência y Prueba Indiciária, 1992, citado por Euclides Dâmaso Simões, in Prova Indiciária, Revista Julgar, n.º 2, 2007, pág. 205)."
Em face do exposto, e da conjugação dos vários elementos de prova indiciários antes enunciados, o Tribunal alcançou convicção segura no sentido de ter sido a arguida a praticar os factos narrados no libelo acusatório, juízo de inferência respeita as regras da lógica e da experiência comum e da vida. Nada, nos depoimentos recolhidos, apontou no sentido de que tenha havido qualquer conjugação de esforços no sentido de prejudicar a arguida nos presentes autos. Foram todos eles prestados de forma séria e desprendida, mormente o da testemunha L. que nem sequer conhece, senão apenas circunstancialmente, como vimos, a arguida.
Os elementos considerados provados e relativos aos elementos intelectual e volitivo do dolo concernente à conduta da arguida foram considerados assentes a partir do conjunto de circunstâncias de facto dadas como provadas supra, já que o dolo é uma realidade que não é apreensível directamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum.
A ausência de antecedentes criminais relativamente à arguida releva da análise do CRC de fls. 235.
No que tange ao estado emocional da ofendida decorrente dos factos em análise, o Tribunal relevou desde logo o seu depoimento, já que, como já vimos, aquela demonstrou inequivocamente estar mais preocupada com o valor sentimental dos bens que lhe foram subtraídos do que com o seu valor material.
Não foi possível apurar com aprumo as actuais condições pessoais e económico-financeiras da arguida, já que não compareceu na audiência de discussão e julgamento. Todavia, o ex-marido daquela adiantou que a arguida não trabalha nem nunca trabalhou, circunstância que levámos aos factos provados.
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Fundamentação de facto e de direito A recorrente, como questão prévia do seu recurso da sentença de fls. 463 a 473, vem alegar a nulidade decorrente de na data em que se realizou o julgamento estar ainda em prazo para requerer ou consentir que o mesmo se realizasse na sua ausência (o que de facto acontecia, pois, o mesmo realizou-se no 3º dia útil após o fim do prazo de 10 dias que lhe fora fixado para esse efeito, conforme notificação constante de fls. 512), só que, trata-se de uma falsa questão.
Na verdade, a audiência agora em causa não passa de uma continuação do julgamento iniciado em 30/05/2013 (fls. 252), e continuado em 20/06/2013 (fls. 284, e não na 2ª data que se encontrava inicialmente designada e para a qual a recorrente estava notificada para comparecer), ou seja, de uma continuação de julgamento iniciado nos termos do n.º 2 do art.º 333º do CPP.
Ora, foi essa falta de notificação da recorrente para comparecer naquela 2ª data, que determinou a decisão sumária proferida pela relatora destes autos (fls. 373 a 375), na qual se declarou a nulidade de todo o processado posterior àquela falta de notificação, e consequentemente a marcação em 1ª instância da audiência de fls. 474, nos exactos termos definidos pelo despacho de fls. 455 (ou seja, mantendo-se apenas a notificação da arguida para nela comparecer).
Nessa data, a recorrente, devidamente notificada para o fazer, não compareceu à continuação da audiência, pelo que, competia ao seu ilustre mandatário requerer que aquela fosse ouvida na 2ª data que fora marcada para a continuação do julgamento, no caso de esta ter interesse em prestar declarações.
Assim, e porque a arguida se encontrava devidamente notificada para aquela data, e na mesma, o seu ilustre mandatário não usou da faculdade prevista no n.º 3 do art.º 333º do CPP, não se verifica a nulidade arguida, que é apenas aparente e provocada por despachos contraditórios como os proferidos em 8/07/2014 (acta a fls. 424) e em 2/10/2014 (fls. 452), este provocado pela “informação” do mandatário da recorrente de 5/09/2014 (fls. 449), que fora determinada pelo despacho de fls. 424 já referido.
A recorrente ainda no âmbito daquela questão prévia, vem alegar a nulidade decorrente da falta de leitura pública da sentença em crise, mas não arguiu a nulidade da acta de julgamento, na qual se refere expressamente, no final de fls. 479, que a mesma foi lida pelo Meritíssimo Juiz a quo, naquela audiência.
Ora, não havendo qualquer indício de que aquela acta não corresponda ao que efectivamente se passou na audiência, nem tendo a recorrente apresentado prova de tal falsidade, nos termos do n.º 1 do art.º 170º do CPP, não existe qualquer elemento nos autos, que nos permita declarar como falsa a acta de julgamento de fls. 474 e seguintes, pelo que, tem também aquela nulidade invocada que improceder.
Finalmente, e antes de atacar a sentença condenatória, a recorrente vem, nas suas alegações de recurso, dizer terem sido indeferidos todos os requerimentos de prova por si apresentados, em audiência, não retirando daí qualquer conclusão, quer a nível formal, quer a nível substancial, pelo que, esta questão nem tem que ser apreciada por o âmbito do recurso se aferir pelas suas conclusões, além de não ter sido interposto recurso desses despachos, mas apenas e só da decisão final, conforme resulta claramente do requerimento de fls. 485. Quanto ao recurso da decisão final, arecorrente começa por alegar ter o tribunal a quo incorrido em erro de julgamento relativamente aos factos 2, 3, 5, 6 e 7 da matéria provada, quer por os documentos indicados sobre os quais não se pronuncia, não serem aptos a produzirem aquela prova, quer por os depoimentos prestados os contradizerem e indiciarem o contrário, sustentandoque os primeiros dois deveriam ter sido dados como não provados, face aos documentos juntos e ao depoimento da assistente, o mesmo acontecendo com os restantes supra indicados, face aos depoimento da mesma e da testemunha Maura G., que contradizem a “Declaracion” de fls. 5, da qual constam apenas 5 objectos, e não os 7 referidos na decisão recorrida. Acrescenta ter o tribunal a quo dado como não provado que os objectos alegadamente furtados e constantes de 3 da matéria provada tivessem o valor de 8.868,70 euros, além de não se entender qual a prova produzida para provar aquele n.º 3, sobretudo tendo em conta a queixa-crime apresentada pela ofendida em 17/11/2012. De facto, na denúncia de fls. 3, a ofendida declara terem-lhe sido furtados do interior da habitação do seu noivo, suspeitando que tal furto tivesse sido praticado pela recorrente, até por esta ter vendido ouro que lhe pertencia, numa ourivesaria espanhola, conforme documento de fls. 5, discriminando as peças furtadas como uma pulseira em ouro português com várias acessórios em volta, todos em ouro, um fio do mesmo metal, uma medalha com “Virgen e o Menino Jesus”, e um brinco com brilhantes e pedra negra, atribuindo ao total dos objectos furtados e não recuperados o valor de 1.500,00 euros.
Mais tarde, quando ouvida em sede de inquérito, a fls. 17 e 18, (cuja leitura foi validamente permitida em audiência, tal como as declarações de fls. 20 e 21, prestadas pela testemunha L…, a ofendida confirma que os objectos constantes da declaração de fls. 5, datada de 22/10/2010 (e que a recorrente vendera no estabelecimento comercial nele referido) eram seus e que os “recomprara” por 150,00 euros, podendo os mesmos ter sido furtados pela recorrente antes de 27/10/2010, por esta frequentar aquela habitação quase diariamente e saber onde estava o ouro, atribuindo agora ao total do ouro furtado valor superior a 5.000,00 euros.
Aquela testemunha L… vem confirmar a venda ao estabelecimento onde trabalhava pela recorrente das peças referidas a fls. 5, e em que circunstâncias, a ofendida as “recomprou”, naquele estabelecimento por 150,00 euros.
Posteriormente, a ofendida vem apresentar as relações de artigos furtados de fls. 27 e 31, atribuindo-lhes o valor total de 8.668,70 euros, com base nos valores de peças que encontrara à venda em ourivesarias e alegadamente iguais às furtadas. A recorrente sustenta que face a tais divergências quanto aos bens furtados e seu valor apresentados pela ofendida, nunca o tribunal a quo poderia ter dado como provados os factos 2 e 3, estes face ao depoimento da ofendida e a documentos juntos aos autos, não os identificando, nem indicando qual a parte do depoimento da Eva M. que impunha decisão diversa, bem como os 5 e 6, por serem contraditados pelo documento de fls. 5 dos autos (no qual apenas são referidos 5 objectos em ouro, enquanto no facto 5 se referem 7) e pelas declarações da assistente e depoimento da testemunha Maura P., de novo não indicando que partes desses depoimentos impunham decisão diversa, e por fim, o facto provado 7, este sem indicar sequer qualquer elemento de prova que implique a sua alteração.
A recorrente embora alegando erros de julgamento não impugna nos termos do art.º 412º do CPP aquela matéria provada, que apenas poderia ver alterada por duas formas: invocando os vícios do art.º 410º n.º 2 do CPP, o que fez (além de o conhecimento dos mesmos ser oficioso para o tribunal de recurso, a habitualmente designada “revista alargada”), ou através da impugnação da matéria de facto, nos termos daquele art.º 412º, n.ºs 3 e 4, o que não fez por falta de indicação das partes concretas das declarações e depoimentos invocados, o que, face à gravação da audiência, nos exactos termos previstos no art.º 364º do CPP, teria que fazer por remissão para o constante da acta de julgamento.
Só assim, imporia uma análise da prova produzida em audiência, mas dentro dos limites do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 412º do CPP, já que, o recurso da matéria de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse, mas mero remédio jurídico destinado a corrigir erros de julgamento, os quais devem ser indicados com menção das provas que os evidenciam.
Na verdade, “A alteração da decisão da 1.ª instância sobre matéria de facto restringe-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados. Daí a imprescindibilidade de os recorrentes indicarem concretamente os pontos de facto que se encontram incorrectamente julgados e especificarem as provas que impõem decisão diversa, em relação a esses pontos de facto.” - Ac. do STJ de 19/5/2010, relatado pela Conselheira Isabel Pais Martins, in www.dgsi.pt. Cumpre, pois, verificar a ocorrência daqueles vícios do n.º 2 do art.º 410º do CPP na decisão recorrida, por não obstante a recorrente arguir a nulidade de falta de fundamentação por falta de exame crítico da prova, bem como a de falta de cumprimento do art.º 358º do CPP, se impor verificar previamente se ocorre qualquer razão para alteração da matéria de facto, que a existir pode até prejudicar a apreciação de tais questões.
O vício previsto na alínea a) daquele normativo, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nada tem a ver com a insuficiência para a decisão de facto da prova produzida, referindo-se apenas à “decisão justa” que devia ter sido proferida (ver, neste sentido, Acs. do STJ de 13/02/1991 e 13/05/1998, citados em anotação ao art.º 410º no Código de Processo Penal de Maia Gonçalves), prendendo-se exclusivamente com a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito.
O segundo daqueles vícios (o da alínea b)), a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ocorre quando, há uma incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através do texto da decisão recorrida, entre os factos provados, entre factos provados e não provados ou entre a fundamentação e a decisão de facto. Fala-se do vício da contradição insanável «(…) quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do Tribunal» – Ac.STJ de 13/10/1999, in Colectânea de Jurisprudência – Ac.STJ, ano VII, tomo II, pág.84, relatado pelo Conselheiro Armando Leandro.
Finalmente, existe erro notório na apreciação da prova quando, analisada a decisão recorrida na sua globalidade e sem recurso a elementos extrínsecos, é manifesto que o tribunal fez uma apreciação ilógica da prova, em oposição às regras básicas da experiência comum, ou seja, sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão diferente daquela a que chegou o tribunal. Trata-se de um erro ostensivo, que é detectado pelo homem médio. É evidente da simples leitura do texto da decisão recorrida que não se verifica nenhum daqueles dois primeiros vícios, mas já o mesmo não podemos dizer quanto ao do erro notório na apreciação da prova. O tribunal a quo explicando com todo o pormenor as razões da credibilidade dada ao depoimento da ofendida, quanto à existência de furto de jóias do interior da sua habitação perpetrado pela recorrente, designadamente, a sua corroboração quanto às suas suspeitas em relação a esta pelos depoimentos das testemunhas José M. e L., esta última a pessoa que num estabelecimento comercial em …, Espanha, comprou à Maria J. os objectos em ouro descritos na “Declaracion” junta por fotocópia a fls. 5 (sendo, posteriormente, e em sede de instrução sido junto o original desse documento), não explica com a mesma clareza como apurou que os objectos furtados eram os referidos em 2 da matéria provada, ou o porquê de lhes atribuir valor não apurado mas superior a 50 unidades de conta, assim como o facto de considerar que a recorrente vendeu os objectos referidos em 5, quando do documento que comprova a venda de objectos em ouro da ofendida pela arguida, apenas constam 5 objectos, a saber, um aro (anel, que nem sequer é referido no facto 3), uma pulseira em ouro amarelo e branco, uma pulseira com medalha de virgem, outra pulseira com pingentes e um pingente de cores.
O tribunal a quo quanto às características dos objectos furtados baseou-se unicamente no depoimento da ofendida, que o fez por remissão para as relações de bens juntas a fls. 26 e seguintes, mas esclarecendo que as fotografias juntas a fls. 28 a 30 e 32 a 33, são fotografias obtidas em ourivesarias e apenas correspondem a bens com características idênticas aos mesmos.
E acrescenta “Sobre o valor das peças subtraídas a ofendida foi manifestamente equívoca, o que demonstrou de forma clara a sua boa fé nos autos - …a ofendida declarou em audiência que o valor global dos mesmos se fixará entre 3.000,00 e 5.000,00 euros, já que, aquele valor foi atribuído pelos joalheiros com quem contactou. A lisura da ofendida é também patente quando afirma que, relativamente a uma pulseira de ouro branco e amarelo que lhe foi subtraída, a sua sogra, que lha havia oferecido, pagou pela mesma a quantia de 600,00 euros, sendo que o joalheiro que consultou lhe atribuiu o valor de 1.101.00 euros, porque a peça que o ourives lhe exibiu tinha dimensões mais generosas…”.
Ora, o facto de a ofendida se mostrar equívoca quanto ao valor dos objectos furtados, pode implicar sim a sua boa fé, mas pode também indicar muita confusão sua, ou até que depois de se saber que aquela imputava um furto de ouro levado do interior da sua casa pela recorrente, alguém que não esta aproveitou e retirou outros objectos em ouro à vitima Eva M..
Na verdade, quando a ofendida apresentou queixa, cerca de pelo menos 20 dias após o alegado furto (ou furtos) cometido pela recorrente, apenas indica como furtados, além dos recuperados, através do pagamento de 150,00 euros, e em ouro português, uma pulseira com vários acessórios também em ouro em volta, um fio em ouro, uma medalha em ouro com “Uma Virgem e Menino Jesus” e um brinco com brilhantes e pedra negra, atribuindo à totalidade dos objectos furtados (incluindo os recuperados) o valor de 1.500,00 euros.
Nessa data já tinha passado tempo suficiente para que a mesma tivesse averiguado com toda a certeza os objectos em ouro desaparecidos, e só cerca de mais de 2 meses depois, quando ouvida em sede de inquérito a fls. 17 e 18 (leitura permitida e feita em audiência), é que vem afirmar que o valor dos objectos furtados é superior a 5.000,00 euros, e comprometer-se a apresentar relação dos bens furtados, o que faz a fls. 27 e 31, juntando as já referidas fotografias tiradas em ourivesarias e alegadamente de objectos semelhantes aos furtados.
No entanto, no seu pedido de indemnização civil de fls. 77 e seguintes atribui aos objectos furtados o valor de 8.668,70 euros, para em audiência, e conforme já se disse, atribuir aos mesmos valor entre 3.000,00 e 5.000,00 euros, o que levou o tribunal a quo a dar como não provado que os mesmos objectos tivessem o valor global de 8.668,70 euros, e condenar a recorrente numa indemnização cível a liquidar em execução de sentença quanto aos danos patrimoniais, mas com o limite de 8.325,00 euros, ou seja, com dedução àquele valor do montante considerado inerente à recuperação de alguns objectos furtados.
Ora no processo penal português vigora o princípio da presunção de inocência com assento constitucionalque na sua aplicação no domínio probatório se designa habitualmente por in dubio pro reo, e se traduz em que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido, e do qual decorre que “todos os factos relevantes para a decisão … que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à ´dúvida razoável´ do tribunal, também não possam considerar-se como ´provados´” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I).
A violação deste princípio constitui um verdadeiro erro notório na apreciação da prova, e o tribunal a quo fundamentando a sua convicção de forma perfeitamente perceptível pelo cidadão comum e por este tribunal de recurso, ou seja, em estrita obediência ao n.º 2 do art.º 374º do CPP (não se verificando, pois, qualquer nulidade decorrente da falta de exame crítico da prova), comete uma verdadeira violação deste princípio, quanto ao “número” e valor dos objectos furtados, pois, segundo todas as regras de experiência comum, o que se pode concluir da prova documental e testemunhal produzida, é que a própria recorrida não tem qualquer certeza sobre quais os objectos furtados pela recorrente ou o seu valor. Ora, perante a dúvida da recorrida quanto a esses aspectos, impunha-se também a dúvida razoável do tribunal, por relativamente a eles, não ter sido produzida qualquer outra prova, para além da relativa aos bens recuperados, dúvida que tem que ser julgada a favor da arguida, em nome daquele princípio constitucional.
Esse erro notório na apreciação da prova constituído pela violação daquele princípio implica, em princípio, o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do art.º 426º do CPP, só que, não se vê como passados cerca de 5 anos sobre os factos, o depoimento da ofendida pudesse apagar essa dúvida razoável, antes pelo contrário sendo previsível que decorrido este tempo a memória se tenha vindo a apagar, pelo que, e aplicando aquele princípio, se impõe decidir nesta instância, alterando a matéria de facto provada sob os n.ºs 2 e 5. Assim, do n.º 2 da matéria de facto provada, e na concretização dos objectos furtados apenas passará a constar, face ao resultante da participação apresentada, do documento de fls. 5 e do depoimento da testemunha de acusação lido em audiência (que atribui aos objectos recuperados o valor de cerca de 1.500,00 euros, e “esquecendo” o brinco referido na participação, já que a ofendida nunca mais o referiu): - uma pulseira em ouro português, com diversos acessórios (ou pingentes, também em ouro) à volta; - uma medalha em ouro com “Uma Virgem e o Menino Jesus”, em ouro português; - um fio em ouro; - um anel; - uma pulseira em ouro amarelo e branco; - uma pulseira com pingentes; - Uma pulseira com medalha de virgen; - um pingente de cores; tudo de valor concretamente não apurado, mas superior a 1.500,00 euros; E este valor, por ser o que inicialmente a ofendida indicou, e ter sido o atribuído pela testemunha L., que tem conhecimentos nesta matéria, por trabalhar numa casa que compra ouro usado, aos objectos recuperados pela ofendida, e que tinham sido comprados à recorrente por 300,00 euros.
Por sua vez, o facto provado 5º ficará com a seguinte redacção, no tocante aos objectos ali referidos como vendidos, mantendo-se tudo o mais dele constante quer antes, quer depois, da discriminação ali efectuada, e que é substituída pela seguinte: - um anel; - uma pulseira em ouro branco e amarelo; - uma pulseira com pingentes; - uma pulseira com medalha de virgem; - um pingente de cores;
A recorrente invocara ainda que a decisão é nula por violação do art.º 358º do CPP, e face à sua conclusão O, e já que, a sentença recorrida explica claramente porque considerou que a arguida furtou de facto o ouro por diversas vezes e não só no dia 27 de Outubro, ou seja, exactamente pelo depoimento da ofendida e não para “dar cobertura” àquele depoimento, que mereceu fundadamente credibilidade em todos os aspectos, com excepção dos relativos às divergências quanto à descrição e valor dos objectos furtados, e que implicaram a alteração da matéria de facto provada.
Só que, o constante da parte inicial de 2 da matéria provada “Em momentos que não foi possível precisar, mas até ao dia 27 de Outubro de 2010 e nas duas semanas que o antecederam, não constitui qualquer alteração não substancial de factos com relevo para a decisão da causa, pois, já da acusação, para a qual o despacho de pronúncia remete, constava (ver parte final de fls. 61 e início de 62), que “Em momentos que não foi possível precisar, mas até ao dia 27 de Outubro de 2010, a arguida apoderou-se de diversas peças em ouro…”, o que fixou o objecto do processo, esclarecendo que a subtracção se deu em mais que um momento e antes de 27/10/2010, sendo perfeitamente irrelevante que na decisão recorrida se estreite o período anterior àquela data, porque qualquer restrição (o mesmo não se diria quanto à sua extensão) não contunde nem prejudica qualquer direito de defesa da arguida, sendo, pois, irrelevante para a decisão da causa, não tendo sido feita, pois, qualquer interpretação inconstitucional do art.º 358º do CPP. Não se verifica, pois, esta nulidade nem as restantes arguidas, o tribunal a quo não atribuiu qualquer valor ou desvalor ao silêncio da arguida, quando refere ter estranhado em face da defesa assumida que esta não tivesse comparecido em julgamento, assim como não existe qualquer inexistência de prova da matéria de facto provada, face à sua alteração nos termos supra expostos.
Só que, face à alteração da matéria de facto provada constante de 2 da decisão recorrida, a conduta da recorrente não integra o crime de furto qualificado que lhe era imputado, por não estar preenchida a alínea a) do n.º 1 do art.º 204º do CP (atento o disposto na alínea a) do art.º 202º do mesmo diploma legal, o valor teria de ser superior a 5.100,00 euros), mas sim, o crime de furto simples p. e p. pelo art.º 203º n.º 1 com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. A escolha e a medida da pena têm de fazer-se de harmonia com o disposto nos art.ºs 40º, 70º e 71º do CP, ou seja, em função da culpa do agente, sem nunca a poder ultrapassar, e das exigências de prevenção, tendo em vista a protecção dos bens jurídicos e a reintegração daquele.
Por sua vez, o art.º 70º estabelece o princípio da prevalência das penas não detentivas da liberdade, impondo a opção por estas, desde que realizem “…de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
As finalidades da punição são a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, e no caso concreto, como já fundamentadamente o tribunal a quo decidira, relativamente ao crime qualificado por ele considerado, as exigências de prevenção geral e especial são satisfeitas pela aplicação de uma pena multa. Assim, por não exceder a sua intensa culpa, mas não esquecendo que a recorrente é primária e que as razões de prevenção geral se põem com alguma acuidade, nestes casos em que o furto é cometido por quem por razões de amizade ou outras tem acesso à habitação do ofendido, pela quebra de confiança que implica, entende-se como adequada a aplicação à recorrente da pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 5,00 euros (o mínimo legal, já que foi dado como provado que não trabalha), mantendo-se no mais a decisão recorrida excepto no tocante aos danos patrimoniais que terão que ser fixados em 1.500,00 e, por força da alteração da matéria de facto provada. Tem, pois, o presente recurso que proceder parcialmente.
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Decisão
Pelo exposto, os juízes deste Tribunal acordam em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela arguida Maria J., alterando-se a matéria de facto constante de 2 e 5 da decisão recorrida, nos termos supra expostos, e condenando aquela arguida pela prática de um crime de furto simples p. e p. pelo art.º 203º do CP, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de 5,00 (cinco) euros, e ainda no pagamento à ofendida Eva M. da quantia de 1.500,00, a título de danos patrimoniais, e mantendo no tocante a juros sobre essa quantia e a danos não patrimoniais o decidido em 1ª instância.
Sem custas, quanto à parte crime.
Custas, quanto à parte cível, na proporção do decaimento. Guimarães, 5 de Outubro de 2015