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REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO
POSSE
Sumário
I - A duplicação de registos deve afirmar-se essencialmente em relação ao prédio e não necessariamente ao titular, pois o que se duplica é a descrição daquele. II - Afastando-se as regras registais por prevalência do direito substantivo, deve ter-se presente que em caso de conflito entre a presunção resultante do registo e a presunção resultante da posse é a primeira que cede, quando a posse se iniciou antes da data da inscrição registral.
Texto Integral
Processo n.º 217/19.4T8GDM.P1
Relator: José Eusébio Almeida;
Adjuntos: Carlos Gil e Mendes Coelho.
Recorrente – AA
Recorridos – BB e outros
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:
I – Relatório BB, CC e DD intentaram a presente ação contra AA, pedindo que a ré seja condenada a reconhecê-los como legítimos donos e proprietários da parcela de terreno com a área de 263 m2, correspondente a parte do prédio denominado “Campo ...”, sito no lugar ..., atualmente rua ..., freguesia ..., concelho de Gondomar, no qual se encontra edificada a construção/benfeitoria, propriedade da ré, a reconhecer que a descrição n.º...73/ 20120718 é posterior à descrição n.º ...92/20120531 e está em duplicado com esta, onde o identificado terreno se encontra registado a favor dos autores e, consequentemente, que seja ordenado o cancelamento e inutilizada a inscrição de aquisição da AP. ...23, de 18.07.2012 e da descrição com o n.º ...73/20120718, registada a favor da ré na Conservatória do Registo Predial de Gondomar.
Alegam, em síntese, que no seguimento do trato sucessivo que descrevem nos autos, a verba 35 correspondente ao “Campo ...” que inclui a identificada parcela de terreno com a área de 263 m2, foi adjudicada aos autores por inventário judicial realizado por óbito de EE e FF, que correu termos no segundo juízo cível do Tribunal Judicial de Gondomar. Mais alegam que, na aludida parcela de terreno, se encontra edificada uma construção de um pavimento com cinco divisões (inscrita na matriz e descrita na Conservatória do Registo Predial), sendo que tal construção foi edificada por anteriores arrendatários da parcela de terreno, mediante autorização para o efeito, tendo sido, ulteriormente, e por escritura pública celebrada a 5.08.1946, vendida ao pai da ré. Alegam, ainda, que no âmbito de ação que intentaram contra a ré para pagamento das rendas vencidas e não pagas relativas ao uso e fruição de parte do terreno onde se encontra edificada a benfeitoria, constataram que esta havia inscrito, a seu favor, a aquisição da parte do terreno onde se encontra edificada a habitação vendida ao pai em 1946, tendo para o efeito alegado, junto da Conservatória do Registo Predial de Gondomar, que o terreno se encontra omisso, o que não corresponde à verdade, porquanto o mesmo se encontrava já descrito sob o n.º ...92/20120531. Desta feita e reiterando que nunca os antecessores dos autores e/ou os próprios venderam à ré ou a qualquer outra pessoa o terreno em causa, não tem a ré esta qualquer título que legitime o direito de propriedade que indevidamente registou.
Citada, veio a ré contestar, pugnando pela improcedência da ação. Assim, e para lá da nulidade de citação que foi oportunamente decidida e da impugnação da força probatória dos documentos juntos, alega ser falso que tenha efetuado o registo em duplicação do efetuado pelos autores, sendo que adquiriu a propriedade do respetivo prédio urbano por via sucessória. Mais alega que, na sequência da aquisição e por estar o prédio omisso na Conservatória, promoveu pela sua inscrição, donde resultou o registo sob o n.º ...73/20120718 sendo, assim, única dona e legítima proprietária do prédio, abrangendo essa propriedade o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles contém. Paralelamente, e sem prejuízo da qualidade de proprietária de que se arroga, alega que os autores não juntam registo da propriedade das parcelas do Campo ... de que se arrogam proprietários e não o fazem porque não o são, desconhecendo-se quais os limites das aludidas parcelas, sendo que os documentos juntos, apesar de maioritariamente ilegíveis e através dos quais se fizeram anotações com pouca precisão, revelam que o Campo ... veio a ser sucessivamente parcelado, não resultando dos mesmos que os autores tenham adquirido o prédio urbano que se encontra inscrito a favor da ré. Assim, em suma, entende que os autores não justificam o que entende ser a falta de registo de propriedade, apresentando um trato sucessivo deturpado e que remonta a 1900, sem que se encontre identificado, em qualquer documento, o prédio de que se arrogam e sendo falso, assim, serem proprietários da parcela de terreno correspondente ao prédio da ré.
Foi realizada audiência prévia e proferido despacho saneador. Procedeu-se a julgamento e veio a ser proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, julgo a presente acção procedente e, em consequência: 1. Condeno a Ré a reconhecer os Autores como legítimos donos e proprietários da parcela de terreno com a área de 263 m2, correspondente a parte do prédio denominado “Campo ...”, sito no lugar ..., atualmente rua ..., freguesia ..., concelho de Gondomar, no qual se encontra edificada construção/ benfeitoria propriedade da Ré; 2. Declaro que a descrição n.º...73/ 20120718 é posterior à descrição n.º ...92/20120531 e está em duplicado com esta, quanto ao terreno identificado em 1; 3. Ordeno o cancelamento da inscrição de aquisição da AP. ...23, de 2012.07.18 e da descrição com o n.º ...73/20120718, registada a favor da Ré na Conservatória do Registo Predial de Gondomar quanto ao terreno identificado em 1; Mais julgo improcedente o incidente de falta de autenticidade da escritura a escritura notarial por óbito de FF. Custas da ação pela Ré, de acordo com o disposto no artigo 527 do Código de Processo Civil. Custas do incidente pela Ré, que fixo em 2 UC ìs, nos termos do disposto no artigo 7.º, n.º 4 e tabela II do Regulamento das Custas Processuais. Oportunamente e após transito: 1. proceda, ainda, ao registo da sentença, acção nos termos do disposto nos artigos 3.º n.º 1 e 8.º- B, n.º 3, al. a) do Código de Registo Predial; 2. diligencie pela devolução dos documentos relativos a recibos de pagamentos de rendas que se encontram juntos aos autos e cuja junção foi determinada em se de audiência de julgamento”.
II – Do Recurso
Inconformada, a ré veio apelar. Pretendendo a revogação da sentença, conclui:
A) Os recorridos apresentaram a ação pedindo que o tribunal lhes reconhecesse o direito de propriedade sobre o terreno pertença da recorrente, o qual integra o prédio urbano sito na rua ..., ..., mais pedindo que se conhecesse a duplicação de registos e ordenasse o cancelamento do registo de propriedade da recorrente.
B) Veio aquele pedido a ser julgado totalmente procedente pela sentença, a qual enferma de erros crassos na factualidade que considera provada e não provada por errónea apreciação da prova produzida e erro na aplicação do direito.
C) Veio o tribunal a considerar como provados factos que estão em contradição com a prova produzida, particularmente os factos 6., 13., 23., 24. e 26.
D) Explica o tribunal que formou a sua convicção no que respeita aos factos provados 6., 13., 23. e 24. pela análise do teor da cópia da escritura junta a fls. 92 e ss. e da cópia da certidão de Registo Predial de Gondomar quanto ao prédio aí descrito sob o n.º ...92/20120531 (doc. junto a fls. 241 e ss.), dizendo que o teor do primeiro se encontra vertido no segundo e, bem assim, de cópia da escritura de partilha, junta fls. 85 e ss. Contudo, analisados os documentos, só pode concluir-se que o tribunal errou na leitura e interpretação dos mesmos, bem como ignorou outros elementos probatórios que resultavam dos autos e deveriam ter sido conjugados.
E) Não poderia o tribunal assumir que o documento a fls. 92 e o documento a fls. 241 estejam relacionados, quer quanto às inscrições, quer quanto às descrições, existindo contraindícios dessa realidade, designadamente porque a escritura pública está datada de 5 de agosto de 1946 e, por sua vez, a inscrição no registo daquele prédio descrito está datada de 3 de maio de 1954; as confrontações do prédio descrito na escritura e as confrontações do prédio descrito sob o n.º ...92/20120531 não são coincidentes; a inscrição Ap. ... de maio de 1954 é referente ao prédio descrito (e não benfeitoria); a retificação por averbamento oficioso de 9 de janeiro de 2019 afeta a Ap. ... de 27 de junho de 1938 e não a Ap. ... de 31 de maio de 1954.
F) Foi errada e injustificadamente desconsiderada a informação prestada pelo Sr. Conservador, ao abrigo do disposto no artigo 436 do CPC, a qual fundamentadamente e ao contrário do que resulta da sentença, dá resposta negativa à questão: “O prédio descrito no testamento de GG legado a FF, denominado “Campo ...” corresponde (total ou parcialmente) ao prédio descrito sob o n.º ...92?”, explicando que o prédio da recorrente é substancialmente diferente do ...92, não tendo coincidência quanto aos pontos cardeais e composições, não se podendo concluir pela duplicação de registos.
G) Constatada a não correspondência entre os documentos, não poderia o tribunal dar como provado que o objeto da escritura de 1946 fosse a habitação edificada no terreno sub judice, e, consequentemente que a ré inscreveu no Registo Predial de Gondomar a habitação que o seu pai adquiriu em 1946 (facto 13 e 23 dos factos provados).
H) Mais esclarece o tribunal que se suportou no depoimento das testemunhas e das declarações de parte para identificar e localizar concretamente o terreno e encontrar correspondência com o da recorrente, quando nenhuma das testemunhas ou partes foi interveniente, presenciou ou falou com as pessoas envolvidas nos negócios jurídicos vertidos naquela escritura e que suportam inscrições nos registos analisados, tendo ainda prestado depoimentos antagónicos à interpretação que veio o tribunal a considerar. Pelo que não poderia socorrer-se de tais depoimentos para extrair o que deles não resultou.
I) Designadamente, a testemunha HH foi perentória em explicar que não tinha como conhecer de eventuais negócios jurídicos, esclareceu que tinha inclusive ideia que a benfeitoria designada por casa de oficina de carpintaria não teria sido adquirida pelo pai da recorrente (quando a escritura a fls. 92 demonstra o contrário), mais tendo afirmado que não sabia qual era a situação dos demais vizinhos na Rua ..., uma vez que se mudou para Vila Real há mais de 50 anos. Adiantou ainda que o antecessor dos recorridos esteve disponível para lhe vender o terreno onde se encontrava implantada a sua benfeitoria e que o negócio apenas não se concretizou porque a testemunha considerou o preço exagerado - GRAVAÇÃO ÁUDIO (ficheiro: 20220502141508; minutos: 09:19-11:59).
J) Veio o tribunal a distorcer aquilo que foi dito pela testemunha e a retirar daí factos que não poderiam ter sido retirados – designadamente a identificação do proprietário do Campo ... e do terreno propriedade da recorrente, a divisão de um terreno do qual não se encontra correspondência, a aquisição do que quer que seja por parte do pai da recorrente e, ainda quais os terrenos que aquele poderia ter arrendado;- e ignorando outros substanciais – designadamente a disponibilidade dos antecessores dos Recorridos para negociar os terrenos de que eram proprietários. Desta forma o tribunal a quo errou de forma clara e indiscutível na apreciação da prova.
K) Volta a errar na apreciação da prova, nomeadamente, sobre o depoimento da testemunha II - GRAVAÇÃO ÁUDIO (ficheiro: 20211014143103; minutos 03:20-4:13)- que foi beneficiada com uma doação de casa com terreno sita na rua ... antecessores dos recorridos – ou seja, em oposição com o que dispôs a testemunha JJ, que afirmou que todos os terrenos se mantiveram na propriedade dos antecessores dos Recorridos. Ora, não pode o tribunal considerar provado o ponto 26 da matéria de facto provado.
L) Não fundamentou o tribunal como formou a sua convicção quanto ao facto provado 26., incorrendo na nulidade prevista no artigo 615, n.º 1, alínea b). Contudo, dos depoimentos das testemunhas HH e II deve retirar-se que aquele facto não pode ser considerado provado, por existirem fortes indícios do contrário e, pelo que já acima se expôs, não pode o tribunal encontrar correspondência entre a propriedade da recorrente e a parcela do Campo ... de que os recorridos afirmam a propriedade dos seus antecessores.
M) Eliminados os factos 6., 13., 23., 24., e 26., da factualidade provada, já não poderia o tribunal decidir no sentido que decidiu.
N) Para formação da sua convicção, referiu o tribunal que as declarações da recorrente foram um acrescento à sua falta de razão, descredibilizando as mesmas, pese embora não fundamente tal conclusão - incorrendo na nulidade prevista no artigo 615, n.º 1, b) do CPC.
O) Afirma que a recorrente referiu que “desconhecia o processo de aquisição”, “a renda que os seus pais pagavam era relativa a outro terreno, terreno esse que não identifica nem se encontra alegado nos autos”. Mais concluiu que “a Recorrente revelou completo desconhecimento quanto ao processo de registo da casa (e terreno) em seu nome, designadamente os documentos que foram necessários, tendo referido que foi o seu irmão quem tratou de tudo”, sendo notório o erro de avaliação das declarações prestadas pela recorrente e sendo falso que o tribunal não tenha compreendido onde se localizava o terreno dado de arrendamento.
P) No que ao processo de aquisição respeita, resulta das regras de experiência comum que se desconheça a quem foi comprado e em que termos a propriedade imobiliária que se encontra na família à data do nascimento de cada um, com a agravante de o comprador (pai da recorrente) ter falecido em 1978. Só se justificaria a recorrente ser informada de tais detalhes se existissem dúvidas sobre a propriedade, o que nunca existiu.
Q) Resulta ainda das suas declarações que o seu pai e a sua mãe mantinham uma relação de arrendamento que se traduzia na disponibilização da terra lavradia que se encontrava no correr da sua propriedade, junto à cancela que se encontra nas traseiras, a troco de 1€ por ano. Repetidas vezes explicou a localização do terreno arrendado, sendo que o tribunal se mostrou esclarecido, tendo inclusive apontado com uma seta no documento junto a fls. 189. a 190. e esclarecido os mandatários sobre a localização exata por já dela ter tomado conhecimento.
R) Peca o tribunal em descredibilizar a recorrente por se ter explicado apenas nesta fase, porquanto apenas pela promoção da junção de um canhoto de rendas trazido pela recorrida BB a ofício do Tribunal vem tal matéria a revelar-se pertinente. Até lá foi uma carta guardada na manga (naturalmente pela sua fragilidade).
S) Por várias vezes declarou a recorrente, nas suas declarações, oficiadas pelo tribunal, que tinha na sua posse documentos que atestavam o que dizia, não tendo o tribunal adotado a mesma conduta que adotou com a recorrida (oficiar pela junção para esclarecimento do tribunal). Desta forma, não só violou o Princípio da Igualdade processual, como ainda o Princípio do Contraditório, incorrendo em erro de julgamento.
T) No que ao processo de registo contende, pese embora o desconhecimento que o tribunal revelou sobre a tramitação do procedimento em causa, não poderia deixar de ler e analisar o documento junto a fls. 85 e ss., designadamente a escritura de partilha outorgada perante o Cartório Notarial de onde se extrai que é a Conservatória do Registo Predial de Gondomar que, confrontada com um pedido de localização de descrição predial, emite certidão de omissão do prédio, bem como o papel que a recorrente assume nesta posição, não sendo cabeça de casal e não tendo promovido pela contratação do Cartório Notarial e, nessa medida, não tendo sido responsável por se acossar com documentos.
U) O que releva para dois efeitos: não poderia o tribunal considerar provado o facto 24., por não dispor de elementos que permitam estabelecer uma correspondência entre o prédio da recorrente e o terreno parcelado do Campo ... de que os Recorridos se arrogam proprietários e, por sua vez, que não foi a recorrente quem alegou omissão alguma ou se dirigiu a Conservatória alguma para o efeito, atente-se nas seguintes passagens da GRAVAÇÃO DAS DECLARAÇÕES DE PARTE (ficheiro: 20211118094738): sobre a localização do terreno arrendado - minutos 3:09-5:03; 5:07-6:00; 23:12-24:08; 16:17-17:16; 17:25-17:54; 21:44-24:49; sobre procedimento de registo: 5:07-11:48; 21:29-24:49.
V) Relativamente à afirmação do tribunal de que a recorrente mencionou “nunca ouviu ninguém falar de pagar”, é falsa. Atente-se a toda a GRAVAÇÃO DAS DECLARAÇÕES DE PARTE (ficheiro: 20211118094738).
W) O tribunal a considerar não provado o ponto 4: “Os Autores tenham lançado mão de retificações no registo predial, tentando alterar registos de propriedade sobre o prédio identificado naquele registo, sem terem qualquer legitimidade para o efeito”; e, simultaneamente a considerar provado o facto 8, em que constata a existência da “retificação pelo Averbamento oficioso de 09 de Janeiro, com retificação da Ap. ... de 27 de Junho de 1938”, incorre em contradição absoluta, por serem factos incompatíveis. Na verdade, só poderia considerar a existência de retificações, cfr. resulta de fls. 236, errando novamente o tribunal na apreciação da prova.
X) De acordo com o teor do documento de fls. 236 e ss., deverá obrigatoriamente ser retificado o conteúdo daquele facto provado em 8., designadamente no sentido de acrescentar: Que o prédio descrito sob o n.º ...92/20120531, teve a seguinte descrição desde 1922 até 2019: prédio urbano, sito no Lugar ..., composto de casa de oficina de carpintaria com quintal e que nas menções se menciona: Fazia parte e foi destacado das benfeitorias descritas no n.º ...80; Que a Ap. ... de 27 de Junho de 1938, resulta da inscrição n.º ...89, a fls. ...v, do Livro .., do Livro de Inscrições e Transmissões e que do seu teor resulta: Inscrevo a favor de KK, mestre d’obras, casado com LL, do logar da ..., freguesia ..., a transmissão dos prédios descritos no L B9 fls. 137v e sob o n.º ...35, e benfeitorias com descrição no ...41 fls. 195, sob o n.º ..80, que lhe ficaram a pertencer; Que em 2019 aquela descrição predial foi retificada pelos recorridos, nomeadamente procedendo à alteração da inscrição Ap. ... de 1938/06/27, alterando-se por completo a composição do prédio, passando a indicar-se tratar- se apenas de benfeitorias e afetando todas as inscrições que se seguiram a 1938.
Y) Igualmente, considerou o tribunal provado o facto 14., ou seja, que se deu uma transmissão do Campo .... Incorre, uma vez mais, em claro erro de apreciação da prova. Resulta da análise do documento junto a fls. 69 e ss., que àquela data já o Campo ... era apenas composto por “... terra lavradia com duas moradas de casas e mais pertenças, situado no logar da ..., freguesia .... Confronta de nascente com o Dr. MM, poente com o caminho publico, de sul com estrada e do norte termina em ...”, informação esta que a ser ocultada leva ao estabelecimento errado do trato sucessivo.
Z) Foi completamente desconsiderada a informação prestada pela Conservatória sobre este assunto, a qual responde fundamentadamente e depois de fazer um esquema com o raciocínio que deve ser adotado nesta interpretação que não é possível estabelecer correspondência entre o Campo ... e o prédio descrito sob o n.º ...92.
AA) Igualmente, em oposição com o que resulta daquele facto provado em 14. estão os factos provados em 1., 2., 3., 5., 6., 7. e 8., os quais constatam parcelamentos anteriores à data da abertura da sucessão de GG, incorrendo na nulidade prevista no artigo 615, n.º 1, alínea c) do CPC.
BB) Não logrou o tribunal apurar quantos e quais os destacamentos efetuados do Campo ... e quais os titulares do direito de propriedade desses diversos destacamentos e parcelamento ao longo da história (desde 1890 até 2022). Assim, deveria ter considerado provado que o Campo ... foi sucessivamente parcelado e dele foram destacados diversos terrenos.
CC) Pela análise das provas mencionadas deveriam ter sido considerados não provados os seguintes factos: a delimitação e extensão do Campo ... nos diferentes marcos históricos mencionados na Petição Inicial; os titulares do direito de propriedade dos diferentes destacamentos e parcelamentos nos diferentes marcos históricos.
DD) Igualmente, não poderia ter considerado provados os factos 13., 14., 17., 18. e 19, pelos contraindícios que a prova produzida ofereceu e pela insuficiência probatória.
EE) Não logrou o tribunal apurar a delimitação do Campo ... ou dos seus parcelamentos, facto este que deveria ser indicado na factualidade não provada.
FF) Sem o conhecimento das delimitações, não consegue o tribunal extrair conclusões sobre a correspondência do prédio da recorrente com o prédio de que se arrogam proprietários os recorridos, não sendo válida a afirmação de que tal resultou do depoimento das testemunhas, as quais não eram nascidas à data dos factos ou não tinham como conhecer desses factos.
GG) O tribunal considera provado no ponto 19. que as verbas 35 e 36 que resultam das peças processuais relativas ao processo n.º 1778/08.9TBGDM juntas a fls. 76. e seguintes, haviam sido pelos recorridos alteradas. Incorreu em erro evidente na apreciação da prova, porquanto é evidente que a verba 36 não sofreu alterações.
HH) Através dos factos provados 14., 15., 16., 17., 18., 19. e 20., o tribunal convencido de que existe trato sucessivo e que os recorridos seriam os presumíveis inscritos no registo de acordo com esse trato - uma vez que a verba 35 – uma morada – passou a ter 20 moradas e por lhes ter sido atribuída, seria deles. Incorre, contudo, em erro evidente pois não poderia ser estabelecido tal trato sucessivo, desde logo porque não dispõe o tribunal de indícios de que os diversos parcelamentos e destacamentos se tivessem mantido na propriedade dos antecessores dos recorridos. Igualmente, porque a ser verdade o que alegaram naquela verba 35., aqueles prédios adicionados não têm o valor que indicaram na homologação da partilha em 2013, vindo pela socapa em 2015 alterar a verba acrescentando todos aqueles prédios e, portanto, tratar-se-ia de património por partilhar, inquinando o resultado daquela partilha, designadamente por erro no preenchimento das quotas. Esta realidade coloca em causa a legitimidade dos recorridos para figurarem como partes na presente ação.
II) O tribunal ocultou dos factos não provados um facto que resultou evidente da prova produzida e que na sua motivação e fundamentação considera: os recorridos não terem o prédio de que se arrogam proprietários e que dizem abranger o solo da propriedade da recorrente registado a seu favor - Atente-se na GRAVAÇÃO DAS DECLARAÇÕES DE PARTE DA AUTORA BB (ficheiro: 20211014145727; minutos: 9:06-11:10).
JJ) O tribunal considerou que a recorrida teria afirmado que a própria recorrente esteve
disponível para comprar o terreno, mas depois ofereceu valor inferior ao inicialmente proposto tendo acabado por registar o terreno em seu nome, dizendo que tal vem corroborado pelo documento junto a fls. 225. Ora, o documento junto a fls. 225 não está
assinado pela recorrente, a recorrente não o escreveu e presumiu-se que terá sido o seu
irmão, não se tendo determinado a que terreno se referiam naquela comunicação.
KK) Os recorridos não lograram provar o direito de propriedade de que se arrogam, sendo parcos os elementos probatórios oferecidos e suscitando diversas dúvidas.
LL) O erro na apreciação da prova inquina a factualidade dada como provada e não provada, o que consequentemente impede as conclusões jurídicas que daí se retiraram.
MM) Mas ainda que assim não fosse, sempre incorre em erro na aplicação do Direito, desde logo porque, a assumir uma correspondência entre os prédios com as descrições n.º ...92 e o prédio recorrente, resulta daquela primeira descrição que o último titular inscrito é o pai da aqui recorrente, pelo que a traçar-se um trato sucessivo daquele prédio, concluir-se-ia que o mesmo pertence aos herdeiros de NN e não de GG.
NN) É que, como se demonstrou, a retificação operada não é suficiente para alterar o conteúdo da inscrição de NN e a mesma está datada de 1954, quando a escritura que o tribunal quis relacionar está datada de 1946. Não existem indícios que permitam concluir pela existência de erro no registo.
OO) Ainda que assim não se entendesse, também não poderia o tribunal, como o fez, estabelecer o trato sucessivo até aos recorridos, ignorando que a alteração que realizaram após a partilha revela a necessidade de partilha adicional dos 19 prédios que acrescentaram, pelo que nem a sua legitimidade está assegurada para promoveram a presente ação.
PP) Ao contrário do que veio decidido, a recorrente beneficia da presunção que deriva do artigo 7.º do Código de Registo Predial, a qual não pode ser afastada com fundamento naquele trato sucessivo (que não procede, como se viu).
QQ) Socorreu-se o tribunal do AUJ de 23.02.2016, proferido no âmbito do processo 1373/06.7TBFLG.G1.S1-A, o qual vem esclarecer que: “Verificando-se uma dupla descrição, total ou parcial, do mesmo prédio, nenhum dos titulares inscritos poderá invocar a seu favor a presunção que resulta do artigo 7.º do Código de Registo Predial, devendo o conflito ser resolvido com a aplicação exclusiva dos princípios e das regras de direito substantivo, a não ser que se demonstre a fraude de quem invoca uma das presunções”. Sucede que, aquele acórdão tem por base a factualidade de que ambas as partes têm a seu favor um registo que se encontra em duplicado e é incompatível. Os recorridos não têm a seu favor nenhuma inscrição no registo que esteja em duplicado, pelo que não estão reunidos os pressupostos que permitem a aplicação daquele raciocínio.
RR) Nem os seus antecessores - EE e FF - beneficiavam de qualquer inscrição no registo.
SS) Note-se que, como se demonstrou, o registo do que pretendem os recorridos é impossível, pelo que nunca se poderá prejudicar a presunção da recorrente com tal argumento e, com isso, inverter o ónus da prova.
TT) Ao desconsiderar a presunção de que beneficia a recorrente, passou a impender sobre si a prova da titularidade do seu direito, a qual sempre está assegurada pela transmissão mortis causa. Não obstante, apenas na eventualidade de os recorridos beneficiarem de igual presunção poderia equacionar-se essa realidade.
UU) Por conseguinte, não produziram os recorridos prova bastante que permita afastar a presunção que favorece a recorrente, e, como tal, não poderia o tribunal decidir nos termos em que decidiu.
Os recorridos responderam ao recurso e sustentaram a sua improcedência e a consequente confirmação da sentença apelada. Remetendo diretamente para as conclusões apresentadas pela apelante, vieram dizer, em síntese:
C - A matéria de facto assente sob os n.ºs 6, 13, 23, 24 e 26 está conforme a prova produzida e devidamente fundamentada.
D - A análise séria dos documentos referidos impõe a conclusão a que chegou o tribunal, conclusão que não é contrariada por quaisquer outros elementos probatórios dos autos.
E - Que os documentos de fls. 92 e 241 estão relacionados resulta evidente da descrição de bens quer num quer noutro, e com especial evidência das confrontações que são rigorosamente iguais, menos de um dos lados em que confronta com a outra parte da metade que o bem transacionado e inscrito constitui.
F - A informação prestada pelo Sr. Conservador enfermava de lapso, que o tribunal demonstra, lapso que os autores invocaram logo que essa informação deu entrada nos autos, em requerimento que a ré pugnou para que fosse desentranhado.
G - Esta conclusão é consequência das duas anteriores que, como vimos, são infundadas.
H - Nenhuma das testemunhas ou parte foi, certamente, interveniente, presenciou ou falou com as pessoas envolvidas nos negócios jurídicos vertidos em escritura celebrada há 80 (oitenta) anos, mas não pode ser isso que impede que, com os documentos e os conhecimentos transmitidos aos e pelos descendentes dos intervenientes, se demonstre o que aconteceu.
I - O testemunho do Sr. HH foi particularmente esclarecedor.
K, L - Lê-se, mas custa a crer. Com efeito, ouvindo-se os depoimentos aí identificados e mesmo truncando-os, não se vê como é que deles se pode concluir que o tribunal não pode considerar provado o ponto 26.
N, O, P, Q, R, S, T, U, V – É falso que a recorrente tenha nalgum momento explicado a que terreno (diferente do em causa) se referia a renda que reconhecidamente pagava.
W - Só a consciência da sua total falta de razão permite compreender a temeridade de alegação como a feita nesta conclusão. Com efeito, em que é que o decidido sob o n.º 4 é contrariado (“contradição absoluta”) pelo provado no n.º 8?
X - A ré entende que “deverá obrigatoriamente ser retificado o conteúdo daquele facto provado em 8” porque sim, pois não fundamenta porque é que o doc. de fls. 236 não permitia ao tribunal decidir como decidiu essa parte da matéria de facto.
Y - O documento junto a fls. 69 apresenta três verbas referentes ao Campo ...: a) A verba n.º 114 com a seguinte descrição: “Campo ... com suas pertenças sito no Lugar ..., que confronta de nascente com Doutor MM, do poente com caminho público, do sul com a estrada e norte termina em .... Faz parte do descrito no livro ...1, a fls. 37 verso sob o no ..78 do qual já foram desmembrados vários terrenos”; b) A verba 115: “Duas moradas de casas térreas com poço, ramadas e mais pertenças, sitas no Lugar ..., ..., quer confronta a nascente com MM, poente com caminho público, norte e sul com terreno do casal arrendado. Descrito no livro ...5, a fls. 43 verso sob o n.º 31.771”. c) A verba 116: “Um terreno destacado do mesmo Campo ..., dado de arrendamento a OO e mulher, hoje PP, pela renda anual de seis escudos por escritura de 23 de Maio de 1890”. Assim, é grosseiramente falso o escrito nesta conclusão, pois “àquela data” o Campo ... não era já apenas composto pelo que a ré aí escreve.
Z - A opinião prestada pelo Senhor Conservador (que não informação formal e oficial da Conservatória) foi lúcida e doutamente analisada pelo tribunal recorrido.
AA - A ré procura criar confusão e aproveitar-se dela, pois, a falar de parcelamentos do Campo ..., omite que esses parcelamentos não resultam ou se destinam a vendas, mas de ou para arrendamentos e, por isso, a propriedade mantém-se, embora com diversas descrições registrais, em consequência do registo dos arrendamentos.
BB, CC, DD, EE, FF – Idem, por mais confusão que a ré tente criar, não pode seriamente dizer que “não consegue o Tribunal a quo extrair conclusões sobre a correspondência do prédio da R. com o prédio sobre que os AA. invocam a sua propriedade”.
HH - Os autores não alteraram “pela socapa” a verba 35 “acrescentando todos aqueles prédios”. Essa retificação foi requerida e ordenada por despacho do tribunal (naturalmente com a concordância dos demais intervenientes processuais). E como se pode ver da verba original e da retificação, não foram acrescentados “todos aqueles prédios”. Antes e tão só foram corretamente descritos “todos aqueles prédios” já abrangidos na verba 35. Aliás, nem podia ser de outra forma porque, de contrário, o tribunal e os demais interessados o não permitiriam.
II - O Tribunal “ocultou”! dos factos não provados o facto de os autores não terem o prédio em causa registado em seu nome, porque não faria qualquer sentido aí o inscrever, já que esse facto é o pressuposto da própria ação.
JJ, KK e LL - Toda a prova produzida nos autos foi no sentido de demonstrar a propriedade dos autores sobre o terreno em causa.
MM a VV - Está já demonstrado o infundado destas conclusões. Por isso e por respeito pelo tribunal, abstêm-se os autores de repetir o que a propósito já escreveram.
O recurso foi recebido nos termos legais e os autos correram Vistos, nada se observando que obste à apreciação do seu objeto, o qual, tendo em conta as conclusões apresentadas pela apelante, se traduz em saber se deve ser alterada a decisão relativa à matéria de facto e, por consequência dessa alteração, deve ser revogada a sentença e ainda se, independentemente dessa alteração, o tribunal não podia ter decidido como decidiu, uma vez que só a recorrente beneficia da presunção de titularidade que resulta do disposto no artigo 7.º do Código de Registo Predial (CRP).
III – Fundamentação III.I – Fundamentação de facto Das nulidades invocadas
A apelante veio impugnar a decisão relativa à matéria de facto e é nessa sede que invoca a nulidade da sentença, quer em razão de ter violado o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 615 do CPC, quer por ter violado a alínea c) do mesmo número e normativo e, por isso, importa delas conhecer, desde já. Vejamos.
Na alínea L) das suas conclusões, a apelante sustenta que o tribunal não fundamentou a sua convicção quanto ao facto provado n.º 26 [Em momento algum os antecessores dos autores e/ou os próprios autores venderam à ré ou a qualquer outra pessoa o terreno em causa] e na alínea N das mesmas conclusões refere que o tribunal entendeu, na fundamentação da sua decisão, que “as declarações da recorrente foram um acrescento à sua falta de razão”, mas igualmente sem fundamentar essa afirmação. Conclui que, num caso e no outro, a falta de fundamentação consubstancia a nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615 do CPC, onde se dispõe que a sentença é nula quando “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”. Por outro lado, agora na alínea AA) das suas conclusões, a apelante sustenta que existe oposição entre o facto provado n.º 14 [Em 24.07.1940, por testamento lavrado no Cartório Notarial de Valongo, exarado a partir de fls. 28 do livro público de testamentos público no 29, GG, no estado de viúva de QQ legou à sua irmã FF o “Campo ...”] e os factos, também dados como provados e constantes dos n.ºs 1 a 3 e 5 a 8 (que se traduzem, todos eles, em descrições de registo predial) e conclui que a sentença é nula por ter violado o disposto na alínea c) do preceito adjetivo que citámos, e que comina com nulidade a sentença cujos “fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorre alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
Salvo melhor saber, todas as invocadas nulidades são claramente inatendíveis. Importa dizer que estamos em sede da decisão relativa à matéria de facto, que a apelante, aliás, impugna. E se não vemos qualquer contradição entre descrições de registo e referência a um outro documento (testamento), sempre estaria afastada a nulidade decorrente da eventual violação do disposto na já citada alínea c), porquanto não há contradição entre a decisão final da sentença e os fundamentos em que essa decisão se alicerça. Por outro lado, a decisão de facto mostra-se fundamentada[1] e está impugnada, cabendo a este tribunal, na sua convicção e na reapreciação da prova fixar a factualidade ou mesmo, se fosse o caso, fazer uso do disposto no artigo 662, n.º 2, alínea c) do CPC. Acresce que, no caso das declarações da recorrente (e como resulta de outras e seguintes conclusões) o que apelante critica, sustentando a nulidade, é a própria fundamentação e não – inerentemente – a ausência desta.
Assim, não ocorrem as nulidades da sentença invocadas pela apelante.
Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto
Como decorre do disposto no artigo 662, n.º 1 do Código de Processo Civil (CPC), A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. O preceito, na redação dada pelo novo CPC (em contraponto, desde logo, com o artigo 712 do anterior Código de Processo Civil) clarifica e reforça os poderes da Relação[2], ou alarga e melhora esses poderes[3], impondo um dever de alteração da decisão sobre a matéria de facto, reunidos que estejam os respetivos pressupostos legais, e de acordo com a sua própria convicção[4], desde que o impugnante tenha cumprido o ónus imposto pelo artigo 640 do CPC.
O normativo acabado de referir – e além deste, dos preceitos que delimitam o objeto do recurso, ou as consequências da sua omissão (cfr. 635, n.º 4 e 641, n.º 2, alínea b), ambos do CPC) - onera o impugnante da decisão relativa à matéria de facto, porquanto o recurso, no que concerne à impugnação da decisão relativa à matéria de facto será total ou parcialmente rejeitado nas situações seguintes: “a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, al. b). b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640.º, n.º 1, al. a)). c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.). d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda. e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”[5]. Ainda assim, é entendimento largamente maioritário que relativamente ao recurso da decisão sobre a matéria de facto não existe um possível despacho de aperfeiçoamento e, como referem António Santos Abrantes Geraldes/ Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa[6], tal situação, em lugar “de autorizar uma aplicação excessivamente rigorosa da lei, deve fazer pender para uma solução que se revele proporcionada relativamente à gravidade da falha verificada”. Dito de outro modo, as exigências impostas pelo artigo 640 ao recorrente que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto devem ser entendidas sem o rigor tão excessivo que de imediato e inúmeras vezes conduziria à imediata rejeição do recurso.
O que a lei processual deixa transparecer e a jurisprudência do Supremo vinca reiteradamente é a opção por um verdadeiro duplo grau de jurisdição e a consequente prevalência da substância sobre a forma. Sem embargo – e naturalmente, até por respeito aos princípios da igualdade e da legalidade -, as imposições decorrentes do artigo 640 do CPC não podem ser letra morta e ultrapassadas ou ignoradas, como se não existissem. Aqui, como sempre deve suceder, imperará uma interpretação sensata e afastada dos extremos, sejam estes a de rejeição imediata ao primeiro e minúsculo incumprimento, seja, ao invés, a aceitação de toda e qualquer impugnação, independentemente do eventual lato incumprimento do ónus que impende sobre o impugnante.
Tenha-se presente, no entanto, que não há que reapreciar a prova quando a alteração, modificação ou a ampliação pretendida não traga, uma vez ponderadas todas as soluções jurídicas plausíveis, qualquer utilidade para a decisão da ação ou do recurso. Com efeito, e como expressamente se sumaria em recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22.06.2022 [Processo n.º 2239/20.3T8LRA.C1.S1, Relator Conselheiro Mário Belo Morgado, dgsi]: “I - Nos recursos apenas se impõe tomar posição sobre as questões que sejam processualmente pertinentes/relevantes (suscetíveis de influir na decisão da causa), nomeadamente no âmbito da matéria de facto. II – De acordo com os princípios da utilidade e pertinência a que estão sujeitos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto só é admissível se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte. III – Deste modo, o dever de reapreciação da prova por parte da Relação apenas existe no caso de o recorrente respeitar os ónus previstos no art. 640.º, n.º 1 do CPC, e, para além disso, a matéria em causa se afigurar relevante para a decisão final do litígio”.
Assim, como decorre e se acompanha, a reapreciação da decisão relativa à matéria de facto está dependente do cumprimento do ónus previsto no artigo 640 do CPC, mas não pode traduzir-se na prática de um ato inútil – e, porque inútil, proibido: artigo 130 do CPC [7] -, e assim se traduziria se os factos que se pretendem ver alterados não conduzirem a decisão de sentido diferente daquela que o tribunal de recurso adota perante os concretos factos, provados e não provados que foram fixados em primeira instância.
No caso presente, entendemos que a apelante deu cumprimento ao ónus de quem impugna a decisão relativa à matéria de facto e, por outro lado, a reapreciação da prova não se revela antecipadamente um ato inútil, atendendo à generalidade da impugnação deduzida e sem prejuízo da análise, também no que à utilidade se refere, dos concretos pontos de facto impugnados. Importa ter presente, a este propósito, que a apelante impugna alguma matéria de facto que se traduz em não mais que a transcrição dos (e a remissão para os) documentos constantes dos autos, mas também nessa parte, a consideração dos documentos, pelo menos em alguns dos casos, pode ser reapreciada, tanto mais que se mostra conjugada com a prova resultantes dos depoimentos testemunhais e das partes.
A apelante entende que que o tribunal deu como provados os factos n.ºs 6, 13, 23, 24 e 26 “em contradição com a prova produzida” e devem ser eliminados (conclusões C e M) [errando na leitura e interpretação dos documentos juntos a fls. 92 e ss., 241 e ss. e 85 e ss.[8], desconsiderando a informação prestada pelo Sr. Conservador ao abrigo do disposto no artigo 436 do CPC[9] e não encontrando fundamento nos depoimentos, designadamente, da testemunha HH[10] e da testemunha II[11]ou no depoimento da apelante, que foi desconsiderado[12]]. Entende, igualmente, que o teor do facto n.º 8 deve ser retificado, “de acordo com o teor do documento de fls. 236 e ss.”, no sentido de “acrescentar: Que o prédio descrito sob o n.º ...92/20120531, teve a seguinte descrição desde 1922 até 2019: prédio urbano, sito no Lugar ..., composto de casa de oficina de carpintaria com quintal e que nas menções se menciona: Fazia parte e foi destacado das benfeitorias descritas no n.º ...80; Que a Ap. ... de 27 de Junho de 1938, resulta da inscrição n.º ...89, a fls. ...v, do Livro .., do Livro de Inscrições e Transmissões e que do seu teor resulta: Inscrevo a favor de KK, mestre d’obras, casado com LL, do logar da ..., freguesia ..., a transmissão dos prédios descritos no L B9 fls. 137v e sob o n.º ...35, e benfeitorias com descrição no ...41 fls. 195, sob o n.º ..80, que lhe ficaram a pertencer; Que em 2019 aquela descrição predial foi retificada pelos recorridos, nomeadamente procedendo à alteração da inscrição Ap. ... de 1938/06/27, alterando-se por completo a composição do prédio, passando a indicar-se tratar-se apenas de benfeitorias e afetando todas as inscrições que se seguiram a 1938” (conclusão X) e ainda que o tribunal não devia ter considerado provados os factos n.ºs 13, 14, 17, 18 e 19 (conclusão DD), “pelos contraindícios que a prova produzida ofereceu e pela insuficiência probatória” [pois não se apurou “a delimitação do Campo ... ou dos seus parcelamentos, facto este que deveria ser indicado na factualidade não provada” e “sem o conhecimento das delimitações, não consegue o tribunal extrair conclusões sobre a correspondência do prédio da recorrente com o prédio de que se arrogam proprietários os recorridos”[13], atendendo ainda às declarações de parte da autora BB[14]].
Do que decorre, entende a apelante que o tribunal não devia ter considerado como provados ou devia ter-lhe dado outra redação (no caso do n.º 8) os seguintes factos:
“6 - Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..92/20120531, pela Ap. ...5 de 1922/03/02, a favor de GG e de QQ a aquisição de terreno.
8 - A descrição predial aludida em 7 dos factos provados[15] tem os seguintes averbamentos: a. Pela Ap. ... de 01 de Setembro de 1923, arrendamento do terreno a RR e SS, figurando como sujeito passivos QQ de Sé e GG; b. pela Ap. ... de 27 de Junho de 1938, a aquisição, por partilha, a favor de KK, casado no regime de comunhão geral com LL, figurando como sujeito passivos RR e SS; c. pela Ap. ... de 31 de Maio de 1954, a aquisição, por compra, a favor de NN, figurando como sujeito passivos KK e LL; d. Averbamento oficioso de 09 de Janeiro de 2019, com retificação da Ap. ... de 27 de Junho de 1938, com menção de “transmissão das benfeitorias”.
13 - Mais tarde, por escritura pública celebrada em 05.08.1946, KK e a esposa LL venderam ao pai da Ré, NN, a habitação edificada na parcela de terreno sub judice.
14 - Em 24.07.1940, por testamento lavrado no Cartório Notarial de Valongo, exarado a partir de fls. 28 do livro público de testamentos público n.º 29, GG, no estado de viúva de QQ legou à sua irmã FF o “Campo ...”.
17 - Em meados de 2008, a Autora BB assumiu o cargo de cabeça de casal, no processo de inventário identificado em 11 dos factos provados[16], tendo apresentado na relação de bens, na verba 35, a seguinte descrição: “Duas casas com quintal e terra lavradia, com vários terrenos arrendados, sitas no Lugar ... (rua ...), denominado Campo ..., conforme descrição na Conservatória com o n.º ..89/20080325 - ... e inscrição matricial sob o actual artigo ..91”;
18 - Já na verba 36, descreveu: “casa de rés-do-chão, na Rua ..., descrita na Conservatória com o n.º ..46/20001122- ..., inscrita na matriz sob o actual n.º ...67.”
19 - A designação das verbas n.º 35 e 36 do processo de inventário n.º 1778/08.9TBGDM foi retificada, retificação essa requerida e ordenada por despacho, passando da mesma a constar a identificação de vários números de polícia relativos a terrenos dados de arrendamento e, no que concerne à verba 35, designadamente, o seguinte: “Duas casas com quintal e terra lavradia com vários terrenos arrendados, sita no Lugar ... (rua ...), denominado Campo ..., com inscrição matricial sob o actual n.º ..91. Compreende ainda terreno(s) rústico(s) com a área global de 6.258,00m2, omisso à matriz, onde estão implantados , designadamente, os edifícios com os n.ºs de polícia ...92, ...80, ...72, ...48, ...34, ...28, ...22, ...16, ...10, ...8, ...6, ...8, ...2, ...6 e ...0, com descrição na Conservatória de Registo Predial de Gondomar, com o n.º ..89-..., onde se integram os terrenos (...) descritos na Conservatória de Registo Predial de Gondomar sob as fichas ..92 e ..97 (terreno inicialmente dado de arrendamento a RR, onde está edificada as construções com os n.ºs de polícia ...16 e ...10) (...)”
23 - A Ré inscreveu a seu favor, na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, a aquisição da parte do terreno onde se encontra edificada a habitação vendida ao seu pai em 1946,
24 - Alegou a Ré, na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, que o terreno se encontrava omisso e requereu o respetivo registo de propriedade a seu favor.
26. Em momento algum os antecessores dos Autores e/ou os próprios Autores venderam à Ré ou a qualquer outra pessoa o terreno em causa.”.
Olhando à redação dada aos factos impugnados e antes transcritos podemos constatar que o facto n.º 6 é objetivamente a remissão para uma descrição registral, o facto n.º 13 refere-se a uma escritura pública, o facto n.º 14 tem a ver com um testamento lavrado em cartório e os factos n.ºs 17 e 18 mostram-se documentados pela certidão do Inventário. Pareceria, assim, não fazer sentido impugnar a factualidade que traduz a alusão a documentos, mas, no entanto, atenta a natureza da ação e a relevância documental para a decisão da mesma e do recurso, sobre os mesmos nos pronunciaremos.
Ainda uma outra nota, com relevância para a impugnação da decisão relativa à matéria de facto: A apelante impugna o facto n.º 19 no sentido de o mesmo, erradamente, fazer referência à verba n.º 36, quando só à verba n.º 35 se deveria referir e, por outro lado, afirma na sua conclusão II que o tribunal ocultou dos factos não provados “os recorridos não terem o prédio de que se arrogam proprietários”. Ora, relativamente à primeira questão (facto n.º 19) os documentos juntos aos autos esclarecem qual a verba ou verbas do inventário que foi retificada; quanto à segunda questão (e presumindo que se pretenderia dizer que os recorridos não provaram não terem...) parece-nos evidente que o tribunal não tinha nem devia dar como provado ou não provado o verdadeiro objeto da ação (propriedade do terreno), o qual, para que sentenciado, carece da aplicação do Direito.
Feitas as considerações precedentes e antes de prosseguirmos, atendamos à fundamentação do tribunal recorrido relativa à factualidade que considerou, a qual, com alguma síntese e atendendo especialmente à matéria factual impugnada, transcrevemos e sublinhamos: “(...) desde já se consigna que, analisada a prova produzida como um todo e pese embora as dificuldades inerentes ao estabelecimento do trato sucessivo desde data anterior a 1900, ficou o Tribunal convencido da propriedade quanto à parcela de terreno em questão nos autos. No que concerne aos factos que resultaram provados de 1 a 25, socorreu-se o Tribunal em primeira linha do teor dos documentos juntos aos autos e nos seguintes termos: (...) - Factos 6, 7, 8 e 12 - resulta da análise da cópia de certidão da conservatória de Registo Predial de Gondomar quanto ao prédio aí descrito sob o n.º ...92/20120531, junta a fls. 236 e seguintes; (...) - Facto 13 – resulta da análise de cópia de escritura junta a fls. 92, cujo teor se encontra vertido, por sua vez, na cópia de certidão da conservatória de Registo Predial de Gondomar quanto ao prédio aí descrito sob o n.º ...92/20120531, junta a fls. 236 e seguintes; - Facto 14 - Teve o Tribunal em consideração o teor de cópia de testamento, junta a fls. 69 e seguintes; (...)
- Factos 16 a 21 - teve o Tribunal em consideração cópia de peças do processo que 1778/08.9 TBGDM, que correu termos no presente Tribunal, juntas as fls. 76 e seguintes e confrontação com os próprios autos que pendem no presente Tribunal; - Factos 22 a 24 - resulta da análise da cópia de certidão da conservatória de Registo Predial de Gondomar quanto ao prédio aí descrito sob o n.º ...92/20120531, junta a fls. 241[17] e seguintes e cópia de escritura de partilha, junta a fls. 85 e seguintes.*
No que concerne aos documentos, pese embora a alegada “falsa força probatória dos mesmos” e subsequente impugnação em sede de contestação, compulsados os autos, designadamente a audiência prévia que teve lugar a 7 de Junho de 2019, temos que foram juntas novas cópias e ordenada a transcrição de documentos considerados ilegíveis, bem como junção de certidão original de outros. Nesse seguimento, manteve a Ré a posição inicialmente assumida e, quanto ao documento junto a fls. 163 arguiu a falsidade de documento “autêntico”. Quanto aos demais documentos, tendo sido juntas as respectivas certidões e versões dactilografadas e tendo sido o respectivo teor corroborado pela prova que se produziu em sede de audiência de julgamento, é aos mesmos atribuída credibilidade, nos termos do disposto nos artigos 368.º, 371.º e 383.º, todos do código civil e sendo que, com excepção da já aludida arguição de falsidade, nada foi em concreto e de forma específica alegado. No que concerne ao documento junto a fls. 163, trata-se de certidão de habilitação notarial por óbito de FF, a qual consubstancia, nos termos do disposto no artigo 369.º, do Código de Processo Civil, documento autêntico, em virtude de ter sido exarado por oficial público (...) A presunção de autenticidade pode, assim, ser ilidida mediante prova em contrário, bem como pode ser excluída oficiosamente pelo tribunal quando manifesta pelos sinais exteriores do documento a sua falta de autenticidade; em caso de dúvida, pode ser ouvida a autoridade ou oficial público a quem o documento é atribuído. A Ré não requereu qualquer meio de prova (...) pese embora se constate que, de facto, o texto da escritura em apreço não se situa no topo da respectiva folha, a qual se encontra em branco, do teor da mesma não resulta qualquer rasura ou rectificação. Acresce que, o teor da escritura foi corroborado pela prova que se produziu em sede de audiência de julgamento, designadamente as declarações de parte da Autora que, de forma serena e contextualizada, descreveu a história familiar que a precedeu. Assim sendo e aqui chegados temos que não foi produzida prova capaz de ilidir a presunção de autenticidade da escritura notarial por óbito de FF (não tendo, de resto, sido requerida qualquer prova nesse sentido) e, sem prejuízo de, pelos motivos constantes dos autos, não ter sido possível ouvir o notário a quem o documento é atribuído, não há quaisquer sinais exteriores do documento que levem o Tribunal a concluir pela falta de autenticidade pelo que, não se nos suscitando dúvidas quanto à mesma, é à certidão em apreço atribuída força probatória plena, nos termos do disposto no artigo 371.º do Código Civil. *
Sem prejuízo do teor dos documentos supra assinalados e das consequências substantivas que o Tribunal retirará quanto aos mesmos, como formou o Tribunal a sua convicção quanto à identificação concreta e localização do terreno, designadamente quanto à circunstância de o terreno inscrito pela Ré na Conservatória do Registo Predial de Gondomar se encontrar já englobado na descrição na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..92/20120531 e, assim, situar-se este na rua ...? Aqui chegado, socorreu-se o Tribunal das declarações de parte e prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento e uma vez que, da descrição na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..92/20120531, cuja primeira Ap. remonta a 1922, apenas consta que o prédio é sito no Lugar ... e que fazia parte e foi destacado das benfeitorias descritas no n.º ...80. Assim:
A testemunha JJ (...) começou por referir que conhece os terrenos em questão, que se situam hoje na Rua ... (era a rua toda) e que eram todos da sua avó, recordando-se, inclusivamente, de ir com a avó receber rendas, mais tendo esclarecido que a propriedade era dos terrenos (e não das casas que aí foram sendo implantadas), sendo que, em sede de partilhas, foram para o irmão (falecido marido e pai dos Autores) e que nunca foram vendidos terrenos nenhuns. Quanto à localização do terreno em apreço nos autos, referiu, sem certeza, que pensa “tratar-se do número pegado a um Sr. HH”.
A testemunha II, auxiliar de educação aposentada, foi empregada dos sogros e avós dos Autores, prestou o seu depoimento sem revelar qualquer interesse no desfecho da lide. Esta testemunha, pesa embora não tenha, naturalmente, conhecimento directo quanto a documentação (escrituras públicas, arrendamentos etc), foi peremptória ao afirmar que o “Campo ...”, que identificou como correspondendo actualmente à Rua ... “era tudo dos meus patrões”, tendo inclusivamente entregue recibos de rendas relativos aos terrenos e sendo que referiu que os patrões lhe deram um terreno e uma casa “nesse correr”. Quanto ao terreno em apreço nos autos, identificou como sendo onde morava o “Sr. NN, ao lado do Sr. HH”, sendo que às vezes iam juntos pagar a renda (...) pese embora não tenha a testemunha conhecimento directo dos documentos ou negócios que quanto aos terrenos e/ou benfeitorias nos mesmos foram feitas, resultou claro que situava o original “Campo ...” na actual Rua ..., mais tendo identificado os moradores dos n.ºs de polícia em apreço nos autos e revelado conhecimento directo quanto a factos relativos ao arrendamento dos terrenos, como o pagamento de rendas.
A testemunha TT, solicitador, prestou o seu depoimento alicerçado em pesquisas que havia feito para os Autores (...)
A Autora BB (...) relatou, detalhadamente, o trato sucessivo relativo ao “Campo ...” tendo esclarecido como lhe adveio o terreno em apreço nos autos, de forma coincidente com a constante dos documentos juntos aos autos e já aludidos pelo Tribunal. Esclareceu também que o terreno em apreço constituiu, inicialmente, um só lote, com cerca de 550m2, tendo sido depois dividido em 2 e vendidas as respectivas benfeitorias, uma parte pertence hoje ao Sr. HH (já lhe vendeu o terreno), as outras foram vendidas ao Sr. NN. Referiu que o Sr. NN (pai da Ré) pagava as rendas, tendo a própria Ré chegado a pagar-lhe rendas, sendo que após as partilhas enviou cartas a todos os arrendatários e que a própria Ré esteve disponível para comprar o terreno, mas depois ofereceu valor inferior ao inicialmente proposto tendo acabado por registar o terreno em seu nome, o que sucedeu após comunicação de aumento de rendas, o que é corroborado pelo documento junto a fls. 225 dos autos. Fluiu, ainda, das declarações da Autora (e da posição assumida nos autos) que nunca vendeu à Ré ou ao pai o terreno em litígio.
A Ré AA, escriturária, prestou as suas declarações de forma truncada, confusa e opaca, não tendo o Tribunal conseguido atribui-lhe qualquer credibilidade. Assim, a Ré começa por referir que nasceu e viveu na casa sita à Rua ... até aos seus 35 anos, casa que descreveu como sendo independente e com quintal e que, segundo referiu, sempre foi dos seus pais com o terreno, tendo referido que a renda que os pais pagavam era relativa a outro terreno, terreno esse que não identificou nem se encontra alegado nos autos. Quanto à propriedade da casa e respectivo terreno, referiu desconhecer como foi o alegado processo de aquisição (como compraram os pais, a quem comparam etc), revelando completo desconhecimento quanto ao processo de registo da casa (e terreno) em seu nome, designadamente os documentos que foram necessários, tendo referido que foi o irmão quem tratou de tudo. Quanto às rendas do terreno, referiu que “nunca ouviu ninguém falar de pagar”, contudo, confrontada com recibo que se encontra junto aos auto a fls. 227 e de onde consta a sua assinatura, a identificação da emissão a favor de “herdeiros de EE e de Autora GG” e relativo a “renda anual do terreno sito na rua ..., ...” (negrito e sublinhado nossos), referiu, uma vez mais, tratar-se do tal outro terreno cuja existência o Tribunal desconhece e pese embora a identificação clara e expressa constante do recibo. Por fim, quanto ao vizinho do lado, limitou-se a Ré a referir que não tinha convivência com ele. HH, testemunha cujo depoimento foi ordenado pelo Tribunal revelou-se como sendo pertinente e esclarecedora (...) foi especialmente pertinente na medida em que, de acordo com a prova que nas sessões anteriores se havia produzido, era o vizinho do lado do terreno em apreço nos autos, o que se confirmou. A testemunha começou por identificar a Autora como sendo “a dona”, sendo que o dono inicialmente era o sogro, tendo esclarecido que a sua casa fica situada na Rua ..., tendo já adquirido o terreno aos Autores e uma vez que a casa já tinha comprado há muito tempo. Foi claro ao referir que quando comprou a casa (benfeitorias) sabia que apenas comprava a construção e que o terreno não fazia parte, pagando uma renda de cerca de 100$00, que depois foi actualizada para 200$00, o que era transversal quase na rua toda. Identificou, por sua vez, a Ré como sendo filha do antigo dono, Sr. NN, de quem era amigo e que foi quem arranjou à testemunha o negócio de compra da sua casa. Esclareceu a história relativa à divisão da parcela inicial do terreno e, pese embora não tenha naturalmente conhecimento directo de eventuais negócios que possam ter existido entre o seu vizinho e os proprietários do Campo ..., a convicção que tem é a de que a situação deste era igual à sua e, de resto, de quase toda a rua (...) *
No que concerne à configuração do terreno, pese embora a ausência de elementos da
certidão da Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..92/20120531 quanto à área, tendo concluído que se trata do terreno sito rua ..., ..., temos o arbitramento que foi determinado nos autos, de onde resulta a área do prédio (...) do arbitramento resulta outro elemento instrumental pertinente. Assim, conforme resulta da motivação que antecede, o terreno correspondia inicialmente a uma parcela que foi divida em duas, tendo uma dado origem ao prédio hoje pertença da testemunha HH e a outra ao terreno em litígio. Conforme resulta dos factos provados, por escritura pública celebrada a 2.12.1990, no cartório de Gondomar, celebrada entre UU e VV e RR e esposa, SS, declararam os primeiros, na qualidade de proprietários, que “entre os bens de raiz que a ella mulher foram doados para casamento por seu pae RR (...) se comprehende um campo denominado de ...: que pela presente dão de arrendamento aos segundos outorgantes uma porção de terreno d ìaquele campo, medindo em largura tanto na cabeça do nascente como na do ponte onze metros por todo o comprimento e fica a confrontar de nascente com Dona WW, do poente com caminho publico, do sul com terra arrendada a XX e do norte com terra do mesmo campo. (...)” Tal descrição correspondia à parcela de terreno inicial, sendo que o Tribunal interpreta tal descrição do terreno como significando que o terreno em apreço mede 11 metros em cada uma das extremidades (nascente e poente), o que equivale a dizer que se trata de um retângulo com largura constante de 11 metros e não que os aludidos 11 metros se refiram ao comprimento do terreno. Ora, conforme resulta do arbitramento, a parcela em questão corresponde a um retângulo e tem cerca de 5 metros de largura, pelo que daqui se retira mais um elemento que fortaleceu a convicção quanto à identificação e trato sucessivo da parcela de terreno, já que cerca de 5 metros correspondem a cerca de metade 11 metros, que era a largura do terreno inicial, que foi dividido em dois. Referir, ainda, que não foi, naturalmente, desconsiderado o documento junto pelos Réus[18] fls. 225 dos autos e que, pese embora o invocado pela Ré, foi admitido (...) apesar de ter a Ré alegado que desconhece a comunicação constante de tal missiva, nomeadamente quanto ao seu objecto, foi anexa à mesma uma fotocópia relativa a recibo de pagamento de renda (...) e da missiva consta, expressamente, que a mesma se destina a enviar cópia do aludido recibo, bem como declaração de que “quanto a possível compra do terreno, para já não posso decidir, uma vez que a minha mãe ainda à viva e tenho mais irmãos”. Cumpre relembrar que sem prejuízo da descrição que a Ré efectuou em seu nome junto da Conservatória Predial (e cujas consequências jurídicas o Tribunal oportunamente retirará), não foi alegado em sede de contestação qualquer trato sucessivo relativamente ao prédio para lá de que a Ré havia adquirido o mesmo por partilha. Por outro lado, em sede de declarações de parte da Ré, declarou esta desconhecer de que forma haviam os seus pais adquirido o terreno em causa, mas que o mesmo, bem como a casa, sempre havia sido deles. Ora, não se entende como poderia a Ré desconhecer como haviam os pais adquirido o terreno em apreço (“que sempre fora deles”) e, por outro lado, em 2005, enviar o seu irmão à Autora comprovativo de pagamento de renda (assinado pela Ré), e dizer que não se podia, ainda, pronunciar quanto a eventual compra do terreno. Note-se, ainda, que das declarações da Ré não fluiu qualquer animosidade relativamente ao irmão (antes pelo contrário), sendo que declarou, de resto, que foi este quem tratou dos registos, fundamento para que alegasse desconhecer quais os documentos e elementos utilizados para o efeito.(...)”.
Ainda que da transcrição antecedente resulte já, com clareza bastante, o conteúdo dos depoimentos testemunhais e de parte, cumpre deixar expresso o apontamento que a propósito dos mesmos retirámos, e ainda que com alguma síntese. Assim:
JJ, nascida em 1944, cunhada e tia dos autores [Ficheiro 20211014142243]. Conhece os terrenos da rua, que foram todos da sua avó e onde chegou a ir com ela receber rendas e chegou a passar recibos. Eram rendas das casas que lá havia, mas os terrenos é que eram dos avós. Não sabe os números, mas era toda a rua e “ia até ao fundo”, os terrenos onde foram feitas as casas. Do n.º ...10 da Rua ...? Não se lembra dos nomes, havia um RR e um NN. O terreno foi para o irmão, marido da BB, e nunca venderam, nem “mexeram nisso” (min. 6,00). Não sabe localizar o n.º ...10 ou a D. AA, que pensa ser ao pé do HH, e este comprou uma casa lá, “mas não sei” (7,20). II. Viúva e aposentada. Conhece os autores por ter sido empregada dos avós FF e EE [Ficheiro 20211014143103]. Foi empregada dos sogros da BB e avós dos restantes. Chegou a entregar recibos dos terrenos a caseiros situados na Rua ..., que era o Campo ..., e era todo dos seus patrões, herança da patroa, em casa de quem esteve 30 anos, desde os seus 12 anos de idade (min. 4,30). A casa ...10?... Iam lá vários pagar, ia lá um senhor de idade com o senhor HH, que morava ao lado... estavam todos em terrenos que eram dos seus patrões. De AA não se lembra (6,00). TT. Solicitador. Conhece os autores por serem seus clientes há cerca de 20 anos [Ficheiro 202110141443735]. Promoveu alguns registos dos autores, e daí o seu conhecimento. Entende que a propriedade em causa é da D. BB e dos filhos, porque adjudicada em inventário, sendo aquela a única herdeira da mãe, e a mãe [era proprietária] por legado da irmã e, tal como conhece está na família YY há 143 anos. Não sabe o número da porta em causa, mas nasceu perto, só que já só recorda daquilo com casas. Nunca tomou conhecimento de qualquer divergência sobre os terrenos. Houve intenção de vender todos os terrenos onde estavam benfeitorias e enviou cartas para quem tinha as casas. Não recorda o n.º ...10, mas a propriedade era de toda a rua (min. 9,00). Houve terrenos que foram vendidos. Sabe que agora está em nome da ré a benfeitoria e o terreno (15,00).
Autora BB [Ficheiro 20211014145727, 20211014152118 e 20211014153014]. O Campo ..., que tinha à volta de 6.000 e tal m2 é hoje a Rua .... Chegou a si pela herança do seu marido, primeiro dos ZZ e depois de GG, tia avó sem filhos, que deixou à FF e depois à sua sogra, também AAA, e veio a calhar ao seu marido. A depoente, nos últimos anos, andou “a descodificar estes arrendamentos e outros”, o sogro tinha cerca de 60 (min. 5,00). O terreno foi sendo fracionado e dado de arrendamento o solo, para benfeitorias, não havia então loteamentos. Os sogros, e mais para trás deles, só arrendavam o solo. Construíam lá e pagavam uma renda, antes, e depois com os sogros. Nos bens da GG no inventário já ela fala de arrendamentos, havia uma arrendamento de 1880 e tal. O n.º ...10 sabe onde fica. Foi cabeça de casal entre 2005 e 2013, mas entre os herdeiros decidiram não fazer nada, que as rendas eram baixinhas. Na partilha calhou-lhe o campo, a Rua ... e, a partir daí “virou-se para estes casos”. O Campo está fracionado com benfeitorias, que não são suas, e não pode registar o todo, salvo se unir o todo, mas inicialmente estava registado o Campo. Agora está registada a parcela [em causa], mas fraudulentamente, a depoente nunca a registou porque não o podia fazer legalmente (11,20). O KK era o filho do primeiro arrendatário “do lote”, RR, que consta do arrendamento, mas hoje são “dois lotes e antes era um maior. O filho, ou o pai, venderam metade do arrendamento a um tal BBB, que vendeu a um HH, pessoa que a depoente conhece e a quem já vendeu [o terreno]. A outra metade, o KK vendeu ao NN em 1946, cedendo meio arrendamento. O NN pagou renda... “tenho aqui vários recibos passados ao senhor NN” (15,00)[19]
Inclusivamente, a si a senhora AA [ré] e a mãe desta fizeram depósitos, embora nunca os tenha feito a si o senhor NN. Depois do inventário, todos os arrendatários foram contactados por carta, isso em 2013, para “resolver o assunto”, mas houve pouco interesse, porque a renda era baixa. A ré telefonou-lhe a dizer que dava dez mil euros, mas depois disse que só dava três mil e quinhentos, e mandou, então, o depósito da renda – 1 € - vencida em agosto de cada ano. Depois disso nunca mais pagou e mais tarde a depoente teve conhecimento que tinha o terreno em nome dela, o que anteriormente desconhecia (min. 5,30).
O arrendamento inicial era um só terreno, mas depois foi dividido em dois. As duas casas têm 11 metros de frente, mas o terreno um tamanho maior que as casas. O documento de fls. 146 refere o Lugar ..., mas isso era onde eles [proprietários] moravam. Quanto ao documento n.º 10 e à verba n.º 35, a partilha tem bastantes verbas e foi preciso aclarar relativamente a essa verba, porque originalmente o Campo tinha duas casas e depois teve arrendamentos (min. 10,30). Há duas “Auroras”, a mãe e a filha e o marido da FF a que se refere o documento n.º 11 é o pai da sua sogra (13,00).
Ré AA, nascida em 1961 [Ficheiro 20211118094738]. Chegou a viver lá, no n.º ...10 da Rua ..., local onde viviam os pais, e até aos seus 35 anos. Trata-se de uma casa independente, mas a rua tem casas “de cima a baixo”. Foi sempre a casa dos seus pais e com o terreno. A renda que pagavam era de um outro terreno, atrás do quintal e que, na construção de um prédio deitaram [outrem] abaixo. O pai morreu em 1978, mas nunca pagaram renda da casa. Nunca, os pais, lhe referiram como compraram a casa. Foi a mãe quem fez o registo e, quando passou para o seu nome, registou a depoente?... Não “nunca foi fazer”[20]... sim, “fui descrever o imóvel, sim” (min. 8,30). Documentos que levou para o registo?...Foi o irmão “que levou umas coisas”, foi o irmão quem tratou; não faz a mínima ideia dos documentos que levaram, “não se lembra” (10,00)[21]. Para registar... não recorda. Acha que não foram os pais que construíam a casa, nunca houve conversas sobre a casa e o terreno. As outras casas são alugadas, mas “nunca ouviu de pagarem rendas”, só agora é que ouviu falar “que o terreno não é delas”. CCC é o seu irmão, mas acha que não é a assinatura [dele][22] e a renda... em 2013, “é relativamente ao quintal”, não pagava renda quanto à casa (17,30), o terreno que pagava rendas deitaram-no abaixo em 2011. Pagou renda em 2013, mas porque a mãe lhe pediu e fez isso pela mãe. Não faz ideia sobre as área registadas inicialmente e em 2018. Não tinha muita convivência com o vizinho e não tinha conhecimento que as [outras] casas todas pagavam renda. Passou os bens da mãe para si “num cartório” (22,00). HH. Conhece a autora por ter feito negócio com ela e a ré “é a vizinha do lado direito” [Ficheiro 20220502141508]. A D. BB era a dona do terreno e antes era o sogro dela. Era a Rua .... Comprou-lhe o terreno onde estava a benfeitoria e a casa comprou ao BBB, e quando a comprou sabia que o terreno não fazia parte e pagava 100$00 de renda ao dono do terreno e depois passou a 200$00. Aquela rua era quase toda assim e uns pagavam em dinheiro e outros em cereais ou no valor destes. A AA era filha do NN e irmã do CCC, conheceu-a de nova (min. 6,00). Deixou de pagar ao BBB, da casa, mas pagava ao EE, do terreno. Pagou muito tempo IMI do terreno que nem era seu, 500 e tal m2, pagava do seu e do da AA. O NN falava que pagava renda ao EE e é essa a sua ideia, mas não sabe se comprou a casa, as benfeitorias, ouviu falar que era de um DDD, não sabe se compraram. Foi há 3 ou 4 anos que comprou o terreno à D. BB, embora tenha chegado a propor ao EE comprar, mas o valor era um pouco exorbitante há 40 anos e pela renda não compensava (12,00). O NN morreu há muitos anos, a mulher há menos tempo... não “recordo o esquema, o sistema era o mesmo do meu”. Houve um processo em tribunal consigo, não havia acordo sobre o valor, mas “paguei e liguei à terra, foi o advogado que tratou e chegaram a acordo”. A renda era anual e nunca viu pagamentos dos vizinhos. Propriedade [do terreno] era dele [NN]? “Acho que não, o meu não era e o dele era?!”.
Ainda que tendo presente que a solução da ação e do recurso se não bastam com os depoimentos, das partes e testemunhais, havendo que ter em atenção os diversos documentos juntos aos autos, importa dizer de imediato que a apelante carece de razão quando imputa ao tribunal uma errada apreciação daquela prova. Efetivamente, atendendo apenas à mesma prova, é claro que resultam duas verdades – processuais, naturalmente – relevantes: o depoimento da ré (e não está em equação, por ora, a questão registral) é confuso, algo incompreensível e foi corretamente desvalorizado pelo tribunal recorrido: a ré não sabe dizer se e como os pais compraram a casa e em que medida ela incluía o terreno onde estava implantada, não sabe como foi feito o registo e não explica o pagamento das rendas, nomeadamente em 2013, que imputa a um terreno desaparecido dois anos antes. Não conheceu a situação dos vizinhos, embora tenha vivido na casa até aos seus 35 anos. Por outro lado, a generalidade dos demais depoimentos mostram-se coerentes e conformes com o alegado pelos demandantes, desde logo o depoimento prestado pela autora, já que é pormenorizado e coerente e, em especial, o depoimento de HH, vizinho dos pais da ré e desta, o qual explicou a sua situação com toda a clareza e concluiu, muito coerentemente, que seria semelhante à situação do senhor NN, pai da autora. Sem necessidade de outras considerações podemos dizer que da prova testemunhal e dos depoimentos (estes pela sua concretização e coerência ou pela falta delas) resultará que a casa (benfeitoria) onde a ré habitou estava implantada em terreno alheio, uma parcela do mais vasto Campo ... e também que esse terreno (parcela) era propriedade dos antecessores dos autores. Daqui, desta prova, podemos concluir que a impugnação da decisão de facto só pode improceder. Resta apurar se os documentos relevantes impõem uma conclusão diferente, o que cumpre analisar e nessa análise incluiremos a pronúncia do Sr. Conservador, pedida ao abrigo do disposto no artigo 436 do CPC.
Quanto à pronúncia aludida no final do anterior parágrafo. Por despacho de 15.04.2021 o tribunal solicitou à CRP de Gondomar “- se o prédio descrito no testamento de GG denominado “Campo ...”, situado no Lugar ..., legado a FF corresponde (total ou parcialmente) ao prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, freguesia ... sob o n.º ..92/20120531 (envie cópia do testamento de fls. 69 a fls. fls. 73); - se as benfeitorias descritas na Ap. ... de 1954/05/31, cujo facto aquisitivo (compra) se encontra inscrito a favor de NN do prédio descrito sob o n.º ...92/20120531, adquiridas a KK e LL descritas pela Ap. ... de 1938/06/27, de acordo com o averbamento oficioso de 2019/01/09 correspondem ao urbano (casa de habitação) descrito na CRP de Gondomar, freguesia ... sob o n.º ...18”[23]. A resposta (Informação) do Sr. Conservador consta nos autos a fls. 247 e ss. A mesma faz uma abordagem jurídica às questão da duplicação de inscrições e às possíveis causas dessa duplicação, citando doutrina e jurisprudência, e responde à informação pedidas a fls. 250/252. Conclui, quanto à primeira questão colocada que o legado do Campo ..., feito por GG a FF em 1940, terra lavradia com quatro moradas de casas “não correspondem ao prédio descrito sob o n.º ..92” e, quanto à segunda pergunta: “(...) para se acolher o entendimento de que existe duplicação de descrições parece-nos forçoso admitir que a construção que consta do registo predial 10 573 devia também constar do prédio descrito sob o n.º ..92 – mas isso não sucede. Não temos os documentos legitimadores do direito do transmitente na partilha por óbito de NN e mulher EEE, a existirem, poderiam contribuir para a descoberta da verdade”.
O tribunal recorrido analisou a informação solicitada, tendo considerado o que se transcreve e sublinha: “Assim, no que concerne à primeira das questões solicitadas, concluímos desde logo que claudica a conclusão a que chegou o Sr. Conservador porquanto, em rigor e atento o objeto dos autos, o que se pretendia era a correspondência do prédio legado ao descrito na Conservatória sob o n.º ...92 e sendo que, à data da inscrição o que se adquiriu foi um terreno no qual foram ulteriormente contruídas benfeitorias. Assim, pese embora a imprecisão da certidão no que à descrição atual contende, não foi, à data, legado um prédio composto de casa de oficina de carpintaria e quintal, mas um terreno e o que se pretendia esclarecer era se o terreno legado fazia parte do “Campo ...”, questão a que o Tribunal responde afirmativamente, no seguimento da motivação que antecede, não podendo, à data do legado, ter sido transmitida qualquer construção, já que não existia. Por outro lado, contrariamente ao referido pelo Sr. Conservador, não crê o Tribunal que a alusão ao n.º ...48 do Libro B 98 se refira ao Campo ..., mas sim aos terrenos que eventualmente compunham a “Bouça Nova”, o que resulta do elemento literal de tal escritura e que é suficiente para inquinar a conclusão a que chegou. No que concerne à segunda questão colocada, não logrou o Sr. Conservador chegar a uma conclusão. De todo o modo sempre se diga que, reconhecendo as dificuldades existentes nos autos, a resposta às questões colocadas (e que se reconduzem, globalmente, às questões a decidir) sempre estava dependente da análise de todos os documentos que se encontram juntos aos autos, documentos a que o Sr. Conservador não teve acesso, reconhecendo-se, contudo, o esforço na resposta junta aos mesmos”.
Como bem refere o tribunal recorrido, a resposta à primeira questão colocada ao Sr. Conservador – e sendo certo que a resposta à segunda questão é inconclusiva – desvia-se do essencial, porquanto o que sempre esteve em causa era (apenas) o terreno legado e não a transmissão, por esse legado, de qualquer construção ou benfeitoria. E, perante esta fundamentação, a apelante, na sua conclusão F) limita-se a renovar o afirmado pelo Sr. Conservador e nenhuma razão contrária ao fundamento do tribunal veio aduzir em sede de recurso.
Relativamente aos documentos, a apelante sustenta a sua discordância sobre a interpretação conjugada feita pelo tribunal dos documentos de fls. 92 e ss. (cópia da escritura), de fls. 241 e ss. (cópia da certidão de Registo Predial de Gondomar quanto ao prédio aí descrito sob o n.º ...92/20120531) e, bem assim, no de fls. 85 e ss (cópia da escritura de partilha), concluindo, além do mais e essencialmente, que não há sobreposição de registos.
O documento de fls. 92/94 é a escritura de compra e venda celebrada em 5 de agosto de 1946, na qual é vendedor KK e mulher LL e comprador NN (pai da recorrente) e tem por objeto um prédio urbano composto de casa térrea com sótão, cave, quintal e casas de oficina de carpintaria, prédio que “constitui as benfeitorias edificadas”, ficando a cargo do comprador, nomeadamente, “as responsabilidades derivadas do arrendamento do terreno”.
O documento de fls. 241 e ss. refere-se à descrição n.º...73/ 20120718 e é o documento de fls. 237/240 que se refere à descrição n.º ...92/20120531[24]. Nesta descrição estão inscritas (inscrição de 31.05.1954) as benfeitorias (fls. 239) tituladas por NN, enquanto adquirente, sendo sujeitos passivos KK e LL. Mas o documento de fls. 241 e ss. é de toda a relevância: trata-se da descrição n.º...73/ 20120718 referente ao urbano (Rua ...), inscrito a favor da ré em 18.07.2012, tendo como causa “partilha” e sendo sujeitos passivos NN e EEE.
Por último, não a fls. 85 e ss., mas a fls. 75, encontra-se a habilitação notarial por óbito de FF, que deixou como única herdeira a filha AAA.
Dos documentos supra referidos, concretamente os de fls. 92/94, 237/240 e 241 e ss. resulta que a aquisição das benfeitorias pelo pai da ré (em 1946) foi inscrita, como benfeitoria, em 1954 e só em 2012 veio a ser feita nova descrição, com inscrição de “todo o urbano” titulado pela ré. E de toda a demais prova, acrescente-se, resulta que é a benfeitoria inscrita em 1954 que se “transforma” em benfeitoria e terreno onde se implanta em 2012.
Além da conclusão anterior, igualmente retirada e fundamentada no tribunal recorrido, os documentos que demonstram a propriedade do terreno (Campo ..., abrangendo várias parcelas) na titularidade dos antecedentes dos autores e, por sucessão, nestes, não nos suscitam quaisquer dúvidas, na medida em que a matéria de facto provada os considera expressamente e para eles remete.
Em conformidade com o que se foi deixando dito, nada vemos a alterar aos pontos de facto com os n.ºs 6, 13, 14, 17 (com a correção de o processo de inventário ser o referido no ponto de facto 16 e não no ponto de facto 11), 18, 19 (com a correção de a verba retificada ser apenas a verba n.º 35), 23, 24 e 26. Relativamente ao ponto de facto provado n.º 8 e à pretensão da apelante de o ver modificado e acrescentado, não se vê motivo para tanto, porquanto o facto n.º 8, conjugado com o facto n.º 7, já descreve as diversas inscrições registadas, sendo conclusiva e sem arrimo na demais prova a intenção de lhe dar um sentido diverso da sua literalidade o averbamento feito em 2019.
Pelas razões ditas, entendemos nada haver a alterar à matéria de facto dada como provada e não provada, sem prejuízo das correções de redação ou remissão, assim improcedendo a impugnação deduzida à respetiva decisão pela apelante. Assim:
Factos provados
1 - Encontra-se descrito, na Conservatória de Registo Predial de Gondomar, a fls. 99, do Livro ..., sob o n.º ...17 o seguinte: “Campo ..., terra lavradia com duas moradas de casas e mais pertenças, situado no logar da ..., freguesia ....
Confronta de nascente com o Dr. MM, poente com o caminho publico, de sul com estrada e do norte termina em ...”.
2 - Encontra-se descrito, na Conservatória de Registo Predial de Gondomar, a fls. 36, do Livro ..., sob o n.º ...24 o seguinte: “Inscrevo a favor de GG, casada com QQ, agricoltor, do logar da ..., freguesia ..., do Concelho de Gondomar a transmissão dos prédios descritos nos L.ºs B31 fls. 39 sob o n.º ...81, ... fls. 40v sob o n.º ...45 B76 fls. 187 sob o n.º ...62, B78 fls. 141v sob n.º ...48 deste só terreno, B104 fls. 96v sob o n.º 35434 deste só terreno e B140 fls. 99v e 100 sob n.ºs ...17 e ...18 por os ter havido no valor de trezentos quarente e cinco escudos pela partilha amigável realizada por falecimento de sues pães UU e mulher VV.”
3 - Encontra-se descrito na Conservatória de Registo Predial de Gondomar, a fls. 195, do Livro ..., sob o n.º ...80 o seguinte: “Terreno situado no logar da ..., freguesia ..., medindo em largura tanto na cabeça do nascente como na do poente onze metros por todo o comprimento. Confronta do Nascente com D. WW, no poente com caminho público, do sul com terreno arrendado a XX e do Norte com QQ. Valor venal 160$00. É parte do prédio descrito no L. B140 fls. 99v sob o n.º ...17. Ind real n.º 33 fls. 63v”.
4 - Por escritura pública celebrada a 2.12.1900, no Cartório Notarial de Gondomar, celebrada entre UU e VV e RR e esposa, SS, declararam os primeiros, na qualidade de proprietários, que “entre os bens de raiz que a ella mulher foram doados para casamento por seu pae RR (...) se comprehende um campo denominado de ...: que pela presente dão de arrendamento aos segundos outorgantes uma porção de terreno d ìaquele campo, medindo em largura tanto na cabeça do nascente como na do poente onze metros por todo o comprimento e fica a confrontar de nascente com Dona WW, do poente com caminho publico, do sul com terra arrendada a XX e do norte com terra do mesmo campo. (...) Que este contrato é pelo tempo de dezanove annos que terão princípio no dia de hoje e deverão findar em egual dia do anno de mim novecentos e dezanove”
5 - A descrição predial aludida em 3 tem, designadamente, o averbamento 8, datado de 1 de Setembro de 1923: “Inscrevo a favor de RR, que também assina RR e mulher SS, proprietários, no logar da ... freguesia ..., o arrendamento descrito no L.º B141 fl. 195 sob o n.º ...80, que lhes foi dado pelos senhorios QQ e mulher GG, proprietários no Lugar ... e freguesia ... feito pelo tempo de dezanove anos, a contar do dia 2 de Dezembro de 1919 até igual dia de 1938 (...) Escritura de arrendamento de dia 2 de Dezembro de 1900, do notário ao tempo de Gondomar, FFF. Escritura de prorrogação de arrendamento de 1 de Setembro de 1920 (...).”
6 - Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..92/20120531, pela Ap. ...5 de 1922/03/02, a favor de GG e de QQ a aquisição de terreno.
7 - Da descrição aludida em 6 dos factos provados, na sua composição, consta: “prédio urbano, sito no Lugar ..., composto de casa de oficina de carpintaria com quintal” e nas menções: “Fazia parte e foi destacado das benfeitorias descritas no n.º ...80”.
8 - A descrição predial aludida em 7 dos factos provados tem os seguintes averbamentos: a. Pela Ap. ... de 01 de Setembro de 1923, arrendamento do terreno a RR e SS, figurando como sujeito passivos QQ de Sé e GG; b. pela Ap. ... de 27 de Junho de 1938, a aquisição, por partilha, a favor de KK, casado no regime de comunhão geral com LL, figurando como sujeito passivos RR e SS;
c. pela Ap. ... de 31 de Maio de 1954, a aquisição, por compra, a favor de NN, figurando como sujeito passivos KK e LL; d. Averbamento oficioso de 9 de Janeiro de 2019, com retificação da Ap. ... de 27 de junho de 1938, com menção de “transmissão das benfeitorias”.
9 - Encontra-se inscrita na matriz, sob o artigo ...33, a favor da ré, prédio sito à rua ..., ..., Gondomar, casa de um pavimento com cinco divisões (hab), com área total do terreno 267m2.
10 - A construção aludida em 9 foi inicialmente edificada por RR e a esposa SS, na sequência da autorização que lhe foi concedida para o efeito pelo contrato de arrendamento celebrado, por escritura pública, em 2.12.1900, entre aqueles, na qualidade de arrendatários, e UU e esposa, VV, na qualidade de senhorios, no qual pode ler-se “Que os caseiros farão no terreno as edificações, benfeitorias e melhoramentos que lhes aprouver, podendo de tudo dispor livremente, ressalvando, entretanto, os senhorios o direito de opção como possuidores e proprietários do sólo” e
11 - Consta da descrição predial aludida em 3 designadamente, do averbamento 9, datado de 1 de setembro de 1923 de onde consta: “A requerimento de RR, que também assina RR, fica declarado que no terreno supra estão edificada benfeitorias, que consistem em uma casa térrea, com quintal ramadas, árvores de fruto (...).”
12 - Que a transmitiu a KK e à esposa LL.
13 - Mais tarde, por escritura pública celebrada em 5.08.1946, KK e a esposa LL venderam ao pai da ré, NN, a habitação edificada na parcela de terreno sub judice.
14 - Em 24.07.1940, por testamento lavrado no Cartório Notarial de Valongo, exarado a partir de fls. 28 do livro público de testamentos público n.º 29, GG, no estado de viúva de QQ legou à sua irmã FF o “Campo ...”.
15 - Em .../.../1967, a legatária FF faleceu, sem testamento ou outra disposição de última vontade e no estado de viúva, tendo-lhe sucedido, como única e universal herdeira a filha, AAA, casada sob o regime de comunhão geral de bens com EE.
16 - Correu termos no segundo juízo cível do Tribunal Judicial da Comarca de Gondomar, sob o n.º 1778/08.9 TBGDM, inventário judicial, realizado por óbito de EE e FF.
17 - Em meados de 2008, a autora BB assumiu o cargo de cabeça de casal no processo de inventário identificado em 16 dos factos provados, tendo apresentado na relação de bens, na verba 35, a seguinte descrição: “Duas casas com quintal e terra lavradia, com vários terrenos arrendados, sitas no Lugar ... (rua ...), denominado Campo ..., conforme descrição na Conservatória com o n.º ..89/20080325 - ... e inscrição matricial sob o actual artigo ..91”,
18 - Já na verba 36, descreveu: “casa de rés-do-chão, na Rua ..., descrita na Conservatória com o n.º ..46/20001122- ..., inscrita na matriz sob o actual n.º ...67.”
19 - A designação da verba n.º 35 do processo de inventário n.º 1778/08.9TBGDM foi retificada, retificação essa requerida e ordenada por despacho, passando da mesma a constar a identificação de vários números de polícia relativos a terrenos dados de arrendamento e, no que concerne à verba 35, designadamente, o seguinte: “Duas casas com quintal e terra lavradia com vários terrenos arrendados, sita no Lugar ... (rua ...), denominado Campo ..., com inscrição matricial sob o actual n.º ..91. Compreende ainda terreno(s) rústico(s) com a área global de 6.258,00m2, omisso à matriz, onde estão implantados, designadamente, os edifícios com os n.ºs de polícia ...92, ...80, ...72, ...48, ...34, ...28, ...22, ...16, ...10, ...8, ...6, ...8, ...2, ...6 e ...0, com descrição na Conservatória de Registo Predial de Gondomar, com o n.º ..89 - ..., onde se integram os terrenos (...) descritos na Conservatória de Registo Predial de Gondomar sob as fichas ..92 e ..97 (terreno inicialmente dado de arrendamento a RR, onde está edificada as construções com os n.ºs de polícia ...16 e ...10) (...)”
20 - No âmbito do processo de inventário identificado em 16 dos factos provados, foi adjudicado aos autores a verba 35.
21 - A retificação aludida em 19 dos factos provados ocorreu a 14.10.2015.
22 - Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...18 e inscrito na matriz sob o artigo ...33, a favor da ré, prédio urbano com área total de 263m2, sito à rua ..., ....
23 - A ré inscreveu a seu favor, na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, a aquisição da parte do terreno onde se encontra edificada a habitação vendida ao seu pai em 1946.
24 - Alegou a ré, na Conservatória do Registo Predial de Gondomar, que o terreno se encontrava omisso e requereu o respetivo registo de propriedade a seu favor.
25 - À ré foi adjudicada, por morte dos seus pais, a verba 2, correspondente a uma “casa de habitação com área total e correspondente à superfície coberta de cinquenta e um metros quadrados, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho de Gondomar, a confrontar do norte com GGG, do sul com XX, do nascente com MM e do poente com caminho (...)
26 - Em momento algum os antecessores dos autores e/ou os próprios autores venderam à ré ou a qualquer outra pessoa o terreno em causa.
Factos não provados
Não resultou provado que:
1 - A favor de EE e FF não existisse nenhum outro prédio sito na rua ... no Registo Predial (para lá dos identificados em 17 e 18 dos factos provados).
2 - Por causa que se desconhece e sem qualquer título, a autora BB alterou a verba descrita, colocando todos os números de polícia da Rua ....
3 - A retificação aludida em 19 dos factos provados foi levada a cabo sem nenhum suporte válido.
4 - Os autores tenham lançado mão de retificações no registo predial, tentando alterar os registos de propriedade sobre o prédio identificado naquele registo, sem terem qualquer legitimidade para o efeito.
III.II - Fundamentação de Direito
Mantida a factualidade apurada, ainda assim a ré sustenta que a sentença deve ser revogada, essencialmente por continuar a beneficiar da presunção do registo que a favorece. Efetivamente, com a presente ação os autores vieram reivindicar uma parcela de terreno onde – reconhecem – está implantada uma benfeitoria, propriedade da ré, mas a ré, por sua vez, defende-se afirmando ser a proprietária também do terreno revindicado, beneficiando do registo em seu nome na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...73/20120718.
Como se refere na sentença, da “circunstância de o prédio em apreço se encontrar registado a favor da Ré resulta a presunção constante do artigo 7.º do Código de Registo Predial, segundo a qual o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”. Assim é, efetivamente. Com efeito, é inerente aos direitos reais “ou, pelo menos, essencial ao exercício das suas faculdades o conhecimento por terceiros” e, quer a posse quer o registo “permitem presumir que o direito existe e pertence ao beneficiário da publicidade”, como decorre do disposto no n.º 1 do artigo 1268 do Código Civil (CC) a propósito daquela e do citado artigo 7.º do Código de Registo Predial (CRP) a respeito do registo e que se traduz, este, “num sistema organizado de divulgação da situação jurídica das coisas”[25].
Sem esquecer os efeitos do citado artigo 7.º do CRP, a sentença recorrida veio a afastar a aludida presunção, no que a ré discorda, ainda que sem ignorar que daquela presunção decorre não incumbir à ré “em princípio, fazer a prova de que o direito de propriedade efetivamente existe e lhe pertence nos termos em que o registo o define, mas aos autores fazer prova de que não existe ou de que não lhe pertence nos termos constantes do registo”.
Vejamos com mais pormenor, mas ainda que com síntese, os fundamentos da decisão que merece a discordância (independentemente da factualidade mantida) da parte da apelante. Citamos: “Cumpre ver se o terreno onde se encontra implantada a benfeitoria se encontrava já registado na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..92/20120531. Assim, temos que se encontra descrito sob o n.º ...92/20120531, pela Ap. ...5 de 1922/03/02, a favor de GG e de QQ a aquisição de terreno, constando, na identificação da sua composição, “prédio urbano, sito no Lugar ..., composto de casa de oficina de carpintaria com quintal.” Mais resultam, da aludida certidão, os seguintes averbamentos (...) O prédio não se encontra descrito a favor dos autores propriamente ditos (não resulta a sua identificação, mas apenas a de seus antecessores), mas será possível estabelecer o respetivo trato sucessivo até eles? Cremos que sim (...) Resulta, inicialmente descrito, a fls. 99, do Livro ..., sob o n.º ...17: “Campo ..., terra lavradia com duas moradas de casas e mais pertenças, situado no logar da ..., freguesia ....” Encontra-se igualmente descrito, a fls. 36, do Livro ..., sob o n.º ...24 a favor de GG, casada com QQ, a transmissão, designadamente, do prédio descrito no ... fls. 99v e 100 sob n.ºs ...17 e ...18 por o ter havido pela partilha por falecimento de seus pais UU e mulher VV.
Encontramos, assim, a primeira descrição e transmissão do prédio, a favor de GG e de QQ (...) de onde resulta a propriedade inicial do prédio aí descrito e relativo ao Campo .... Constatamos, depois, que uma parcela de terreno, que mede em largura tanto na cabeça do nascente como na do poente onze metros por todo o comprimento e que é parte do prédio descrito no L. B140 fls. 99v sob o n.º ...17 foi individualizada e averbada na conservatória, a fls. 195, do Livro ..., sob o n.º ...80 (...) Da certidão da Conservatória do Registo Predial relativa ao prédio n.º ...31 resulta que a mesma é relativa a prédio urbano, sito no Lugar ..., composto de casa de oficina de carpintaria com quintal, encontrando-se registada a favor de GG e de QQ, mais resultando que os mesmos o adquiriram por partilha de UU e VV, existindo menção a que a fazia parte e foi destacado das benfeitorias descritas no n.º ...80 a fls. 195 do .... Ora, UU e VV (proprietários iniciais do Campo ...) celebraram com RR e SS, em 1900, contrato de arrendamento relativo a porção de terreno do Campo ... (...) contrato esse que foi prorrogado em 1920.
Veio, entretanto, GG (a titular inscrita na certidão ..92/...31) a falecer e lega à sua irmã FF o “Campo ...”. Temos aqui a segunda transmissão do Campo .... Falece, por sua vez, FF tendo-lhe sucedido, como única e universal herdeira a filha, AAA, casada sob o regime de comunhão geral de bens com EE. Temos aqui a terceira transmissão. Em virtude do decesso, desta feita, de AAA e de EE, correu termos processo de inventário onde consta como verba 35, designadamente o Campo ..., com a área global de 6.258,00m2, omisso à matriz, onde estão implantados vários edifícios com os respetivos n.ºs de polícia e que integra terrenos, designadamente os descritos sob as fichas ..92 e ..97 (terreno inicialmente dado de arrendamento a RR, onde estão edificada as construções com os n.ºs de polícia ...16 e ...10) (...)”, verba essa que foi adjudicada aos autores, que assim a adquiriram, de forma derivada, por via da sucessão mortis causa. Temos aqui a quarta transmissão do Campo ....
Mas mais. Temos também que o designado Campo ... integra vários terrenos, entre os quais o descrito sob o n.º ..92, inicialmente foi dado de arrendamento a RR, onde foram construídas benfeitorias, as quais foram adquiridas, por compra, por NN, que as adquiriu, por compra, de KK, que as havia adquirido, por partilha, de RR (...) Concluímos, assim, que a parcela de terreno onde se encontram as benfeitorias adquiridas pelo pai da ré se encontrava já registada na Conservatória sob o n.º ..92, de onde resulta uma duplicação de registos[26] no que à parcela de terreno concerne”.
A conclusão antecedente, suporta-a o tribunal recorrido na demonstração de o prédio (terreno) designado por Campo ... sempre ter estado na posse dos antecessores dos autores e de a favor destes, que não (ainda) dos autores se mostrar registado e de tal campo abranger o terreno onde se mostra implantada a benfeitoria adquirida pelo pai da ré e a esta transmitida hereditariamente. Efetivamente, da prova produzida resultou essa realidade de facto, alicerçada nos depoimentos que deram conta das situações semelhantes, que relataram o pagamento de rendas e, indubitavelmente, da circunstância de a aquisição da benfeitoria pelo pai da demandada ser expressamente e só da benfeitoria, conforme resultou do contrato de compra e venda de 1946, que foi junto aos autos.
Havendo duplicação de registos, situação em que o prédio está descrito, total ou parcialmente, mais que uma vez no registo predial, a solução jurídica foi merecendo respostas dissonantes da doutrina e da jurisprudência, respostas que o Supremo Tribunal de Justiça procurou uniformizar através do AUJ 1/2007, de 23 de fevereiro, segundo o qual, e como bem se transcreve na sentença “verificando-se uma dupla descrição, total ou parcial, do mesmo prédio, nenhum dos titulares registais poderá invocar a seu favor a presunção que resulta do artigo 7.º do Código do Registo Predial, devendo o conflito ser resolvido com a aplicação exclusiva dos princípios e das regras de direito substantivo, a não ser que se demonstre a fraude de quem invoca uma das presunções”.
No entanto – e se bem vemos é neste ponto que a recorrente afirma a sua razão – embora se tenha concluído que o terreno aqui em causa se mostra registado duplamente, o que levaria ao afastamento da invocação da presunção de titularidade derivada do registo, o registo invocado pelos autores (o original, depois repetido pela ré, tal como alegam) não se encontra em nome destes, ou seja, não são os autores os titulares inscritos. Ainda assim, entende o tribunal recorrido que tal circunstância, ou seja, a titularidade do direito ser dos antecessores dos autores e não destes não é impeditiva da procedência da ação. Para tanto, refere – e citamos – que a “presunção resultante do citado artigo 7.º não é, contudo, uma presunção inilidível, permitindo a demonstração que, pese embora válido em si, o registo se reporta a factos substancialmente inválidos, o que implica o seu cancelamento” e acrescenta: “A Ré, recostando-se na presunção resultante do registo, limita-se a alegar que recebeu, por partilha, o bem que se encontra registado a seu favor. Não logrou, contudo, a Ré provar que os pais lhe tenham transmitido a propriedade do terreno onde se encontra implantada a benfeitoria, desde logo porque não se provou que tal terreno, em algum momento ou de alguma forma tenha sido transmitido ao seu pai. Veja-se que a Ré não só não alegou, como necessariamente não provou, como haviam os seus pais adquirido a propriedade do terreno tendo, ao invés, resultado de forma evidente que não o adquiriram, tendo apenas adquirido a propriedade das benfeitorias que no mesmo foram construídas e assumido a posição de arrendatários quanto àquele. Assim, sempre poderiam os Autores, desprovidos de qualquer registo, provar que, pese embora a o registo da Ré, a propriedade do terreno em apreço nos autos lhes pertence, o que lograram fazer, com a demonstração do trato sucessivo do mesmo, que culminou com a aquisição por via sucessória[27]”.
Cuidamos ser acertada a conclusão precedente. Efetivamente, o que resulta dos autos é a demonstração, pelos autores, do chamado trato sucessivo, que se impõe em sede registal (artigo 34.º do CRP), mas igualmente a demonstração da posse do terreno (distinto das benfeitorias) pelos seus antecessores. Se, por um lado, a duplicação de registos deve afirmar-se essencialmente em relação ao prédio e não necessariamente ao titular, pois o que se duplica é a descrição, por outro e afastando as regras registais por prevalência do direito substantivo, deve ter-se presente que em caso de conflito entre a presunção resultante do registo e a presunção resultante da posse é a primeira que cede, quando a posse se iniciou antes da data da inscrição registral – 1268, n.º 1 do CC.
Atendendo ao que fica dito, há que concluir pela improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida. As custas do recurso, tal como da ação, atento o decaimento, são a cargo da apelante.
IV - Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a presente apelação e, em conformidade, confirma-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Porto, 13.03.2023
Eusébio Almeida
Carlos Gil
Mendes Coelho
______________ [1] Diga-se aliás, que quanto ao ponto de facto provado n.º 26, e muito embora o tribunal recorrido enuncie a fundamentação (apenas) dos factos n.ºs 1 a 25, não deixa de se escrever, como se constatará infra e no que se refere ao depoimento da autora BB que “Fluiu, ainda, das declarações da Autora (e da posição assumida nos autos) que nunca vendeu à Ré ou ao pai o terreno em litígio”. [2] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª Edição Atualizada, Almedina, 2022, pág. 333. [3] Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2015, pág. 162. [4] Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 3.ª Edição, Almedina, 2022, pág. 577 [“Foi, assim, arredada a conceção segundo a qual a atividade cognitiva da Relação se deveria confinar, tão-somente, a um mero controlo formal da motivação/fundamentação efetuada em 1.ª instância. Porque necessariamente gravados os depoimentos prestados na audiência final (artº 155º), bem como (gravados e/ou registados os prestados antecipadamente ou por carta – artº 422º n.º 1 e 2), pode a Relação reapreciar e ponderar a prova produzida sobre a qual haja assentado a decisão impugnada, atendendo aos elementos indicados, em ordem a formar a sua própria e autónoma convicção sobre o material fáctico (resultado probatório processualmente adquirido”]. [5] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª Edição... cit., pág. 201. [6] Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição, Almedina, 2022, pág. 831, anotação 2. [7] Neste mesmo sentido, refere Carlota Spínola (O Segundo Grau de Jurisdição em Matéria de Facto no Processo Civil Português, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, pág. 44) que “o TR está eximido do exercício do dever de modificabilidade da decisão de facto nas situações de irrelevância processual que ficam, por conseguinte, excluídas de aplicação do art. 662.º Esta constatação lapalissiana baseia-se no princípio da limitação dos atos expressamente previsto no art. 130.º, enquanto manifestação dos princípios da celeridade e da economia processual, acolhidos nos arts. 2.º/1 e 6.º/12. [8] Conclusões D e E. [9] Conclusão F. [10] Conclusões H, I e J. [11] Conclusões K e L. [12] Conclusões O a S, U e V. [13] Conclusões EE e FF. [14] Conclusão II. [15] “7 - Da descrição aludida em 6 dos factos provados, na sua composição, consta: “prédio urbano, sito no Lugar ..., composto de casa de oficina de carpintaria com quintal” e nas menções: “Fazia parte e foi destacado das benfeitorias descritas no n.º ...80”. [16] “11. consta da descrição predial aludida em 3 designadamente, do averbamento 9, datado de 1 de Setembro de 1923 de onde consta: “A requerimento de RR, que também assina RR, fica declarado que no terreno supra estão edificadas benfeitorias, que consistem em uma casa térrea, com quintal ramadas, árvores de fruto (...).” O inventário é referido no ponto 16 da matéria de facto provada: “16. Correu termos no segundo juízo cível do Tribunal Judicial da Comarca de Gondomar, sob o n.º 1778/08.9 TBGDM, inventário judicial, realizado por óbito de EE e FF”. [17] Importa esclarecer, no entanto, que a descrição referida é a que consta imediatamente antes, a fls. 237/240 dos autos (matriz 2086 – parte), sendo a de fls. 241/244 a respeitante à descrição ...73/20120718 (matriz ..33 – urbana). [18] Deve-se a lapso a referência, tendo querido dizer-se “pelos autores”. [19] O tribunal analisa os documentos na posse da depoente (min. 17,00) e determina a junção [Ficheiro ... 1459] não obstante a oposição da ré [Ficheiro ... 1557], junção que confirma [Ficheiro ... 2050] esclarecendo que a junção foi determinada ao abrigo do disposto no artigo 411 do CPC, e porque aludidos no depoimento. [20] A depoente é confrontada com o registo de 2012 (min. 6,30). [21] A depoente é confrontada com o documento a que se refere a compra em 1954. [22] A depoente é confrontada com o documento junto a fls. 225. [23] Mais se escreveu, no despacho: “Esclarece-se que se impõe apurar se a casa de habitação descrita sob o n.º ...73/20120718 está implantada no prédio descrito sob o n.º ...92/20120531 (que teria sido dado (pelo menos, em parte) de arrendamento). Caso não seja possível apurar as correspondências (ou não) ora solicitadas através dos documentos em apreço, as duas certidões do Registo Predial e o testamento e, ainda os seguintes documentos de fls. 143 a fls. 147, bem como dos contratos de fls. 92 a fls. 94 e de fls. 166/167, nos termos e para os efeitos do artigo 494.º, n.º 1 do Código de Processo Civil “atestações realizadas por autoridade ou oficial público”, solicita-se que informe, no exercício das funções que lhe são cometidas para se obter a atestação ora solicitada, quais os elementos que necessitará para o efeito”. [24] Como referimos em nota anterior, há lapso na sentença entre a descrição e a fl. dos autos, lapso que a recorrente renova. [25] Henrique Sousa Antunes, Direitos Reais, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2017, págs. 75/76. [26] Sublinhado nosso. [27] Sublinhado nosso.