DIREITO DE PREFERÊNCIA
ÓNUS DA PROVA
VIABILIDADE CONSTRUTIVA
Sumário

I - O adquirente, para impedir o funcionamento do direito de preferência, ao abrigo do art. 1381º, al. b), 2ª parte, do Cód. Civil, sempre terá que alegar e provar: a) Que realizou o negócio aquisitivo com a intenção de afetar o terreno a um fim diferente da cultura; b) Que tal afetação é permitida por lei;
II – O que importa, neste caso, para afastar o direito de preferência não é a atribuição do direito de construir pelo ato de licenciamento, mas sim a demonstração de que o terreno tem viabilidade construtiva, que é apto à construção, sendo avaliada esta aptidão em função dos planos e da lei.

Texto Integral

Proc. nº 3626/20.2 T8VNG.P1
Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia – Juiz 1
Apelação
Recorrentes “A..., Unipessoal, Lda.” e “B... Lda.”
Recorridos: AA e outros, Herdeiros da Herança Indivisa de BB
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e João Ramos Lopes

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
AA, CC, DD e EE, todos residentes na Rua ..., ..., na qualidade de herdeiros da Herança Indivisa de BB, e em sua representação, intentaram a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra as rés “A..., Unipessoal, Lda.”, com sede na Rua ..., n.º ..., 4.º, Fração DC, Sala ..., Vila Nova de Gaia e “B..., Lda.”, com sede na Rua ..., n.º ..., sala ..., Vila Nova de Gaia, alegando, para tanto, que da referida herança indivisa faz parte, entre outros, o prédio rústico, denominado “...”, situado em Lugar ..., limites do de ..., campo de terra lavradia, com árvores de vinho, oliveiras e poço com engenho, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ..., inscrito na respetiva matriz predial sob o art.º ..., com a área total de 9539,5 m2 e que este prédio confina, pelo seu lado poente, com o prédio rústico vendido pela 1.ª ré à 2.ª ré.
Mais alegaram que os referidos prédios rústicos têm uma área inferior à unidade de cultura definida para aquela área territorial (Área Metropolitana do Porto) - 2,5 hectares para terreno de regadio e 4 hectares para terreno de sequeiro (cfr. Portaria n.º 219/2016, Anexo II) - e têm, e sempre tiveram, como único fim a cultura, e não outro qualquer, essencialmente, mas não só, a cultura de milho e que a 2.ª ré, adquirente do prédio inscrito sob o art.º ..., não é proprietária de qualquer prédio rústico confinante com aquele que adquiriu à 1.ª ré, pelo que estão preenchidos todos os requisitos do direito de preferência previsto no n.º 1 do art.º 1380.º do Cód. Civil.
Concluem, pedindo que:
1) - Seja reconhecido à Herança Indivisa de BB, aqui representada pelos autores o direito legal de preferência sobre a alienação do prédio rústico, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o n.º ... e inscrito na respectiva matriz sob o art.º ..., vendido pela 1.ª ré à 2.ª ré, em 20.12.2019, por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Vizela, Notária FF;
2) - Seja declarado constitutivamente que, pelo preço de 7.525,00€ a Herança Indivisa de BB, aqui representada pelos autores é a única e legítima proprietária do prédio rústico supra identificado;
3) - Sejam consideradas inválidas e/ou inexistentes todas as eventuais, transações efetuadas posteriormente a 20.1.2019, bem como ordenado o cancelamento de todos e quaisquer registos que a 2.ª ré, compradora, haja feito a seu favor em consequência da compra do supra referido prédio, designadamente o constante da inscrição decorrente da AP. ... de 2019/12/23 e de quaisquer outros registos eventuais e subsequentes, com todas as legais consequências;
4) - Seja ordenado o registo a favor da Herança Indivisa de BB, aqui representada pelos autores, do prédio rústico, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o n.º ... e inscrito na respectiva matriz sob o art.º ...;
5) - Sejam os réus condenados a entregar o referido prédio rústico à Herança Indivisa de BB, aqui representada pelos autores, livre e devoluto de pessoas e bens.
Citados, os réus contestaram, argumentando que não existe o alegado direito de preferência porque o prédio em causa, antes da alienação, estava afetado à construção, de acordo com o instrumento de regulamentação do território em vigor, ou seja destinava-se a um fim diferente da cultura, sendo manifesto que a proprietária, antes da alienação, destinou esse imóvel à construção e que, de igual forma, depois da alienação, o prédio continuou afeto exclusivamente à construção; que se verifica um abuso de direito já que os autores e o falecido BB sabiam e tinham plena convicção que o imóvel em causa tinha capacidade construtiva para aí ser implantado edifício, com o que se conformaram, pelo que, conhecendo a capacidade construtiva do imóvel, que alienaram (à 1.ª ré, que depois alienou à 2.ª ré) criaram a convicção nas rés de que o terreno em causa não era um terreno rústico, mas sim um terreno destinado à construção.
Concluíram, assim, pela improcedência da ação.
Foi proferido despacho saneador e despacho a fixar o objeto do litígio e a enunciar os temas de prova, os quais não foram objecto de reclamação.
Procedeu-se à realização da audiência de julgamento com observância do legal formalismo.
Foi proferida sentença que julgou a ação procedente e, em consequência:
1) – reconheceu aos autores, na qualidade de herdeiros de BB, o direito legal de preferência (em comum e sem determinação de parte ou direito) sobre o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o n.º ... e inscrito na respetiva matriz sob o art.º ..., vendido pela 1.ª ré à 2.ª ré, em 20/12/2019, por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Vizela, Notária FF;
2) - declarou constitutivamente que, pelo preço de 7.525,00€ (sete mil quinhentos e vinte e cinco euros), a herança indivisa de BB, representada pelos autores é a única e legítima proprietária do prédio rústico identificado na alínea precedente;
3) - considerou inválidas todas as eventuais transações efetuadas posteriormente a 20/1/2019;
4) - ordenou o cancelamento de todos e quaisquer registos que a 2.ª ré, compradora, haja feito a seu favor em consequência da compra do supra referido prédio, designadamente o constante da inscrição decorrente da AP. ... de 2019/12/23 e de quaisquer outros registos eventuais e subsequentes;
5) - ordenou o registo da presente sentença após o seu trânsito em julgado;
6) - condenou as rés a entregar o referido prédio rústico aos autores, livre e devoluto de pessoas e bens.
Inconformados com o decidido interpuseram recurso as rés que finalizaram as suas alegações com as seguintes conclusões:
I. No presente recurso quer-se que seja suprida a decisão de facto, nomeadamente ser dada como não provada a factualidade que o Tribunal a quo considerou provada e ainda a decisão de direito. Tudo conforme alegado.
II. No que tange à matéria de facto, deverá ser dado como não provado a seguinte factualidade:
a. “Os prédios rústicos em causa, são contínuos e têm, e sempre tiveram, como único fim a cultura, essencialmente, mas não só, a cultura de milho”.
b. Compulsados os depoimentos das diversas testemunhas, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo julgou incorretamente o ponto 9) dos factos provados, devendo tal factualidade ser dada como não provada, designadamente “… e têm, e sempre tiveram, como único fim a cultura, essencialmente, mas não só, a cultura de milho”.
III. Não podia o Tribunal a quo considerar e dar como provado que o referido prédio rústico tinha e, sobretudo, têm, como único fim a cultura e, em sentido contrário, dar como provado que no local foram depositados pelos Recorrentes contentores com os quais foi edificada uma construção tipo armazém.
IV. Compulsados os depoimentos das diversas testemunhas e inspeção feita ao local, e salvo o devido respeito, a sentença recorrida julgou incorretamente os factos provados, devendo tal factualidade ser dada como não provada.
V. Os factos dados como provados evidenciam que a construção que acompanhou a construção do imóvel alienado à B... foi essencial e determinante para a celebração do negócio de compra e venda.
Pelo que, conforme alegado, deverá ser dado como provado o ponto d) da matéria dada como não provada.
VI. Ficou demonstrado tanto pelo registo fotográfico efetuado na inspeção ao local como pelos depoimentos das testemunhas que no prédio rústico se encontram depositados contentares com os quais foi edificada uma construção, mais propriamente um armazém, destinado a atividade comercial de reparação de veículos automóveis.
VII. Pelas Recorrentes foi dado um destino diferente da cultura, desde as respetivas aquisições.
VIII. Os factos dados como provados, a prova documental e a inspecção ao local deixam claro que a ora Recorrente B..., não só pretendia dar ao prédio um destino diferente da cultura como efetivamente deu um fim muito diferente da cultura.
IX. Os factos dados como provados, que não o deveriam ter sido;
Os factos dados não provados que o deveriam ter sido;
Os factos provados incompatíveis com outros factos provados,
Subsumem-se na verificação da exceção ao direito de preferência previsto na segunda parte da alínea a) do artigo 1381º do CC.
X. A verificação da exceção ao direito de preferência, como se deixa alegado, importa a revogação da douta decisão proferida pelo Tribunal a quo, e a absolvição das Recorrentes dos pedidos formulados pelas Recorridos.
Pretendem assim que seja revogada a sentença recorrida e a ação julgada improcedente.
Os autores/recorridos apresentaram contra-alegações, nas quais se pronunciaram pela confirmação do decidido.
O recurso foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Cumpre então apreciar e decidir.

*
QUESTÃO PRÉVIA
As rés/recorrentes apresentaram em 6.2.2023, encontrando-se os autos já em fase de recurso neste Tribunal da Relação, o seguinte requerimento:
“(…)
Os Réus/recorrentes, nas peças processuais e nas suas alegações e conclusões, evidenciaram declarações testemunhais e documentos, designadamente o Pedido de Licenciamento de Obras de Construção:
“Processo N.º ...... – ...” que corre os seus termos na Câmara Municipal ..., para procurar demonstrar as suas verdadeiras intenções quanto ao uso que estavam a fazer do prédio objeto do exercício do direito de preferência e quanto ao destino a dar-lhe.
Aliás, como ficou bem patente nos factos dados como provados nas alíneas 12), 13), 14), 15),16), 17), 18), 19) e 20) dos factos dados como provados da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo.
A Ré, B..., Lda., foi agora notificada, no âmbito do “Pedido de Licenciamento de Obras de Construção:
“Processo N.º ...... – ...”, que corre os seus termos na Câmara Municipal ..., do despacho que defere o licenciamento das obras realizadas no prédio cujo exercício de preferência é objeto dos presentes autos, cuja cópia se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais e identifica como documento n.º 1.
Ora, considerando que, não obstante, ter sido alegado no processo e constar da matéria de facto dada como provada, que:
“14) “A 1.ª Ré apresentou, em 01/09/2017, na Câmara Municipal ... Um Pedido de Licenciamento de Contentores amovíveis e telheiro, que foi autuado como proc. ...”;
“15) “Em novembro de 2017, a 1.ª R. apresentou na Câmara Municipal ... o “Projeto de arquitetura do pedido de licenciamento de operações urbanísticas de estaleiro e contentores destinados a escritórios”
E que
16) “Em 31/08/2020, a 2.ª Ré pediu o averbamento do processo referido em 14), em seu nome, passando a estar a partir de 12-09-2020 a ser titular do mesmo;”
Os Réus/recorrentes, nas suas alegações e conclusões, consideram que os factos dados como provados nas alíneas 12), 13), 14), 16), 17), 18), 19) e 20) dos factos dados como provados, da douta sentença, deveriam ter sido bastantes para dar como não provado o disposto no n.º 9) dos factos dados como provado, ou seja:
Os prédios rústicos em causa, são contíguos e têm e sempre tiveram, como fim a cultura, essencialmente, mas não só, a cultura de milho”
E, considerando que, nas suas alegações e nas suas conclusões, os Réus/Recorrentes, alegam e concluem pela intenção, pretensão e vontade de dar ao prédio objeto do exercício do direito de preferência outro fim que não a cultura, como se pode ver da reprodução das respetivas conclusões onde tal intenção é identificada, e designadamente considerando a discordância quanto aos factos dados como não provados, designadamente, o teor da alínea d) onde o “tribunal a quo”, que considera não provado:
“d) A “construção”, que acompanhou a transmissão do imóvel alienado, á 2.º R. (B...), dele fazendo parte integrante, foi essencial e determinante para a celebração do negócio da comora e venda;”
III. Não podia o Tribunal a quo considerar e dar como provado que o referido prédio rústico tinha e, sobretudo, têm, como único fim a cultura e, em sentido contrário, dar como provado que no local foram depositados pelos Recorrentes contentores com os quais foi edificada uma construção tipo armazém.
IV. Compulsados os depoimentos das diversas testemunhas e inspeção feita ao local, e salvo o devido respeito, a sentença recorrida julgou incorretamente os factos provados, devendo tal factualidade ser dada como não provada.
V. Os factos dados como provados evidenciam que a construção que acompanhou a construção do imóvel alienado à B... foi essencial e determinante para a celebração do negócio de compra e venda.
Pelo que, conforme alegado, deverá ser dado como provado o ponto d) da matéria dada como não provada.
VI. Ficou demonstrado tanto pelo registo fotográfico efetuado na inspeção ao local como pelos depoimentos das testemunhas que no prédio rústico se encontram depositados contentores com os quais foi edificada uma construção, mais propriamente um armazém, destinado a atividade comercial de reparação de veículos automóveis.
VII. Pelas Recorrentes foi dado um destino diferente da cultura, desde as respetivas aquisições.
VIII. Os factos dados como provados, a prova documental e a inspeção ao local deixam claro que a ora Recorente B..., não só pretendia dar ao prédio um destino diferente da cultura como efetivamente deu um fim muito diferente da cultura.
Assim, considerando que o deferimento do “Pedido de Licenciamento de Obras de Construção”, vem confirmar o mérito dos argumentos da Rés e das alegações e conclusões apresentadas nos presentes autos e apenas foi comunicado à Segunda Ré, no passado dia 23 de janeiro de 2023, deverá ser admitida a junção aos autos do Deferimento do Pedido de Licenciamento de Obras de Construção, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 651º e 425º, do Código de Processo Civil.
Ora, nestes termos, a Rés requerem a junção aos autos do Oficio do Deferimento do Pedido de Licenciamento de Obras de Construção, emitido pela Câmara Municipal ..., sob o número: Processo N.º ...... – ..., bem como a mensagem electrónica através do qual o ofício foi enviado à Segunda Ré.”
Os autores/recorridos nada disseram quanto a este requerimento.
Apreciando:
Dispõe o art. 651º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil que «as partes podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância
Por seu turno, o art. 425º estabelece que «depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.»
ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., pág. 813), em anotação ao citado art. 651º, escrevem:
“No recurso de apelação, é legítimo às partes fazer acompanhar as alegações de documentos cuja apresentação não tenha sido possível até esse momento (superveniência objectiva ou subjectiva), ou quando tal apresentação apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido. A jurisprudência tem entendido, de modo uniforme, que não é admissível a junção, com a alegação de recurso, de um documento potencialmente útil à causa, mas relacionado com factos que já antes da decisão a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado.”
“No que tange à parte final do nº 1, tem-se entendido que a junção de documentos às alegações da apelação só poderá ter lugar se a decisão da 1ª instância criar, pela primeira vez, a necessidade de junção de determinado documento, quer quando a decisão se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as partes não contavam (STJ 26-9-12, 174/08, RP 8-3-18, 4208/16 e RL 8-2-18, 176/14).”
Quanto à superveniência do documento esta poderá ser objetiva quando a sua criação ocorre posteriormente a um determinado momento ou subjetiva quando o documento justificadamente só foi conhecido pelo apresentante depois desse momento.[1]
No caso “sub judice” não subsistem dúvidas quanto à superveniência objetiva dos documentos que as rés/recorrentes pretendem ver juntos aos autos, uma vez que o deferimento do pedido de licenciamento a que se reporta o proc. ... ocorreu em 23.1.2023 e nessa mesma data foi enviado à 2ª ré pela Divisão Municipal de Urbanismo da Câmara Municipal ... email comunicando-lhe esse deferimento, sendo que àquele pedido de licenciamento se referem os nºs 14, 15 e 16 da factualidade provada.
Porém, pese embora esteja demonstrada a superveniência objetiva desses documentos, atendendo, neste caso, ao momento processual em que essa junção foi requerida e àquele em que os autos se encontram, não pode esta ser deferida.
Com efeito, em fase de recurso, na qual a junção de documentos é marcadamente excecional, os documentos que o recorrente pretenda juntar têm que acompanhar as alegações, como resulta do art. 651º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, onde se estatui que “as partes apenas podem juntar documentos às alegações”, e, na presente situação, isso não se verificou.
Já os pareceres de jurisconsultos, diferentemente, como flui do nº 2 do dito art. 651º, podem ser juntos pelas partes até ao início do prazo para a elaboração do projeto de acórdão[2], mas essa solução, como se viu, não é extensível aos documentos que se queiram juntar, pois estes sempre devem acompanhar as alegações, o que não sucedeu no caso dos autos.
Deste modo, decide-se ordenar o desentranhamento dos dois documentos apresentados pelas rés/recorrentes no seu requerimento de 6.2.2023 e a sua consequente devolução às apresentantes, permanecendo, contudo, no processo o respetivo requerimento.
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APRECIAÇÃO DO RECURSO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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As questões a decidir são as seguintes:
I Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto;
II – Verificação da exceção ao direito de preferência prevista no art. 1381º, al. a), II parte, do Cód. Civil.
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É a seguinte a factualidade dada como provada na sentença recorrida:
1) Em 25/12/2018 faleceu BB;
2) Como únicos herdeiros sucederam-lhe a sua mulher, AA, e os três filhos do casal, DD, EE e CC, ora AA.;
3) Tendo sido designado como cabeça de casal da herança aberta por óbito de BB, o seu filho, CC;
4) Na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia encontra-se registada desde 11/04/2019, em comum e sem determinação de parte ou direito, a aquisição a favor dos AA. [d]o prédio rústico, denominado “...”, situado em Lugar ..., limites do de ..., campo de terra lavradia, com árvores de vinho, oliveiras e poço com engenho, descrito na mesma Conservatória sob o n.º ... e inscrito na respectiva matriz predial sob o art.º ..., com a área total de 9539,5 m2;
5) Do acervo de bens da referida herança indivisa fazem parte, entre outros, o prédio referido em 4);
6) Até à data de 20/12/2019, esteve registada a favor da 1.ª R. A..., Lda. a aquisição do prédio rústico, composto de terreno de cultura com vinte videiras, situado no lugar de ..., Freguesia ..., concelho de vila Nova de Gaia, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o n.º ... e inscrito na respetiva matriz sob o art.º ..., com a área total de 4300 m2;
7) Aquela 1.ª R. em 20.12.2019, por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Vizela, Notária FF, vendeu à R. C..., Lda. (doravante designada por 2.ª R.) o supra identificado prédio rústico pelo preço de €7.525,00 (sete mil quinhentos e vinte e cinco euros);
8) O prédio rústico identificado em 4) confronta pelo seu lado Poente com o prédio rústico referido em 6) vendido pela 1.ª R à 2.ª R.;
9) Os prédios rústicos em causa são contíguos e têm, e sempre tiveram, como único fim a cultura, essencialmente, mas não só, a cultura de milho;
10) A 2.ª R., adquirente do prédio descrito em 6), não é proprietária de qualquer prédio rústico confinante com aquele que adquiriu à 1.ª R.;
11) Os AA. depositaram o preço de €7.525,00 em 04/06/2020;
12) Em 2017, em data não anterior a Agosto, a 1.ª R. colocou no prédio referido em 6) alguns contentores;
13) Que ali continuaram – e continuam – após a aquisição do mesmo prédio pela 2.ª R.;
14) A 1.ª R apresentou em 01/09/2017 na Câmara Municipal ... um pedido de licenciamento de contentores amovíveis e telheiro, que foi autuado sob proc. n.º ...;
15) Em Novembro de 2017, a 1.ª R. apresentou na Câmara Municipal ... o “projecto de arquitectura do pedido de licenciamento de operação urbanística de estaleiro e contentores destinados a escritórios”;
16) Em 31/08/2020, a 2.ª R. pediu o averbamento do processo referido em 14) em seu nome, passando esta a partir de 11/09/2020 a ser a titular do mesmo;
17) O terreno do prédio descrito em 6), no qual existem actualmente contentores e telheiros, encontra-se, segundo o PDM, situado em Área Urbanizada em Transformação de Moradia (numa percentagem de 32,64%) e em solo rural, na categoria de Áreas Agrícolas e, cumulativamente, em Estrutura Ecológica Fundamental (numa percentagem de 67,36 %);
18) Qualquer edificação que se pretenda implementar no terreno em questão deverá salvaguardar uma correta inserção urbanística e paisagística no local, dentro dos princípios estabelecidos no ponto 1 do artigo 14º (inserção urbanística e paisagística) do Regulamento do PDM, bem como observar o cumprimento das prescrições urbanísticas referidas na presente informação e restantes normas regulamentares aplicáveis, tais como o Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação (RMUE), entre outras;
19) Sendo abrangido por RAN e REN, o processo de licenciamento de qualquer edificação que se pretenda implementar no terreno está sujeito a parecer por parte da entidade de tutela.
20) A operação urbanística referida em 14) e 15) não se encontra licenciada;
21) Em 29/12/2016, o falecido BB, a mulher (1.ª A.) e os filhos, por um lado e o agora único sócio da 1ª R. A..., GG, projectaram constituir uma sociedade, cujo objecto seria a construção civil;
22) Cujo capital social seria realizado na proporção de 50% pelo Sr. BB, dividido entre pais e filhos, e 50% pelo mencionado GG;
23) Por contrato de sociedade, celebrado em 16/01/2017, foi constituída a sociedade comercial por quotas sob a firma A..., Lda., com o capital social de €100.000,00, aqui 1ª Ré;
24) Tendo sida fixada a sede social, na Rua ..., ..., Vila Nova de Gaia, na residência de BB e mulher;
25) Por escritura de 11 de Fevereiro de 2017, BB e a 1.ª A., representados no acto por EE, venderam à 1.ª R. o prédio descrito em 6).
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Não resultaram provados outros factos com relevância para a boa decisão da causa, designadamente que:
a) A 1.ª R. jamais comunicou ou informou, por qualquer meio, a qualquer um dos AA., o projecto de venda e as cláusulas do respetivo contrato, no sentido de estes poderem exercer o seu direito legal de preferência;
b) A 1.ª R. celebrou sem qualquer conhecimento prévio dos AA., o contrato de compra e venda com a 2.ª R., nos termos e condições aí constantes;
c) Tendo os AA. conhecimento da referida venda, termos e condições, apenas no mês de abril de 2020, e após consulta da referida escritura de compra e venda;
d) A “construção” que acompanhou a transmissão do imóvel alienado à 2.ª R. (B...), dele fazendo parte integrante, foi essencial e determinante para a celebração do negócio de compra e venda;
e) Na projectada sociedade referida [em] 21) a proporção de 50% do Sr. BB no capital seria dividida em 5 quotas sociais, de igual valor, ou seja, cada no montante de €10000,00, sendo que uma dessas quotas seria titulada pelo casal ... e as restantes quatro pelos quatro filhos do casal;
f) Em consequência de desentendimentos verificados entre os quatro filhos do casal ..., a propósito da constituição da futura sociedade, o Sr. BB, decidiu que, apesar de ser o casal ... a realizar o montante correspondente a 50% do capital social da sociedade, tal quota seria titulada pelo filho EE, por ser o elemento da família que mais assiduamente acompanhava o GG na execução das obras, até aí realizadas, nos imóveis da família ...;
g) A venda referida em 25) foi efectuada com a concordância dos quatro filhos e com o objectivo de aí ser construídas instalações da sede da A...;
h) Construção essa que teve a intervenção activa do EE, inclusive com prestação de trabalho na edificação, e o conhecimento e acompanhamento de todos os membros do Casal ..., filhos incluídos;
i) Tendo inclusive o interessado CC, declarado expressamente, que o pai (BB) havia alienado tal imóvel para aí ser construído tal edifício;
j) O casal ... e seus filhos sabiam e tinham plena convicção que o imóvel em causa tinha capacidade construtiva para aí ser implantado edifício, com o que se conformaram;
k) Pelo que, conhecendo a capacidade construtiva do imóvel, que alienaram, criaram a convicção nas RR. de que o terreno em causa não era um terreno rústico, mas sim um terreno destinado à construção;
l) E que a sua qualificação como prédio rústico advinha unicamente dos documentos antigos – caderneta predial e certidão predial – que não tinham sido actualizados pelos AA. como deveriam ter sido;
m) Ou seja, os AA. sempre induziram nas RR. a certeza de que este prédio era urbano e é por isso que se compreende, e foi o que as RR. compreenderam, a declaração inserta na escritura notarial de 11.02.2017 de que “…. Foi declarado pelos vendedores que: “a presente venda não resulta fraccionamento proibido por lei, nos termos do art. 1376 do Código Civil;
n) Os RR. estavam convictos que o prédio que transmitiam mediante escritura de 11.02.2017 tinha natureza urbana, independentemente de coisa distinta e diversa constar da caderneta e certidão prediais;
o) O imóvel alienado tem capacidade construtiva e tem viabilidade legal de afectação ao concreto objectivo que as RR. lhe pretendem dar;
p) A 2.ª R. na pessoa do seu sócio, GG, participou aos AA. o seu projecto de alienação do imóvel, que justificou por dificuldades económicas e ainda por fragilidade de saúde, em virtude do agravamento de lesões que sofrera em acidente de trabalho numa moradia destes;
q) Do que os AA. se desinteressaram de todo, recusando–se a atender ao preço e condições da venda.
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Passemos à apreciação do mérito do recurso.
I. Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto
1. As rés/recorrentes discordam da decisão proferida pela 1ª Instância relativamente à matéria de facto, pretendendo, em primeiro lugar, que quanto ao nº 9 [os prédios rústicos em causa são contíguos e têm, e sempre tiveram, como único fim a cultura, essencialmente, mas não só, a cultura de milho] seja dado como não provado o seu segundo segmento - …e têm, e sempre tiveram, como único fim a cultura, essencialmente, mas não só, a cultura de milho.
Em segundo lugar, pretendem que o facto não provado a que se refere a alínea d) [a “construção” que acompanhou a transmissão do imóvel alienado à 2.ª R. (B...), dele fazendo parte integrante, foi essencial e determinante para a celebração do negócio de compra e venda] transite para o elenco dos factos provados.
Neste sentido indicam excertos dos depoimentos prestados pelas testemunhas HH, II e JJ, tal como referem o registo fotográfico efetuado aquando da inspeção ao local.
Atendendo a que na impugnação da decisão de facto foram respeitados os ónus previstos no art. 640º, nºs 1 e 2 do Cód. de Proc. Civil ir-se-á proceder à sua apreciação.
2. Na motivação da decisão de facto a Mmª Juíza “a quo” escreveu o seguinte quanto ao facto provado nº 9:
“Na inspecção judicial ao local, o tribunal verificou ainda que:
- o prédio referido em 4) é um terreno de cultura, no qual são visíveis plantas de que hortaliça (couves) e erva [fotografia 14 do auto de inspecção local];
- no prédio descrito em 6) estão implantados uns contentores com telheiro, nos quais funciona actualmente uma oficina [fotografias 1, 2, 7 e 9 do auto de inspecção ao local].
Considerando o exposto, o tribunal julgou provados os factos vertidos em 8), 9) – 1.ª parte, descritos em 12) – 2.ª parte, 13) e 17), na parte “no qual existem actualmente contentores e telheiros”.
No que concerne aos factos descritos em 9) – 2.ª parte e 12)- 1.ª parte, o tribunal considerou, além do que percepcionou na inspecção judicial ao local quanto ao uso actual dos terrenos, os depoimentos das testemunhas II, que conhece a família do Sr. BB (há cerca de 50 anos) e o seu património imobiliário por ser vizinha e ter prestado serviços de solicitadora ao falecido BB, e HH, que conhece os AA. por serem amigos de infância e os terrenos que estão em discussão nos autos por ter crescido no lugar onde se situam e ali ter residido até aos 35 anos, na casa dos pais, que se situa na Rua ..., em frente aos referidos terrenos.
Estas testemunhas afirmaram que a família ... tem um vasto património imobiliário na Freguesia ..., composto sobretudo por terrenos rústicos, e que os seus elementos sempre se dedicaram à agricultura (não obstante o falecido BB ter trabalhado nos D...), actividade que levavam e levam a cabo nos terrenos de que são proprietários.
As referidas testemunhas confirmaram que os prédios descritos em 4) e 6) eram, como sempre foram [este último prédio até 2017], cultivados com milho, batata e vinha (sendo que a testemunha II referiu que ali eram também cultivados produtos hortícolas).
As testemunhas KK, LL, MM e NN tentaram descredibilizar o depoimento das testemunhas II e HH, dizendo que efectivamente a família de BB tinha e tem muitos terrenos em ... e que se dedicava e dedica à agricultura, mas que os terrenos em discussão nos autos já não eram e não são cultivados há muitos anos [há 20 anos, segundo algumas, e a testemunha NN afirmou até que nunca lá viu meterem alguma coisa para cultivar], com excepção da parte do terreno que estava e está arrendada ao Sr. OO.
Tais depoimentos não têm, contudo, a virtualidade de infirmar o alegado pelos AA. quanto ao fim dos terrenos, pois nenhuma das testemunhas referiu que aqueles terrenos eram utilizados e tinham uma finalidade diferente da agricultura, pelo menos até data próxima de 2017 [a testemunha KK afirmou que, ainda antes da colocação dos contentores havia ali um aparcamento de viaturas que era explorado pela família ... e a testemunha MM que, há quatro anos, estacionavam lá os carros, querendo com isso dizer que o prédio era utilizado para fim diferente da agricultura, mas o tribunal não considerou minimamente credíveis tais afirmações, pois no local onde se situam os terrenos não há dificuldade de aparcar ou estacionar viaturas, sendo certo que estas testemunhas, a primeira por estar zangada com os AA. e a segunda por trabalhar, ao fim de semana, para o sócio único e anterior gerente da 1.ª R. A..., têm todo o interesse num desfecho desfavorável do presente processo para os AA.].
Por outro lado, os depoimentos das testemunhas KK, LL, MM e NN não são consentâneos com a realidade que o tribunal percepcionou quando realizou a inspecção ao local e com os elementos que constam do processo de licenciamento: com excepção dos contentores e telheiros e dos veículos estacionados junto dos contentores, não há naqueles terrenos construções, o terreno descrito em 4) está cultivado e 67,36% do solo do prédio referido em 6) está situado em solo rural, na categoria de Áreas Agrícolas e, cumulativamente, em Estrutura Ecológica Fundamental.
Os depoimentos das referidas testemunhas não conseguiram, assim, abalar a credibilidade do relatado pelas testemunhas II e HH, que depuseram de forma consistente, espontânea e consonante com a prova documental referida e com a realidade que o tribunal verificou no local, motivo pelo qual o tribunal julgou provado o facto inserto na segunda parte do ponto 9).”
Depois sobre o facto não provado d), referente à forma como foi negociada entre a 1ª e a 2ª ré a venda do terreno referido em 6), a Mmª Juíza “a quo” ponderou os depoimentos do legal representante da 2ª ré - PP -–e também da testemunha GG, sócio único e anterior gerente da 1ª ré.
Escreveu o seguinte:
“O tribunal não atribuiu qualquer credibilidade aos depoimentos das indicadas pessoas, não só porque ao longo dos depoimentos entraram em contradição com o que anteriormente tinham dito, mas também porque o que relataram é inverosímil, contrário às regras normais da experiência, e comprovadamente falso.
De qualquer modo, ainda que alguma credibilidade se atribuísse a tais depoimentos, dos mesmos não foi possível concluir nos termos que constam da al. d), ou seja, que a construção – que não é mais do que um conjunto de contentores com um telheiro, como resulta do próprio pedido de licenciamento – existente no prédio referido foi essencial para a celebração do negócio de compra e venda pela R.. Daí se ter julgado não provado tal facto.”
3. Ouvimos sobre este dois pontos factuais – nº 9, provado e al. b), não provado – os depoimentos prestados pelas testemunhas HH, II e JJ.
HH é técnico superior da Câmara Municipal ..., conhecendo os autores por serem vizinhos. Disse que a família dos autores sempre se dedicou à agricultura, sendo que o pai trabalhou nos D.... Têm muitos terrenos que sempre foram cultivados. A finalidade do terreno era o cultivo de milho e batatas e tinha ramada de uvas. Porém, esse terreno foi modificado há uns anos para cá. É que o Sr. GG pôs uns muros à frente do terreno e depois começou a meter uns contentores e umas chapas. E a seguir foi aparecendo uma estrutura em chapa, mais umas chapas e depois um telhado. Aquilo ficou uma estrutura parecida com um armazém. Mais referiu que já consultou o PDM da Rua ... e este só permite fazer moradias na beira da estrada e a parte de trás que saiba é reserva agrícola nacional.
II é solicitadora e já prestou serviço ao falecido BB. A família dos autores tem muitos terrenos agrícolas. O Sr. BB era motorista dos D... e também se dedicava à agricultura. O terreno era destinado à cultura de milho. Quando o prédio foi adquirido pela 1ª ré, em 2017, era um terreno cultivado como o do lado. Em finais de 2017 começaram a colocar no terreno uns contentores, restos de construção. Há lá um aglomerado de contentores, que dá a sensação de uma unidade. Dentro dos contentores era uma oficina.
JJ é arquiteto. Foi contratado primeiro pela ré “A...” e mais recentemente abordado pela ré “B...” para lhes prestar serviços. Disse que o projeto da Rua ... é referente à legalização de uns contentores. Era uma ampliação, tem uns revestimentos em chapa e é a cobertura de um alpendre. O processo – de licenciamento - está a correr na Câmara Municipal ... e está pendente da apresentação de elementos. Foi contactado pela “B...”, como nova proprietária, para proceder à entrega dos documentos em falta. Mais referiu que o PDM diz que no local o uso predominante seria de moradias, mas podiam ser admissíveis outros usos. O pedido de licenciamento da edificação era referente a contentores destinados a armazém. Ao lado encontra-se um terreno agrícola.
Ao abrigo do disposto na 1ª parte do art. 640º, nº 2, b) do Cód. de Proc. Civil, ouvimos também, sobre este ponto factual, os depoimentos prestados pelas testemunhas KK, LL, MM e NN.
KK, que é vizinho e está zangado com os autores, disse, no essencial, que o terreno há muito que não era cultivado (talvez há vinte anos) e que até servia de parqueamento de automóveis. E depois foi lá feita uma construção, tipo armazém.
LL é vizinho. Disse que no local há construções, armazéns, e também vivendas. No terreno há um pavilhão. Antes estavam lá automóveis.
MM é funcionário da Junta de Freguesia ... e conhece a zona há trinta anos. Referindo-se ao terreno aqui em causa [o indicado em 6) dos factos provados] disse que o solo estava a monte, sem ser cultivado, só havia ramadas. No outro, ao lado, é que se cultivava milho. Na parte da frente do terreno havia lá automóveis. Agora no terreno está um pavilhão.
NN é vizinha. Referindo-se ao terreno aqui em causa disse que, do que se lembra, nunca o viu a ser cultivado. O que está ao lado é que é cultivado, pelo Sr. OO. No terreno havia lá carros. Acrescentou ainda que na Rua ... os terrenos que a família ... lá tem, e de que ninguém está a tomar conta, nenhum deles está a ser cultivado.
Teve-se também em atenção o registo fotográfico efetuado aquando da inspeção ao local realizada em 29.11.2021.
4. Prosseguindo, é de referir que a Relação deverá alterar a decisão factual se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa – cfr. art. 662º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil.
Sucede que a Relação, nesta reapreciação, goza de autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção sobre os meios de prova sujeitos a livre apreciação, sem exclusão do uso de presunções judiciais.
Como tal, a livre convicção da Relação deve ser assumida em face dos meios de prova que estão disponíveis, impondo-se que o tribunal de recurso sustente a sua decisão nesses mesmos meios de prova, descrevendo os motivos que o levam a confirmar ou infirmar o resultado fixado em 1ª instância.[3]
5. Ora, face aos elementos probatórios que foram ponderados por este Tribunal da Relação relativamente ao facto provado sob o nº 9 na sequência do recurso interposto pelas rés, não concordamos com a convicção que deles foi extraída pela 1ª Instância.
Se não se colocam dúvidas quanto à classificação dos dois terrenos como prédios rústicos e quanto à sua contiguidade, já o mesmo não se verifica no que concerne à sua finalidade.
Com efeito, em relação ao prédio objeto da preferência, diferentemente da 1ª Instância, valorando os meios probatórios produzidos, concluímos que a finalidade única deste não é a cultura de milho ou de outras espécies vegetais.
Desde logo das fotografias obtidas no dia da inspeção ao local – 29.11.2021 -, o que se retira é que neste prédio, identificado em 6), funciona uma oficina de automóveis, sendo que o prédio confinante pertencente aos autores, identificado em 4), está efetivamente cultivado, com couves.
Na sentença recorrida entendeu-se descredibilizar os depoimentos prestados pelas testemunhas KK, LL, MM e NN, as quais, no dizer da própria sentença[4], foram unânimes em afirmar que o terreno objeto da preferência já não era cultivado há muitos anos.
Discorda-se desta descredibilização, para a qual não encontramos fundamento.
Com efeito, as próprias testemunhas que a Mmª Juíza “a quo” chama em apoio da sua posição factual – HH e II – foram claras em afirmar que neste prédio surgiu há alguns anos uma estrutura, envolvendo contentores, definível como armazém ou oficina. A testemunha II, de forma mais precisa, até situou o surgimento desta estrutura em finais de 2017, ou seja em momento anterior à outorga da escritura que deu origem ao presente litígio.
Por isso, na própria sentença recorrida se deu como provado que em 2017, em data não anterior a agosto, a 1ª ré colocou nesse prédio alguns contentores, que ali continuaram – e continuam - após a sua aquisição pela 2ª ré – cfr. nºs 12 e 13.
Como tal, sem desprimor para com a Mmª Juíza “a quo”, não conseguimos compreender o porquê de se ter dado como assente o facto nº 9 nos termos em que o foi, quando, face a todos os depoimentos testemunhais, inclusive os de HH e II e ao que se acha provado nos factos nºs 12 e 13, cremos ser patente que o terreno em causa, à data da escritura de compra e venda celebrada entre as rés, tinha finalidade que já nenhuma relação tinha com a agricultura.
Assim, não se poderá dar como provado que ambos os prédios em causa, identificados nos nºs 4 e 6, têm e sempre tiveram, como único fim a cultura, essencialmente, mas não só, a cultura de milho, o que significa, nesta parte, a procedência da impugnação factual efetuada pelas rés/recorrentes.[5]
Já quanto ao facto não provado d) entendemos que este deve permanecer como não provado, atendendo a que os meios probatórios por nós reapreciados, designadamente testemunhais, não permitem concluir que a “construção” existente no imóvel alienado à 2ª ré tenha sido essencial e determinante para celebração desse negócio de compra e venda.
*
Por conseguinte, no que tange à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, o recurso interposto pelas rés obterá parcial procedência e, em consequência, o nº 9 da matéria de facto passará a ter a seguinte redação:
- Os prédios rústicos em causa são contíguos.
Simultaneamente da matéria de facto não provada passará a constar uma nova alínea r) com a seguinte redação:
- Os prédios rústicos em causa têm e sempre tiveram como único fim a cultura, essencialmente, mas não só, a cultura do milho.
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II. Verificação da exceção ao direito de preferência prevista no art. 1381º, al. a), II parte, do Cód. Civil
1. As rés/recorrentes insurgem-se depois contra a solução jurídica dada ao litígio na sentença recorrida, em que se julgou procedente a ação de preferência intentada pelos autores/recorridos.
Entendem que se deve considerar verificada a exceção ao direito de preferência prevista na segunda parte do art. 1381º, al. a) do Cód. Civil, o que importaria a revogação daquela sentença.
Vejamos então.
2. O direito de preferência atribui a um sujeito a prioridade, em caso de alienação ou oneração realizada pelo titular atual de um direito de gozo sobre uma coisa[6]. Com a consagração deste direito visa-se, de um modo geral, solucionar conflitos de direitos reais, facilitando a reunião, na mesma esfera jurídica, das coisas ou direitos que geram os conflitos em causa.[7]
É o que sucede no caso de emparcelamento de prédios rústicos previsto no art. 1380º, nº 1 do Cód. Civil.
Dispõe-se o seguinte neste preceito:
«Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante.»
São pressupostos do direito real de preferência atribuído por este preceito: a) que tenha sido vendido ou dado em cumprimento um prédio com área inferior à unidade de cultura; b) que o preferente seja dono de prédio confinante com o prédio alienado; c) que o prédio do proprietário que se apresenta a preferir tenha área inferior à unidade de cultura; d) que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante.[8]
O objetivo visado pelo art. 1380º é o de fomentar o emparcelamento de terrenos a minifundiários, criando objetivamente as condições que, sob o ponto de vista económico, se consideram imprescindíveis à constituição de explorações rentáveis. Após o exercício do direito de preferência, o proprietário do conjunto poderá, designadamente, proceder a uma reconversão cultural, operação que, dadas as exíguas dimensões dos terrenos confinantes, não teria viabilidade económica em relação a cada um deles isoladamente.[9] [10]
3. Face à matéria fáctica dada como assente é de concluir estarem, relativamente aos autores, reunidos os pressupostos do direito real de preferência previsto no art. 1380º, nº 1 do Cód. Civil.
Com efeito, os dois prédios, classificados como rústicos, são confinantes e cada um deles tem área inferior à unidade de cultura que é para a área metropolitana do Porto de 2,5 hectares para terreno de regadio e de 4 hectares para terreno de sequeiro – cfr. Portaria nº 219/2016, de 9.8.
O prédio dos autores tem 0,953950 hectares [nº 4] e o prédio objecto da preferência, transacionado entre as rés, tem 0,430000 hectares [nº 6].
Por outro lado, a 2ª ré, adquirente, não era, à data da alienação, proprietária de qualquer prédio confinante com o que adquiriu.
4. No entanto, há que ter em conta se, no caso dos autos, conforme invocam as rés/recorrentes, se verifica a exceção ao direito de preferência prevista na segunda parte do art. 1381, al. a) do Cód. Civil.
Dispõe-se o seguinte nesta norma:
«Não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes:
a) Quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destina a algum fim que não seja a cultura;
(…)»
Sobre esta exceção ao direito de preferência escreve-se o seguinte no recente Acórdão do STJ de 8.11.2022 (proc. 2856/17.9T8AGD.P1.S1, relator JORGE ARCANJO, disponível in www.dgsi.pt.):
“A excepção ao direito de preferência, invocada pelos Réus – como facto impeditivo - traduz-se aqui no destino do prédio alienado para um fim diverso à cultura, mais concretamente para a construção urbana.
É hoje entendimento prevalecente que a afectação do terreno a outras finalidades que não a cultura, não tem de constar da escritura pública ou de documento particular autenticado podendo provar-se por outros meios, impondo-se, no entanto, que essa finalidade seja legalmente possível (cf., por ex., P.LIMA/A.VARELA, Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., pág. 276, HENRIQUE MESQUITA, C.J. ano XI, tomo V, pág. 51, AGOSTINHO GUEDES, O Exercício do Direito de Preferência, 2006, pág. 125 e 126, Ac STJ de 21/6/94, BMJ 438, pág. 450, de 19/3/98, C.J. ano VI, tomo I, pág.144).
Daqui resulta que a mera intenção sobre o destino do terreno não é suficiente para excluir a preferência, sendo indispensável a prova da mesma, por qualquer meio, e que o destino a dar ao prédio pelo adquirente seja permitido por lei.”[11]
Assim, o adquirente, para impedir, neste caso, o funcionamento do direito de preferência, ao abrigo do art. 1380º, al. b), 2ª parte, do Cód. Civil, sempre teria que alegar e provar:
a) Que realizou o negócio aquisitivo com a intenção de afetar o terreno a um fim diferente;
b) Que tal afetação é permitida por lei.[12]
5. De regresso à situação concreta dos autos há que apurar se da parte das rés, designadamente da ré/adquirente (“B...”), tal prova foi feita.
Da matéria fáctica dada como assente flui, em primeiro lugar, que em 2017, em data não anterior a Agosto, a 1ª ré (“A...”) colocou no prédio indicado em 6) alguns contentores e que estes ali continuaram - e continuam – após a aquisição do prédio por parte da 2ª ré (“B...”) – nºs 12 e 13.
Sucede que nessa mesma altura, em 1.9.2017, a 1ª ré apresentou na Câmara Municipal ... um pedido de licenciamento de contentores amovíveis e telheiro, que foi autuado sob o nº 5834/2017, tendo logo a seguir, em novembro de 2017, apresentado na mesma Câmara Municipal “projeto de arquitetura do pedido de licenciamento de operação urbanística de estaleiro e contentores destinados a escritórios” - nºs 14 e 15.
Em 31.8.2020. a 2ª ré pediu o averbamento deste processo em seu nome, tendo passado a ser o seu titular a partir de 11.9.2020 – nº 16.
Cremos, assim, que neste contexto factual as rés lograram provar que, com o negócio aquisitivo concretizado através da escritura de compra e venda outorgada em 20.12.2019, a intenção da ré/adquirente não era a de destinar o terreno a qualquer finalidade de natureza agrícola, mas sim a de realizar lá uma operação urbanística referente a estaleiro e contentores destinados a escritórios.
Operação essa que na prática já se iniciara em momento anterior, ainda quando o terreno pertencia à 1ª ré, mais concretamente em 2017, com a colocação de contentores.
6. A questão que se colocará a seguir é a de saber se essa operação urbanística é permitida por lei, sendo certo que aquando da prolação da sentença recorrida e da interposição do presente recurso a mesma ainda não se encontrava licenciada – nº 20.
Porém, regressando ao já referido Ac. STJ de 8.11.2022, importa referir que “o que releva, para afastar a preferência, não é propriamente a atribuição do direito de construir pelo acto de licenciamento, mas a comprovação das possibilidades objectivas do aproveitamento do terreno, a sua concreta aptidão construtiva, avaliada em função dos planos e da Lei.”
Ora, no âmbito da aptidão construtiva do terreno dos autos, provou-se o seguinte:
- O terreno do prédio descrito em 6), no qual existem actualmente contentores e telheiros, encontra-se, segundo o PDM, situado em Área Urbanizada em Transformação de Moradia (numa percentagem de 32,64%) e em solo rural, na categoria de Áreas Agrícolas e, cumulativamente, em Estrutura Ecológica Fundamental (numa percentagem de 67,36 %) – nº 17;
- Qualquer edificação que se pretenda implementar no terreno em questão deverá salvaguardar uma correta inserção urbanística e paisagística no local, dentro dos princípios estabelecidos no ponto 1 do artigo 14º (inserção urbanística e paisagística) do Regulamento do PDM, bem como observar o cumprimento das prescrições urbanísticas referidas na presente informação e restantes normas regulamentares aplicáveis, tais como o Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação (RMUE), entre outras – nº 18;
- Sendo abrangido por RAN e REN, o processo de licenciamento de qualquer edificação que se pretenda implementar no terreno está sujeito a parecer por parte da entidade de tutela – nº 19.
Acontece que perante esta factualidade entendemos que o terreno se situa em zona suscetível de urbanização, tendo aptidão construtiva, mesmo que, para tal efeito, se tenha sempre que salvaguardar uma correta inserção urbanística e paisagística no local e cumprir as prescrições urbanísticas decorrentes das normas regulamentares aplicáveis.
A nosso ver, isto basta para que se possa considerar que a operação urbanística visada pela 2ª ré é permitida por lei.
É certo que se o direito de construir nasce com o ato final de licenciamento, então poder-se-ia entender que na ação de preferência as rés para fazerem triunfar a exceção prevista no art. 1381º, a), II parte do Cód. Civil teriam que juntar aos autos a respetiva licença de construção.
Mas tal não lhes é exigível, porque o que realmente se exige não é a prova do direito de construir em sentido estrito, mas sim a demonstração de que o terreno tinha viabilidade construtiva, que seja apto à construção, tendo em atenção as suas características.
Como essa prova se mostra feita pelas rés, terá que se considerar que, por força do estatuído no art. 1381º, al. a), II parte, do Cód. Civil, não assiste aos autores o direito de preferência por eles invocado nos presentes autos.
Por conseguinte, daí decorre a procedência do recurso interposto, com a consequente revogação da sentença recorrida e absolvição das rés/recorrentes dos pedidos formulados.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar procedente o recurso de apelação interposto pelas rés “A..., Unipessoal, Lda.” e “B..., Lda.” e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida que se substitui por outra que julga improcedente a ação a absolve as rés dos pedidos formulados.
Custas em ambas as instâncias a cargo dos autores/recorridos.

Porto, 28.3.2023
Rodrigues Pires
Márcia Portela
João Ramos Lopes
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[1] Cfr. Ac. Rel. Coimbra de 18.11.2014 (TELES PEREIRA), proc. 628/13.9TBGRD.C1, disponível in www.dgsi.pt.
[2] Cfr. art. 657º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil.
[3] Cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., Almedina, págs. 823 e 825.
[4] E que confirmámos com a sua audição.
[5] De salientar que a finalidade agrícola verifica-se apenas quanto ao prédio dos autores identificado em 4, o que é realidade diversa da constante do nº 9 que se refere a ambos os prédios.
[6] Cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO, “Direitos Reais”, Almedina, 1978, pág. 539.
[7] Cfr. MENEZES CORDEIRO, “Direitos Reais”, II vol., 1979, pág. 1109.
[8] Cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “Código Civil Anotado”, vol. III, 2ª ed., pág. 270/271.
[9] Cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, vol. III, 2ª ed., pág.271.
[10] Cfr. também, por ex., Ac. STJ de 14.1.2021, p. 892/18.7T8BJA.E.1.S1 (ROSA TCHING), disponível in www.dgsi.pt.
[11] Cfr. também Ac. STJ de 17.10.2019, proc. 295/16.8T8VRS.E1.S2 (RAIMUNDO QUEIRÓS, com voto de vencido – ANA PAULA BOULAROT) e Ac. Rel. Guimarães de 26.1.2017, proc. 73/14.9TBCHV.G1 (ALEXANDRA ROLIM MENDES), disponíveis in www.dgsi.pt.
[12] Cfr. HENRIQUE MESQUITA, “Direito de Preferência”, in CJ, ano XI, tomo V, págs. 51/54.