I–A motivação do julgamento de facto não detém a virtualidade de fundamentar a nulidade da sentença por contradição lógica entre os fundamentos e a decisão posto que não é através daquela que é cumprido o silogismo judiciário de aplicação do direito aos factos; a contradição que no confronto com a motivação da decisão de facto é passível de ser revelada reporta ao resultado expresso nessa mesma decisão (de facto), sendo que nesse caso a sentença não padece de nulidade, mas de erro de julgamento de facto (no juízo que o tribunal formou com fundamento na prova produzida) e/ou de omissão de factos relevantes ao conhecimento do mérito da ação.
II–O segmento “a Devedora encontrava-se impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas” corresponde à previsão normativa abstrata da situação de insolvência tal qual como definida no art. 3º, nº 1 do CIRE, cuja apreciação envolve um juízo de direito para aferição dos requisitos legais de que depende e à qual o julgador não pode pretender dar resposta em sede de matéria de facto descrevendo-o tal qual como facto provado; muito menos, sem um quadro fáctico que o suporte e que permita ao interessado contraditá-lo e ao tribunal superior sindicar a bondade dos pressupostos – de facto e de direito - em que assenta.
III–Sem prejuízo da (necessária) identificação das questões normativas objeto do processo - determinante da seleção dos factos relevantes à decisão -, no julgamento de facto procede-se ao apuramento desses mesmos factos, cuja descrição deverá ser feita em termos que reproduzam com a maior fidedignidade possível a realidade histórica ou o pedaço da vida que define e delimita o objeto da ação já que é essencialmente da decisão de facto que depende o resultado da ação.
IV–Tarefa que se apresenta com especial acuidade em sede de apuramento da qualidade de administrador de facto na medida em que, se é administrador de facto quem pratica atos/factos próprios de administração - de tal forma que “é a atividade que cria o administrador de facto -, só pelo conhecimento da concreta atividade e dos termos em que é concretamente exercida pode extrair-se aquela qualificação, o que impõe especial cuidado na seleção e descrição da matéria de facto que resulte da prova produzida.
V–A diminuição patrimonial especificamente prevista pelo fundamento de qualificação da insolvência previsto pela al. a) do nº 2 do art. 186º do CIRE distingue-se da diminuição patrimonial implícita à previsão da al. d) da mesma norma porque, diversamente do que aqui sucede, aquela pressupõe ou reporta a uma ação física sobre os bens, no sentido de diminuir o seu valor comercial (destruído ou danificado), de os tornar imprestáveis ou inoperacionais para o fim a que tendem (inutilizado), ou, através da não revelação do seu paradeiro ou da sua colocação em paradeiro desconhecido ou local geográfica ou espacialmente inacessível à sua apreensão, de os subtrair à possibilidade de serem localizados e/ou fisicamente apreendidos para ingressarem na disponibilidade fáctica do AI, do processo de insolvência e da liquidação que nele se cumpra (ocultado ou feito desaparecer).
VI–O ato de usar ou utilizar crédito ou bens da devedora que integra o fundamento previsto pela al. f) do nº 2 do art. 186º do CIRE não se confunde com o ato de dispor dos bens ou dos créditos da devedora, antes reporta à concreta afetação dada aos bens e/ou créditos da devedora para fins distintos da sua atividade e, assim, contrários ao seu interesse que, no essencial, coincide com o exercício de uma atividade potencialmente geradora de lucros.
VII–A exploração deficitária prevista pela al. g) do nº 2 do art. 186º do CIRE não se confunde com a manutenção da situação de incumprimento, nem com o ‘mero’ acréscimo de dívidas decorrente da continuidade da atividade, nem com a afetação do produto da venda de bens ao pagamento de dívida a credor; antes reporta ao exercício da atividade empresarial em moldes que não são objetivamente aptos a gerar proveito produtivo e financeiro para a devedora, designadamente, porque os custos dos meios de produção afetos à atividade são superiores aos proveitos que desta poderia obter.
VIII–O âmbito ou alcance dos elementos normativos ‘disposto de bens’ e ‘proveito pessoal ou de terceiros’ que integram o facto qualificador da insolvência previsto pela al. d) reportam aos princípios estruturantes do direito falimentar, da garantia patrimonial e da satisfação igualitária dos direitos dos credores (conditio par creditorium) de acordo com as preferências legais de que gozam, que se manifestam na caracterização da insolvência liquidatária como processo de execução universal e concursal.
IX–A venda da quase totalidade dos bens do devedor em situação de insolvência ou de insolvência iminente consubstancia ato prejudicial ao património da devedora e ao coletivo dos seus credores, máxime dos titulares de créditos com preferência de pagamento pelo produto daqueles bens, porque deles resulta diminuição do ativo da devedora com consequente diminuição do valor da massa insolvente constituída com a sua declaração de insolvência e consequente agravamento da possibilidade de satisfação do coletivo dos credores da insolvência na medida daqueles bens que, por efeito da venda, deixaram de existir na esfera patrimonial da insolvente.
X–A afetação do valor da venda ao pagamento de créditos que não gozam de preferência de pagamento sobre o produto desses bens consubstancia prática de favorecimento a credores em detrimento de todos os demais credores que, assim, ficam afastados da possibilidade de, através do rateio daquele valor, concorrerem ao produto daqueles bens para integral e/ou parcial satisfação dos respetivos créditos.
XI–A imputação de falta substancial de contabilidade constitui questão de facto e de direito distinta da imputação de prática de irregularidade contabilística (com prejuízo relevante para a compreensão da situação do devedor) pelo que, ainda que no âmbito da discussão/instrução do incidente tenham surgido indícios desta ultima conduta, se não foi aditada ao objeto do processo, oficiosamente ou a requerimento de interessado, constitui questão nova que não foi submetida à apreciação na instância recorrida e que, por isso, ao tribunal da Relação é vedado conhecer; maxime se o recurso não tiver como fundamento a violação do poder dever que resulta dos poderes deveres do inquisitório amplo previsto pelo art. 11º do CIRE.4
XII–A emissão de documentos que (passando o pleonasmo) documentam as transações ou outras operações, não substituem o dever legal de proceder ao seu tratamento contabilístico pois só por esta via é possível obter informação sobre a situação da empresa.
XIII–As alíneas do nº 3 do 186º do CIRE fazem recair presunção de culpa grave sobre o devedor, mas exigem a prova que do incumprimento de cada uma das obrigações ali previstos resultou agravamento da situação da insolvência, elemento que, com o nexo de causa entre a omissão e o resultado, integra o objetivo do ilícito por esta norma previsto.
XVI–A suspensão do dever de apresentação à insolvência prevista pelo art. 7º, nº 6, al. a) da Lei n.º 1-A/2020 de 19.03, introduzido pela Lei nº 4-A/2020 com efeitos retroativos a 09.03.2020, não significa proibição de apresentação nem se traduz na concessão de ‘carta branca’ aos devedores insolventes para liquidação ad hoc dos seus bens e, por outro lado, pressupõe a viabilidade e o propósito de dar oportuna continuidade à empresa, propósito que é contrariado pela venda do imobilizado afeto e necessário à exploração do respetivo objeto social.
XVI–A qualificação da insolvência como culposa tem como pressupostos uma conduta ilícita do devedor ou dos seus administradores praticada com dolo ou com culpa grave e em relação de causalidade com a situação de insolvência ou com o seu agravamento pelo que, considerando que o prius da qualificação é, precisamente, uma conduta, por ação ou por omissão, é pela autoria desta que em concreto se impõe aferir do âmbito subjetivo das consequências da insolvência culposa.
XVII–A administração de facto exige, por natureza, o efetivo exercício de poderes de gestão no âmbito do objeto social, por princípio, de forma sistemática e continuada e de modo independente, com total e ilimitada autonomia na tomada de decisões e na atuação, influindo de forma decisiva nos destinos da sociedade, com compressão da autonomia do administrador de direito na tomada dessas decisões, que não se basta com uma situação de mera influência ou de sugestões, antes exige uma imposição e uma expectativa de obediência.
XIX–Na apreciação da qualidade de administrador de facto no âmbito do incidente de qualificação da insolvência em causa está a imputação de responsabilidade insolvencial a quem atuou em nome e por conta da sociedade sem deter a qualidade formal de administrador, e não a relevância jurídica da aparência para efeitos de proteção da confiança de terceiros através da vinculação/responsabilização da sociedade pelos atos praticados por quem atuou naquelas condições.
XX–Por isso, no âmbito deste incidente impõe-se aferir a qualidade de administrador de facto, não por referência às relações que através dos assim indicados foram estabelecidas entre a sociedade e terceiros, mas por referência à relação interna e interações entre estes e os administradores de direito.
XXI–Não é administrador de facto quem não detém o domínio dos réditos, ganhos ou rendimentos, custos, perdas ou gastos, nem o controlo da tesouraria – caixa e contas bancárias - do devedor pois, nesse cenário, ainda que atue com autonomia nas relações negociais estabelecidas com os fornecedores e os clientes do devedor, não detém poder pleno e ilimitado na direção dos destinos da sociedade.
XXII–Nesse cenário antes se enquadram na figura do ‘preposto’, do ‘gerente de comércio’ previstos pelo art. 248º do CSC que, sem que se confunda com os administradores da sociedade, tem como função planear, desenvolver, implementar, dirigir e coordenar a comercialização dos produtos da empresa de acordo com uma estratégia e/ou objetivos de negócio definidos – “Um preposto está à frente do comércio, da empresa, da sua atividade, mas não da sociedade.”
XXIII–A par com a vertente preventiva de proteção do património de terceiros e do comércio, as medidas inibitórias previstas pelas als. b) e c) do nº 2 do art. 189º do CIRE têm dimensão punitiva pelo que, por natureza e imperativo constitucional, a determinação, em cada caso, do ‘quantum punitivo’, “deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal.”.
XXIV–A construção das normas previstas pelo art. 189º, nº 2, al. e) e nº 4 do CIRE por recurso aos vocábulos e segmentos ‘indemnizarem’, ‘valor das indemnizações devidas’, ‘calcular o montante dos prejuízos sofridos’, e ‘critérios para a sua quantificação’, não permite imputar ao legislador falimentar de 2012 mais do que a intenção de consagrar a responsabilização do afetado pela insolvência de acordo com os pressupostos gerais da responsabilidade civil, de natureza ressarcitória, mas limitada pelo montante máximo dos créditos não satisfeitos por respeito processual ao objeto e funcionalidades práticas do processo de insolvência mas com o aproveitamento, em benefício dos credores, da qualificação e declaração judicial da natureza ilícita e culposa das condutas dos afetados pela qualificação operada em sede de processo de insolvência e da facilitação, por essa via, da imputação dos danos.
XXV–A alteração introduzida à redação da referida al. e) pela Lei nº 9/2022 de 11.01 é de natureza interpretativa, por reclamada pela discussão gerada com a incompatibilidade da literalidade da sua anterior redação com as especificações previstas pelo nº 4.
XXVI–A responsabilização civil dos afetados pela qualificação exige a verificação dos pressupostos gerais do instituto da responsabilidade civil previstos pelo art. 483º do Código Civil - sempre que os danos sofridos em concreto pelo lesado constituam consequência adequada de um facto voluntário, ilícito e subjetivamente imputável ao lesante a título de culpa, residindo a causa da deslocação do dano da esfera jurídica do prejudicado para o lesante justamente num juízo de censurabilidade que, para além da natureza essencialmente reparadora, atribui natureza sancionatória ao instituto da responsabilidade civil por factos ilícitos.
XXVII–A qualificação da insolvência como culposa pressupõe sempre a causalidade (provada ou presumida) entre a conduta e a criação ou o agravamento da insolvência, sendo esta a “causalidade fundamentadora” da responsabilidade civil; a responsabilização civil dos sujeitos afetados pressupõe a verificação da causalidade entre a conduta e os danos, sendo esta a “causalidade preenchedora” da responsabilidade civil.
XXVIII–Concedendo que a afetação pela qualificação da insolvência contém em si mesma a demonstração e verificação da ilicitude do facto fundamento da qualificação, bem como do juízo de censurabilidade que pelo mesmo é passível de ser dirigido ao afetado, no caso o nexo de causalidade entre a concreta atuação que determinou e/ou fundamentou a qualificação da insolvência como culposa – disposição de bens - e o prejuízo sofrido pelos credores da insolvência resulta verificado na medida dos créditos que no âmbito da insolvência seriam pagos pelo produto dos bens da devedora vendidos pelos afetados e que, no caso, correspondem aos créditos laborais.
I–Relatório
1.–No âmbito do processo de insolvência de M. Ldª os credores J. Ld.ª e C. Ldª requereram a abertura de incidente para qualificação da insolvência como culposa com fundamento legal no art. 186º, nº 2, als. a), d), f), g) e h) e nº 3, als. a) e b) do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE[1]) para por ela serem afetados MZ e OZ, e CR e JR, os primeiros na qualidade de gerentes de direito, e os segundos na qualidade de gerentes de facto da insolvente.
Alegam que: a devedora era gerida por todos os indicados à afetação; os gerentes de facto abandonaram a devedora em julho de 2020 e passaram a exercer funções na sociedade WV constituída em junho de 2020 com participação, entre outros, da filha de cada um daqueles e com o mesmo objeto social da insolvente; em agosto de 2020 os gerentes de direito venderam a grande parte dos bens da insolvente àquela sociedade, para a qual os gerentes de facto levaram a quase totalidade dos clientes, mais de metade dos funcionários, cerca de metade dos fornecedores, e encomendas pendentes de clientes da insolvente, com esvaziamento comercial e consequentes dificuldades da insolvente; nas contas da insolvente há um ‘desfalque’ de € 18.228,91 a favor dos gerentes de facto e da filha de um deles; a contabilidade da insolvente não estava organizada. Requereram depoimento de parte dos indicados à afetação, declarações da Sr.ª administradora da insolvência (AI), arrolaram 14 testemunhas, juntaram documentos, remeteram para outros juntos pela insolvente em processo onde se apresentou à insolvência, e requereram a requisição de informação ao Instituto da Segurança Social.
2.–Declarada e publicitada a abertura do incidente de qualificação da insolvência, a AI apresentou parecer que concluiu pela qualificação da insolvência como culposa com fundamento no art. 186º, nº 2, als. a), d), e nº 3, al. b), com afetação dos indicados pelos credores.
Alegou que em 30 e 31.07.2020 a insolvente vendeu seis veículos de que era proprietária, quatro dos quais à sociedade WV objeto de fatura emitida no valor de € 40.590,00, desconhecendo a AI que bens foram faturados, tendo aquela emitido recibos no montante global de €17.380,00, dos quais consta que o pagamento foi feito por transferência, mas sem comprovativo da entrada do dinheiro nas contas bancárias da insolvente; em 11.09.2020 foram inscritos no registo dois veículos relativamente aos quais a insolvente optou por antecipar o seu pagamento e pela sua compra e, na mesma data, foram inscritos em benefício da WV; de acordo com o alegado pela insolvente na petição de apresentação à insolvência que apresentou em juízo, os indicados como gerentes de facto acordaram com os gerentes de direito a constituição da insolvente para nela exercerem funções de gerência de facto por não poderem figurar formalmente como sócios e gerentes nem auferir rendimentos superiores ao salário mínimo nacional sob pena da incidência de penhoras sobre os seus vencimentos, auferindo aqueles as remunerações pelo exercício da gerência de facto através de pagamentos à filha de um e de outro, na qualidade de funcionárias da devedora; em julho de 2020 aqueles gerentes de facto abandonaram a gestão da insolvente e passaram a exercer iguais funções na WV, o que conduziu ao decréscimo abrupto do volume de vendas da insolvente e consequente necessidade de venda dos veículos e equipamentos utilizados para o desenvolvimento da sua atividade. Mais alegou pagamentos à sócia da insolvente no valor total de €5.000,00, e ao sócio da WV, no valor global de cerca de €17.800,00. Com base nos factos descritos concluiu que a devedora fez desaparecer todo o seu património e as suas existências sem que tenha pago os créditos reclamados na insolvência, estes no montante total de cerca de €309.000,00, e que em comunhão de esforços os gerentes de direito e de facto da insolvente acordaram na transmissão de bens para sociedade de que estes últimos foram beneficiários sem que tenham demonstrado o seu pagamento, em claro prejuízo da insolvente e dos seus credores. Mais alegou que a devedora não depositou as contas do exercício de 2019 e, sem qualquer especificação ou concretização, que a contabilidade não está devidamente organizada nem cumpridas as obrigações fiscais. Concluiu que os indicados à afetação praticaram atos que conduziram ao agravamento da situação da insolvência. Arrolou testemunhas e juntou documentos.
3.–O Ministério Publico acompanhou o parecer da AI e concluiu pela qualificação da insolvência como culposa com fundamento no art. 186º, nº 1, nº 2, als. a) e d) e nº 3, al. b) do CIRE e indicando como pessoas a afetar os gerentes da insolvente. Indicou como prova a documentação junta aos autos, o depoimento de parte dos gerentes e a audição da AI.
4.–Citados, CR e JR deduziram oposição conjunta, pedindo a sua não condenação na inabilitação, na inibição, e na indemnização aos credores, e a sua absolvição de qualquer responsabilidade.
Alegaram que nunca foram gerentes de facto da insolvente, que nunca agiram em nome e em representação desta com autonomia decisória, que não tinham acesso à informação financeira e contabilística da insolvente, que exerceram apenas funções de distribuidores/vendedores, que estas não se confundem com atos de administração, a qual competia aos seus gerentes de direito, que eram também de facto, e dos quais dependiam todas as decisões sobre os negócios, movimentações financeiras, compra e venda de equipamento, e contratação de empregados, e que não contribuíram para o desaparecimento do património da insolvente nem obtiveram vantagem económica das relações entre esta, a sociedade M. Ldª e a WV. Mais alegaram que, conforme balancete geral reportado ao exercício de 2019, em dezembro de 2019 a insolvente devia cerca de €277.000,00 a José, sócio da insolvente, e em 02.04.2020 apresentava saldo devedor de cerca de €103.000,00, que a compra da insolvente apenas poderia beneficiar aquele sócio da WV e não os opoentes, e que não corresponde à verdade que eles e a filha do requerido CR se apropriaram do valor global de cerca de €17.800,00. Arrolaram testemunhas, requereram declarações de parte, e juntaram um documento.
5.–Citados, MZ e OZ deduziram oposição conjunta, pedindo a qualificação da insolvência como fortuita ou, caso assim não se entenda, a sua não afetação pela qualificação da insolvência como dolosa.
Alegaram que remeteram à AI toda a documentação que lhes solicitou com considerações sobre os motivos e termos dos negócios a que respeitam, que as faturas remetidas confirmam que as transferências realizadas entre a insolvente e a WV ou eram relacionadas com as relações comerciais entre as duas sociedades (venda de mercadorias), ou com a venda de imobilizado, que os extratos bancários solicitados e remetidos à AI comprovam as entradas e saídas de dinheiro da conta bancária da insolvente, que a nota de lançamento que descreve pagamento de ordenados e subsídios foi um erro da pessoa que fez o pagamento e não releva aos autos; que foram sempre e totalmente alheios à gestão da insolvente e à sua realidade comercial e financeira porque a gerência era exclusivamente exercida pelos demais requeridos, os quais decidiam do rumo da insolvente a todos os níveis, comercial, societário, financeiro, contabilístico, laboral, contratual, e jurídico, em suma, geria, a carteira de clientes, fornecedores e funcionários que por eles foi trazida para a insolvente e que constituía a quase totalidade da atividade por esta prosseguida desde a sua constituição, o que não é contrariado pelo facto de a sua assinatura constar em avais ou outros documentos, porque apenas eles o poderiam fazer, nem pela negociação de acordo de pagamento de dívida por eles avalizada no âmbito da respetiva cobrança coerciva; que a insolvente sofreu quebra em 2019, agravada em 2020 pela pandemia e pelo abandono dos seus gerentes de facto em julho desse ano e sem pré-aviso, levando consigo a quase totalidade da clientela e metade dos funcionários para a WV, situação que, confrontados até com ameaças de morte, determinou os opoentes a procederem “à venda de grande parte dos bens parte dos bens, nomeadamente viaturas e outros equipamentos utilizados para o desenvolvimento da atividade, por forma a conseguir obter liquidez imediata necessária para a sobrevivência da empresa e solvabilidade de alguns créditos.”; que previamente à celebração das vendas dos bens da sociedade diligenciaram pela elaboração de plano de negócios, que fracassou porque dependia do acesso ao apoio financeiro criado pelo governo no âmbito da pandemia através do designado lay-off simplificado com vista à recuperação e reestruturação da sociedade, que não foi concedido porque o TOC da insolvente se recusou a entregar toda a documentação contabilística e financeira que detinha ou que lhe cabia elaborar ou certificar; que a venda dos bens da insolvente não causou nem agravou a sua insolvência porque esta já existia e a venda foi feita para minorar as consequências da situação criada pelos gerentes de facto, e não resultou em favorecimento pessoal ou de terceiro; que o incumprimento do fecho e depósito de contas do exercício de 2019 é exclusivamente imputável ao TOC da insolvente e não constam factos que demonstrem a verificação de nexo causal entre aquele incumprimento e a criação ou agravamento da insolvência. Arrolaram 13 testemunhas, requereram declarações de parte, e juntaram documentos.
6.–A AI respondeu às oposições.
7.–Foi proferido despacho a ordenar a junção de cópia das reclamações de créditos e peças processuais produzidas ou apresentadas nos autos principais, certidões comerciais e assentos de nascimento, a dispensar a realização de audiência prévia, a fixar o objeto do litigio e enunciar os temas de prova, e a apreciar os requerimentos probatórios.
8.–Designada e realizada a audiência de julgamento em várias sessões, foi proferida a seguinte decisão:Pelo exposto, julgo improcedente por não provado o incidente, e, por consequência, qualifico a insolvência como fortuita.
9.–Inconformados, os credores requerentes da abertura do incidente apresentaram recurso com pedido de alteração da matéria de facto e requereram a revogação da sentença e a sua substituição por outra que, por lapsus calami, indicaram como de não procedência dos embargos de executado mas que, em consonância lógica com o objeto do processo e os fundamentos do recurso, e conforme manifestamente se extrai do contexto processual do recurso, se considera referida a decisão de qualificação da insolvência como culposa.
10.–Convidados a sintetizarem as 205 e extensas conclusões que formularam, em resposta os recorrentes apresentaram as seguintes:
1)–Porque o Tribunal a quo fez, dos factos e da interpretação que fez da matéria de facto dada como provada e da respectiva subsunção, uma errónea aplicação e interpretação do Direito aplicável;
2)–Porque a Sentença revidenda padece de nulidade na parte em que os fundamentos são, entre si, contraditórios, designadamente aquando do afastamento da gerência de facto na Insolvente dos Recorridos RR, com base no enquadramento estatuído pelo artigo 248.º do Código Comercial;
3)–Porque a Sentença revidenda padece contradição entre a convicção probatória / fundamentação e a decisão de mérito, o que constitui nulidade da sentença, nos termos do disposto na alínea c), do nº 1, do artº 615º CPC;
4)–Porque a Sentença revidenda padece de contradição entre os factos provados e a decisão de mérito, o que constitui um erro de julgamento, conforme o disposto na alínea c), do nº 2, do artº 662º CPC.
5)–Porque a Sentença revidenda padece de nulidade na parte que não considerou verificadas as alíneas a) d) f) g) e h) do nº 2, bem como as alíneas a) e b) do nº 3 do artigo 186.º, todos do CIRE, porquanto a prova produzida em audiência de julgamento é idónea à demonstração da verificação das condutas estatuídas nessas alíneas, motivo pelo qual se sempre sairia reforçado a necessária fundamentação da decisão, pelo que a sua omissão que constitui nulidade da sentença, nos termos do disposto na alínea c), do nº 1, do artº 615º CPC;
6)–Porque o Tribunal a quo, quanto às acções tipificadas nas alíneas a) e h) do nº 2 do artigo 186.º do CIRE, nada aduz, nada fundamenta para alicerçar essas conclusões, porquanto nada mais consta da Sentença quanto à decisão do Tribunal a quo de dar por não verificadas as condutas estatuídas nas alíneas a) e h) do nº 2 do artigo 186.º CIRE;
7)–Porque a eventual interpretação dos referidos artigos 155.º, n.º 1, e 615.º, n.º 1, al. b), do CPC no sentido de que a decisão de não considerar preenchidas as condutas legalmente tipificadas não carece de ser fundamentada ou de que tais circunstâncias não implicam a nulidade da sentença sempre seria inconstitucional, por violação do disposto no artigo 205.º, n.º 1, CRP;
8)–Porque, no caso sub judice, a fundamentação vertida no próprio texto da Decisão encontra-se em total contradição com o sentido da Sentença proferida, motivo pelo qual a Sentença recorrida é nula, nos termos do disposto no art. 615º, nº 1, al. c) CPC;
9)–Porque a matéria de facto considerada provada, em conjugação com a fundamentação da Sentença, só pode conduzir à condenação dos Recorridos pela responsabilidade na insolvência da sua representada, uma vez que se encontra suficientemente demonstrada a culpa dos Requeridos nas condutas comerciais na Insolvente, bem como a probabilidade de aquelas condutas resultarem, como resultaram, no decretamento da Declaração de Insolvência da sua representada;
10)–Porque a Sentença de 1ª instância, face ao teor dos pontos da matéria de facto provada elencados sob os números 18; 19; 21; 24 a 27; 35; 38; 39; 47; 48; 51; 52; 53; 54; 55; 57; 59; 61; 62; 64, concluiu pela improcedência da acção quando, concatenados a factualidade assente com a fundamentação da mesma, a única Decisão lógica e compreensível ao Homem Médio sempre seria a procedência total da acção;
11)–Porque a redação dada pelo Tribunal a quo ao facto elencado na matéria assente sob o ponto 39. pode levar a crer, como efectivamente levou, que, apenas nessa data, os Recorridos ZZ tomaram conhecimento da incapacidade da Devedora em cumprir as suas obrigações vencidas;
12)–Porque, conforme decorre das transcrições, a Recorrida MZ reconhece, ao contrário da redação dada à factualidade assente sob o ponto 39., que, já nos finais de 2019, inícios de 2020, começou a perceber que a situação da Devedora era mais grave do que pensava - cfr. registo áudio 20220530094143_6065818_2871257, ao minuto 1:16:00 -;
13)–Porque, sopesando-se, como se crê ser devido, a prova produzida, o referido ponto, sempre haveria de ter sido dado como provado com o seguinte teor: «Os 1.º e 2.º Requeridos sabiam, desde o final do ano de 2019, que a Devedora se encontrava impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas.»;
14)–Porque a redação dada, pelo Tribunal a quo, ao facto elencado na matéria assente sob o ponto 42. não é rigorosa, porquanto leva a crer que apenas os 1º e 2º Recorridos tinham intervenção activa e exclusiva na contratação de trabalhadores, no pagamento de prémios e na aquisição de equipamentos;
15)–Porque, sopesando-se, como se crê ser devido, a prova produzida, o referido ponto, sempre haveria de ter sido dado como provado com o seguinte teor: «Com habitualidade, os 1.ª, 2.º, 3.º e 4.º Requeridos contratavam trabalhadores e compravam equipamentos, competindo aos 1º e 2º Requeridos o pagamento de prémios, de acordo com as instruções dadas pelos 3º e 4º Requeridos.»;
16)–Porque a redação dada, pelo Tribunal a quo, ao facto elencado na matéria assente sob o ponto 43. não é rigorosa, porquanto leva a crer que os 3º e 4º Recorridos apenas negociavam os valores das mercadorias / produtos com os clientes e fornecedores da Devedora;
17)–Porque, valorando-se, como se crê ser devido, a prova produzida em audiência de julgamento e sob a direcção do Tribunal a quo, o referido ponto, sempre terá de ser alterado, sugerindo-se, humildemente, a seguinte redação: “A Devedora negociava e contratava produtos do seu comércio com clientes e fornecedores, por banda dos 3.º e 4.º Requeridos.”;
18)–Porque a redação dada, pelo Tribunal a quo, ao facto elencado na matéria assente sob o ponto 53. não é rigorosa, porquanto leva a crer que o produto das vendas do imobilizado da Devedora foi destinado ao pagamento de várias dívidas da Devedora, onde se incluem pagamentos à pessoa de José, sócio maioritário da WV;
19)–Porque, sopesando-se, como se crê ser devido, a prova produzida, o referido ponto, sempre haveria de ter sido dado como provado com o seguinte teor: «Com o produto das vendas, os Requeridos efetuaram pagamentos, única e exclusivamente em benefício de José, sócio maioritário e gerente da WV, bem sabendo que, com essa conduta, prejudicavam os demais credores da Devedora que não conseguiriam cobrar coercivamente os seus créditos.», ou, em qualquer caso, «Com o produto das vendas, os Requeridos efetuaram pagamentos a José, sócio maioritário e gerente da WV, dessa forma, visando subtrair o património do alcance dos credores e, assim, impedindo-os de recuperar os seus créditos»;
20)–Porque, no que tange ao facto julgado não provado sob a alínea b), constam do processo meios probatórios bastantes para que este mesmo facto conste da matéria dada por provada, nos precisos termos em que se encontra redigido, pese embora na factualidade não assente;
21)–Porque, V. Exas., Venerandos Desembargadores, certamente terão na mais sopesada consideração estes factos, esclarecidos de forma coerente e resignada, concluindo que, afinal, não estamos perante qualquer ausência de prova apta, sendo evidente a desconformidade da Sentença de fls. porquanto o Tribunal a quo, por um lado, não tomou na mais elevada consideração os concretos e esclarecidos factos supra transcritos e, por outro lado, concluiu pela ausência de prova apta e bastante à sua demonstração como fundamento para fazer constar os factos da alínea b) da matéria não provada, pelo que deverá a mesma constar da matéria dada por provada;
22)–Porque, no que tange ao facto julgado não provado sob a alínea c), constam do processo meios probatórios bastantes para que este mesmo facto conste da matéria dada por provada, não apenas nos precisos termos em que se encontra redigido mas após a contabilização dos valores, documentalmente demonstrados, apropriados pela Recorrida MZ;
23)–Porque, no que tange ao facto julgado não provado sob a alínea d), constam do processo meios probatórios bastantes para que este mesmo facto conste da matéria dada por provada, não apenas nos precisos termos em que se encontra redigido mas após a contabilização dos valores, documentalmente demonstrados, restituídos ao senhor José, pela Recorrida MZ;
24)–Porque, sopesando-se, como se crê ser devido, a prova produzida, deverá ser aditado um novo ponto à factualidade assente, com o seguinte teor: « Por mensagem de correio eletrónico datada de 16.07.2020, MZ, através do endereço electrónico mz@...pt, comunica a CR e JR, através dos endereços, “geral@wv.pt”, bem através de “encomendas@wv.pt”, no sentido de, face ao abandono, por parte destes, da gerência de facto, retirada de clientela e funcionários na sociedade Devedora deveriam devolver todos os equipamentos que lhe haviam sido confiados, e absterem-se de, no mesmo esquema de empresários na sombra, prejudicar da Devedora. – documento nº 56».;
25)–Porque, sopesando-se, como se crê ser devido, a prova produzida, deverá ser aditado um novo ponto à factualidade assente, com o seguinte teor: «Os 3º e 4º Requeridos determinaram a venda de cabazes de fruta, a expensas da Devedora, ordenando à funcionária AR que o produto da venda dos mesmos desse entrada na conta bancária desta, assim prejudicando os interesses da Devedora e seus credores»;
26)–Porque sopesando-se, como se crê ser devido, a prova produzida, deverá ser aditado um novo ponto à factualidade assente, com o seguinte teor: «Os 1.º, 2.º, 3.º e 4.º Requeridos, em momento imediatamente prévio ao encerramento da actividade da Devedora transmitiram a propriedade de um veículo Hyundai, que compunha o espólio patrimonial societário, para GR » - cfr. registo áudio 20220530094143_6065818_28712571, ao minuto 01:12:46 e cfr. registo áudio 20220531134026_6065818_2871257, ao minuto 01:04:20 -;
27)–Porque as funções exercidas pelos Recorridos RR, como foi bom de ver pelas declarações prestadas em audiência de discussão e julgamento, enquadram-se no espírito daquela previsão legal, não podendo o Tribunal a quo substituir-se, como substituiu, ao legislador e invocar a recente norma prevista no artigo 49.º/4 do CIRE, para afastar a gerência de facto dos Recorridos RR;
28)–Porque os comportamentos assumidos pelos Recorridos RR consubstanciam a violação grave e reiterada dos elementares deveres inerentes à gestão do património de uma sociedade, com consequências gravosas no desenvolvimento da atividade e objeto social, agravando a situação de insolvência e comprometendo os interesses e expectativas dos credores quanto ao ressarcimento dos respetivos créditos;
29)–Porque é evidente que a disposição do nº 4 do artigo 49.º do CIRE não tem qualquer margem de aplicação aos autos recorridos, porquanto é a própria letra do artigo que impede qualquer aplicação extensiva / análoga;
30)–Porque, no que tange à aplicação dos artigos 248.º e seguintes do Código Comercial, mal andou o Tribunal a quo porquanto serviu-se de uma disposição legal que prevê, exactamente a existência de um mandato conferido;
31)–Porque o Tribunal a quo não pode, como efectivamente ocorreu, afastar a gerência de facto dos Recorridos RR com base no suposto facto destes não deterem poderes para disporem de elementos do património da Devedora e, ao mesmo tempo, aplicar a estes o regime vertido nos artigos 248.º e seguintes do Código Comercial, sob pena de confirmação de uma Decisão Judicial que afasta a aplicação de um regime por falta de verificação de um concreto pressuposto, determinando a aplicação de um outro regime que obriga a verificação desse mesmo pressuposto;
32)–Porque no que tange às alíneas d) e f) do número 2 do artigo 186.º do CIRE, resulta suficientemente demonstrado da prova documental carreada nos autos recorridos que a totalidade dos bens que compunham o espólio patrimonial da Devedora foi dissipado para a sociedade WV;
33)–Porque, no que tange à alínea h) do número 2 do artigo 186.º do CIRE, é a própria Recorrida MZ que reconhece a prática de irregularidades com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da Devedora;
34)–Porque, no que tange à alínea a) do nº 3 do artigo 186.º do CIRE, atento os fundamentos supra expostos quanto ao momento do conhecimento, por parte dos Recorridos, que a Devedora se encontrava impossibilitada de cumprir com as obrigações vencidas, resulta evidente a verificação deste pressuposto;
35)–Porque, no que tange à alínea b) do nº 3 do artigo 186.º do CIRE, mensalmente, seja através do pagamento das remunerações por intermédio de terceira pessoa, seja através das encomendas à M. SA de produtos que não tinham a qualidade necessária, seja através do acumular de dívidas a fornecedores superiores a um milhão de euros, seja através da dissipação da totalidade do património da Devedora e respectiva restituição do produto recebido pela mesma ao senhor José, os Recorridos agravaram, consciente e dolosamente, a situação de insolvência da Devedora;
36)–Porque a Devedora tinha dívidas ao ISS, IP, que se venceram a partir de 1.10.2019, tendo optado, consciente e dolosamente, por proceder à restituição do produto da dissipação do património para o senhor José, em detrimento de efectuar um pagamento justo e igualitário por todos os seus credores, designadamente os privilegiados, onde se inclui o Estado Português;
37)–Porque, ao decidir como decidiu - i. e., que o disposto no artigo 49.º, n.º 4, é igualmente aplicável ao caso vertente e, nomeadamente, que os Recorridos RR não exerciam, por esse motivo, a gerência de facto - , o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 49.º, n.º 4 CIRE e 248.º do CCom, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 49.º, n.º 4 CIRE e 248.º do CCom, preceitos estes que, isolada ou conjugadamente, deveriam ter sido interpretados no sentido de que (1) o disposto no artigo 49.º, n.º 4, CIRE não é aplicável no caso em apreço e (2) os Recorridos RR exerciam efectivamente a gerência de facto da sociedade Devedora;
38)–Porque, ao decidir como decidiu - i. e., que as condutas que decorrem dos factos que se encontram demonstrados (e bem assim daquelas que resultam da prova produzida em audiência de Julgamento e dos factos que deveriam ter sido considerados como provados) - , o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 186.º, n.ºs 2 e 3 CIRE o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 186.º, n.ºs 2 e 3 CIRE, preceitos estes que, isolada ou conjugadamente, deveriam ter sido interpretados no sentido de que as condutas dos Recorridos são passíveis de integrarem as alíneas de tais preceitos, outra conclusão não se mostrando razoável.
10.–Os recorridos CR e JR apresentaram contra-alegações que sintetizaram nas seguintes conclusões:
A)-Inconformada com a douta sentença, vem a Requerente dela interpor recurso de apelação;
B)-A matéria de facto dada como provada foi aquela que consta da aliás douta sentença recorrida, elaborada com a habitual eficiência, correspondendo assim à prova produzida em audiência, quer com base no depoimento e declarações das partes e das testemunhas, quer com base na valoração correcta e adequada de toda a documentação junta aos autos e em conformidade com uma correta interpretação e aplicação do Direito;
C)-A douta sentença recorrida não padece de qualquer nulidade;
D)-Não existe qualquer contradição nos fundamentos invocados;
E)-Nem existe contradição entre a convicção probatória / fundamentação e a decisão de mérito, nos termos do disposto na alínea c), do nº 1, do artº 615º CPC.;
F)-Tampouco a douta sentença recorrida padece de contradição entre os factos provados e a decisão de mérito, não constituindo um erro de julgamento, conforme o disposto na alínea c), do nº 2, do artº 662º do C.P.C.;
G)-Nem a douta sentença padece de nulidade por não considerar verificadas as alíneas a) d) f) g) e h) do nº 2, bem como as alíneas a) e b) do nº 3 do artigo 186.º, todos do CIRE;
H)-Quanto à impugnação da matéria de facto, a prova indicada, e em especial, a prova testemunhal e por declarações/depoimento referida, com transcrição (ainda que parcial) dos respectivos depoimentos, é insuficiente para alterar os pontos da Matéria de Facto impugnada, pelo que a mesma é de se manter;
I)-Além disso, a sentença recorrida está devidamente fundamentada;
J)-Em rigor, a discordância da Recorrente situa-se essencialmente no âmbito da livre apreciação da prova concedida ao tribunal nos termos do art.º 607, n.º 5 do C.P.C., segundo o qual o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto mas não visa factualidade concreta que se tenha por apurada;
K)-A reapreciação da prova produzida não permite colocar em crise a razoabilidade da convicção do julgador, quanto aos pontos que a Recorrente pretende ver alterados, carecendo de razão para intentar o presente recurso;
L)-Não assiste razão à recorrente devendo-se manter inalterado o ponto 42, 43 e 53 da matéria de facto provada;
M)-Não pode a douta sentença recorrida considerar provados os factos cuja Recorrente pretende que sejam aditados;
N)-A pretensão da Recorrente não merece acolhimento devendo manter-se, na íntegra e inalterada, a matéria de facto Provada e Não Provada constante da douta sentença recorrida;
O)-Por outro lado, os 3.º e 4.º Requeridos nunca dispuseram do património da devedora;
P)-Nem tinham acesso a contas bancárias ou conhecimento do saldo e movimentações realizadas pelos 1.º e 2.º Requeridos;
Q)-Nem exerceram, directa ou indirectamente e de modo autónomo (não subordinadamente) funções próprias de gerente de direito da sociedade.
R)-Não possuindo os ora Recorridos qualquer poder e independência nas propostas ou tomadas de decisão;
S)-Da prova do autos não resulta o exercício positivo, real e efectivo de actos de gerência;
T)-Logo, não sendo os ora recorridos gerentes de facto, não podem estar abrangidos pelo disposto no n.º 1 e 2 do artigo 186.º do CIRE ou pelas presunções previstas no n.º 3 do citado artigo;
U)-De qualquer modo, ainda que fossem considerados gerentes de facto, o que se considera sem se admitir, da atuação dos recorridos verifica-se não estarem preenchidos os pressupostos para a qualificação da sua atuação como culposa, nos termos determinados no artigo 186º do CIRE;
V)-Pelo exposto, face aos elementos de facto e de direito, constantes da sentença ora sob recurso, entende‐se que a Mma. Juíza a quo fez a mais correcta interpretação dos factos, e a melhor integração jurídica dos mesmos formando a sua convicção com base na análise critica e conjugada da prova testemunhal produzida em audiência, com a prova documental junta aos autos e com as declarações/depoimentos das partes, sob o crivo das mais elementares regras da experiência comum pelo que não deve proceder o recurso interposto.
11.–Examinados os autos, simultaneamente com a prolação do despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões foi ordenada a notificação das partes nos termos e para os efeitos do art. 665º, nº 3 do CPC com vista à eventual apreciação, se esse for o caso e em substituição do tribunal recorrido, das questões cujo conhecimento resultou prejudicado pela decisão recorrida, atinentes com a medida dos efeitos da insolvência culposa.
A esse respeito as partes nada ofereceram nos autos.
II–Objeto do Recurso
Nos termos dos arts. 635º, nº 5 e 639º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil, o objeto do recurso, que incide sobre o mérito da crítica que vem dirigida à decisão recorrida, é balizado pelo objeto do processo e definido pelo teor das conclusões e, sem prejuízo das questões que oficiosamente cumpra conhecer, destina-se a reponderar e, se for o caso, a anular, revogar ou modificar decisões proferidas, e não a apreciar e a criar soluções sobre questões de facto e/ou de direito que não foram sujeitas à apreciação do tribunal a quo e que, por isso, se apresentam como novas, ficando vedado, em sede de recurso, a apreciação de novos pedidos, bem como de novas causas de pedir em sustentação do pedido ou da defesa.
Acresce que o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos nas alegações mas apenas das questões de facto ou de direito relevantes para conhecimento do respetivo objeto, sendo livre na aplicação e interpretação do direito.
Com as referidas limitações, de acordo com o processado nos autos, o teor da sentença recorrida, e as conclusões enunciadas pelos recorrentes, sem prejuízo de outras questões que oficiosamente cumpra conhecer ou das que resultem prejudicadas pelo resultado da apreciação de questão precedente, por ordenação lógico-processual do seu conhecimento, vêm submetidas a apreciação as seguintes questões:
A)–Nulidade da sentença com fundamento legal no art. 615º, nº 1, als. b) e c) do CPC, invocando .
i)-falta de fundamentação da decisão de não verificação dos fundamentos legais de qualificação previstos pelas als. a) e h) do nº 2 o art. 186º; e
ii)-contradição entre a motivação da decisão de facto e a decisão.
B)–Erro no julgamento de facto (pontos 39, 42, 43 e 53 dos factos provados, e alíneas b), c) e d) dos factos não provados).
C)–Ampliação/aditamentos à matéria de facto.
D)–Erro no julgamento de direito,
1)- Na aferição dos pressupostos da qualificação da insolvência como culposa;
2)- Na aferição da responsabilidade dos recorridos ZZ como administradores de direito, e dos recorridos RR como gerentes de facto da insolvente.
E)–Concluindo-se pela qualificação da insolvência como culposa, medida das consequências legais previstas pelo art. 189, nº 2 (inibição e indemnização).
III–Fundamentação
1–O tribunal recorrido proferiu a seguinte decisão de facto (a negrito os pontos objeto de impugnação):
“II.–Fundamentos de facto
II.1- Factos provados
Com pertinência, consideram-se provados:
II.1.a Devedora
1.–A Devedora sociedade M. LDA, pessoa coletiva n.º 5…, com sede no Mercado Abastecedor da Região de Lisboa, …, foi constituída em … de 2011.
2.–Desde então, tem o capital social de € 5.000,00.
3.–Sempre foram sócios: i) com quota no valor nominal € 1.000,00 (mil euros), a sociedade comercial anónima M. S.A.; ii) com uma quota no valor nominal de € 2.000,00 (dois mil euros), MZ; e, iii) uma quota no valor nominal de € 2.000,00 (dois mil euros), OZ.
4.–A sociedade tem por objeto a comercialização por grosso, importação e exportação de frutas e outros produtos alimentares, minimercado, charcutaria e padaria, comércio a retalho de frutas e produtos hortícolas, fornecimento e distribuição a estabelecimentos de restauração e hotelaria.
5.–Obriga-se com a intervenção de um gerente.
6.–São gerentes registados: MZ, contribuinte fiscal n.º …; OZ, contribuinte fiscal n.º…; ambos residentes na Rua ….
7.–Nas últimas contas depositadas, reportadas ao ano de 2018, a Requerida declarou resultado líquido de € 18.208,14, ativo de € 1.855.017,64 e passivo de € 1.638.996,96.
II.1.b Principal
8.–Em 19-11-2020, a sociedade Contabilidade…, Lda. instaurou a ação de insolvência.
9.–Citada, a Requerida confessou a insolvência.
10.–Juntou documentos.
11.–Requereu a notificação da Requerente para cumprimento do disposto no artigo 24.º/1, al. f), do CIRE.
12.–Em 17-03-2021, foi proferida sentença de declaração de insolvência.
13.–Requerente Contabilidade…Ldª e Devedora acordaram na prestação de serviços de contabilidade – faturas juntas pela Requerente.
14.–Com fundamento no contrato, a Requerente instaurou, a 13-05-2020, injunção, pelo montante de € 15 475.20 – requerimento inicial junto pela Requerente.
15.–A mora no pagamento da retribuição teve início em 2 de dezembro de 2019.
II.1.c Outros processos de insolvência
16.–Em 16-11-2020, por sentença proferida no âmbito do processo n.º …/20.8T8VFX, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo de Comércio de Vila Franca de Xira – Juiz 2, foi declarada a insolvência da sócia M., S.A.
17.–Os Requeridos MZ e OZ exerciam as funções de administradores da M. SA, desde cerca de 2003.
18.–A Devedora apresentou-se à insolvência em 08-01-2021.
II.1.d Relação de bens da Devedora
19.–A Devedora apresentou relação de bens:
“1.-Veículo automóvel com a matrícula HI da propriedade da sociedade Requerente, cujo respectivo paradeiro é desconhecido pelos seus sócios gerentes de direito;
2.-Fotocopiadora da marca Sharp modelo MX-2651N, sob locação pela sociedade Requerente junto da G…, S.A. (cfr. documento anexo), que se encontra no Complexo Industrial….
II.1.e Apreensões
20.–Foram inventariados bens móveis, entre os quais:
“Veículo com a matrícula HI, marca Toyota, modelo Dyna 150. Os gerentes da Devedora declararam desconhecer o seu paradeiro, esclarecendo que o veículo terá sido entregue na oficina C…, Lda. O Sr. Administrador da Insolvência notificou aquela sociedade para confirmar tal informação.
Conta de títulos n.º 2..-61.0....7-9, no Banco Montepio, com saldo de 1960 Ações Agrogarante;
Conta de Fundos n.º 2..-62.0....6-5, no Banco Montepio, com saldo de 118 UP do Fundo Valor Prime, no montante aproximado de € 1.061,41;
Cheque n.º 0.........3, do Citibank Europ PLC, no montante de € 23,27 (vinte e três euros e vinte e sete cêntimos), emitido pela Mapfre Seguros Gerais, S.A., a favor da insolvente.
Fotocopiadora da marca Sharp modelo MX-2651N, alvo de locação financeira.”.
21.–Pende resolução em benefício da Massa Insolvente da transmissão de quatro veículos, TA, EP, TZ, IM, 3 câmaras frigoríficas, 1 empilhador, 6 bancadas inox, 1 móvel de lavagem de verduras, 4 balanças 150 kg, 8 cacifos, 1 chafariz, 5 PCs e écrans, 3 secretárias e 5 cadeiras e 3 carros de transporte de CX.
II.1.f Créditos verificados
22.–São créditos verificados:
A…, S.A. 33 244,27 € Garantido 1260 ações Agrogarante
A… HORTÍCOLAS, LDA. 19 897,89 € Comum
B… E CEBOLAS, LDA. 9 553,35 € Comum
B…, LDA. 11 615,15 € Comum
B…, LDA. 58,26 € Subordinado
CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL 98 634,98 € Comum
C… CRÉDITOS, S.A. 38 523,20 € Comum
C. LDA. 602,62 € Comum
C. LDA. 2,37 € Subordinado
C… TRANSPORTES, UNIPESSOAL, LDA. 4 662,81 € Comum
CRISTINA 14 069,51 € Privilegiado laboral, vencido em 01-09-2020
E…, S.A. 23 533,36 € Comum
ESTADO PORTUGUÊS (ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA) 53,85 € Garantido veículo XX-XX-XX
ESTADO PORTUGUÊS (ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA) 4 094,13 € Privilegiado IVA
ESTADO PORTUGUÊS (ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA) 349,70 € Comum
F…, LDA. 10 422,88 € Comum
FR…, LDA. 137,12 € Comum
G…, S.A. 3 654,79 € Comum Condicionado
INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL, I.P. 32 662,87 € Privilegiado Contribuições, vencido em 01-03-2020
INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL, I.P. 52 559,38 € Comum, vencido em 01-10-2019
J., LDA. 24 507,94 € Comum
J. LDA. 214,34 € Subordinado
J…, LDA. 16 898,55 € Comum
JOSÉ…, LDA. 18 002,34 € Comum
JOSÉ…, LDA. 105,78 € Subordinado
J… AGRÍCOLAS, LDA. 18 552,10 € Comum
LUÍS 3 052,05 € Privilegiado Laboral, vencido em 03-10-2020
L…, S.A. 4 402,78 € Comum
MANUEL 38 311,87 € Privilegiado laboral
M… 1 813,11 € Comum
MEO - SERVIÇOS DE COMUNICAÇÕES E MULTIMÉDIA, S.A. 4 856,29 € Comum
CONTABILIDADE, LDA. 16 009,53 € Comum
N…, S.A. 727,29 € Comum
P…, LDA. 16 580,71 € Comum
V…, S.A. 5 163,62 € Comum
FÁBIO (apenso C) 9 360,77 € Privilegiado Laboral
ESTADO PORTUGUÊS (Ministério Público) (apenso D) 2 499,00 € Comum
F… LEGUMES, LDA. (apenso E) 9 364,20 € Comum
23.–O Fundo de Garantia Salarial apresentou requerimento de sub-rogação relativamente a créditos laborais.
II.1.g Conta bancária Millenium ano 2020
24.–Transferências para MZ
31-07 € 1 500
II.1.h Conta bancária BPI ano 2020
25.–Transferência de MZ
05-08 € 4 000
26.–Transferência para Contabilidade…, Ldª
05-08 € 5 000
II.1.i Conta bancária Montepio ano 2020
27.–Transferências para MZ
01-07 € 445
08-04 € 5 000
08-04 € 5 000
05-08 € 650
10-08 € 445
19-08 € 644,43
02-09 € 445 28.
Transferências de MZ
08-04 € 1 000
05-08 € 500
29.–Transferências para José
03-07 € 2 256,48
12-08 € 2 883,40
13-08 € 3 095,87
14-08 € 4 342,20
19-08 € 2 446,95
20-08 € 5 000,67
22-08 € 5 049,32
26-08 € 4 975,63
02-09 € 3 099,67
04-09 € 7 447,89
08-09 € 8 774,25
10-09 € 5 199,41
14-09 € 7 380,46
21-09 € 7 524,14
30.–Transferências da sociedade WV
11-08 € 2 952
13-08 € 3 075
14-08 € 4 428
17-08 € 942,55
17-08 € 1 524,40
20-08 € 5 000
21-08 € 5 000
24-08 € 63 390,94
24-08 € 5 000
31-08 € 3 000
03-09 € 7 500
10-09 € 5 259,05
10-09 € 7 500
16-09 € 7 590
25-09 € 7 007,85
04-11 € 127,54
11-11 € 4 458,75
31.–Transferências para a sociedade WV
10-11 € 471,93
10-11 € 769,35
10-11 € 288,14
10-11 € 294,24
32. 26-08 Pagamento Leasing € 61 904,82.
33. 27-08 Transf. GR 27-08 € 4 244,4
II.1.j Gerência
34.–A Devedora fornecia hotéis e restauração de luxo, área da experiência dos 3.º e 4.º Requeridos, que detinham carteira de clientes, fornecedores e funcionários.
35.–Os 1ª e 2º Requeridos não tinham experiência na área.
36.–A Devedora fornecia-se na sua sócia M. SA, entre outros.
37.–Por decisão dos 1.ª e 2.º Requeridos, a Devedora cessou a laboração em agosto de 2020.
38.–Assim ocorreu na sequência da cessação da intervenção dos 3.º e 4.º Requeridos, em 12 de julho de 2020.
39.–Os 1.º e 2.º Requeridos sabiam que, nesse momento, a Devedora se encontrava impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas.
40.–Os 1.ª e 2.º Requeridos eram os titulares das contas bancárias da Devedora.
41.–As contas bancárias eram movimentadas pela Requerida MZ. Designadamente, procedendo ao pagamento a fornecedores e trabalhadores.
42.–Com habitualidade, os 1.ª e 2.º Requeridos contratavam trabalhadores, pagavam prémios, compravam equipamento, após proposta dos 3.ª e 4.º Requeridos.
43.–Os 3.º e 4.º Requeridos negociavam com clientes e fornecedores.
44.–Definiam os trajetos de distribuição e horários.
45.–Estavam presentes com regularidade nas instalações da Devedora.
46.–Não acediam ou movimentavam as contas bancárias da Devedora.
II.1.k Salários dos 3.º e 4.º Requeridos
47.–Por terem dívidas, os 3.º e 4.º Requeridos pretendiam evitar a titularidade de bens, rendimentos ou património.
48.–As suas filhas GR e AR recebiam salários contrapartida da atividade dos 3.º e 4.º Requeridos.
II.1.l WV
49.–As filhas dos 3.º e 4.º Requeridos, AR e AR, foram sócias fundadoras da WV, com quotas minoritárias, sociedade constituída em 15-06-2020, com sede na Rua…., pessoa coletiva n.º 51… .
50.–Após a cessação de funções na Requerente, os 3.º 4.º Requeridos passaram a exercer idênticas funções na WV.
51.–Consigo levaram clientes, fornecedores e trabalhadores.
52.–Em agosto de 2020, os 1.ª e 2.º Requeridos venderam as viaturas e outros equipamentos utilizados pela Devedora à sociedade WV.
53.–Com o produto das vendas, efetuaram pagamentos, designadamente na pessoa de José, sócio maioritário e gerente da WV.
54.–Em 06-08-2020, a Devedora, representada pelos 1.ª e 2.º Requeridos, declara o exercício da opção de compra e antecipação cumprimento da locação dos veículos XC e XC € 63 390.95.
55.–Os veículos foram vendidos à WV, registo de 11-09-2020.
II.1.m Escritos
56.–Foi emitido escrito intitulado “Balancete Geral Acumulado Exercício 2019”, relativamente à Devedora – documento junto com o requerimento inicial do incidente.
57.–Por mensagem de correio eletrónico datada de 28.08.2019, CR RR, através do endereço electrónico R@m....pt, comunica à sociedade do contabilista …Ldª , através do endereço, “…@....pt”, bem como à 1.ª Requerida, MZ, através de “m…@m….pt”, “o funcionário (…) despediu-se e contratámos este novo funcionário (…).” - documento 18.
58.–Por mensagem de correio eletrónico datada de 21.06.2020, Elsa, funcionária da Devedora, comunica a CR, para o endereço electrónico “R@m....pt” “(…). Venho por este meio solicitar à Entidade Patronal uma declaração em meu nome e em nome do Manuel em como estamos efetivos na empresa. Agradeço assim que possível que me envio para o meu mail (…).” – documento 19.
59.–Por mensagem de correio eletrónico datada de 22.06.2020 CR, com origem no seu endereço electrónico “R@m....pt”, dirigido a MZ, para o endereço electrónico “m…@m….pt”, comunica aquela “Vou fazer esta declaração, precisava que depois assinasse” – documento 19.
60.–Por mensagens de correio eletrónico datadas de 28.06.2020 e de 27.02.2020, CR RR, através do endereço electrónico R@m....pt, comunica à sociedade do contabilista…Ldª, através do endereço, “...@...pt”, bem como à 1.ª Requerida, MZ, através de “m…. @m….pt”, “Serve o presente email para enviar as alterações aos vencimentos. Assim temos: Novo NIB (…) Baixa médica (…) Descontos vencimento (…) Vencimentos Tempo completo (…) Férias (…). Part time (…). Prémios (…).” - documentos 20 e 21.
61.–Por mensagens de correio eletrónico datadas de 08.03.2019, CR, através do endereço electrónico R@m....pt, comunica à sociedade do contabilista…Ldª, através do endereço, “…@....pt”, “O (…) pretende ir de férias e eu queria saber a quantos dias e o respectivo subsídio relativos a 2018” – documento 22.
62.–Por mensagens de correio eletrónico datadas de 30.04.2020, 05.04.2020, 03.07.2020 e 26.07.2019, CR e JR, com origem no endereço electrónico “R@m....pt”, dirigidas a MZ, para o seu endereço electrónico “m….@m….pt”, indicam a esta última os valores concretos que faltavam pagar nas respetivas datas a determinados funcionários, colaboradores ou fornecedores da Devedora, e alguns dos meios para o efeito: cheque ou transferência bancárias – documentos 23, 24, 25 e 26.
63.–Por mensagens de correio eletrónico datadas de 25.05.2020, 08.06.2020, 13.07.2020, 03.04.2020 e 29.05.2020, CR, através do endereço electrónico R@m....pt, comunica à sociedade do contabilista…Ldª, através do endereço, “…@....pt”, bem como à 1.ª Requerida, MZ, através de “m… @m….pt”, declarações de internamento e baixas médicas do funcionário Francisco, assim como questiona e confirma matérias relacionadas com a aplicação do regime de lay-off - documentos 27, 28, 29, 30 e 31.
64.–Por mensagem de correio eletrónico de 17-02-2020, CR comunica a OZ: “Agradeço que explique à Sandra que o que eu quero e aquilo que eu lhe pedi não são fotocópias dos cheques da MZ, são as fotocópias dos vales e escusa de mandar por scâner basta entregar à Catarina.”. Por mensagem de correio eletrónico datada de 18-02-2020, a ex-funcionária da Devedora Sandra através do endereço electrónico “sandra… @m….pt”, dirigida a CR através do endereço electrónico R@m....pt, com conhecimento aos 1.ª e 2.º Requeridos, MZ e OZ, “Bom dia Sr. CR Seguem em anexo todas as cópias de vales que tenho em falta Folhas de Caixa até ao momento. Vão também em anexo os do seu irmão se puder entregar agradeço. Seguirão em formato papel também tal como pediu.”. – documento 33.
II.2 Factos não provados, com interesse para a decisão da causa
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a boa decisão da causa, designadamente os que estejam em contradição com os supra descritos, e ainda:
a)-Os bens transferidos para a sociedade WV tinham o valor total de € 74 544,15.
b)-Ocorreu desvio de fundos, no montante de € 18 228,91 a favor dos terceiro e quarto Requeridos e da filha do Requerido CR, AR.
c)-Ocorreu desvio de fundos, no montante global de € 5 000,00, em benefício dos Requeridos.
d)-Ocorreu desvio de fundos a favor de José, no montante global de € 17 809,12, em benefício dos Requeridos.
e)-O contabilista recusou-se à entrega dos documentos contabilísticos e financeiros da Devedora.
VI–Fundamentos do Recurso
A)–Das nulidades
1.–Sob a epígrafe Causas de nulidade da sentença dispõe o art. 615º, nº 1 do CPC que É nula a sentença quando:
a)- Não contenha a assinatura do juiz;
b)- Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c)- Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d)- O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e)- O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
Importa relembrar que, conforme tem vindo a ser reiteradamente referido pela jurisprudência - perante [a] enunciação nas alegações de recurso de nulidades de sentença, numa tendência que se instalou e que a racionalidade não consegue explicar, desviando-se do verdadeiro objecto do recurso que deve ser centrado nos aspectos de ordem substancial [2] -, é consensual e assente na doutrina e na jurisprudência que as nulidades taxativamente previstas pelo art. 615º do CPC reportam à violação de regras de estrutura, conteúdo e limites do poder-dever de pronúncia do julgador, consubstanciando defeitos de atividade ou de construção da própria sentença, ou seja, vícios formais da sentença ou vícios relativos à extensão ou limites (negativo e positivo) do poder jurisdicional por referência ao caso submetido a apreciação e decisão. Vícios que não contendem com o mérito da decisão e, por isso, não consubstanciam nem se confundem com um qualquer erro de julgamento, quer na apreciação da matéria de facto quer na atividade silogística de aplicação do direito[3]. Os primeiros – vícios formais ou de limites, previstos pelo art. 615º, nº 1 do CPC - dão lugar à anulação da sentença. Os segundos – vícios materiais ou de julgamento -, passíveis apenas de censura por via de recurso, determinam a revogação/alteração da decisão.
Os recorrentes imputam à decisão os vícios da falta de fundamentação e da contradição previstos pelas citadas als. b) e c), respetivamente.
2.–O vício da falta de fundamentação, de facto ou de direito, corresponde a vício formal e estriba-se no princípio geral do dever de fundamentação previsto pelo art. 154º, nº 1 do CPC, nos termos do qual “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma duvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.” Princípio que a lei concretiza e apura em sede de elaboração de sentença, prevendo o nº 2 e 3 do art. 607º do CPC que, após a identificação das partes, do objeto do litígio e das questões que cumpre solucionar, o juiz deve fundamentar a sentença através da discriminação dos factos que considera provados e da indicação, interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis, concluindo pela decisão final. O conteúdo ou intensidade da fundamentação, que não se mede pela sua extensão métrica, será a ajustada à maior ou menor complexidade das questões objeto de apreciação e decisão, ou da sua maior ou menor discussão na doutrina ou na jurisprudência[4]. Conforme é unanimemente defendido na doutrina e jurisprudência, cabe ainda distinguir entre a falta de fundamentação e a fundamentação deficiente, insuficiente ou errada, posto que o que a lei sanciona com o vício da nulidade é tão só a falta absoluta de motivação, a ausência total de fundamentos de facto e/ou de direito relativamente a cada uma das questões objeto de apreciação. Nas palavras do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.05.2019 (processo n.º 835/15.0T8LRA.C3.S1), “A sentença ou o acórdão pode ser mais prolixo ou mais sintético. Mister é que contenha os elementos de facto e de direito necessários e suficientes para fundamentar a decisão.” A deficiente ou medíocre motivação afeta apenas o valor doutrinal ou a capacidade de convencimento da decisão, tornando-a ‘defeituosa’ mas não nula, com o risco de em recurso vir a ser revogada e substituída por outra que conclua em sentido divergente.[5]
Alegam os recorrentes que a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação quanto à decisão de não verificação das condutas previstas pelas als. a) e h) do nº 2 do art. 186º. Em fundamento alegam que o tribunal não apresentou nenhuma razão de facto ou de direito para sustentar tal entendimento, alegação que fazem depois de transcreverem os fundamentos que a propósito de uma e outra alínea constam em sede do enquadramento jurídico operado pela sentença, a saber, “Quanto à al. a): Não podemos afirmar a destruição, danificação, inutilização, ocultação de património. Bem assim, o desaparecimento, no sentido que pressupõe atos não facilmente reconstituíveis pelos credores, por princípio não documentados.”; e quanto à al. h), “A falta de contabilidade desde 2019, inclusive, não gerou prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.//Com efeito, não impediu a identificação do destino dos ativos.”
Ora, tendo presente que enquanto fundamento de nulidade da sentença a falta de fundamentação não corresponde a fundamentação deficiente, insuficiente ou errada, da citada transcrição logo resulta que o tribunal recorrido fundamentou a resposta negativa à qualificação da insolvência com fundamento nas alíneas em questão aduzindo a razão pela qual entende que os factos provados não se subsumem na hipótese abstrata prevista pela lei, que o mesmo é dizer, a razão pela qual não lhes reconheceu a relevância jurídica por aquelas normas pressuposta, claro está, em função da interpretação que o tribunal recorrido faz dos respetivos elementos ou pressupostos legais. A sentença é sem dúvida muito parca e deficitária na exposição do sentido normativo desses pressupostos, mas a constatação da aludida fundamentação basta para concluir que o tribunal aduziu justificação que permite aos seus destinatários conhecer a razão da não qualificação da insolvência com fundamento nas normas em questão. De resto, constata-se que os recorrentes divergem desta conclusão e da sua justificação; porém, tanto não contende ou interfere com qualquer vício formal de construção da sentença mas com a interpretação de cada uma das normas e com a valoração e qualificação jurídica da matéria de facto provada, que é feita em função daquela interpretação; em suma, divergem da aplicação da lei ao caso, que apenas pode fundamentar imputação de erro de julgamento, mas já não de nulidade da sentença.
Com o que se conclui pela ausência da nulidade de sentença com fundamento em falta de fundamentação.
3.–O vício previsto pela al. c) do nº 1 do art. 615º do CPC corresponde igualmente a vício de construção da sentença e verifica-se quando os fundamentos estão em oposição com a decisão, ou seja, quando aqueles conduzem logicamente e apontam para um resultado e, afinal, é extraído outro, manifestando uma contradição lógica entre as premissas e a conclusão.
Os recorrentes invocam este vício com fundamento em contradição entre a fundamentação da convicção probatória e o sentido da sentença, alegando que aquela só poderia conduzir à condenação dos recorridos. Nestes termos a arguição surge processualmente descabida já que a contradição pressuposta pela lei reporta à relação entre a qualificação jurídica dos factos exposta em sede de fundamentação de direito e a conclusão que dela é extraída na decisão, que é oposta à consequência jurídica para a qual aponta aquela fundamentação jurídica. Nas palavras do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.01.2019, “a nulidade do aresto, sustentada na contradição entre os seus fundamentos e decisão, pressupõe um erro lógico na argumentação jurídica, dando conclusão inesperada e adversa à linha de raciocínio adoptada, ou seja, apenas ocorre, quando os fundamentos invocados pelo Tribunal deviam logicamente conduzir ao resultado oposto ao que veio expresso no dispositivo do dito acórdão. Daqui decorre que a concreta motivação do julgamento de facto não detém a virtualidade de fundamentar a contradição lógica entre os fundamentos e a decisão posto que não é através daquela que é cumprido o designado silogismo judiciário, de aplicação do direito aos factos. A motivação da decisão de facto tem como função justificar a convicção ou ausência de convicção sobre os factos controvertidos, através da exposição do raciocínio lógico indutivo que a formou (ou não formou), mas cujo resultado é materializado na descrição dos factos julgados provados e não provados. A contradição que no confronto com a motivação da decisão de facto é passível de ser revelada reporta apenas ao resultado expresso nessa mesma decisão (de facto), sendo que nesse caso a sentença não padece de vício lógico na sua construção, isto é, de nulidade, mas de erro de julgamento de facto (no juízo que o tribunal formou com fundamento na prova produzida) e/ou de omissão de factos relevantes ao conhecimento do mérito da ação.
No demais, ainda que deficiente na indicação dos concretos factos considerados na apreciação de cada um dos fundamentos legais considerados na sentença, esta opera o encadeamento jurídico-lógico-normativo a partir das normas por ela convocadas para qualificação jurídica dos factos provados (e não a partir da motivação destes) e, na decisão, conclui em conformidade lógica com o que previamente consignou e expôs em sede de fundamentos de direito definindo, na aplicação da previsão abstrata dos fundamentos legais convocados, o sentido decisivo dos mesmos no confronto com os factos provados.
De resto, do mero cotejo do alegado em fundamento da nulidade arguida – desde logo, a invocada contradição entre a prova produzida e a decisão de mérito - resulta que a contradição que aponta à decisão recorrida mais não corresponde, por um lado, a discordância com o julgamento de facto realizado pelo tribunal recorrido e, por outro, a interpretação distinta das normas aplicadas, designadamente, quanto ao âmbito e sentido do art. 248º do Código Comercial, e a valoração jurídica distinta daquela que o apelante formula ou preconiza, discordando, em suma, da subsunção jurídica dos factos realizada pelo tribunal a quo e da conclusão que deles retirou com fundamento nas normas legais aplicáveis.
De todo o exposto se conclui pela improcedência da invocada nulidade da sentença, sendo certo que, ainda que se concluísse pela sua verificação, não teria outro resultado que não suscitar a intervenção dos poderes de apreciação da Relação em substituição do tribunal recorrido, por imperativo do art. 665º nº 1 do CPC.
B)–Do erro na decisão de facto
1.-Âmbito e requisitos gerais
A impugnação à decisão de facto tem como objeto a convicção ou juízo fáctico que o tribunal recorrido formou sobre os factos que descreveu na decisão de facto, e/ou a violação de regra de direito probatório material. Não abrange o juízo de direito com que o tribunal operou o enquadramento legal dos factos provados e fundamentou o sentido da decisão recorrida, que enquadra no erro de julgamento de direito. O erro na aplicação de regras vinculativas de direito material probatório, como decorrência do art. 5º, nº 3 do CPC, cabe no poder-dever de conhecimento oficioso da Relação, portanto independentemente de impugnação do recorrente, desde que e na medida em que possa interferir no resultado do recurso interposto.
Dispõe o art. 640º, nº 1 do CPC que, pretendendo o recorrente a reapreciação da matéria de facto em sede de recurso, sob pena de rejeição, sobre ele recai o ónus de delimitar o objeto e o sentido da sua pretensão recursiva especificando:
a)-Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)-Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)- A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a)- Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b)- (…)
Do teor das alegações de recurso resulta que as recorrentes delimitaram o objeto da impugnação e o resultado por ela pretendido através da indicação dos pontos de facto aos quais apontam erro de julgamento, e indicaram os meios probatórios que, na valoração que deles fazem, entendem imporem alteração da referida decisão. Mais deram cumprimento ao ónus, dito secundário, previsto pelo al. a) do nº 2 do preceito em referência, através da localização das passagens da gravação onde constam registados os depoimentos que invocam.
Mostram-se assim cumpridos todos os requisitos processuais da impugnação à matéria de facto, pelo que nada obsta ao seu conhecimento, atividade a que se procede pautada pelas regras e critérios que infra se expõem
2.– Critérios de apreciação
Prevê o art. 341º do CC que As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos. Nos termos do art. 342º do CC, recai sobre quem invoca um direito o ónus de demonstrar a realidade dos factos constitutivos do direito alegado, isto é, a realidade dos factos essenciais que constituem a causa de pedir e integram a previsão da norma ou das normas materiais que suportam a pretensão que deduz. Não basta invocar, alegar e peticionar o direito; impõe-se a prova dos factos que fundamentam o pedido e cuja subsunção jurídica permitam o reconhecimento desse direito, sendo esses os factos que constituem o thema probandum e que, uma vez provados, integram o thema decidendum.
Dispõe o art. 607º, 4 do CPC que Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência. Acrescenta o nº 5 que O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
O princípio da livre apreciação da prova – por contraposição com o sistema da prova legal, caraterizado por regras, medidas ou critérios legais de avaliação - tem como corolário o dever de motivação da decisão da matéria de facto, posto que aquele não significa julgamento arbitrário e insindicável do juiz, antes o resultado da apreciação crítica e analítica dos meios de prova concretamente produzidos, designadamente, das narrativas testemunhais, conjugando-as de per si, entre si, e/ou com outros meios de prova de distinta natureza, e por recurso à lógica e às regras da experiência comum, deles extraindo juízos valorativos e/ou conclusivos de facto - face à impossibilidade de reconstituição natural da realidade -, com indicação dos fundamentos condutores e determinantes dos raciocínios lógico-indutivos e dedutivos subjacentes a cada julgamento de facto. O que vale por dizer que o sistema da prova livre não corresponde a convicção pessoal, emotiva ou subjetiva, mas a convicção motivada e formada na prova produzida e nas regras da lógica e da experiência comum, correspondendo estas a realidades que, pela sua habitualidade, definem um “standard” de prova de natureza objetiva passível de sindicância, mas sem prejuízo da abertura do julgador para a exceção que, para além dos quadros mentais que a regra tende a definir/padronizar, resulte concretamente demonstrada[6]. Por outro lado, a alteração à decisão de facto apenas pode recair sobre os factos reais e concretos que, constando descritos nos articulados das partes/sujeitos processuais, correspondem à causa de pedir da ação ou aos fundamentos da defesa, mas sem prejuízo dos factos complementares ou concretizadores que resultem da instrução da causa (cfr. art. 5º, nº 2, al. b) do CPC) e, no apenso da qualificação da insolvência, dos factos relevantes que resultem de todo o processo de insolvência e sejam adquiridos nos autos (cfr. art. 11º do CIRE).
Sobre a problemática do resultado probatório, em anotação ao art. 414º do CPC Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Sousa[7] referem que Um ‘standard’ de prova consiste numa regra de decisão que indica o nível mínimo de corroboração de uma hipótese de facto para que tal hipótese possa considerar-se provada, ou seja, para que possa ser aceite como verdadeira. Em regra, no processo civil, esse ‘standard’ é o da probabilidade prevalecente (more-likely-than-not). Se, após a valoração da prova, não for atingido tal patamar ou se as provas produzidas pelas partes forem equivalentes, no sentido de que inexistem parâmetros concretos que justifiquem a prevalência da credibilidade de umas sobre as da contraparte, entra em campo a solução prescrita nesta norma. Assim, se depois de apreciada a prova o julgador permanecer em situação de dúvida ou incerteza sobre a realidade de um facto, conforme critério de decisão da matéria de facto fornecido pela 1ª parte do art. 414º do CPC, a situação de dúvida é ultrapassada ou resolvida contra a parte a quem o facto interessa ou aproveita, que o mesmo é dizer, contra a parte onerada com a prova daqueles factos, respondendo ao mesmo como facto não provado. Ónus que é aferido nos termos do art. 342º do CC, no confronto com a previsão das normas que o litígio convoca para a sua resolução e, estas, determinadas/identificadas no confronto com a fundamentação da pretensão de cada uma das partes em face dos elementos abstratos da lei, da qual se extrai quais os factos constitutivos da pretensão concreta deduzida no processo, sendo que, em caso de dúvida sobre a natureza do facto, conforme art. 342º, nº 3 do CC e 414º, 2ª parte, do CPC, presume-se que o mesmo é constitutivo do direito. Com efeito, é doutrinária e jurisprudencialmente consensual que o princípio do ónus da prova e as regras da sua distribuição não interferem na atividade de apreciação crítica da prova nem correspondem a critério de decisão de facto (ou seja, na ausência de prova ou em situação de dúvida sobre a realidade de um facto, o tribunal não dá como provada a versão negativa ou oposta desse facto). Nas palavras de Antunes Varela, O ónus da prova passa antes a significar a situação da parte contra quem o tribunal dará como inexistente um facto, sempre que, em face dos elementos carreados para os autos (seja pela parte interessada na verificação do facto, seja pela parte contrária, seja pelo próprio tribunal), o juiz se não convença da realidade dele.[8] E nas palavras de Anselmo de Castro, Quando exigida prova principal ela se malogre ou seja anulada pela contraprova, o facto tem-se por inexistente com a consequência de não poder ser aplicada a norma de cuja hipótese constituía pressuposto da sua aplicação. A causa terá pois de ser decidida contra a parte a quem a sua invocação aproveitava.[9]No art. 346º do CC a lei prevê o ónus probatório da contraprova a cargo da parte contra a qual é invocado o direito, dispondo que (…), à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos; se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova.
3.–Com pertinência ao caso, nas palavras legadas por Alberto dos Reis, na elaboração da sentença pede-se ao juiz a) Que fixe, em primeiro lugar, os factos da causa (premissa menor); b) Que interprete e aplique depois a lei aos factos (premissa maior); c) Que enuncie, por fim, a decisão (conclusão).[10]E recorrendo de novo aos ensinamentos do Conselheiro Abrantes Geraldes, (…) não obstante a atual concentração da decisão de facto e da decisão de direito em sede de sentença, a separação entre o que constitui matéria de facto e o que integra matéria de direito é questão que percorre toda a instância processual, desde os articulados, passando pela sentença, até aos recursos, maxime ao recurso de revista.[11]
Efetivamente, a especial, e de sobremaneira relevante, acuidade do julgamento da matéria de facto, reflete a essencialidade da mesma no resultado da ação. [C]onstitui o principal objectivo do processo civil declaratório, tendo em conta que é da matéria provada e não provada que depende o resultado da acção.[12]Mas para que a decisão de facto cumpra plenamente a sua função na realização da justiça do caso concreto, mister é que se apresente: completa, no sentido de expressar um juízo sobre todos os factos controvertidos e necessários à decisão da causa, declarando-os provados ou não provados; percetível ou inteligível, no sentido de permitir a compreensão, quer do sentido ou alcance de cada um dos pontos de facto descritos, quer do conjunto destes; e coerente ou isenta de contradições entre cada um dos factos descritos como provados e entre estes e os descritos como não provados.
No reverso daqueles requisitos a decisão de facto pode apresentar vícios ou patologias que não correspondem a erros de apreciação ou de julgamento de facto.[13] Assim será quando se apresente total ou parcialmente: deficiente, porque não reporta ou não inclui todos os factos relevantes para a decisão, ou porque se limita a expressar juízos conclusivos que só cabe extrair na prolação da sentença por recurso a factos reais que, para o efeito, devem constar concretizados na decisão de facto; obscura, porque de sentido ambíguo, confuso ou de difícil determinação; contraditória, porque contém descrição de factos incompatíveis entre si, quer no confronto entre os factos declarados provados, quer destes com os factos declarados não provados. [14] Em qualquer um destes casos a decisão não cumpre a definição de uma base factual segura e necessária, por imprescindível, à correta integração dos pressupostos normativos dos tipos legais convocados para apreciação e decisão da causa pautadas por princípios de justiça material.
Em síntese, em sede de elaboração de sentença, o juiz deve selecionar e proferir decisão concreta e precisa sobre os factos essenciais que integram cada uma das questões de facto que integram o objeto do processo. Tarefa que, no âmbito do incidente de qualificação da insolvência, se impõe seja concatenada com o poder-dever de o juiz incluir questões de facto e de atender a factos constitutivos de qualquer um dos pressupostos legais de qualificação da insolvência que resultem dos autos (processo principal de insolvência e apensos) ou da instrução do incidente, ainda que não alegados nos pareceres de qualificação ou nas peças processuais oportunamente apresentadas nos autos pelos interessados (insolvente, requeridos, e credores). Poder-dever ditado pelo princípio do inquisitório especialmente previsto pelo art. 11º[15] do CIRE e, este, pela natureza sancionatória e de interesse publico do incidente de qualificação da insolvência que, divergindo dos princípios do dispositivo e do inquisitório previstos pelos arts. 5º, nº 1 e 411º do CPC, permite a averiguação e consideração oficiosa de factos não alegados pelas partes. No âmbito dos procedimentos ali especificados o princípio do dispositivo surge fortemente mitigado posto que é dominado por um princípio do inquisitório alargado que, contrariamente ao que sucede com o âmbito do inquisitório previsto pelo art. 411º do CPC, estende-se aos factos que integram as previsões normativas convocadas para apreciação da verificação da situação de insolvência e da natureza culposa da insolvência, atribuindo ao juiz o poder-dever de incluir nos themas probandum e decidendum do incidente factos não alegados pelas partes, bastando tão só que resultem ou sejam por qualquer forma trazidos ao processo e se mostrem relevantes ao objeto daqueles procedimentos, com a consequente possibilidade de o tribunal proferir decisão com fundamento em factos essenciais não alegados pelos interessados ou partes no incidente, numa evidente supremacia das finalidades visadas pelos ditos procedimentos face ao interesse público do seu objeto[16]. Estabelecendo-se no regime da qualificação um inquisitório de tal maneira intenso que confere ao juiz o poder de abrir oficiosamente o incidente, de conformar subjetiva e objetivamente a instância, e de investigar livremente os factos, não pode deixar de ser considerado como um poder-dever clássico a que o juiz está adstrito e do qual não se pode demitir pelo que, sempre que os indícios existentes apontem numa determinada direção, devem ser investigados, em última análise, por iniciativa do juiz.[17]
4.–Na definição das consequências a extrair dos vícios da decisão de facto, sob a epigrafe Modificabilidade da decisão de facto, prevê o art. 662º do CPC que:
1- A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
No dizer de Abrantes Geraldes[18], Através dos nºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostre acessíveis., no pressuposto, certeiro, de que só assim fica assegurado o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise. E, conforme anota[19], a modificação oficiosa da decisão de facto impõe-se também para eliminar vícios ou erros de direito na sua elaboração.
No descrito rol de patologias da decisão de facto o citado ilustre conselheiro inclui a assunção e integração, como matéria de facto, de “pura matéria de direito e que nem sequer em termos aproximados se possa qualificar como decisão de facto”[20], e a omissão objetiva de factos relevantes por indispensáveis à boa decisão da causa, que impõem a ampliação da matéria de facto para que nela sejam incluídos e, resultando provados, considerados em sede de enquadramento jurídico, o que impõe a anulação da sentença e a repetição do necessário pelo tribunal recorrido[21] caso os factos omitidos não tenham sido submetidos ao contraditório e/ou a instrução. Assim o prevê a al. c) do nº 2 do art. 662º do CPC, nos termos do qual A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: (…) Anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta; (…).”
No dizer de Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Não oferecendo a sentença base de facto idónea à Relação para a decisão de direito, este tribunal deverá reapreciar os pontos de facto da matéria de facto a tanto necessários. E a respeito do conhecimento oficioso da nulidade da sentença prevista pela citada al. c) do nº 2 do art. 662º - cujo âmbito de aplicação referem ser instrumental em ordem à apreciação de mérito do objeto do recurso -, mais esclarecem que o que ela dispõe não tem diretamente a ver com a modificação da decisão de facto e com a formação de uma convicção própria pela Relação, assente no material probatório obtido, funcionando em regime de substituição (art. 665º), traduzindo antes um poder cassatório ou anulatório do tribunal ad quem. (…).//(…) a Relação só se pronuncia oficiosamente sobre a validade da sentença da 1ª instância se não conseguir proferir a decisão que lhe compete (de facto, neste caso).[22] Nesse mesmo sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.10.2019, assentando que o art. 662º, nº 2, al. c) do CPC apenas determina a anulação da decisão proferida quando do processo não constem todos os elementos probatórios necessários ao seu suprimento pelo Tribunal da Relação; “Ao invés, se estes estiverem acessíveis, a Relação deve proceder, enquanto tribunal de substituição, à sua apreciação e introduzir na decisão da matéria de facto as modificações que forem consideradas oportunas.//A intervenção do Tribunal da Relação nesse âmbito ocorre a título oficioso, independentemente, portanto, da iniciativa da parte interessada na alteração da decisão de facto, pelo que não são aplicáveis os ónus previstos no art.º 640 do CPC.”[23]
5.–Da impugnação
Feita a contextualização dos poderes-deveres do juiz em sede de decisão de facto no âmbito do incidente de qualificação da insolvência e dos poderes oficiosos da Relação nesta sede, cumpre verificar se existem fundamentos que alicercem a alteração requerida à decisão de facto, o que se faz por recurso à valoração da prova testemunhal e documental produzida nos autos, tendo-se procedido à audição integral do registo dos depoimentos prestados em audiência.
5.1.-Facto provado nº 39, (…)
Termos em que se impõe a eliminação do teor do ponto 39 dos factos provados, sem prejuízo do que nesta matéria – momento temporal da verificação e do conhecimento da situação de insolvência pelos recorridos ZZ - seja alcançado em sede de enquadramento jurídico dos factos provados e na medida em que estes o permitam.
5.2.-Facto provado nº 42, (…) e Facto provado nº 43, (…)
Em conclusão, densificando a matéria descrita sob os pontos 42º e 43º e a redação para eles pretendida pelas recorrentes e nela inserindo o teor dos pontos 44º a 46º dos factos provados, é possível resumir o resultado da prova que a respeito da mesma foi produzida no seguinte:
42º.–Os 1º e 2º requeridos constituíram a devedora para trabalhar com os 3º e 4º requeridos no modelo de negócio descrito em 34. que por estes lhes foi proposto desenvolver - aproveitando o status da M., SA e o crédito e ‘rappel’ por esta detido junto dos respetivos fornecedores -, tendo a requerida MZ apresentado a devedora a pelo menos alguns dos fornecedores da SA informando-os que ia começar a comprar (também) pela devedora e que os 3º e 4º requeridos eram os encarregados das compras.
43º.–Com a criação da devedora os 1º e 2º requeridos reservaram para si a gestão e controlo financeiro da devedora e, para os 3º e 4º requeridos, a gestão operacional daquela atividade, atinente com as compras, as vendas, e a angariação e chefia dos funcionários afetos ao armazém, ‘picking’ e distribuição/entregas aos clientes.
44º.–No âmbito da atividade exercida pelos 3º e 4º requeridos estes estavam presentes com regularidade nas instalações da devedora, e eram eles quem em representação da devedora contactavam e lidavam com os clientes e fornecedores desta para, nas relações com estes estabelecida em nome da devedora, decidir o que comprar e o que vender, a quem, e a que preço, efetuando os correspondentes pedidos de fornecimento/encomendas aos fornecedores, incluindo à M., SA, e a subsequente distribuição dos produtos aos clientes, que era por eles programada; davam as necessárias ordens/instruções aos trabalhadores da devedora em funções no armazém, no ‘picking’ e na distribuição (motoristas), e decidiam com eles os períodos de gozo de férias; informavam os primeiros requeridos da necessidade de contratação de trabalhador – quer para substituição de outro que tivesse cessado contrato, quer por ocasião de aumento da atividade - , e do equipamento necessário adquirir para a atividade da devedora, designadamente, veículos, e mais angariavam e indicavam os trabalhadores a contratar e, para efeito de processamento contabilístico e oportuno pagamento pela recorrida MZ, mais comunicavam a esta os valores devidos aos trabalhadores em função das faltas por estes dadas, das férias, e dos prémios de produtividade que por eles (RR) era decidido atribuir.
45º–No âmbito da atividade exercida na devedora pelos 1º e 2º requeridos, era estes quem detinham acesso e controlo exclusivo das contas bancárias da devedora e respetivos extratos, assumiam responsabilidade nos bancos, avalizavam letras para garantia de pagamento, negociavam acordos de pagamento de dívidas com os fornecedores, decidiam os pagamentos que eram feitos pela devedora e procediam aos mesmos, diretamente por transferência bancária ou através da emissão de cheques que entregavam aos 3º e 4º requeridos para pagamento; recebiam do 3º requerido e/ou das funcionárias administrativas da devedora a documentação desta sujeita a tratamento contabilístico (controlo das mercadorias recebidas, das vendas realizadas, dos serviços, e dos funcionários), remetiam esta informação ao contabilista certificado da devedora, com o qual contactavam e pelo qual eram diretamente contactados, tinham acesso à informação contabilística, designadamente aos saldos de clientes e de fornecedores; contratavam junto dos vendedores a aquisição de equipamento que os 3º e 4º requeridos lhes indicassem como sendo necessário à atividade da devedora, designadamente, veículos; assinavam os contratos de trabalho dos colaboradores angariados pelos 3º e 4º requeridos e por estes indicados como necessários à atividade da devedora e prestavam à contabilidade as informações necessárias ao processamento das respetivas remunerações.
46º–Os 3º e 4º requeridos não acediam ou movimentavam as contas bancárias da devedora e, quando necessitavam de fazer pagamentos através do caixa, solicitavam-no à requerida MZ, que entregava os meios para o efeito (dinheiro ou cheque).
5.3.-Facto provado nº 53, (…)
Em conformidade com a prova descrita, e porque dela também resulta que as transferências em benefício de José o foram para pagamento de faturas vencidas a cargo da devedora, procede-se à alteração do teor do facto descrito sob o nº 53 para passar a constar nos seguintes termos:
53.–Na sequência das transferências bancárias a crédito de conta bancária da devedora realizadas por WV para pagamento dos bens por esta adquiridos, no mesmo dia ou no dia seguinte a recorrida MZ procedia a transferência de valor igual ou de valor aproximado (para mais ou para menos) em benefício de José para pagamento de faturas por este emitidas sobre a devedora com vencimento em 2019.
53A. Para além das transferências de WV em benefício da devedora e das realizadas por esta em benefício de José, entre julho e novembro de 2020 a conta bancária da devedora na Caixa Económica do Montepio Geral foi sendo creditada com pagamentos de clientes e outras transferências e a recorrida MZ foi realizando pagamentos a outros fornecedores, incluindo ao contabilista certificado em 05.08.2020 pelo montante de € 5.000,00, e a trabalhadores, em 01 de julho, 03 de agosto e 02 de setembro de 2020, pelos montantes de cerca de € 10.000,00, € 1.430,00 e € 6.500,00, respetivamente. Em outubro de 2020 foram creditadas quantias na conta bancária da devedora naquela instituição no montante total de cerca de €56.500,00 com origem em conta bancária de M…, SA, valor que foi imediatamente esgotado com transferência para pagamento de DUC’s e de contribuições à segurança social (TSU).
5.4.-Facto não provado al. b), (…)
Termos em que se indefere a requerida alteração ao sentido da resposta descrita sob a al. b) dos factos não provados.
5.5.-Facto não provado da al. c), (…)
Termos em que se indefere a requerida alteração ao sentido da resposta ao facto descrito sob a al. c).
5.6.-Facto não provado al. d), (…)
Termos em que se indefere a requerida alteração ao ponto d) dos factos não provados.
C)– Da ampliação da matéria de facto
1.–As recorrentes requerem que aos factos provados sejam aditados os seguintes: (…)
Termos em que se indefere os requeridos aditamentos aos factos provados.
6.-Com o que se conclui pela improcedência da impugnação da matéria de facto nos termos requeridos pelas recorrentes e que, em boa verdade - e conforme se constata da esquematização dada às alegações, que iniciaram com impugnação ao julgamento de direito -, mais do que ao julgamento de facto, a censura das recorrentes vem essencialmente dirigida à valoração e enquadramento jurídico dos factos e sentido da decisão recorrida.
2.–Ampliação ex officio da matéria de facto
No exercício do poder-dever previsto pelo art. 662º, nº 1 e 2, al. c) do CPC, de acordo com os atos processuais e prova documental disponível nos autos, para cabal concretização da realidade a que respeitam, procede-se aos seguintes aditamentos/complementos (em itálico) nos seguintes pontos da matéria de facto:
13.-Requerente Contabilidade…, Ldª e Devedora acordaram na prestação de serviços de contabilidade e, por carta de 10.07.2020, aquela comunicou à devedora a rescisão, com efeitos imediatos, daquele contrato e, para além da exposição das causas da rescisão, mais comunicou que “As n/obrigações encontram-se cumpridas até ao final do mês de Junho, restando apenas a entrega do Modelo 22, em que a data limite para a sua entrega é 31/07/2020, carecendo da análise do Revisor Oficial de Contas.” (documento que integra o doc. nº 60 junto pelos recorridos ZZ com o requerimento de apresentação à insolvência).
21.-Pende ação para impugnação de resolução em benefício da Massa Insolvente[24] da transmissão de quatro veículos, TA, EP, TZ, IM, 3 câmaras frigoríficas, 1 empilhador, 6 bancadas inox, 1 móvel de lavagem de verduras, 4 balanças 150 kg, 8 cacifos, 1 chafariz, 5 PCs e écrans, 3 secretárias e 5 cadeiras e 3 carros de transporte de CX.
49.-As filhas dos 3.º e 4.º Requeridos, GG e AR, foram sócias fundadoras da WV, com quotas minoritárias, sociedade constituída em 15-06-2020 com Marina e José, estes sócios maioritários, com sede na Rua …., pessoa coletiva n.º 51….
52.-Os 1.ª e 2.º Requeridos venderam as viaturas e outros equipamentos utilizados pela devedora à sociedade WV e relativamente aos quais emitiu fatura de 28.07.2020 no valor de €2.952,00 e recibo de 12.08.2020, fatura de 28.07.2020 no valor de €4.526,40 e recibo de 14.08.2020, fatura no valor de €5.658,00 e recibo de 21.08.2020, fatura no valor de € 8.856,00 e recibo de 20.08.2020, fatura de 28.07.2020 no valor de €33.000 + IVA (€40.590,00, referente às câmaras frigoríficas), fatura de 28.07.2020 no valor de € 6.100 + IVA (€ 7.503,00, referente ao empilhador), e fatura de 28.07.2020 no valor de € 3.625,00 +IVA (€ 4.458,75, referente a bancadas secretárias, carros transporte e outros). – documentos que integram o doc. 5 junto com o parecer da AI.
54.-Em 06-08-2020, a Devedora, representada pelos 1.ª e 2.º Requeridos, declarou o exercício da opção de compra e antecipação cumprimento da locação dos veículos XC e XC e, para o efeito, pagou a quantia de € 61.904,82 aludida em 32, que para o efeito lhe foi previamente disponibilizada por WV através da transferência bancária aludida em 30.[25]
55.-Os veículos foram vendidos à WV e sucessivamente inscritos no registo em benefício da devedora e em benefício daquela em 11-09-2020.
(Fundamentos de Facto)
Para melhor apreensão e compreensão da lógica do acervo dos factos provados descritos pelo tribunal recorrido, procede-se à sua reorganização com as alterações e aditamentos acima introduzidos (em itálico), com supressão dos que não relevam para a apreciação de mérito e da referência aos meios de prova, nos termos que se passam a transcrever, com manutenção da numeração para facilitar a correspondência entre os ali e os aqui descritos:
1.–A Devedora sociedade M. LDA, pessoa coletiva n.º 50… com sede no Mercado Abastecedor da Região de Lisboa, …., foi constituída em …. de 2011.
2.–Desde então, tem o capital social de € 5.000,00.
3.–Sempre foram sócios: i) com quota no valor nominal € 1.000,00 (mil euros), a sociedade comercial anónima M. S.A.; ii) com uma quota no valor nominal de € 2.000,00 (dois mil euros), MZ; e, iii) uma quota no valor nominal de € 2.000,00 (dois mil euros), OZ.
4.–A sociedade tem por objeto a comercialização por grosso, importação e exportação de frutas e outros produtos alimentares, minimercado, charcutaria e padaria, comércio a retalho de frutas e produtos hortícolas, fornecimento e distribuição a estabelecimentos de restauração e hotelaria.
5.–Obriga-se com a intervenção de um gerente.
6.–São gerentes registados: MZ, contribuinte fiscal n.º …; OZ, contribuinte fiscal n.º …; ambos residentes na Rua….
7.–Nas últimas contas depositadas, reportadas ao ano de 2018, a devedora declarou resultado líquido de € 18.208,14, ativo de € 1.855.017,64 e passivo de € 1.638.996,96.
8.–Em 19-11-2020, a sociedade Contabilidade…, Lda. instaurou a ação de insolvência.
12.–Em 17-03-2021 foi proferida sentença de declaração de insolvência da devedora.
13.–Requerente Contabilidade..., Ldª e Devedora acordaram na prestação de serviços de contabilidade e, por carta de 10.07.2020, aquela comunicou à devedora a rescisão, com efeitos imediatos, daquele contrato e, para além da exposição das causas da rescisão, mais comunicou que “As n/obrigações encontram-se cumpridas até ao final do mês de Junho, restando apenas a entrega do Modelo 22, em que a data limite para a sua entrega é 31/07/2020, carecendo da análise do Revisor Oficial de Contas.”.
14.–Com fundamento no contrato, a Requerente instaurou, a 13-05-2020, injunção, pelo montante de € 15.475.20.
15.–A mora no pagamento da retribuição teve início em 2 de dezembro de 2019.
16.–Em 16-11-2020, por sentença proferida no âmbito do processo n.º …/20.8T8VFX, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo de Comércio de Vila Franca de Xira – Juiz 2, foi declarada a insolvência da sócia M. S.A.
17.–Os Requeridos MZ e OZ exerciam as funções de administradores da M. SA, desde cerca de 2003.
18.–A Devedora apresentou-se à insolvência em 08-01-2021 (processo nº …/21.8T8VFX do juízo de comércio de Vila Franca de Xira).
19.–A Devedora apresentou relação de bens:
“1.-Veículo automóvel com a matrícula HI da propriedade da sociedade Requerente, cujo respectivo paradeiro é desconhecido pelos seus sócios gerentes de direito;
2.-Fotocopiadora da marca Sharp modelo MX-2651N, sob locação pela sociedade Requerente junto da G…, S.A.,, que se encontra no Complexo Industrial da Granja….”
20.–Foram inventariados bens móveis, entre os quais:
Veículo com a matrícula HI, marca Toyota, modelo Dyna 150. Os gerentes da Devedora declararam desconhecer o seu paradeiro, esclarecendo que o veículo terá sido entregue na oficina C…, Lda. O Sr. Administrador da Insolvência notificou aquela sociedade para confirmar tal informação.
Conta de títulos n.º 2..-61.0....7-9, no Banco Montepio, com saldo de 1960 Ações Agrogarante;
Conta de Fundos n.º 2..-62.0....6-5, no Banco Montepio, com saldo de 118 UP do Fundo Valor Prime, no montante aproximado de € 1.061,41;
Cheque n.º 0........3, do Citibank Europ PLC, no montante de € 23,27 (vinte e três euros e vinte e sete cêntimos), emitido pela Mapfre Seguros Gerais, S.A., a favor da insolvente.
Fotocopiadora da marca Sharp modelo MX-2651N, alvo de locação financeira.
21.–Pende ação para impugnação de resolução em benefício da Massa Insolvente[26] da transmissão de quatro veículos, TA, EP, TZ, IM, 3 câmaras frigoríficas, 1 empilhador, 6 bancadas inox, 1 móvel de lavagem de verduras, 4 balanças 150 kg, 8 cacifos, 1 chafariz, 5 PCs e écrans, 3 secretárias e 5 cadeiras e 3 carros de transporte de CX.
22.–São créditos verificados:
A…, S.A. 33 244,27 € Garantido 1260 ações Agrogarante
A…, LDA. 19 897,89 € Comum
B… CEBOLAS, LDA. 9 553,35 € Comum
B…, LDA. 11 615,15 € Comum
B…, LDA. 58,26 € Subordinado
CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL 98 634,98 € Comum
C… CRÉDITOS, S.A. 38 523,20 € Comum
C…, LDA. 602,62 € Comum
C…, LDA. 2,37 € Subordinado
C… TRANSPORTES, UNIPESSOAL, LDA. 4 662,81 € Comum
ELSA 14 069,51 € Privilegiado laboral, vencido em 01-09-2020
E…, S.A. 23 533,36 € Comum
ESTADO PORTUGUÊS (ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA) 53,85 € Garantido veículo 03-73-HI
ESTADO PORTUGUÊS (ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA) 4 094,13 € Privilegiado IVA
ESTADO PORTUGUÊS (ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA) 349,70 € Comum
F…, LDA. 10 422,88 € Comum
F…, LDA. 137,12 € Comum
G…, S.A. 3 654,79 € Comum Condicionado
INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL, I.P. 32 662,87 € Privilegiado Contribuições, vencido em 01-03-2020
INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL, I.P. 52 559,38 € Comum, vencido em 01-10-2019
J. LDA. 24 507,94 € Comum
J. LDA. 214,34 € Subordinado
J…, LDA. 16 898,55 € Comum
J… FILHOS, LDA. 18 002,34 € Comum
J… FILHOS, LDA. 105,78 € Subordinado
J… AGRÍCOLAS, LDA. 18 552,10 € Comum
LUÍS 3 052,05 € Privilegiado Laboral, vencido em 03-10-2020
L…, S.A. 4 402,78 € Comum
MANUEL 38 311,87 € Privilegiado laboral
M… 1 813,11 € Comum
MEO - SERVIÇOS DE COMUNICAÇÕES E MULTIMÉDIA, S.A. 4 856,29 € Comum
CONTABILIDADE…, LDA. 16 009,53 € Comum
N… EQUIPAMENTOS, S.A. 727,29 € Comum
P…, LDA. 16 580,71 € Comum
V…, S.A. 5 163,62 € Comum
FÁBIO (apenso C) 9 360,77 € Privilegiado Laboral
ESTADO PORTUGUÊS (Ministério Público) (apenso D) 2 499,00 € Comum
F…, LDA. (apenso E) 9 364,20 € Comum
23.–O Fundo de Garantia Salarial apresentou requerimento de sub-rogação relativamente a créditos laborais.
24.–Transferências da conta bancária da devedora no BCP Millenium para MZ em 31.07.2020, de € 1.500,00.
25.–Transferência de conta bancária da devedora no BPI para MZ em 05.08.2020, do montante de € 4.000,00.
26.–Transferência da conta bancária da devedora no BPI para Contabilidade…, Ldª em 05.08.20202, no montante de € 5.000,00.
27.–Transferências da conta bancária da devedora no Montepio para MZ, em 2020:
01.07 - € 445
04.08[27] - € 5.000
04.08[28] - € 5.000
05.08 - € 650
10.08 - € 445
19.08- € 644,43
02.09 - € 445,00.
28.–Transferências da conta bancária de MZ para a referida conta da devedora no Montepio, em 2020:
04.08[29] - € 1.000
05.08 - € 500
29.– Transferências da conta bancária da devedora no Montepio para José
03.07 - € 2.256,48
12.08 - € 2.883,40
13.08 - € 3.095,87
14.08 - € 4.342,20
19.08 - € 2.446,95
20.08 - € 5.000,67
22.08 - € 5.049,32
26.08 - € 4.975,63
02.09 - € 3.099,67
04.09 - € 7.447,89
08.09 - € 8.774,25
10.09 - € 5.199,41
14.09 - € 7.380,46
21.09 - € 7.524,14
30.–Transferências da sociedade WV para a conta bancária da devedora no Montepio, em 2020:
11.08 - € 2.952,00
13.08 - € 3.075,00
14.08 - € 4.428,00
17.08 - € 92,55
17.08 - € 1.524,40
20.08 - € 5.000,00
21.08 - € 5.000,00
24.08 - € 6. 390,94
24.08 - € 5.000,00
31.08 - € 3.000,00
03.09 - € 7.500,00
10.09 - € 5.259,05
10.09 - € 7.500,00
16.09 - € 7.590,00
25.09 - € 7.007,85
04.11 - € 127,54
11.11 - € 4.458,75
31.–Transferências da dita conta bancária da devedora no Montepio para sociedade WV, em 2020:
10.11 - € 471,93
10.11 - € 769,35
10.11 - € 288,14
10.11 - € 294,24
32.–Transferência da conta bancária da devedora no Montepio, em 26.08.2020 para pagamento Leasing, de € 61.904,82.
33.–Transferências da conta bancária de GR para a conta da devedora no Montepio, em 27.08.2020, de € 4.244,40.
34.–A Devedora fornecia hotéis e restauração de luxo, área da experiência dos 3.º e 4.º Requeridos, que detinham carteira de clientes, fornecedores e funcionários.
35.–Os 1ª e 2º Requeridos não tinham experiência na área.
36.–A Devedora fornecia-se na sua sócia M. SA, entre outros.
37.–Por decisão dos 1.ª e 2.º Requeridos, a Devedora cessou a laboração em agosto de 2020.
38.–Assim ocorreu na sequência da cessação da intervenção dos 3.º e 4.º Requeridos, em 12 de julho de 2020.
39.–Eliminado.
40.–Os 1.ª e 2.º Requeridos eram os titulares das contas bancárias da Devedora.
41.–As contas bancárias eram movimentadas pela Requerida MZ. Designadamente, procedendo ao pagamento a fornecedores e trabalhadores.
42º.–Os 1º e 2º requeridos constituíram a devedora para trabalhar com os 3º e 4º requeridos no modelo de negócio descrito em 34. que por estes lhes foi proposto desenvolver - aproveitando o status da M. SA e o crédito e ‘rappel’ por esta detido junto dos respetivos fornecedores -, tendo a requerida MZ apresentado a devedora a pelo menos alguns dos fornecedores da SA informando-os que ia começar a comprar (também) pela devedora e que os 3º e 4º requeridos eram os encarregados das compras.
43º.–Com a criação da devedora os 1º e 2º requeridos reservaram para si a gestão e controlo financeiro da devedora e confiaram aos 3º e 4º requeridos a gestão operacional daquela atividade, atinente com as compras, as vendas, e a angariação e chefia dos funcionários afetos ao armazém, ‘picking’[30] e distribuição/entregas aos clientes.
44º.–No âmbito da atividade exercida pelos 3º e 4º requeridos estes estavam presentes com regularidade nas instalações da devedora, e eram eles quem em representação da devedora contactavam e lidavam com os clientes e fornecedores desta para, nas relações com estes estabelecida em nome da devedora, decidir o que comprar e o que vender, a quem, e a que preço, efetuando os correspondentes pedidos de fornecimento/encomendas aos fornecedores, incluindo à M. SA, e a subsequente distribuição dos produtos aos clientes, que era por eles programada; davam as necessárias ordens/instruções aos trabalhadores da devedora em funções no armazém, no ‘picking’ e na distribuição (motoristas), e decidiam com eles os períodos de gozo de férias; informavam os primeiros requeridos da necessidade de contratação de trabalhador – quer para substituição de outro que tivesse cessado contrato, quer por ocasião de aumento da atividade - , e do equipamento necessário adquirir para a atividade da devedora, designadamente, veículos, e mais angariavam e indicavam os trabalhadores a contratar e, para efeito de processamento contabilístico e oportuno pagamento pela recorrida MZ, mais comunicavam a esta os valores devidos aos trabalhadores em função das faltas por estes dadas, das férias, e dos prémios de produtividade que por eles (RR) era decidido atribuir.
45º–No âmbito da atividade exercida na devedora pelos 1º e 2º requeridos, era estes quem detinham acesso e controlo exclusivo das contas bancárias da devedora e respetivos extratos, assumiam responsabilidade nos bancos, avalizavam letras para garantia de pagamento, negociavam acordos de pagamento de dívidas com os fornecedores, decidiam os pagamentos que eram feitos pela devedora e procediam aos mesmos, diretamente por transferência bancária ou através da emissão de cheques que entregavam aos 3º e 4º requeridos para pagamento; recebiam do 3º requerido e/ou das funcionárias administrativas da devedora a documentação desta sujeita a tratamento contabilístico (controlo das mercadorias recebidas, das vendas realizadas, dos serviços, dos funcionários contratados e da assiduidade destes ao trabalho), remetiam esta informação ao contabilista certificado da devedora, com o qual contactavam e pelo qual eram diretamente contactados, tinham acesso à informação contabilística, designadamente aos saldos de clientes e de fornecedores; contratavam junto dos fornecedores/vendedores a aquisição de equipamento que os 3º e 4º requeridos lhes indicassem como sendo necessário à atividade da devedora, designadamente, veículos; assinavam os contratos de trabalho dos colaboradores angariados pelos 3º e 4º requeridos e por estes indicados como necessários à atividade da devedora, e prestavam à contabilidade as informações necessárias ao processamento das respetivas remunerações.
46º–Os 3º e 4º requeridos não acediam ou movimentavam as contas bancárias da devedora e, quando necessitavam de fazer pagamentos através do caixa, solicitavam-no à requerida MZ, que entregava os meios para o efeito (dinheiro ou cheque).
47.–Por terem dívidas, os 3.º e 4.º Requeridos pretendiam evitar a titularidade de bens, rendimentos ou património.
48.–As suas filhas GR e AR recebiam salários contrapartida da atividade dos 3.º e 4.º Requeridos.
49.–As filhas dos 3.º e 4.º Requeridos, GR e AR, foram sócias fundadoras da WV, com quotas minoritárias, sociedade constituída em 15-06-2020 com Marina e José, estes sócios maioritários, com sede na Rua…, pessoa coletiva n.º 51….
50.–Após a cessação de funções na Requerente, os 3.º 4.º Requeridos passaram a exercer idênticas funções na WV.
51.–Consigo levaram clientes, fornecedores e trabalhadores.
52.–Os 1.ª e 2.º Requeridos venderam as viaturas e outros equipamentos utilizados pela devedora à sociedade WV e relativamente aos quais aquela emitiu fatura de 28.07.2020 no valor de €2.952,00 e recibo de 12.08.2020, fatura de 28.07.2020 no valor de €4.526,40 e recibo de 14.08.2020, fatura no valor de €5.658,00 e recibo de 21.08.2020, fatura no valor de € 8.856,00 e recibo de 20.08.2020, fatura de 28.07.2020 no valor de €33.000 + IVA (€40.590,00, referente às câmaras frigoríficas), fatura de 28.07.2020 no valor de € 6.100 + IVA (€ 7.503,00, referente ao empilhador), e fatura de 28.07.2020 no valor de € 3.625,00 +IVA (€ 4.458,75, referente a bancadas secretárias, carros transporte e outros).
53.–Na sequência das transferências bancárias a crédito de conta bancária da devedora realizadas por WV para pagamento dos bens por esta adquiridos, no mesmo dia ou no dia seguinte a recorrida MZ procedia a transferência de valor igual ou de valor aproximado (para mais ou para menos) em benefício de José para pagamento de faturas por este emitidas sobre a devedora com vencimento em 2019.
53A.–Para além das transferências de WV em benefício da devedora e das realizadas por esta em benefício de José, entre julho e novembro de 2020 a conta bancária da devedora na Caixa Económica do Montepio Geral foi sendo creditada com pagamentos de clientes e outras transferências e a recorrida MZ foi realizando pagamentos a outros fornecedores, incluindo ao contabilista certificado em 05.08.2020 pelo montante de € 5.000,00, e a trabalhadores, em 01 de julho, 03 de agosto e 02 de setembro de 2020, pelos montantes de cerca de € 10.000,00, € 1.430,00 e € 6.500,00, respetivamente. Em outubro de 2020 foram creditadas quantias na conta bancária da devedora naquela instituição no montante total de cerca de €56.500,00 com origem em conta bancária de M. SA, valor que foi imediatamente esgotado com transferência para pagamento de DUC’s e de contribuições à segurança social (TSU).
54.–Em 06-08-2020, a Devedora, representada pelos 1.ª e 2.º Requeridos, declarou o exercício da opção de compra e antecipação cumprimento da locação dos veículos XC e XC e, para o efeito, pagou a quantia de € 61.904,82 aludida em 32 que, para o efeito, lhe foi previamente disponibilizada por WV através da transferência bancária aludida em 30.[31]
55.–Estes veículos foram vendidos à WV e sucessivamente inscritos no registo em benefício da devedora e em benefício daquela em 11.09.2020.
56.–Foi emitido escrito intitulado “Balancete Geral Acumulado Exercício 2019”, relativamente à Devedora.
D)–Do erro de julgamento de direito
D1)-Na aferição dos pressupostos da qualificação da insolvência como culposa
1.–Considerações gerais
O incidente de qualificação da insolvência foi introduzido pela reforma do regime da insolvência levada a cabo pelo Decreto Lei nº 53/2004 de18.03 com o propósito, desde logo, de atalhar a insolvências fraudulentas ou dolosas, mas também para prevenir o agravamento de situações de insolvência criadas sem atuação culposa dos devedores ou dos respetivos representantes, tudo, em ultima linha, para tutela dos credores e do comércio jurídico no qual aqueles se movem num circuito de interdependência de pagamentos. Lê-se no preâmbulo do citado diploma (que aprovou o CIRE), que (…) quem intervém no tráfego jurídico, e especialmente quem aí exerce uma actividade comercial, assume por esse motivo indeclináveis deveres, à cabeça deles o de honrar os compromissos assumidos. A vida económica e empresarial é vida de interdependência, pelo que o incumprimento por parte de certos agentes repercute-se necessariamente na situação económica e financeira dos demais. Concomitantemente, à liberdade de escolha de profissão e atividade, corresponde a responsabilização pelo respetivo exercício, com cumprimento das normas a que obedece e/ou que o condicionam.
Assim, nos termos do art. 185º a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita. Quando culposa a relevância desta qualificação respeita à situação jurídica do insolvente ou das pessoas por ela abrangidas, nos termos previstos pelo art. 189º. O art. 186º, nº 1 faz corresponder a insolvência culposa àquela que tenha sido criada ou agravada em consequência da atuação dolosa ou com culpa grave do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. Para efeitos do CIRE a al. a) do nº 1 do art. 6º define administradores como “aqueles a quem incumba a administração ou liquidação da entidade ou património em causa, designadamente os titulares do órgão social que para o efeito for competente.”
Em suma, e para além do limite temporal relevante para efeitos de qualificação, são pressupostos da insolvência culposa: uma conduta do devedor ou do respetivo administrador, praticada com dolo ou com culpa grave, e em relação de causalidade com a criação da situação de insolvência ou com o seu agravamento. Quando culposa, a relevância desta qualificação respeita à situação jurídica do insolvente ou das pessoas por ela abrangidas e afetadas, nomeadamente, conforme prevê o art. 189º, nº 2, al. a), administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, (…) fixando, sendo o caso, o respetivo grau de culpa. Culpa que, quer resulte legalmente presumida, quer resulte efetivamente demonstrada, deverá ser fixada ou a título de dolo ou a título de culpa grave, com repercussão na medida dos efeitos previstos pelo art. 189º, desde a duração das inibições previstas pelas als. b) e c) do nº2, até às consequências da responsabilização patrimonial prevista pela al. e) do mesmo preceito, efeitos que revelam a função sancionatória do incidente com fundamento numa responsabilidade específica, insolvencial.
No nº 2 o legislador previu circunstâncias que, à laia de normas de proteção abstrata[32], e sem prejuízo da verificação casuística do referido limite temporal, importam presunção inilidível – júris et jure – da verificação dos pressupostos previstos no nº 1, levando as diversas situações ali contempladas, de forma inexorável, à atribuição de carácter culposo à insolvência. Da prova de qualquer um dos factos complexos ali descritos resulta adquirida, por presunção absoluta, a ilicitude do facto, a existência de culpa grave, e o nexo de causalidade entre o facto (ato ou omissão) e a criação ou agravamento da insolvência[33]. Presunção que tem como pressuposto assumir que, em termos genéricos, todas as circunstâncias factos ou comportamentos ali previstos, direta ou indiretamente, envolvem efeitos negativos para a situação patrimonial do devedor, geradores ou agravantes da situação de insolvência, ou seja, da impossibilidade de aquele cumprir as respetivas obrigações vencidas e/ou da impossibilidade, total ou parcial, de garantir o seu cumprimento[34]. Porém, e conforme anotado por Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[35], as várias alíneas do preceito exigem uma ponderação casuística, ou seja, na apreciação concreta de cada uma das situações ali previstas deve atender-se às circunstâncias próprias da situação de insolvência do devedor, e para o que aponta o recurso a conceitos indeterminados (tais como, em parte considerável, criado ou agravado artificialmente, incumprido em termos substanciais, reiterada, etc). Provados os factos constitutivos das presunções, por irrelevante, “não lhe é admitido provar que esse ato não criou ou agravou a situação de insolvência.”[36] [37]
Do nº 3 do preceito constam descritas condutas omissivas, mas das quais não decorre presunção de insolvência culposa, mas tão só presunção juris tantum de culpa grave suscetível, por isso, de ser ilidida por prova em contrário (cfr. art. 350º, nº 2, 1ª parte, do Código Civil), mais exigindo a alegação e demonstração dos demais requisitos previstos no nº 1: criação ou agravamento da situação de insolvência causada por aquelas condutas.
Enquanto caracterizadores da insolvência culposa e fundamento da afetação dos administradores através da responsabilização que dela emerge, os factos típicos e complexos aqui previstos concretizam específicos deveres a que os administradores estão vinculados e que enquadram nos deveres gerais de lealdade, de cuidado e diligência previstos pelo art. 64º do Código das Sociedades Comerciais, aqui destinados à proteção de terceiros, dos interesses económicos dos credores sociais. Nas palavras de Carneiro da Frada[38], “o art. 186 do CIRE corresponde a uma disposição de protecção cuja violação por parte dos administradores de uma sociedade desencadeia responsabilidade civil pela insolvência.”
2.–Da verificação dos pressupostos da qualificação da insolvência
Em sede de fundamentação de direito a sentença recorrida balizou corretamente o termo inicial do período temporal relevante por referência ao início do processo de insolvência (19.11.2017), e procedeu à valoração jurídica dos factos provados por referência aos fundamentos legais de insolvência culposa invocados nas alegações e pareceres de qualificação da insolvência, previstos pelas als. a), d), f), g) e h) do nº 2 e als. a) e b) do nº 3 do art. 186º, concluindo negativamente relativamente a todos eles. Divergindo da valoração e conclusões do tribunal a quo, nas suas alegações de recurso as credoras requerentes mantêm que da factualidade assente constam factos que se integram no elenco das presunções previstas pelo art. 186º, nº 2 com fundamento, em síntese, em: dissipação dos bens em benefício da sociedade WV, favorecimento de credores e pagamento de dívida (da sociedade M. SA a José) que não era da responsabilidade da devedora pelo produto daquela venda, apropriação dos valores recebidos com a venda de cabazes da devedora em benefício dos recorridos CR e JR, retirada de dinheiro da sociedade pela gerência sem a demonstração do pagamento a credores da devedora, exploração deficitária da devedora pelos recorridos nos últimos 3 anos que precederam a insolvência, irregularidades da contabilidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da devedora, que impediu o conhecimento do valor contabilístico do imobilizado que compunha o espólio patrimonial da devedora à data em que foi dissipado para sociedade constituída por intermédio das filhas dos gerentes de facto da devedora.
Apreciando:
i)-Nos termos da al. a) do nº 2 do art. 186º Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor (…) quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham [d]estruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor.
Na interpretação do segmento “património do devedor” o acórdão da Relação de Lisboa de 06.09.2022[39] salientou que “pese embora se aluda, na referida alínea, ao “património do devedor”, por confronto com a referência constante da alínea d) do número 2 do mesmo preceito, em que o legislador se reportou aos “bens do devedor”, entendemos que a ratio das alíneas é similar, estando em causa a proteção do património da empresa, abrangendo não só bens corpóreos - móveis e imóveis - como incorpóreos, nomeadamente créditos de que a empresa seja titular, penalizando-se o gerente/administrador, no caso da alínea a), quando este pratica atos dos quais resulta uma diminuição do património do devedor e no caso da alínea d) quando este pratica atos de disposição em função de interesses que não os da empresa que administra, isto é, com desvio de fim. Aderindo a esta distinção, somos ainda de entender que a diminuição patrimonial especificamente prevista na al. a) distingue-se da diminuição patrimonial implícita à previsão da al. d) porque, diversamente do que aqui sucede, aquela pressupõe ou reporta a uma ação física sobre os bens[40], no sentido de diminuir o seu valor comercial (destruição ou danificação), de os tornar imprestáveis ou inoperacionais para o fim a que tendem (inutilizado), ou, através da não revelação do seu paradeiro ou da sua colocação em paradeiro desconhecido ou local geográfica ou espacialmente inacessível à sua apreensão, de os subtrair à possibilidade de serem localizados e/ou fisicamente apreendidos e ingressarem na disponibilidade fáctica do AI e, assim, do processo de insolvência e da liquidação que nele se cumpra.
O tribunal recorrido considerou não poder afirmar “a destruição, danificação, inutilização, ocultação de património” e “o desaparecimento, no sentido que pressupõe atos não facilmente reconstituíveis pelos credores, por princípio não documentados.” As recorrentes opõem que esta qualificativa surge concretizada pelos seguintes factos: alienação, em beneficio da filha do recorrido CR, de veículo da marca Hyundai; emissão de recibos verdes falsos pela filha deste, AR, funcionária da devedora, como forma indireta de aquele receber vencimento da devedora; apropriação pela filha do recorrido CR e em benefício dos recorridos, dos valores recebidos com a venda dos cabazes da insolvente; dissipação de todo o património da devedora depois de os trabalhadores Elsa e Manuel terem ido de férias por instrução que nesse sentido lhes foi dada pelos recorridos ZZ.
Ora, não estando em causa a imputação de uma qualquer atividade física e intencional sobre bens da devedora no sentido de por qualquer forma diminuir o seu valor comercial ou de os colocar em paradeiro desconhecido, inacessível, ou que não aproveite proceder à sua apreensão para a massa, do invocado pelas recorrentes apenas consta provado que cada uma das filhas dos recorridos RR, GR e AR, recebiam salários como contrapartida da atividade do seu pai. Sem pôr em causa o facto de, por esta via, os recorridos RR – em atuação concertada com as suas filhas e com os recorridos ZZ- subtraírem os respetivos rendimentos à ação dos respetivos credores – como confessadamente declararam em audiência e consta descrito no ponto 47 dos factos provados – por referência ao património da devedora esta prática não consubstancia mais do que o mero pagamento de remuneração a quem nela exercia atividade, longe, portanto, de uma qualquer diminuição do património da insolvente por efeito de uma qualquer das ações previstas pela al. a).
A transmissão de veículo alegadamente da devedora em benefício do recorrido CR e a alegada ‘apropriação’ em benefício dos recorridos RR de produto da venda de cabazes da devedora dispensam qualquer consideração por que não encontram suporte nos factos provados[41].
O que as recorrentes invocam e qualificam como dissipação de património, só poderá corresponder à venda dos bens da devedora à sociedade WV mas que, conforme entendimento acima exposto, não enquadra em qualquer uma das ações previstas pela al. a).
Neste âmbito – ocultação ou desaparecimento de bem - apenas resultou provado que os recorridos ZZ informaram a AI que o veículo com a matrícula HI, marca Toyota, modelo Dyna - por eles relacionado aquando da apresentação da devedora à insolvência (processo nº 98/21.8T8VFX instaurado na pendência da insolvência requerida por Contabilidade…, Ldª) e descrita pela AI no auto de apreensão -, terá sido entregue em oficina que identificaram e que a AI aguardava a confirmação de tal informação pelo que, desconhecendo-se se afinal esta logrou ou não localizar o veículo, sempre ficaria por apurar se o mesmo desapareceu ou foi ocultado o seu paradeiro com o propósito de inviabilizar a sua apreensão, sendo certo que, na hipótese positiva, para além do modelo, marca e ano da matrícula do veículo (1996), sempre continuariam a faltar factos para, por referência ao valor dos demais bens da devedora, aferir se o mesmo era ou não ‘parte considerável’ do seu património, conforme gradação exigida pela circunstância qualificativa prevista na al. a).
Com o que se conclui pela não verificação da qualificativa prevista pela al. a).
ii)-Nos termos das als. d), f) e g) do nº 2 do art. 186º, nº 2 “Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor, que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros; (…), f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto; g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;.
A sentença recorrida afastou a verificação destas alíneas por não ser possível identificar o “proveito pessoal” dos requeridos, ou de “terceiros”.
As recorrentes entendem que os pressupostos das als. d) e f) resultam concretizados: pela transmissão dos bens da devedora para a sociedade WV e pela afetação dos valores por esta pagos à devedora pela aquisição dos bens em benefício de José, mais alegando que o foi para pagamento de dívida que era de outra sociedade (M. SA); e pelas saídas de dinheiro da conta bancária da devedora em beneficio de conta bancária da recorrida MZ, que esta não demonstrou ter afetado ao pagamento a credores da devedora.
Suportam a verificação da al. g) com a referência, genérica, à gestão levada a cabo na insolvente e, em concreto, com o facto de os vencimentos dos recorridos RR serem recebidos por intermédio de outros (as filhas daqueles), com a alegada afetação do produto da venda dos bens ao pagamento de dívida da sociedade M. SA a José, e a alegada falta de adequação ao mercado específico da insolvente dos produtos que esta adquiria naquela sociedade.
Começando por esta ultima alínea, não se vislumbram no elenco dos factos provados premissas de facto suscetíveis de preencherem os respetivos pressupostos normativos, desde logo a situação de exploração deficitária – que não se confunde com a manutenção da situação de incumprimento nem sequer com o ‘mero’ acréscimo de dívidas decorrente da continuidade da atividade que, em abstrato, é suscetível de emergir da violação do dever de apresentação à insolvência mas que é legalmente valorada nos termos da al. a) do nº 3 do art. 186º. Com efeito, não existem elementos que permitam concluir que a atividade da insolvente não era objetivamente apta a gerar proveito produtivo e financeiro, designadamente, que os custos dos meios de produção afetos à atividade da insolvente eram superiores aos proveitos que dela eram ou poderiam ser obtidos em função dos valores pelos quais vendiam ou se propunham vender os produtos do seu comércio, e em benefício da própria devedora. Acresce, com pertinência ao caso e recorrendo às palavras de Carneiro de Frada, que “está fora de causa a afirmação indiscriminada da responsabilidade dos administradores na insolvência. No desempenho das funções de direcção, os administradores gozam de autonomia, dispondo de espaços amplos de livre apreciação. (…). //Vale a pena sublinhar este aspecto. Não há responsabilidade só porque uma dada gestão não teve êxito. Aceitá-la colidiria com o risco da própria empresa, com a necessidade de tornar a administração atractiva e razoavelmente protegida de acções de responsabilidade, de modo a permitir a adopção de medidas audazes; contrariaria, portanto, a agilidade das empresas e a competitividade destas, com prejuízo para toda a economia.[42]
No termo inicial que limita temporalmente o objeto destes autos – novembro de 2017 – e até março de 2020 – mês em que no nosso país eclodiram os efeitos da pandemia Covid-19 - não existem elementos que permitam concluir que a estrutura de encargos fixos da insolvente estava desajustada, por excessiva, ao volume de faturação/negócios que até aí desenvolveu. Neste âmbito, e por referência ao fluxo triangular que caracteriza o ciclo de tesouraria e determina a existência ou inexistência de fluxo e saldo de tesouraria suficiente para cobrir os custos de exploração – fluxo das transações entre a insolvente e os seus clientes por um lado, e entre a insolvente e os demais respetivos stakeholders (fornecedores, trabalhadores, Banca, etc) por outro -, dos factos conhecidos nos autos apenas a emergência das medidas impostas para contenção da pandemia causada pelo vírus Covid-19 se apresenta como causa do decaimento da atividade da devedora que, pelo que é facto publico e notório, pode situar-se a partir de meados de março de 2020, com a drástica redução das transações comerciais determinada pelo fecho das atividades hoteleiras e da restauração, áreas onde a insolvente operava, com consequente redução das encomendas que até aí detinha e consequente drástica redução dos fluxos de vendas e de tesouraria para, a partir daí proceder à satisfação das dívidas contratuais e não contratuais até aí geradas. Acresce que sempre faltariam elementos que permitissem concluir que a partir daí qualquer um dos recorridos decidiu e prosseguiu atividade da insolvente com o propósito de satisfazer um qualquer interesse próprio ou de terceiros e que fossem estranhos à atividade da sociedade, no que não se enquadra o pagamento das remunerações acordadas e devidas a quem nela prestava a sua força de trabalho, independentemente de a quem a insolvente emitia os correspetivos recibos já que, declarando-as com a natureza que tinham – retribuições - seriam iguais as obrigações que daí para ela decorriam a título de contribuições e impostos devidos entregar ao Estado[43]. Pelo que se disse tão pouco constitui exploração deficitária a afetação do produto da venda dos bens ao pagamento de dívida a credor, que enquadra num outro fundamento de qualificação da insolvência, e dos factos provados não consta que aquele era credor de sociedade distinta da insolvente, tal como não consta a alegada falta de adequação dos produtos que esta adquiria naquela.
Da mesma feita, também não se identificam nos factos provados elementos aptos a preencher os pressupostos da al. f). Ali apenas se descreve a transmissão ou disposição de equipamentos, veículos e de valores pecuniários da devedora disponíveis em saldo bancário, sendo que o ato de dispor e os efeitos jurídicos que dele podem emergir vão para além e não se confundem com o ato de usar/utilizar (crédito ou bens da devedora), sendo que é esta a ação pressuposta pela norma ora em referência e nada foi demonstrado que permita afirmar qualquer afetação dos bens e/ou do crédito (da devedora junto de terceiros) para fins distintos da sua atividade e, assim, contrários ao seu interesse que, no essencial, coincide com o exercício de uma atividade potencialmente geradora de lucros. Concretamente e contrariamente ao que as recorrentes alegam em recurso, não resultou demonstrado que o produto da venda dos bens foi afeto ao pagamento de dívidas da sociedade sócia da insolvente e não desta.
Resta a al. d), na qual se enquadra a demonstrada transmissão dos veículos e dos equipamentos utilizados pela insolvente na sua atividade, bem como a transferência de quantias monetárias de contas da devedora em benefício de contas da recorrida MZ em julho e agosto de 2020, ou seja, em vésperas da cessação da atividade da insolvente pelos recorridos ZZ, sendo certo que na oposição que deduziram ao incidente foi por estes expressamente alegado que à data da venda a sociedade já estava em situação de insolvência.
Como é consabido, o processo de insolvência liquidatário é informado por dois princípios estruturantes: o da garantia patrimonial dos bens e direitos dos credores dada pelo património do devedor, e o da satisfação igualitária dos direitos dos credores, o princípio conditio par creditorium. Princípios que se manifestam na caracterização da insolvência liquidatária como processo de execução universal e concursal, que tem como finalidade primeira a satisfação dos interesses patrimoniais dos credores através da liquidação da totalidade do património do devedor para afetação do respetivo produto à satisfação dos direitos dos credores. Universal porque, conforme definição de massa insolvente que consta do art. 46º do CIRE, com exceção dos bens isentos de penhora, abrange todo o património do devedor à data da declaração da insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo. Concursal porque, conforme arts. 90º, 128º e 146º do CIRE, visando a liquidação do passivo global do devedor, procede-se para o efeito à citação de todos os credores do devedor para concorrerem ao produto que resulte da liquidação dos bens que integram o património do devedor, na medida das forças deste e em função da hierarquia/graduação dos créditos de acordo com a respetiva natureza. Para cumprimento desse fim, a declaração da insolvência do devedor determina a apreensão material de todos os bens que integram a massa insolvente, incluindo o produto da venda desses bens, ainda que arrestados, penhorados, apreendidos ou por qualquer outra forma detidos (cfr. arts. 46º, 149º, 150º, 81º, nº 1, 55º, nº 1 e 158º do CIRE). A preocupação do legislador em salvaguardar a garantia patrimonial dos credores e o cumprimento da universalidade da insolvência liquidatária vai ao ponto de dotar o AI do poder-dever de proceder à resolução extrajudicial de negócios para recuperação das atribuições patrimoniais que, nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência foram concedidas com prejuízo para o património do devedor e, assim, com prejuízo das garantias patrimoniais dos respetivos credores (cfr. arts. 120º e ss. do CIRE). É também em benefício da preservação desta garantia patrimonial e da melhor e mais rápida satisfação dos direitos dos credores que o legislador previu a obrigação de o devedor se apresentar à insolvência nos 30 dias seguintes à data do seu conhecimento, presumindo-o de forma inilidível decorridos três meses sobre o incumprimento generalizado de créditos fiscais, contribuições sociais, créditos laborais, ou rendas de qualquer tipo de locação (cfr. arts. 18º e 20º, al. g) do CIRE).
É por referência a estes princípios – da garantia patrimonial e de tratamento igualitário dos credores sociais - que se impõe entender o alcance dos elementos normativos ‘disposto de bens’ e ‘proveito pessoal ou de terceiros’ que integram o facto qualificador da insolvência previsto pela al. d), e que se impõe considerar preenchidos pela transmissão/venda dos bens (móveis) da devedora celebrada em 28.07.2020 pelos recorridos ZZ e pelo valor total de € 74.544,15 (IVA legal incluído) com subsequente canalização da quase totalidade desse valor ao pagamento a um credor comum, pelo montante de cerca de € 67.000,00, numa altura em que os autos revelam que sobre a devedora recaíam outras dívidas vencidas, inclusive de natureza privilegiada, como o são os créditos reconhecidos à Segurança Social no montante de cerca de € 86.200,00, do qual cerca de €52.500,00 vencido desde 01.10.2019 e o restante em 01.03.2020, bem como os créditos a trabalhadores que iriam emergir do encerramento da atividade da devedora, para o que se predispunha a venda dos bens que a ela estavam afetos, e que veio a ocorrer logo a seguir, em agosto de 2020. Bens ou correspetivo produto que não existiam para apreensão aquando da declaração judicial da situação de insolvência da devedora e à qual a própria veio apresentar-se em novembro de 2020 para que, como era devido, fossem afetos à satisfação igualitária dos credores, e de acordo com as preferências de pagamento legalmente estabelecidas[44]. Venda e pagamento a credor comum que, assim, surgem como atos ostensivamente prejudiciais do património da devedora e, por isso, dos respetivos credores - máxime os titulares de créditos com preferência de pagamento sobre os créditos comuns -, porque deles resulta diminuição do ativo da devedora, traduzida na disposição de bens, com consequente diminuição do valor da massa insolvente constituída com a sua declaração de insolvência e consequente agravamento da possibilidade de satisfação do coletivo dos credores da insolvência na medida daqueles bens, que deixaram de existir na esfera patrimonial da insolvente. Acresce que o pagamento feito a credor comum, tal qual como os demais pagamentos a outros credores dessa natureza, consubstancia prática de favorecimento a credores em detrimento de todos os demais credores que, assim, ficaram afastados da possibilidade de, através do devido rateio, concorrerem ao produto daqueles bens para integral e/ou parcial satisfação dos respetivos créditos, designadamente, os já referidos créditos privilegiados dos trabalhadores (estes reconhecidos pelo montante de € 64.793,00) e da Segurança Social que, no âmbito da insolvência, seriam pagos com preferência sobre os demais créditos, designadamente, do detido por José. O que tudo se traduz em diminuição das garantias patrimoniais do coletivo dos credores da insolvente e na violação do princípio estruturante do processo falimentar - a satisfação igualitária dos direitos dos credores (par conditio creditorum) de acordo com as preferências legais de pagamento de que gozam. Como acentua Soveral Martins[45], “A insolvência pode ter sido inevitável. Uma vez verificada a situação de insolvência atual (…) o gerente tem o dever de não agravar a situação de insolvência e de procurar a recuperação quando tal se justifique ou [quando a recuperação não se justifique ou não a anteveja como possível] a manutenção do valor da massa insolvente.//(…).//Não podem os gerentes ou administradores começar a atuar como se fossem liquidatários da sociedade.//(…)// O processo de insolvência será a forma de «organizar a desgraça».”
Acrescem as transferências bancárias realizadas em benefício de conta bancária da recorrida MZ posteriormente à venda dos bens, no montante total de € 17.684,00, que surge parcialmente compensado pela transferência nesse mesmo período da quantia total de € 1.500,00 a crédito de conta bancária da devedora com origem em conta bancária daquela, resultando num diferencial, em prejuízo da insolvente, de € 16.184,00, cujo destino é desconhecido.
Com o que nesta parte se conclui pela verificação da al. d) do nº 2 do art. 186º e, assim, de fundamento para a requerida qualificação da insolvência como culposa.
ii)-Prevê o art. 186º, nº 2, al. h) que “Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor, que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.”
A manutenção de contabilidade organizada e de acordo com o Sistema de Normalização Contabilística é obrigatória para as sociedades comerciais (cfr. art. 3º, nº 1 do Decreto Lei nº 158/2009 de 13.07 que aprovou aquele normativo), e tem como objetivo obter de forma verdadeira a posição financeira da empresa e o resultado das suas operações para compreensão da respetiva situação e adoção das necessárias medidas à garantia da respetiva sustentabilidade em cada momento da sua vida ao longo dos contextos económico e financeiros que atravessa. Tal obrigação decorre ainda do estatuído nos arts. 1º e 17º, nº 3 do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas e, para efeitos fiscais, destina-se a permitir a determinação e controlo do lucro tributável das pessoas coletivas. Assim, a contabilidade deve estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respetivo setor de atividade e refletir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo através do lançamento dos respetivos documentos de suporte nas contas a que respeitam e que, a cada momento, permite o apuramento dos saldos de cada rubrica e ‘espelhar’ a situação económico-financeira da sociedade e, no final do exercício, a elaboração do balanço que integra as demonstrações financeiras do exercício a apresentar em sede de prestação e depósito de contas.
Para além da vertente da fiscalidade tributária, pretende-se que a contabilidade seja fonte de informação de toda a atividade comercial da empresa a que respeita para proporcionar informação acerca da real posição financeira e dos resultados das operações da empresa, informações que são úteis não só aos investidores, fornecedores e trabalhadores, mas imprescindíveis também aos próprios administradores e aos credores, máxime no âmbito do processo de insolvência, para permitir o enquadramento e melhor compreensão da situação da insolvência e das possibilidades de maximização da satisfação do passivo através do ativo que integra e/ou deveria integrar a massa insolvente (bens, créditos sobre terceiros, ou outros direitos). Com esse desiderato recai sobre os administradores o dever de diligenciar e assegurar pela organização e atualização da informação contida na contabilidade da insolvente através da prestação ao contabilista certificado da sociedade da documentação de suporte comprovativa de todas as transações e de todas as obrigações constituídas no exercício da atividade, dos correspetivos pagamentos e recebimentos, e que, para além da tributação fiscal que a cada ato caiba, permita em cada período apurar as variações patrimoniais positivas e negativas e quantificar os capitais próprios da sociedade, rastrear os atos celebrados no exercício do objeto social, a afetação dada às receitas obtidas, e a identificação dos proveitos gerados. O que pressupõe a disponibilização, aos contabilistas responsáveis pela elaboração da contabilidade da empresa, da documentação de suporte de tais transações, cuja ausência e desconhecimento, como é evidente, inviabiliza a organização contabilística dos movimentos da empresa de acordo com a realidade desta e, consequentemente, o encerramento do exercício enquanto retrato da situação da devedora, também para efeitos fiscais e para conhecimento de outros interessados. Com efeito, os contabilistas certificados têm deveres legais e estatutários para com as empresas a quem prestam serviços, mas estas também têm o prévio dever de entregar pontualmente toda a documentação necessária para a elaboração da contabilidade, assegurar que todas as operações estão devidamente suportadas, fornecendo àqueles profissionais toda a informação e colaboração que necessitam e solicitem, conforme art. 12º, nº 1 do Código Deontológico dos Contabilistas Certificados[46]. A negação das referidas informações ou de colaboração, pontual ou reiterada, conferes-lhe o direito à recusa de assinatura das declarações fiscais, sendo que é considerada como “falta de colaboração a ocultação, omissão, viciação ou destruição de documentos de suporte contabilístico ou a sonegação de informação que tenha influência direta na situação contabilística e fiscal da entidade a quem o técnico oficial de contas presta serviços.” O não cumprimento do dever de colaboração, a não prestação de toda a informação e colaboração necessárias, desresponsabiliza o Contabilista Certificado das consequências que daí possam advir, nomeadamente o não cumprimento dos prazos legais (cfr. art. 12º, nº 4) normas citadas), tanto mais que é subsidiariamente responsável pelo pagamento das dívidas tributárias das sociedades em caso de violação dolosa dos deveres de assunção de responsabilidade pela regularização técnica nas áreas contabilística e fiscal ou de assinatura de declarações fiscais, demonstrações financeiras e seus anexos (art.º 24 n.º 3 da LGT), e igualmente subsidiariamente responsável pelo pagamento de multas ou coimas de pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados de quem colaborar dolosamente na prática da infração tributária (art.º 112 da LGT).
Por referência à contabilidade, a al. h) diferencia e prevê três condutas: incumprimento substancial da obrigação de manter contabilidade organizada, manutenção de contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade, prática de irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor. Só neste ultimo caso se exige que o prejuízo relevante para a compreensão da situação da devedora seja autonomamente alegado e demonstrado já que, nos demais, esse prejuízo é total e, por isso, intrínseco à ausência de contabilidade ou à contabilidade fictícia ou dupla. Por outro lado, o incumprimento substancial da obrigação de manter contabilidade organizada como circunstância qualificadora “permite excluir pequenas falhas – um hiato de transição entre contabilistas, uma falha do sistema informático, períodos de férias dos funcionários encarregues do lançamento de documentos, só para dar alguns exemplos – e considerar como integrando esta alínea a omissão quando frustre os objetivos legais, ou seja, quando impossibilite o acesso a informação útil que permita a tomada conscienciosa de decisões. Quando esses trabalhos param e não são retomados num curto espaço de tempo, podemos considerar que há incumprimento substancial.”[47]
Reportando ao caso, a sentença recorrida considerou que “[a] falta de contabilidade desde 2019, inclusive, não gerou prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor” porque“não impediu a identificação do destino dos ativos.”
A esta apreciação as recorrentes concluem e opõem que “é a própria Recorrida MZ que reconhece a prática de irregularidades com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da Devedora” (cfr. conclusão 33 das alegações de recurso). Sobre esta matéria (contabilidade), a propósito e no âmbito da fundamentação da impugnação que dirigiram ao teor do ponto 39 da decisão de facto, em sede de motivação do recurso alegam falta de correspondência entre o saldo bancário registado no balancete de 2019, na ordem dos €748.000,00[48], e o saldo verificado nos extratos bancários disponíveis nos autos, que variam entre os € 2.000,00 e os €14.000,00, falta de correspondência que, conforme alegam, resulta de “operação de conciliação” que, erroneamente, pressupõem corresponder ao referido confronto entre o valor inscrito e o valor dos saldos que constam dos referidos extratos bancários. Mais acrescentam que não foi apresentada justificação para a diferença entre estes valores, que qualificam como redução abrupta e que alegam corresponder a movimentos bancários/de dinheiro que não passaram pela contabilidade, foram realizados sem benefício para a devedora, e cujo paradeiro se desconhece; mais à frente acrescentam que da conta 278 constam registados saldos de reconciliações bancárias nos valores de € 519.847,74 e € 27.894,03 para concluírem que do saldo bancário inscrito (€748.000,00) é desconhecido o paradeiro da quantia de € 547.741,77 ou até se esta existia. Em sede de fundamentação do imputado erro de julgamento quanto à não verificação da al. h), e reproduzindo em boa parte a fundamentação da impugnação ao teor do ponto 39 dos factos provados, alegam que “a Devedora, no final de 2019 apresentava um activo de 1 415 151,10 € - decomposto pelas quantias de 749 696,12 € ( total da Classe 1) + 568 101,64€ (conta 21) + 52.364,61 (conta 32) + 44 988,73 € ( conta 43 ) -, contra um passivo de 1 839 295,64 € – decomposto pelas quantias de 1 181 495,33€ ( fornecedores ) + 42 206,42 ( conta 23 ) + 47 197,09 € ( conta 24 ) + 57 251,46 € ( conta 25 ) + 6 000,00€ (conta 26) + 505 145,34 ( conta 27).”, que “da análise aos elementos contabilísticos carreados nos autos recorridos resulta que a Devedora, no final do ano de 2019 encontrava-se em insolvência técnica.”, que “no final do ano de 2019, a Devedora registou na contabilidade uma dívida à sociedade M. I – detida pelos seus Gerentes de Direito -, de 630.845,26 €, sendo certo que a totalidade de dívidas a fornecedores ascendia a 1.181.495,33.”, que “a falta de contabilidade impediu o conhecimento do valor contabilístico, à data da dissipação, do imobilizado que compunha o espólio patrimonial da Devedora e que foi dissipado para a sociedade constituída por intermédio das filhas dos Gerentes de Facto da Devedora.”, e que “a testemunha João, através de um depoimento directo, atestou que os bens foram vendidos abaixo do valor de mercado.”
Apreciando, salienta-se antes de mais que, nesta matéria, aquando do pedido de abertura do incidente e alegações para efeito de qualificação da insolvência as recorrentes limitaram-se a alegar falta de organização de contabilidade e a citar a al. h) do nº 2 do art. 186º e, no parecer da AI, ao qual o Ministério Publico aderiu, a par com a alegação da ausência de depósito das contas do exercício de 2019 e de incumprimento de obrigações fiscais, consta apenas alegado que a contabilidade não está devidamente organizada, sem que a respeito seja aduzida qualquer especificação ou concretização, o que equivale a dizer tratar-se de alegação conclusiva desprovida de qualquer fundamentação factual que a suporte. Assinala-se porém que, divergindo nesta parte das alegações das recorrentes, a AI e o MP não concluíram pela qualificação da insolvência com fundamento na al. h) ora em referência.
Nesta matéria, dos temas de prova consta apenas, sob os pontos 12 e 13, “Falta de contabilidade quanto ao exercício de 2019” e “Recusa do TOC à entrega dos documentos contabilísticos e financeiros da empresa”; da decisão de facto, no elenco dos factos provados apenas que “7. Nas últimas contas depositadas, reportadas ao ano de 2018, a Requerida declarou resultado líquido de € 18.208,14, ativo de € 1.855.017,64 e passivo de € 1.638.996,96.”, “13. Requerente Contabilidade…, Fluxos e Devedora acordaram na prestação de serviços de contabilidade e, por carta de 10.07.2020, aquela comunicou à devedora a rescisão, com efeitos imediatos, daquele contrato e, para além da exposição das causas da rescisão, mais comunicou que “As n/obrigações encontram-se cumpridas até ao final do mês de Junho, restando apenas a entrega do Modelo 22, em que a data limite para a sua entrega é 31/07/2020, carecendo da análise do Revisor Oficial de Contas.”, e “56. Foi emitido escrito intitulado “Balancete Geral Acumulado Exercício 2019”, relativamente à Devedora,” (correspondendo este ao documento junto com o requerimento inicial do incidente apresentado pelas recorrentes). Dos factos não provados consta que “e) O contabilista recusou-se à entrega dos documentos contabilísticos e financeiros da Devedora.”
Assenta-se como primeiro ponto que, efetivamente, os documentos de suporte emitidos pela devedora (faturas e recibos) e os extratos bancários por ela juntos permitiram apurar o destino dos seus bens e do produto da respetiva venda bem como de outros valores depositados em contas bancárias da devedora. Mas, contrariamente ao que parece ser pressuposto pela sentença recorrida, a emissão dos documentos que (passando o pleonasmo) documentam as transações ou outras operações não substituem o dever legal de proceder ao seu tratamento contabilístico pois, conforme acima exposto, só por esta via é possível obter informação sobre a situação da empresa.
Porém, ainda que assim seja, do acima enunciado logo resulta, por um lado, que na apreciação desta questão a sentença recorrida – e as recorrentes - partem da afirmação de um facto que não resultou provado – falta de contabilidade desde 2019[49] -, ao qual, por isso, não é suscetível de ser imputado o desconhecimento do valor contabilístico dos bens alienados pela vendedora. Por outro lado, mais resulta que a alegada falta de correspondência entre os saldos bancários inscritos na contabilidade e os saldos bancários reais, para além da incorreção da leitura e conclusões que as recorrentes fazem e extraem daqueles dados, corresponde a questão de facto que não foi invocada em sede de alegações e pareceres da qualificação da insolvência e que, por isso, não integrava o objeto submetido ao contraditório dos recorridos, aos quais vinha imputada falta de contabilidade organizada e não prática de irregularidade contabilística com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor (que, precisamente, pressupõe a organização de contabilidade, ainda que de forma irregular). Pelo que é possível constatar da atividade processual acima descrita no relatório (bem como do teor das atas de audiência de julgamento), esta questão de facto atinente com o contabilizado a título de saldos bancários, e em que termos, também não foi oficiosamente aditada ao objeto do processo, designadamente, nos termos do art. 11º do CIRE que, para o efeito, impunha que as partes, mormente os recorridos, fossem expressamente notificados para alegarem e oferecerem o que a respeito tivessem por conveniente. Conforme já referido, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre questões (de facto ou de direito) que não foram suscitadas pelas partes ou, sendo admissível, ex officio pelo tribunal, na instância recorrida, sendo que o recurso também não vem estribado na violação do poder dever que resulta dos poderes deveres do inquisitório amplo previsto pelo art. 11º do CIRE, e a apreciação em sede de recurso não se destina a criar soluções para questões novas, sendo ‘novo’ o que não foi submetido à apreciação na instância recorrida[50].Os recursos ordinários destinam-se a permitir que o tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação das decisões recorridas, objectivo que se reflecte na delimitação das pretensões que lhe podem ser dirigidas e no leque de competências susceptíveis de serem assumidas.//(…), a demanda do Tribunal Superior está circunscrita às questões já submetidas ao tribunal de categoria inferior, sem prejuízo da possibilidade de se suscitarem ou de serem apreciadas questões de conhecimento oficioso, como a inconstitucionalidade de normas, a nulidade dos contratos, o abuso de direito ou a caducidade em matéria de direitos indisponíveis, relativamente às quais existam nos autos elementos de facto.[51]
As demais cifras que as recorrentes extraem do dito documento não evidenciam qualquer irregularidade contabilística, que por estas também não vem concretamente identificada.
Com o que se conclui pela não verificação do facto qualificativo da insolvência culposa previsto pela al. h) do nº 2 do ar. 186º, seja na modalidade de falta substancial de contabilidade organizada, seja de prática de irregularidade contabilística com prejuízo para a compreensão da situação da devedora.
iii)-Nos termos do art. 186º, nº 3[52], Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido: a) O dever de requerer a declaração de insolvência;//b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
Nos termos do art. 18º, nº 1 do CIRE “O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência tal como descrita no nº 1 do artigo 3º, ou à data em que devesse conhecê-la, acrescentando o seu nº 3 que Quando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do nº 1 do artigo 20º. Nestas, entre outras, incluem-se as dívidas à Autoridade Tributária, à Segurança Social, e a trabalhadores.
A apresentação à insolvência do devedor que, de acordo com o critério de tesouraria ou cash flow previsto pelo art. 3º, nº 1[53], se encontra impossibilitado de cumprir as obrigações vencidas por falta de liquidez suficiente para cumprir a generalidade das dívidas vencidas, configura comportamento que lhe está normativamente imposto para que, com a maior brevidade possível, seja encontrada solução que faça cessar os efeitos comuns da insolvência e na medida em que o seu arrastamento é abstratamente apto a gerar mais inconvenientes e prejuízos, designadamente, pelo efeito bola de neve sobre os seus parceiros comerciais, máxime, os seus fornecedores (de matéria prima, de serviços, de equipamentos, ou financeiros). Com efeito, tal dever tem como corolário e/ou pressuposto lógico o facto de o objetivo precípuo de qualquer processo de insolvência ser a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores, quer seja através da liquidação, quer seja através da recuperação, sendo certo que por esta ultima via o timing na tempestiva apresentação à recuperação ainda se revela de maior importância, pois, por regra, dela dependerá a viabilidade e a possibilidade de (ainda) recuperar o devedor que, além do mais, carece da confiança dos seus credores. Trata-se por isso de norma de proteção dos credores sociais que, uma vez verificados os respetivos pressupostos, faz recair sobre o devedor presunção de culpa grave no seu incumprimento mas que, para constituir fundamento de qualificação da insolvência como culposa, conforme acima se expôs, mais exige a prova que do incumprimento dessa obrigação resultou agravamento da situação da insolvência, elemento que, com o nexo de causa entre a omissão e o resultado, integra o objetivo do ilícito por esta norma previsto.
Como é invocado na sentença recorrida, no contexto da pandemia Covid-19, de entre as várias medidas legais adotadas para corresponder à situação de crise económico-social pela mesma gerada conta-se a suspensão do dever de apresentação à insolvência prevista pelo art. 7º, nº 6, al. a) da Lei n.º 1-A/2020 de 19.03[54], e com efeitos retroativos a 09.03.2020, nos seguintes termos: Ficam também suspensos: a) O prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no n.º 1 do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Medida que, conforme se extrai do teor da norma, corresponde à suspensão do prazo previsto para o cumprimento daquele dever que, conforme se referiu, é de 30 dias a contar do conhecimento da situação de insolvência, demonstrado ou presumido nos termos do citado nº 3 do art. 18º. Por referência a este período a insolvência não pode ser qualificada com fundamento na presunção estabelecida pela al. a) do nº 3 do art. 186º. Mas, nas palavras de Maria de Fátima Ribeiro[55], (…) não nos parece que deva ficar afastada, em virtude da suspensão do dever de apresentação à insolvência, a possibilidade de qualificação da insolvência como culposa à luz do disposto no n.º 1 do art. 186.º, provando-se que a situação foi criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, (…), nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. Enquadra-se nesta pertinente ressalva a já apreciada disposição de bens da devedora nos termos previstos pela al. d) do nº 2, cuja valoração e eficácia qualificativa da insolvência como culposa não é prejudicada pela suspensão legal do dever de apresentação à insolvência, mais não fosse porque suspensão do prazo de apresentação não significa proibição de apresentação[56] e esta medida não se traduz na concessão de ‘carta branca’ aos devedores insolventes para liquidação ‘ad hoc’ dos seus bens e, por outro lado, pressupõe a viabilidade e o propósito de dar oportuna continuidade à empresa, que é contrariado pela venda do imobilizado afeto e necessário à exploração do respetivo objeto social. São nesse sentido as palavras de Catarina Serra[57] que, criticando a natureza incondicional da suspensão pela ausência de exigência de requisitos substanciais que garantissem a sua aplicabilidade apenas às empresas insolventes por causa da pandemia e recuperáveis, mais critica a ausência de reforço da margem de ação dos administradores durante esse período através da criação de “presunções (relativas) de que os actos necessários à continuação e à recuperação da empresa são, por um lado, actos cuja prática é conforme aos deveres fundamentais dos administradores e, por outro lado, não são prejudiciais aos credores/susceptíveis de resolução em benefício da massa em eventual processo de insolvência.
Relativamente à al. a) a sentença recorrida considerou que em agosto de 2020 os representantes da devedora sabiam que esta se encontrava impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, que a apresentação à insolvência ocorreu em 08.01.2021, mas que não tem aplicação a norma ora em referência porque vigorava na altura a suspensão do prazo de apresentação do devedor à insolvência previsto pelo art. 6º-A, nº 6 da Lei nº 1-A/2020 de 19.03.
Por remissão para os termos da impugnação ao ponto 39 da decisão de facto, opõem as recorrentes que já desde finais de 2019 os recorridos tinham conhecimento da impossibilidade de a devedora cumprir obrigações vencidas, pelo que deveriam tê-la apresentado à insolvência anteriormente à eclosão da pandemia, e que, não o tendo feito, causou o agravamento da situação de insolvência.
No caso, e conforme consta relacionado sob o ponto 22, existe incumprimento de dívidas à Segurança Social, umas vencidas em outubro de 2019 e outras em março de 2020, incumprimento que, pelos respetivos montantes de, respetivamente, € 32.662,87 e € 52.559,38, permite presumir que cada um deles corresponde a mais do que um mês de contribuições devidas à segurança social. Não obstante, daí não decorre que possam qualificar-se como generalizados, designadamente, o incumprimento do valor vencido em outubro de 2019, sendo certo que, ainda que o fosse (generalizado, nos termos previstos pelo art. 20º, nº 1, al. g), ii), só decorridos 3 meses sobre o mesmo podia presumir-se o conhecimento da situação de insolvência, sendo que a partir daí a devedora dispunha de 30 dias para cumprimento do dever de apresentação à insolvência, cujo termo, afinal, veio praticamente a coincidir com o início da sua suspensão legal.
Do elenco dos factos provados não existem outros que permitam concluir pela verificação, em finais de 2019 ou até inícios de fevereiro de 2020, de qualquer outro facto índice de insolvência previsto pelo art. 20º, nº 2 do CIRE nem, por qualquer forma, que da não apresentação à insolvência até 09.03.2020 resultou agravamento da situação económico-financeira da devedora (por referência a finais de 2019 ou a qualquer outro momento temporal), designadamente, através do acréscimo do volume do respetivo passivo entre uma e outra data[58] ou pela desvalorização de ativos, e para o que, para além do que a respeito já se referiu, surge perfeitamente irrelevante o facto de as remunerações dos recorridos RR serem pagas através das respetivas filhas, tal qual como a mera alegação – sem correspondência nos factos provados – da falta de qualidade dos produtos que a SA fornecia à devedora, sendo que a venda dos bens da devedora, bem como o pagamento a um só credor pelo valor correspondente ao produto por aquela obtido, conforme já exposto, integram os pressupostos do fundamento de qualificação da insolvência previsto pela al. d) do nº 2 do art. 186º e como tal são autonomamente valorados, independentemente do cumprimento ou incumprimento do dever de apresentação à insolvência.
Relativamente à al. b) do nº 3, a sentença recorrida afastou a verificação desta norma por não lograr identificar agravamento da situação de insolvência entre agosto de 2020 e janeiro de 2021, o que justificou consignando que o decurso do tempo avolumou dívidas aos credores públicos – aqui referindo os créditos da Segurança Social vencidos a partir de 01.10.2019 -, mas satisfizeram-se outras.
As recorrentes opõem que a situação de insolvência foi agravada pelo pagamento de remunerações por intermédio de terceira pessoa, pelas encomendas à SA de produtos sem a qualidade necessária, pelo acumular de dívidas a fornecedores superiores a €1M, e na dissipação da totalidade do património da devedora e entrega do respetivo produto a José apesar da existência de dívidas e não pagas ao ISS a partir de 01.10.2019.
De salientar antes de mais que, em causa, está apenas a violação do dever de depósito das contas referentes ao exercício de 2019 porque, como já se referiu, não resultou provado que as contas de 2019 não foram elaboradas[59], apenas que não foram depositadas na medida em que as ultimas levadas a depósito respeitam ao exercício de 2018.
Considerando que a insolvência da devedora foi declarada em novembro de 2020, não releva o deferimento do prazo de prestação de contas que resultou da possibilidade de deferimento das assembleias gerais de sócios obrigatórias até 30 de junho de 2020, prevista no âmbito da primeira resposta legal à situação gerada pela pandemia Covid-19 pelo art. 18º[60] do Decreto Lei nº 10-A/2020 de 13.03, nem releva a prorrogação do prazo para cumprimento da obrigação declarativa de informação empresarial simplificada (IES)[61] [62], de 15.07[63] para 15.09.2020, conforme Despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (SEAF) n.º 259/2020-XXII.
Mas, ainda que daqui resulte e se conclua positivamente pelo incumprimento do dever de depósito das contas de 2019, para além de não existirem elementos que permitam concluir pela verificação de qualquer facto índice de insolvência previsto pelo art. 20º, nº 2 do CIRE entre finais de 2019 e até inícios de fevereiro de 2020, ou entre 15 de julho e novembro de 2020 (mês em que foi declarada a insolvência da devedora), por qualquer forma sempre faltariam elementos dos quais fosse possível extrair que da não apresentação à insolvência até 09.03.2020 ou da ausência de depósito das contas de 2019 até 15.09.2020 resultou agravamento da situação económico-financeira da devedora (por referência a finais de 2019 ou a qualquer outro momento temporal), designadamente, que entre uma e outra data sofreu acréscimo do volume do respetivo passivo[64] ou desvalorização de ativos, para o que, para além do que a respeito já acima se expôs, surge perfeitamente irrelevante a demonstrada prática de pagamento de parte substancial das remunerações dos recorridos RR através das respetivas filhas, tal como o é falta de qualidade dos produtos que a SA fornecia à devedora, que sequer encontra correspondência nos factos provados, factos que per si não permitem sequer concluir por um qualquer agravamento de uma pressuposta situação de insolvência, nem tão pouco considerá-los como consequência lógica ou factual das condutas omissivas ora em apreciação, sendo que “A presunção de “culpa grave” do nº3 do artigo 186º não prescinde de um juízo de causalidade entre o facto fundamentador da presunção e a criação ou agravamento da situação de insolvência, quer se tenha este por presumido ou se entenda ser este a provar pelo lesado.”[65] Conforme já exposto, a venda dos bens da devedora e a afetação de valor correspondente ao respetivo produto ao pagamento a um só credor integram os pressupostos do fundamento de qualificação da insolvência previsto pela al. d) do nº 2 do art. 186º que, como tal são nesses termos e autonomamente valorados como fundamento de qualificação da insolvência, independentemente do cumprimento ou incumprimento de qualquer um dos deveres de apresentação à insolvência ou de elaboração e/ou depósito de contas.
Com o que se conclui pela não verificação do facto qualificativo da insolvência culposa previsto por qualquer uma das alíneas do nº 3 do art. 186º.
D2)–Na aferição da responsabilidade dos recorridos ZZ como gerentes de direito, e dos recorridos RR como gerentes de facto da insolvente.
1.–Decorre dos termos dos arts. 186º e 189º nº 2 e 3 que a afetação pela qualificação da insolvência incide apenas sobre pessoas singulares. O âmbito subjetivo do presente incidente vem suportado na qualidade de gerentes de direito quanto aos recorridos ZZ, e na qualidade de gerentes de facto que aqueles imputaram aos recorridos RR logo aquando da apresentação da devedora à insolvência[66], e no que se ancoraram as alegações das recorrentes e os pareceres da AI e do MP para fundamentarem a indicação destes últimos à afetação pela qualificação da insolvência como culposa. Os recorridos RR rejeitaram a qualidade de gerentes de facto da insolvente alegando, em síntese, que nunca agiram em nome e em representação desta com autonomia decisória, tendo exercido apenas funções de distribuidores/vendedores, e que dos recorridos ZZ dependiam todas as decisões sobre os negócios, movimentações financeiras, compra e venda de equipamento, e contratação de empregados. Mais alegaram que não contribuíram para o desaparecimento do património da insolvente nem obtiveram vantagem económica das relações entre esta, a SA e a WV (adquirente dos bens da insolvente).
A sentença recorrida concluiu pela natureza fortuita da insolvência mas, previamente, pronunciou-se sobre a questão da qualidade de administradores de facto da insolvente imputada aos recorridos RR. Na definição da figura de administrador de facto considerou o teor dos arts. 6º e 49º, nº 4 do CIRE e, na transposição dos mesmos para os factos provados, atendeu ao facto de os recorridos RR nunca terem disposto de elementos do património da devedora nem deterem poderes para o efeito, de a decisão dos destinos da devedora estar nas mãos dos recorridos ZZ por força da titularidade das contas bancárias e de, na adesão destes às indicações dos recorridos RR, “[e]stava presente a affectio societatis”, tendo concluído pela integração da atuação destes no disposto nos arts. 248º e ss. do Código Comercial.
Relativamente aos recorridos RR as recorrentes opõem que dos factos provados resulta que estes foram gerentes de facto e tal qualidade não pode ser afastada pela invocação da recente norma prevista pelo art. 49º, nº 4 do CIRE, cuja letra impede a sua aplicação extensiva/análoga aos recorridos, nem pelo facto de aqueles não disporem do património da devedora por não deterem poderes para tal sem que o tribunal recorrido tenha indicado como é que o exercício de funções dos recorridos foi irrelevante à situação de insolvência da devedora; mais opõem que a gerência de facto não pode ser afastada pela ausência de poderes de disposição do património da devedora e, ao mesmo tempo, aplicar o regime do mandato comercial previsto pelo art. 248º do Código Comercial, cuja aplicação obriga à verificação do pressuposto que a decisão recorrida considerou não verificado para afastar a gerência de facto. Relativamente aos recorridos ZZ alegam que a existência de gerentes de facto não exclui os gerentes de direito da afetação da qualificação e que tanto não foi ponderado pelo tribunal.
2.–Antes de mais anota-se que a sentença recorrida não tinha que emitir pronúncia sobre a responsabilidade dos gerentes de direito por tratar-se de questão de direito prejudicada pela qualificação da insolvência como fortuita que, necessariamente, afasta a afetação de quem quer que seja com fundamento na criação ou no agravamento da insolvência; e que, se fosse o caso, ao tribunal impunha-se indicar/justificar em que termos os recorridos RR causaram ou agravaram a situação da insolvência, e não os termos em que a não causaram ou não agravaram.
Por qualquer forma, determinados e apontados que foram nesta instância os factos que suportam a qualificação da insolvência da devedora como culposa (com fundamento legal na al. d) do nº 2 do art. 186º), mais se anota que, independentemente da natureza das funções efetivamente exercidas pelos recorridos RR na insolvente, aqui chegados é possível concluir que a sua afetação resulta prejudicada na medida em que da matéria de facto não resulta que tiveram intervenção na decisão de venda dos bens da insolvente, que foi celebrada pelos recorridos ZZ, nem na transferência de quantias monetárias da conta da devedora em beneficio da recorrida MZ. Conforme se expôs, a qualificação da insolvência como culposa tem como pressupostos uma conduta ilícita do devedor ou dos seus administradores praticada com dolo ou com culpa grave, e em relação de causalidade com a situação de insolvência ou com o seu agravamento. Considerando que o prius da qualificação é, precisamente, uma conduta, por ação ou por omissão, é pela autoria desta que em concreto se impõe aferir do âmbito subjetivo das consequências da insolvência culposa. Sem prejuízo das presunções legais de culpa, “[a] responsabilidade dos administradores e gerentes é por culpa e por facto próprio, não é responsabilidade sem culpa e por facto de outrem.”[67] Corresponderá esse ao sentido da apreciação feita pelo acórdão do Tribunal Constitucional nº 280/2015 de 20.05[68], ao considerar que “a determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 189.º do CIRE (inibição para a administração de patrimónios alheios, exercício de comércio e ocupação de cargo de titular de órgão nas pessoas colectivas aí identificadas) e, naturalmente, a própria fixação do montante da indemnização prevista na alínea e) do n.º 2 do mesmo preceito legal, deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal” (subl. nosso). Ora, no contexto dos factos que fundamentam a qualificação da insolvência da devedora como culposa, nenhum existe que permita imputar aos recorridos RR a prática de uma ação proibida ou a omissão de uma atuação devida.
3.–Sem prejuízo, confirma-se o acerto da apreciação da sentença recorrida na exclusão da qualificação dos recorridos RR como administradores de facto da devedora.
O art. 6º, nº 1 do CIRE define como administradores “aqueles a quem incumba a administração ou liquidação da entidade ou património em causa, designadamente os titulares do órgão social que para o efeito for competente.” A figura do administrador de facto corresponde a uma realidade material que existe à margem da previsão legal do órgão social competente para a administração da sociedade – que não prescinde do elemento formal da designação ou nomeação pelos sócios -, e para a qual não existe uma definição ou previsão de critérios legais que a definam para além da que é possível extrair da analogia com a figura do administrador de direito, da qual se distingue pela ausência do título de investidura formal no cargo (nos termos do art. 252º, nº 2 do CSC para as sociedades por quotas). Assim, e conforme definição comummente aceite pela generalidade da doutrina e jurisprudência, é administrador de facto Quem, sem título bastante, exerce, direta ou indiretamente e de modo autónomo (não subordinadamente), funções próprias de administrador de direito na sociedade.”[69] Com a mesma clareza, nas palavras de Soveral Martins, “[p]ara que um sujeito seja considerado como administrador de facto é necessário que atue da mesma forma que os administradores de direito.”[70] De tal forma que, como refere David Nunes dos Reis[71], “é a atividade que cria o administrador de facto”. Importa por isso atender à concreta atividade exercida pelo sujeito, e em que termos. Apreciação que no caso se impõe realizar por referência, não às relações estabelecidas entre a sociedade e terceiros através dos recorridos RR, mas à relação interna e interações entre os recorridos RR e os recorridos ZZ, estes na qualidade de gerentes de direito da devedora – porque em causa nos presentes autos não está a relevância jurídica da aparência para proteção da confiança de terceiros através da vinculação/responsabilização da sociedade pelos atos praticados por quem, sem poderes formais de representação, mas com o conhecimento, consentimento e vontade de quem de direito, atuou por sua conta e em seu nome; o que aqui está em causa é a imputação de responsabilidade – insolvencial – a quem atuou em nome e por conta da sociedade sem deter a qualidade de administrador formalmente designado como tal.
No âmbito da regulação das sociedades por quotas prevê o art. 259º do CSC que “Os gerentes devem praticar os actos que forem necessários ou convenientes para a realização do objecto social, com respeito pelas deliberações dos sócios.” A administração de facto exige, por natureza, o efetivo exercício de poderes de gestão no âmbito do objeto social, por princípio, de forma sistemática e continuada. A partir daqui, independentemente das várias construções e densificações doutrinárias da problemática da identificação do administrador de facto, um outro ponto parece reunir consenso – exige que a direção que caracteriza a administração de uma sociedade seja exercida de modo independente, com total e ilimitada autonomia na tomada de decisões e na atuação, influindo de forma decisiva nos destinos da sociedade, com compressão da autonomia do administrador de direito na tomada dessas decisões, que não se basta com uma situação de mera influência ou de sugestões, antes exige uma imposição e uma expectativa de obediência[72]. “Significa, portanto, que não basta que haja uma autonomia aparente que seja percetível do exterior. Se a esta pretensa autonomia perspetivada por terceiros não corresponder a suscetibilidade de conformar os destinos da sociedade, então não se está perante um administrador de facto.//(…)//De facto, na esteira de Ricardo Costa, uma vez que se exige um poder ilimitado e pleno (…), não são administradores de facto «todas aquelas outras [pessoas] que, na sua execução em termos limitados, solicitam instruções e supervisão à autoridade competente da sociedade (a administração de direito, como depositária dos poderes do titular da empresa) e que a ela presta contas.”[73] Daí que também não basta a atribuição de alguns poderes típicos dos administradores, como é o caso dos denominados «diretores» a quem “os administradores de jure delegam poderes, tarefas e atribuições, aproximando assim o espaço de atuação do direitos daquele que seria expectável no administrador de direito.”[74] Citando Ricardo Costa, acrescenta o autor que vimos seguindo de perto que “o «diretor geral», sendo – e mesmo que não seja – trabalhador subordinado, perde a autodeterminação da sua actividade, uma vez que se obriga contratualmente a realizá-la de acordo com a vontade do empregador e está sob o manto do poder alheio de decidir os modos precisos de utilização da capacidade laborativa colocada à disposição da sociedade (…) encontrando-se num estado de disponibilização funcional.//(…)//(…) o diretor (que esteja fora do órgão de administração) não poderá aceder ao âmbito de competências exclusivas da administração. Portanto, nessa medida, não tem autonomia plena.//(…)//Basta que se consiga identificar uma (pequena) manifestação de subordinação, de supervisão ou de acatamento de ordens para obviar à qualificação como administrador de facto.”[75]
Revertendo ao caso, resultou provado e consta descrito sob os pontos 42º a 46º que os recorridos RR propuseram aos recorridos ZZ trabalhar com eles na área de negócio de fornecimento de hotéis e restaurantes de luxo na qual detinham experiência, carteira de clientes, fornecedores e funcionários, que os recorridos ZZ constituíram a devedora para exercer atividade naquele ramo de negócio (de venda/distribuição de produtos alimentares) aproveitando o status da SA no mercado e o crédito por esta detido junto dos respetivos fornecedores. A recorrida MZ apresentou a devedora a fornecedores daquela SA informando-os que ia começar a comprar (também) pela devedora e que os recorridos RR eram os encarregados das compras. No âmbito do exercício da atividade, eram os recorridos RR quem angariavam e contactavam com os clientes e fornecedores da devedora e, no âmbito das relações que com estes estabeleciam em nome da devedora, decidiam o que comprar e o que vender, a quem, e a que preço, efetuando os correspondentes pedidos de fornecimento/encomendas, incluindo à SA, e a subsequente distribuição dos produtos aos clientes, que era por eles programada; davam as necessárias ordens/instruções aos trabalhadores da devedora em funções no armazém, no picking e na distribuição (motoristas), e decidiam com eles os períodos de gozo de férias; informavam os primeiros requeridos da necessidade de contratação de trabalhador – quer para substituição de outro que tivesse cessado contrato, quer por ocasião de aumento da atividade - , e do equipamento necessário adquirir para a atividade da devedora, designadamente, veículos, e mais angariavam e indicavam à recorrida MZ os trabalhadores a contratar e, para efeito de processamento contabilístico e oportuno pagamento por aquela, mais lhe comunicavam os valores devidos aos trabalhadores em função das faltas por estes dadas, das férias, e dos prémios de produtividade que por eles (RR) era decidido atribuir. No âmbito da atividade exercida pela devedora, eram os recorridos ZZ que faziam a gestão das contas bancárias da devedora, da quais detinham acesso e controlo exclusivos, assumiam responsabilidade nos bancos, avalizavam letras para garantia de pagamento, negociavam acordos de pagamento de dívidas com os fornecedores, decidiam quais os pagamentos a fazer e procediam aos mesmos, por transferência bancária ou através da emissão de cheques que entregavam aos recorridos RR para pagamento; recebiam do recorrido CR e/ou das funcionárias administrativas da devedora a respetiva documentação sujeita a tratamento contabilístico (controlo das mercadorias recebidas, das vendas realizadas, dos serviços, e dos funcionários), remetiam esta informação ao contabilista certificado da devedora, com o qual contactavam e pelo qual eram diretamente contactados, tinham acesso à informação contabilística, designadamente aos saldos de clientes e de fornecedores, contratavam a aquisição de equipamento que os recorridos RR lhes indicassem como sendo necessário à atividade da devedora, designadamente, veículos, assinavam os contratos de trabalho dos colaboradores por aqueles angariados e indicados como necessários à atividade da devedora e remetiam à contabilidade as informações necessárias ao processamento das respetivas remunerações.
Ou seja, e conforme resultou descrito, os recorridos ZZ constituíram a devedora, designaram-se seus gerentes, e reservaram para si a gestão e controlo financeiro da execução operacional da atividade da devedora levada a cabo pelos recorridos RR, esta traduzida na angariação de fornecedores e clientes, contactos com os mesmos no âmbito das compras e das venda de produtos alimentares por eles celebradas em nome da devedora, e angariação e chefia do trabalho prestado pelos funcionários da devedora afetos ao armazém, ‘picking’ e entrega dos produtos aos clientes. Atividade que os recorridos RR executavam com liberdade nas relações que estabeleciam com os fornecedores e com os clientes da devedora para o específico propósito de compra e venda dos produtos do comércio desta, mas que levavam a cabo sem acesso aos dinheiros da devedora e à respetiva contabilidade, áreas de ‘alta direção’[76]que estavam na disponibilidade exclusiva dos recorridos ZZ. O que equivale a dizer que os recorridos RR não detinham o domínio dos réditos, ganhos ou rendimentos, nem dos custos, perdas ou gastos, nem o controlo da tesouraria[77] da devedora, à qual não tinham acesso, dependendo totalmente nessa parte da vontade e ação dos recorridos ZZ, em suma, da gestão das disponibilidades de tesouraria e financeira da devedora e dos pagamentos que estes decidiam ou não realizar.
Neste cenário é manifesto que os recorridos, ainda que atuando com autonomia no âmbito dos contactos que estabeleciam com os fornecedores e os clientes da devedora para compra e venda dos produtos, não detinham poder pleno e ilimitado na direção dos destinos da sociedade; sequer no devir das relações jurídicas por eles estabelecidas com os parceiros comerciais da devedora posto que não detinham domínio nem sobre os pagamentos que eram feitos (aos fornecedores e a quaisquer outros credores da devedora) nem sobre os recebimentos (dos clientes). Ora, a administração de uma sociedade exige uma relação com a esfera patrimonial desta já que, como refere Carneiro de Frada[78], “Há uma relação fiduciária entre o administrador e a sociedade. O serviço que ele presta a favor da sociedade envolve a atribuição de poderes alargados sobre ela e sobre o seu património.”. Nas palavras de Ricardo Costa[79] “exigir-se-á a intensidade do comando e planeamento gerais no que toca ao destino comercial e financeiro da sociedade, ao provimento dos recursos humano e materiais, atendendo à dimensão da sociedade e ao tipo de atividade societária.” (subl. nosso). O exercício da administração por administrador de facto pressupõe que abranja a prática de atos com conteúdo patrimonial ‘intenso’, suscetíveis de determinar ou comprometer o destino comercial e financeiro da sociedade, agindo sobre o património da sociedade através desta. Poderes que os recorridos não detinham plenamente nem exerciam com autonomia ilimitada relativamente aos recorridos ZZ, administradores de direito da devedora.
Por outro lado, a descrita atividade gestionária dos recorridos RR também não era feita com total independência e autonomia decisórias através da instrumentalização dos administradores de direito, no sentido de sobre estes exercerem influência decisiva, decidindo, ordenando e determinando-os à execução de atos de gestão e de direção da insolvente que não correspondessem a igual vontade e decisão destes, impondo-lhes as suas decisões. Apesar de os recorridos ZZ terem ensaiado alegação nesse sentido, não resultou demonstrado que a sua atuação se limitava ao acatamento e execução de instruções dos recorridos RR; não resultou demonstrado que atuassem como meros instrumentos da vontade e decisão daqueles, sem conhecimento e alienados da atividade que por aqueles era concretamente executada em nome e por conta da devedora[80].
Despojados do domínio dos fluxos financeiros e do acesso à tesouraria e, em suma, da situação financeira da devedora, e documentando e reportando toda a sua atuação à recorrida MZ - que, em ultima linha, na qualidade de gerente de direito, através do controlo financeiro, da documentação para suporte contabilístico que lhe era remetida, da tesouraria da devedora, e das opções e decisões que nesta matéria assumia em exclusivo e com autonomia, geria o resultado da gestão operacional dos recorridos RR -, não é possível afirmar que estes atuavam na devedora como se fossem seus administradores de direito. Antes se apresentam como a figura que David Nunes dos Reis designa de pretensos administradores – administradores porque na mira do contexto externo praticam atos típicos e positivos de administração da sociedade; mas pretensos porque o fazem sem total e ilimitada autonomia, tratando-se por isso da criação de uma situação aparente, não coincidente com a realidade[81]. Terceiros que o comerciante ou os respetivos legais representantes elegem e que, numa cadeia interna, muitas vezes pouco percetível para o exterior, com estes cooperam para o prosseguimento de fins empresariais para além do que poderiam alcançar pelos seus meios pessoais, mormente no ‘mundo’ das trocas comerciais. Terceiros que no âmbito das relações internas da empresa se enquadram na categoria de gestores comerciais de compras e de vendas, cargo de liderança que, sem que se confundam com os administradores da sociedade[82], tem como função planear, desenvolver, implementar, dirigir e coordenar a comercialização dos produtos da empresa de acordo com uma estratégia e/ou objetivos de negócio definidos. Dependendo da dimensão da empresa, a estes profissionais – diretores comerciais - é ainda exigida a coordenação entre as compras, as vendas, e a logística necessária ao armazenamento e distribuição dos produtos comercializados pela empresa, por forma a garantir a satisfação atempada das encomendas e, assim, a boa imagem da empresa.
Terceiros que, como surge aflorado na sentença recorrida, se enquadram na figura do preposto. Figura que, no dizer de Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, nasceu para tutela do Comércio, para proteção da segurança jurídica de terceiros que se relacionam com o comerciante, e da qual nasceu o Direito Comercial: “Uma estrutura comercial de grande escala tem de confiar a sua atividade a terceiros e tem de confiar que estes terceiros agirão bem. Estes terceiros passam a integrar a própria estrutura comercial, como se deixassem de ser terceiros. No entanto, são terceiros relativamente à pessoa do comerciante, sendo vistos pelas demais pessoas como sendo o comerciante.”[83] Salienta o autor citado que “A preposição é o sistema fundamental de representação no Comércio, pois é o principal e mais frequente sistema de representação[84] no Comércio.”[85], que “São vários os regimes legais aplicáveis a prepostos, sendo que o principal é o do denominado “gerente de comércio.”[86], e que “os efeitos dos regimes variam conforme a relação interna e externa e ainda de acordo com a boa ou má fé das partes.”[87]
Sobre o alcance das designações previstas pelos arts. 248º a 265º do Código Comercial esclarece que um gerente de comércio não é uma pessoa que gere um estabelecimento por conta de um comerciante. Gerente de Comércio é o nome que o Código Comercial atribui ao regime jurídico aplicável a determinada pessoa que atua em determinada qualidade, ocupa determinada posição socialmente típica[posição que designa de status do preposto e que deriva da mera colocação de alguém em determinada posição, independentemente do negócio ou relação subjacente entre quem coloca e quem é colocado, entre o preponente e o preposto]. Assim, para o Código Comercial e para o Direito Comercial não há uma profissão ou actividade de gerente de comércio (…). O gerente de comércio também não é o nome que se dá a uma parte num contrato, como sucede, por exemplo com o mandatário, que é uma das partes no contrato de mandato.//O gerente de comércio é um nomen para efeitos exclusivos de delimitação do campo de aplicação de um dos regimes jurídicos legais de preposição (…). Gerente de comércio, ou melhor, preposto é uma pessoa que surge publica e estavelmente à frente de um determinado comércio, no todo ou em parte, no lugar onde este é exercido ou em qualquer outro lugar.”[88] (…) “O comércio é a atividade comercial e não o estabelecimento comercial. O gerente de comércio trata da atividade comercial de outrem, não trata do seu estabelecimento comercial. Naturalmente que, tratando da atividade, irá estar frequentemente no estabelecimento e tratará também de questões relativas ao estabelecimento. Mas estas são questões que surgem no âmbito da atividade de que trata. (…). Mas o ponto fulcral do regime de gerente de comércio é a atividade comercial e não o estabelecimento comercial.[89](…). Um gerente de comércio é uma pessoa que é colocada à frente do comércio (empresa) de outrem, que é “pré posta” nessa posição. Ser preposto significa algo diferente de ser gerente. O gerente gere; o preposto está à frente, liderando ou chefiando a atividade. Há gerentes que não chefiam, como há propostos que não gerem.[90] (…) O gerente de comércio pode, contudo, agir de modo interno no âmbito de um comerciante que seja pessoa coletiva. Pode, por exemplo, agir perante um administrador da sociedade comercial. Sucede que, nestes casos, estaremos na relação interna, pelo que o regime aplicável será o determinado pelo regime da preposição, que neste caso manda aplicar o regime jurídico que resulta da relação subjacente, como por exemplo, um contrato de trabalho.[91] [92]
Sobre a compatibilização entre o regime do gerente de comércio e o regime orgânico da sociedade comercial, o autor que temos vindo de citar lapidarmente refere que “O órgão de administração de uma sociedade comercial está à frente da sociedade e, necessariamente, à frente de toda a sociedade. Um preposto está à frente do comércio, da empresa, da sua atividade, mas não da sociedade”.[93] Sobre as várias relações jurídicas que podem dar causa a uma situação de preposição, salienta que “Uma das principais relações subjacentes à preposição é o contrato de trabalho”[94], referindo que a preposição é um dos antepassados do contrato de trabalho do ‘trabalhador do comércio’ pela inevitabilidade do recurso a auxiliares no comércio, ligação da qual emergem os artigos 12º, nº 1, al. e) e 115º, nº 3 do Código de Trabalho, o primeiro, ao estabelecer uma presunção de “existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma atividade e outra ou outras que dela beneficiem, se verifique (…) O prestador de atividade desemprenhe funções de direção ou chefia na estrutura orgânica da empresa.” e, o segundo, ao prever que “Quando a natureza da atividade envolver a prática de negócios jurídicos, considera-se que o contrato de trabalho concede ao trabalhador os necessários poderes, salvo se a lei exigir instrumento especial.”, estabelecendo expressa ligação entre o contrato de trabalho e o poder de representação assente na preposição que decorre da execução daquele contrato (de trabalho) - “Ou seja, se alguém for trabalhador, tem poderes de representação para os atos para cuja prática foi contratado, quer estes poderes resultem ou não do contrato. Estes poderes de representação não decorrem diretamente da vontade do empregador (representado), mas antes do regime legal do art. 115º, nº 3 do Código de Trabalho.”[95]
Com o que se conclui pelo afastamento da qualificação dos recorridos RR como administradores de facto da devedora e consequente exclusão da sua afetação pela qualificação da insolvência que, de todo o modo, conforme logo se salientou, estava prejudicada por não lhes ser imputável a prática dos factos fundamento da qualificação da insolvência da devedora como culposa.
4.–A afetação dos recorridos ZZ pela qualificação da insolvência na qualidade de administradores de direito da insolvente não suscita qualquer dúvida e é incontornável consequência da prática dos factos fundamento da qualificação da insolvência – venda dos bens da devedora afetos à sua atividade e transferência de dinheiro da devedora em benefício da recorrida MZ.
E)–Consequências da qualificação da insolvência (art. 189º)
1.–Prevê o art. 189º[96], nº 2 que “Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
a)-Identificar as pessoas (…) afetadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respetivo grau de culpa;
b)-Decretar a inibição das pessoas afetadas para administrarem patrimónios de terceiros, por um período de 2 a 10 anos;
c)-Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
d)-Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
e)-Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afetados.
Acrescenta o nº 4 que, “Ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença.”
O art. 189º fixa os limites mínimo e máximo da inibição para a administração de património de terceiros, para o comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de pessoa coletiva, de 2 a 10 anos, bem como o limite máximo da ‘indemnização’ a atribuir ao coletivo dos credores, até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos pelo produto da massa insolvente. Não enuncia critérios para a concreta determinação de umas e outra.
Als. b) e c)- A par com a vertente preventiva de proteção do património de terceiros e do comércio, as medidas inibitórias têm dimensão exclusivamente punitiva, intrínseca à tentativa de moralização do sistema visada pela introdução deste incidente[97]. Por natureza e imperativo constitucional a aplicação de sanções pressupõe a natureza ilícita e culposa – ainda que legalmente presumida - dos factos que as fundamentam pelo que, na ausência de outros critérios expressa e especificamente previstos, a determinação, em cada caso, do ‘quantum punitivo’, “deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal.”[98] A medida de cada sanção será então fixada por referência à natureza e gravidade objetiva da atuação fundamento da qualificação e do seu concreto contributo para a criação ou agravamento da situação de insolvência, no que se considera o âmbito de proteção da norma concretamente violada, e à intensidade do juízo de censurabilidade que em concreto possa ser dirigido ao afetado para além da culpa grave legalmente presumida que fundamenta a qualificação.
No caso a natureza culposa da insolvência resulta da venda, em finais de julho de 2020, da quase totalidade[99] dos bens penhoráveis da insolvente, pelo valor total de € 74.544,15 (IVA incluído), correspondentes a quatro veículos (TA, EP, TZ, IM), 3 câmaras frigoríficas, 1 empilhador, 6 bancadas inox, 1 móvel de lavagem de verduras, 4 balanças 150 kg, 8 cacifos, 1 chafariz, 5 PCs e écrans, 3 secretárias e 5 cadeiras e 3 carros de transporte de CX; e da transferência, em benefício da recorrida MZ e posteriormente à realização da venda, de quantias depositadas em conta bancária da insolvente que, deduzidas da quantia por esta transferida naquela conta, ascendem ao total de € 16.184,00.
Em benefício dos recorridos – mas, reitera-se, sem que consubstancie circunstância desqualificadora da insolvência culposa -, releva a circunstância de os recorridos terem afeto o produto da venda ao pagamento de dívidas da insolvente, a par com igual destino dado a outros réditos que entre julho e novembro de 2020 entraram em conta bancária da insolvente, designadamente, a quantia de €56.500,00 que em outubro de 2020 foi transferida de conta bancária da SA e imediatamente esgotada no pagamento de DUC’s e de contribuições devidas pela insolvente à segurança social. Este circunstancialismo permite presumir que a decisão dos recorridos venderem os bens da devedora e, dessa forma, procederem à sua liquidação à margem do procedimento e controlo legais para o efeito previstos, não terá sido motivada por uma concreta e intencionada vontade de prejudicar os seus credores já que afetaram o produto da venda à satisfação de passivo. Neste concreto circunstancialismo afigura-se-nos que, não tendo sido apurado o valor de mercado dos bens objeto de venda, a gravidade do ilícito concentra-se na violação da ordem de pagamento dos créditos que legalmente beneficiam de preferência sobre outros, como é o caso dos créditos laborais (os já vencidos e os que viessem, como vieram, a emergir da cessação dos contratos de trabalho determinada pelo encerramento da atividade da insolvente) e, logo a seguir, os créditos do Estado a título de impostos e de contribuições à segurança social que, por força da conduta ilícita dos gerentes da insolvente, não poderão ser satisfeitos pelo produto da venda dos bens desta. Em desfavor dos recorridos, o desconhecimento do destino dado à quantia de cerca de € 16.000,00 que a recorrida MZ retirou da insolvente.
Tudo ponderado afigura-se-nos adequado fixar em 3 anos cada uma das medidas de inibição previstas pelas als. b) e c) do nº 2 do art. 189º.
Al. d)– Pela sua abrangência, a aplicação deste efeito não exige que sobre ele recaia apreciação casuística pois basta-se com a declaração, em sede de dispositivo, da perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afetadas pelas pessoas afetadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos., sendo que nos autos não há notícia que aos recorridos ZZ tenha sido feito qualquer pagamento.
Al. e)– O mesmo não se diga na aplicação do efeito legal da qualificação da insolvência previsto pela al. e) que, desde a sua introdução pela Lei nº 16/2012 de 20.04, foi e permanece objeto de acesa discussão doutrinária e jurisprudencial pelas várias interpretações dos pressupostos e âmbito da condenação na indemnização ali prevista, dissenso que as alterações introduzidas pela Lei nº 9/2022 de 11.01 não auguram sanar ainda que, em função da interpretação que fazemos da anterior redação, tendam para esse resultado.
Relativamente à alteração introduzida à redação da al. e) – para passar a constar “Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem (…) até ao montante dos créditos não satisfeitos” onde constava “Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem (…) no montante dos créditos não satisfeitos” – somos de entender que a Lei nº 9/2022 é de natureza interpretativa, por reclamada pela discussão gerada com a incompatibilidade da literalidade da sua anterior redação com as especificações previstas pelo nº 4 – “Ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença.” –, e no sentido de consagrar a fórmula e solução legal que em 2012 foi ab initio pretendida prever para a responsabilização insolvencial, enquanto modalidade específica da responsabilidade civil que, como tal, não prescinde da verificação dos respetivos pressupostos legais gerais. Com efeito, sendo o nº 4 uma especificação dos termos da aplicação do efeito previsto pela al. e) do nº 2, em nome da coerência e consistência paradigmática da terminologia do sistema jurídico como um todo e, em particular, dos institutos jurídicos de natureza eminentemente civil, essencial à sua teorização e compreensão geral e abstrata, a construção das referidas normas por recurso aos vocábulos e segmentos ‘indemnizarem’, ‘valor das indemnizações devidas’, ‘calcular o montante dos prejuízos sofridos’, e ‘critérios para a sua quantificação’, não permite imputar ao legislador de 2012 mais do que a intenção de consagrar a responsabilização do afetado pela insolvência de acordo com os pressupostos gerais da responsabilidade civil, de natureza ressarcitória, ainda que limitada pelo montante máximo dos créditos não satisfeitos por respeito processual ao objeto e funcionalidades práticas do processo de insolvência [100], mas com o aproveitamento, em benefício dos credores, da qualificação e declaração judicial da natureza ilícita e culposa das condutas dos afetados pela qualificação operada em sede de processo de insolvência e da facilitação, por essa via, da imputação dos danos.[101] Da imposição da fixação do concreto valor das indemnizações devidas ou (em alternativa à dita fixação por ausência de elementos necessários para a respetiva quantificação) de fixação/indicação dos critérios a utilizar para o efeito, resulta que o legislador não previu uma responsabilização civil genérica e/ou universal, no sentido de, por força única e exclusivamente da qualificação da insolvência, abranger a totalidade dos créditos sobre a insolvência não satisfeitos pelas forças da massa da devedora, pois que se essa fosse a intenção do legislador bastaria remeter para a lista de créditos reconhecidos e/ou verificados. Interpretação que a nosso ver é reforçada pelo teor do considerando 40 do diploma preambular do Dec. Lei nº 53/2004 de 18.03 que aprovou o CIRE, dedicado à novidade do incidente de qualificação da insolvência e que, nesta matéria – responsabilidade civil - se demarcou e abandonou a responsabilização nos termos previstos pelos arts. 126º-A e 126º-B do CPEREF por considerar que “a responsabilização solidária dos administradores (com pressupostos fluidos e incorrectamente explicitados) e a possibilidade de declaração da sua falência conjuntamente com a do devedor - não se afiguram tecnicamente correctos nem idóneos para o fim a que se destinam. Previa o art. 126º-A, nº 1 do CPEREF que “No caso de falência de sociedade ou de pessoa colectiva, se para a situação de insolvência tiverem contribuído, de modo significativo, quaisquer actos praticados ao longo dos dois últimos anos anteriores à sentença por gerentes, administradores ou directores, ou por pessoas que simplesmente as tenham gerido, administrado ou dirigido de facto, o tribunal deve (…), declarar a responsabilidade solidária e ilimitada das referidas pessoas pelas dívidas da falida e condená-las no pagamento do respectivo passivo. (…).”No art. 126º-B, nº 1 previa-se que “No caso de responsabilidade civil dos fundadores, gerentes, administradores ou directores, nos termos do Código das Sociedades Comerciais, ou no caso de responsabilidade solidária decorrente do disposto no artigo anterior, pode o tribunal, a todo o tempo, e sem prejuízo do regular andamento do processo contra o devedor, uma vez verificados os pressupostos da responsabilidade, fixar prazo para os responsáveis satisfazerem o passivo conhecido da sociedade ou pessoa colectiva, a descoberto, à data da declaração da falência, ou apenas o montante do dano por eles causado, se for considerado inferior.”
Somos assim de entender que a responsabilização civil dos afetados pela qualificação, e como se nos afigura não poder deixar de ser no contexto dos princípios que informam o sistema jurídico privado do nosso ordenamento jurídico, exige a verificação dos pressupostos gerais do instituto da responsabilidade civil. Ora, o exercício de qualquer pretensão indemnizatória depende da verificação dos fundamentos legalmente exigidos para fazer de alguém um responsável em sentido jurídico - não se tratando de responsabilidade objetiva ou pelo risco[102], nos termos gerais da responsabilidade civil previstos pelo art. 483º do Código Civil, sempre que os danos sofridos em concreto pelo lesado constituam consequência adequada de um facto voluntário, ilícito e subjetivamente imputável ao lesante a título de culpa[103], residindo a causa da deslocação do dano da esfera jurídica do prejudicado para o lesante justamente num juízo de censurabilidade que, para além da natureza essencialmente reparadora, atribui natureza sancionatória ao instituto da responsabilidade civil por ilícitos. Como salienta Henrique Sousa Antunes[104] (ainda que nesta questão defenda posição que não perfilhamos), “Dada a exigência constitucional de proporcionalidade (artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa – CRP), não é admissível aceitar uma presunção inilidível de causalidade no juízo de responsabilidade pela insolvência culposa. No nosso sistema jurídico, mesmo quando a relevância do risco sugere a previsão de uma responsabilidade civil objetiva, ao agente é sempre permitido demonstrar que o dano é alheio ao seu comportamento. A ausência de contribuição para o dano descaracteriza a responsabilidade civil e priva de legitimidade o dever de indemnizar. Nas palavras de Carneiro da Frada[105], “perante uma situação de insolvência, o dano susceptível de ser ressarcido pelos administradores varia em função do concreto comportamento que o causou e de quem se apresenta atingido. Assim, quanto aos credores, a causação da insolvência conduz à indemnização daquela porção dos seus créditos que não foi satisfeita, mas que o teria sido se a administração tivesse sido diligente e a insolvência não sobreviesse. Mutatis mutandis, quanto ao agravamento da insolvência.”
Dito isto, e dispensando agora a enunciação das posições e fundamentos em confronto no âmbito da vigência da redação inicial da al. e), adere-se in totum à leitura que Catarina Serra extrai da sua alteração que, pela clareza da exposição e no que aqui releva, se transcreve: “Resulta agora, inequivocamente, do articulado que o montante dos créditos não satisfeitos é só o montante máximo da indemnização (…). O montante dos créditos não satisfeitos deixa de poder ser utilizado como ponto de partida ou como padrão para o cálculo da indemnização e o (…) critério, disponibilizado no art. 189º, nº 4, passa a ser o montante dos prejuízos sofridos. Ao montante dos créditos não satisfeitos resta imputar uma única função: a de limitar o montante da indemnização (…). Com isto o regime da responsabilidade por insolvência culposa perde grande parte da sua dimensão punitiva ou sancionatória[106]e (re)aproxima-se do regime geral da responsabilidade civil, com um desvio, atendendo à fixação de um (do tal) máximo. Traduz-se isto, em suma, na máxima de que devem ser indemnizados (só) os danos (cfr. art. 483º do CC) mas não necessariamente todos os danos.(…) O factor que pode e deve ser considerado e tem efeitos sensíveis na modelação do valor da indemnização, imprimindo-lhe proporcionalidade, é um único: a contribuição causal de cada sujeito para a ocorrência dos danos/a medida da participação efectiva de cada um. (…). A qualificação da insolvência como culposa pressupõe sempre a causalidade (provada ou presumida) entre a conduta e a criação ou o agravamento da insolvência (a “causalidade fundamentadora” da responsabilidade civil), mas esta não basta para responsabilizar os sujeitos afectados; deve ainda verificar-se a causalidade entre a conduta e os danos (a “causalidade preenchedora” da responsabilidade civil). (…) é preciso apurar a diferença entre a situação que existe e a situação que existiria se a conduta ilícita não tivesse tido lugar – apurar, mais precisamente, o dano diferencial. (…). Cumpre ao juiz discriminar, sobretudo, entre as condutas criadoras e as condutas agravadoras da situação de insolvência. Na prática, o dano causado pelas primeiras é susceptível de se aproximar do montante dos créditos não satisfeitos. Relativamente ao dano causado pelas segundas, esta proximidade nunca se verifica.[107]
Entendimento que corresponde e se surpreende nos fundamentos do acórdão da Relação do Porto de 13.04.2021 (proc. nº 252/20.0T8AMT-A.P1), conforme ao acórdão da mesma Relação de 29.06.2017 (proc. 2603/15.0T8STS-A.P1): “A indemnização a suportar ao abrigo do nº 2, al. e) e do nº 4 do art. 189º do CIRE deve assim aproximar-se do montante dos danos causados pelo comportamento do afetado que conduziu à qualificação da insolvência. Se, por exemplo, a qualificação da insolvência decorre de um comportamento que se traduziu na destruição ou dissipação de todo ou parte considerável do património do devedor, a indemnização deve ascender ao valor do património destruído ou dissipado que se não fosse esse comportamento iria responder pela satisfação dos créditos. É por isso que as normas em apreço estabelecem que o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas e se isso não for possível deve fixar, ao menos, os critérios que permitirão liquidar o seu valor, o que não seria necessário se a indemnização devesse corresponder apenas à diferença entre o valor dos créditos e o pagamento a ser obtido na distribuição do produto da liquidação do ativo. Já no âmbito da nova redação da al. e), acórdão da Relação do Porto de 21.04.2022 (proc. nº 3 668/18.8T8STS-B.P1). Embora invoque o princípio da proporcionalidade e o critério da equidade, surpreendem-se também na sua fundamentação os seguintes segmentos: “Segundo esse critério, a indemnização deve corresponder ao montante dos danos causados pelo comportamento do afectado que conduziu à qualificação da insolvência. Se, por exemplo, a qualificação da insolvência decorre de um comportamento que se traduziu na destruição ou dissipação de todo ou parte considerável do património do devedor, a indemnização deve ascender ao valor do património destruído ou dissipado que se não fosse esse comportamento iria responder pela satisfação dos créditos. É por isso que as normas em apreço estabelecem que o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas e, se isso não for possível, fixar, ao menos, os critérios que permitirão liquidar o seu valor, o que não seria minimamente necessário se a indemnização devesse corresponder apenas à diferença entre o valor dos créditos e o pagamento a ser obtido na distribuição do produto da liquidação do activo.”
De resto, ainda que por apelo a princípios de proporcionalidade ou de proibição de excessos, já na vigência da redação inicial da al. e) a jurisprudência maioritária rejeitava a condenação ‘automática’ dos afetados pelo montante dos créditos não satisfeitos, pugnando pela fixação da indemnização após prévia apreciação e por referência, no essencial, à conduta da pessoa afetada, ainda que na perspetiva do seu contributo para a criação ou agravamento da insolvência, que será o mesmo que dizer, por referência ao perigo abstrato tutelado pela norma fundamento da qualificação da insolvência preenchida pela conduta do afetado[108].
Revertendo ao caso, surpreende-se aqui a coincidência - já acima enunciada - entre a causa fundamentadora da responsabilidade e a causa ‘preenchedora’ dessa responsabilidade ou, dito de outra forma, entre o perigo de dano (presumido pela norma fundamento da qualificação) e o dano concretamente causado – entre o agravamento da situação patrimonial emergente da diminuição da garantia patrimonial dos créditos da insolvente pela venda dos seus bens e pela retirada de quantias pecuniárias para a esfera jurídica da sua gerente e, como efeito desta venda, a indisponibilidade do seu produto para, no âmbito do processo de insolvência, dar satisfação aos créditos que por ele seriam pagos de acordo com a graduação legal dos reconhecidos.
Considerando o montante do produto da venda que, deduzido do IVA devido entregar ao Estado, corresponde a cerca de €57.500,00, e o montante que a recorrida MZ ZZretirou e não repôs na conta da devedora (cerca de € 16.200,00), descontadas as custas prováveis, a remuneração fixa e a remuneração variável do AI e outros encargos do processo (que se estima não superar o total de cerca de € 8.500,00), seria possível satisfazer integralmente os créditos laborais reconhecidos nos autos, que ascendem ao montante de cerca € 65.000,00. Anota-se que na grelha para pagamento dos créditos seguir-se-iam os créditos do Estado reconhecidos com privilégio creditório, e que estes, assim como os créditos comuns do Estado, beneficiam da responsabilidade subsidiária dos gerentes[109].
Concedendo que a afetação pela qualificação da insolvência contém em si mesma a demonstração e verificação da ilicitude do facto fundamento da qualificação, bem como do juízo de censurabilidade que pelo mesmo é passível de ser dirigido ao afetado, o nexo de causalidade entre a concreta atuação que determinou e/ou fundamentou a qualificação da insolvência como culposa e o prejuízo sofrido pelos credores da insolvência resulta assim verificado na medida dos créditos laborais, sendo abrangidos e beneficiados pela obrigação de indemnização que recai sobre os recorridos ZZ os remanescentes dos créditos que dessa natureza (originários ou por sub-rogação/habilitação) constem reconhecidos nos autos.
VII– Decisão
Por todo o exposto, acordam as juízas que integram a 1ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa em julgar a apelação parcialmente procedente e, consequentemente, na revogação da decisão recorrida, que se substitui por outra a:
a)-Qualificar a insolvência de M. Ldª como culposa;
b)-Declarar afetados pela qualificação os recorridos MZ e OZ;
c)-Declarar os recorridos MZ e OZ inibidos pelo período de três anos para a administração de patrimónios de terceiros, para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação, fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
e)-Condenar os recorridos MZ e OZ a indemnizar cada um dos titulares de créditos de natureza laboral (originários ou sub-rogado) reconhecidos nos autos pelo montante não satisfeito pela massa insolvente.
Considerando o resultado do recurso, nos termos do art. 303º, a contrario, do CIRE as custas do incidente em primeira instância ficam a cargo dos requeridos MZ e OZ.
Na ausência de contra-alegações pelos recorridos, no confronto do resultado do recurso com a pretensão que por ele vinha deduzida, as custas da instância recursiva são a cargo das recorrentes, na proporção de metade (cfr. art. 527º, nº 1 e 2 do CPC).
Lisboa, 18.04.2023
Amélia Sofia Rebelo
Manuela Espadaneira Lopes
Paula Cardoso
[1]Diploma a que pertencem todas as normas citadas sem outra indicação.
[2]Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2014, p. 139.
[3] Vd., entre outros, Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Ed., 2ª ed., p. 684 e ss.
[4]A. Geraldes, Paulo Pimenta, Luis Sousa, CPC Anotado (GPS) Vol. I, p. 199.
[5]A. Geraldes, Paulo Pimenta, Luis Sousa, CPC Anotado (GPS) Vol. I, Almedina, 2ª ed., p. 140, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, p. 140, e, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 03.03.2021, proc. 3157/17.8T8VFX.L1.S1, disponível na página da dgsi, como os demais que aqui se citam sem outra indicação.
[6]Entre outros, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, Coimbra Editora 1987, em anotação ao art. 625º, p. 356 e ss., Ana Luísa Geraldes, Impugnação e reapreciação da matéria de facto, em Estudos em Homenagem ao Professor Lebre de Freitas, Vol. I, 2012, e acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20.02.2019, proc. nº 4603/16.3TBCBR.C1, disponível em www.dgsi.
[7]CPC Anotado, GPS, Vol. I, p. 506.
[8]Manual de Processo Civil, p. 456 e s.
[9]Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, p. 349 e ss.
[10]Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora 1984, vol. V, p. 25.
[11]Em texto-base da intervenção nas “Jornadas de Processo Civil” organizadas pelo CEJ, em 23 e 24 de janeiro de 2014.
[12]Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 329.
[13]Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6ª ed., p. 350
[14]Vd. Tiago Milheiros, “Nulidades da Decisão da Matéria de Facto”, Revista Julgar on line, 2013, p. 15.
[15]Sob a epígrafe Princípio do inquisitório prevê-se no art. 11º que No processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes.
[16]Nessa matéria, entre outros, acórdão da RC de 19.12.2018, proc. nº 2179/14.5TJCBR-A.C1, acórdão da RP de 07.10.2019, proc. nº 400/19.2T8AMT-D.P1, e acórdão desta Relação e secção de 29.10.2019, proc. nº 384/18.4T8SNT.L1 (não publicado).
[17]Acórdão deste coletivo de 08.02.2022, proc. nº 1932/19.8T8PDL-B.L1.
[18]Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2014, 2ª ed., p. 233
[19Ob. cit., p. 333-334, e 348.
[20]Ob. cit. p. 350-351.
[21]Ob. cit., p. 353.
[22]Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2014, vol. II, ps. 92, 99 e 101.
[23]Acórdão de 17.10.2019.
[24]Entretanto em 13.09.2022 foi proferida sentença homologatória da transação ali apresentada pela autora WV e pela ré massa insolvente de M. Ldª, pela qual esta acordou em dar sem efeito a resolução da transmissão dos veículos com as matrículas 90-TA, EP, TZ e IM, 3 câmaras frigoríficas, 1 empilhador, 6 bancadas inox, 1 móvel lavagem verduras, 4 balanças 150Kh, 8 cacifos e 1 chafariz, 5 pc e écrans, 3 secretárias e 5 cadeiras, 3 carros transporte caixas, e a autora aceitou pagar à ré a quantia de € 50.000,00 por meio de transferência bancária, até ao dia 15.09.2022.
[25]Factos que resultam de extrato bancário conforme, de resto, vem reconhecido e expressamente alegado pelas recorrentes - “Venerandos Desembargadores, o único momento em que o produto da venda do imobilizado da Devedora não foi, integralmente, restituído ao senhor José, ocorreu na data de 24.08.2020, aquando da transferência de 63.390,94 €, por parte da WV para a Devedora. – cfr. Extrato Bancário nº 40/2020, do Banco Montepio junto com o articulado de Oposição ao incidente de qualificação da insolvência, por parte dos Recorridos ZZ -, porquanto esse valor foi destinado ao pagamento de um contrato de leasing que incidia sobre duas carrinhas da Devedora.” É de presumir que a transmissão destes veículos não foi incluída na resolução de negócios operada pela AI, precisamente, porque o montante necessário para a sua aquisição foi disponibilizado pela interessada na aquisição dos veículos que, de outro modo, não teriam sido adquiridos pela devedora e, por isso, não integrariam o acervo da massa insolvente.
[26]Entretanto em 13.09.2022 foi proferida sentença homologatória da transação ali apresentada pela autora WV e pela ré massa insolvente de M., Ldª, pela qual esta acordou em dar sem efeito a resolução da transmissão dos veículos com as matrículas TA, EP, TZ e IM, 3 câmaras frigoríficas, 1 empilhador, 6 bancadas inox, 1 móvel lavagem verduras, 4 balanças 150Kh, 8 cacifos e 1 chafariz, 5 pc e écrans, 3 secretárias e 5 cadeiras, 3 carros transporte caixas, e a autora aceitou pagar à ré a quantia de € 50.000,00 por meio de transferência bancária, até ao dia 15.09.2022.
[27]Da sentença consta 08.04, mas só por manifesto lapso de escrita, revelado pela sequência cronológica das demais datas indicadas e confirmado pelos extratos bancários da conta na Caixa Económica do Montepio Geral juntos aos autos, que respeitam a períodos temporais de maio 2020 e seguintes.
[28]Idem.
[29]Idem.
[30]Definido em audiência pelos depoentes RR como a seleção e preparação dos produtos para entrega das encomendas aos clientes.
[31]Factos que resultam de extrato bancário conforme, de resto, vem reconhecido e expressamente alegado pelas recorrentes - “Venerandos Desembargadores, o único momento em que o produto da venda do imobilizado da Devedora não foi, integralmente, restituído ao senhor José, ocorreu na data de 24.08.2020, aquando da transferência de 63.390,94 €, por parte da WV para a Devedora. – cfr. Extrato Bancário nº 40/2020, do Banco Montepio junto com o articulado de Oposição ao incidente de qualificação da insolvência, por parte dos Recorridos ZZ-, porquanto esse valor foi destinado ao pagamento de um contrato de leasing que incidia sobre duas carrinhas da Devedora.” É de presumir que a transmissão destes veículos não foi incluída na resolução de negócios operada pela AI, precisamente, porque o montante necessário para a sua aquisição pela insolvente foi disponibilizado pela interessada na aquisição dos veículos que, de outro modo, não teriam sido por aquela adquiridos e, por isso, não integrariam o acervo da massa insolvente.
[32]Vd. Manuel Carneiro da Frada, A responsabilidade dos administradores na insolvência, ROA, Ano 66, Set. 2006, p.
[33]Nesse sentido, entre outros, ac. STJ de 15.02.2018, proc. nº 7353/15.4T8VNG-A.P1.S1, e ac. da RP de 21.02.2019, proc. n.º 1733/15.2T8STS-B.P1.
[34]Sobre a conexão entre as causas de qualificação da insolvência previstas pelas als. h) e i) do nº 2 e al. b) do nº 3 do art. 186º e a (potencial) criação ou agravamento da situação de insolvência, vd. Soveral Martins, Administração de Sociedades Anónimas e Responsabilidade dos Administradores, Almedina, p. 315-317.
[35]Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Iuris, Vol. II, p. 15.
[36]Carina Magalhães, Incidente de Qualificação da Insolvência. Uma Visão Geral, em Estudos de Direito da Insolvência, Coord. Maria do Rosário Epifânio, Almedina, 2015, p. 121.
[37]A este respeito Carneiro da Frada justifica que “a inadmissibilidade dessa prova não é todavia (em geral) excessiva, enquanto puder justificar-se como forma enérgica de dissuadir insolvências e estão com elas intimamente ligadas. É isso que justifica a declaração da insolvência como culposa sem necessidade de mostrar a ligação entre a conduta censurada e a concreta insolvência ocorrida (vedando a prova em contrário ou aceitando que a superveniência de elementos fortuitos que codeterminaram a insolvência não exclui essa insolvência culposa.” – Texto cit., p
[38]Texto citado.
[39]Relatado por Isabel Fonseca no proc. nº 14604/18.1T8LSB-A.L2 e subscrito como adjunta pela relatora, não publicado, e confirmado por acórdão do STJ de 17.01.2012, este disponível na página da dgsi.
[40]Em sentido divergente, acórdão da RC de 28.05.2013 (proc. nº 102/12.0TBFAG-B.C1), acórdão da RG de 01.10.2013 (proc. 2127/12.7TBGMR-D.G1) e acórdão da RG de 01.06.2017 (proc. nº 280/14.4TBPVL-E.G1), qualificando como ação de ocultação a alteração da situação jurídica do bem (como por exemplo, a venda do bem a terceiro) ou a celebração de ato negocial simulado.
[41]Conforme justificamos em sede de reponderação do julgamento de facto.
[42]“A responsabilidade dos administradores na insolvência”, ROA, 2006, disponível em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados-roa/ano-2006/ano-66-vol-ii-set-2006/doutrina/manuel-a-carneiro-da-frada-a-responsabilidade-dos-administradores-na-insolvencia/
[43]Neste sentido, vd. acórdãos da RC de 14.01.2014 (proc. nº 785/11.9TBLRA-A.C1) e do STJ de 29.10.2019 (proc. nº 434/14.3T8VFX-C.L1.S1).
[44]Os valores do passivo reconhecido nos autos e descrito sob o ponto 22 ascende ao montante total de cerca de € 300.000,00.
[45]“Administração de Sociedades Anónimas e Responsabilidade dos Administradores”, Almedina, p. 300, 302 e 306; subl. nosso.
[46]Aprovado pelo Decreto Lei nº 310/2009 de 26.10 e alterado pela Lei nº 139/2015 de 07.09.
[47]Acórdão desta secção de 25.01.2022, não publicado, relatado por Fátima Reis Silva no processo 15973/18.9T8SNT-A.L1 e subscrito como adjuntas pelas aqui relatora e 1ª adjunta.
[48]Este valor corresponde ao valor inscrito no documento epigrafado balancete geral acumulado de 2019 invocado pelas recorrentes e a que reporta o facto provado nº 56.
[49]Aproveitando a análise da prova produzida a que se procedeu em sede de reapreciação parcial da decisão de facto, que incluiu a audição integral dos depoimentos prestados, não podemos deixar de consignar que esta não permitia, como não permitiu, formar convicção positiva sobre este facto, atentando-se, designadamente, nas declarações da testemunha Álvaro, contabilista certificado da insolvente, que afirmou que a contabilidade da devedora era organizada por um seu colaborador, e no teor da carta de rescisão do contrato que em junho de 2020 dirigiu à devedora e que se deixou parcialmente transcrito no ponto 13 dos factos provados.
[50]Nesse sentido, Acórdão do STJ de 07.07.2016, proc. nº 156/12.0TTCSC.L1.S1
[51]Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 27.
[52]Com a alteração introduzida pela Lei nº 9/2022 de 11.01, que, nos termos do art. 10º, nº 1 desse mesmo diploma, “é imediatamente aplicável aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor., o que ocorreu em 11.04.2022, e que prejudicou a discussão jurisprudencial e doutrinária sobre o âmbito da presunção prevista pelo nº 3 do art. 186º posto que não deixou margem para dúvida que a mesma incide apenas sobre o requisito da imputação subjetiva da conduta omissiva a título de culpa grave.
[53]Para este efeito – presunção inilidível de conhecimento de situação de insolvência – não releva o critério de insolvência especificamente previsto pelo nº 2 do art. 3º para as pessoas coletivas, de passivo manifestamente superior ao ativo, designado critério do balanço. Nesse sentido, Soveral Martins, ob. cit. p. 307.
[54]Com a alteração totalmente inovatória introduzida pela Lei n.º 4-A/2020 e atribuição de efeitos retroativos pelo respetivo art. 6º, nº 2. Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio aquela suspensão passou a constar da al. a) do n.º 6 do art. 6.º-A da referida Lei n.º 1-A/2020, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 4-B/2021 de 01.02, da alínea a) do n.º 6 do art. 6.º-b, e com as alterações introduzidas pela Lei nº 13-B/2021 de 05.04, da al. a) do nº 7 do art. 6º-E, que se mantém em vigor até à presente data.
[55]Os Deveres dos Administradores na Crise provocada pelos efeitos da pandemia Covid-19 e a Suspensãodo Dever de Apresentação à Insolvência, p. 272 e s. e 275 e s., disponível em https://portal.oa.pt/media/133312/maria-de-fatima-ribeiro.pdf
[56]Vd. Alexandre Soveral Martins, Direito da Insolvência em Tempos de Pandemia, conferência on line, 04.05.2020, Organização conjunta dos Conselhos Regionais da Ordem dos Advogados de Lisboa, Coimbra, Évora, Faro e Açores, disponível em https://crlisboa.org/docs/publicacoes/on-line/insolvencia-tempos-pandemia.pdf
[57]Disponível em https://observatorio.almedina.net/index.php/2020/06/01/covid-19-iv-o-regime-provisorio-de-recuperacao-de-empresas-depois-do-artigo-6-o-a-da-lei-n-o-1-a-2020-suspensao-de-prazos-e-de-actos-executivos-relativos-ao-processo-de-insolvencia/
[58]Releva-se aqui o facto de ter resultado demonstrado que entre julho e novembro de 2020 a devedora realizou pagamentos a trabalhadores, a fornecedores e ao Estado, a este ultimo, no montante total de pelo menos €56.500,00. Mais se destaca que as recorrentes alegam acumulação de €1M de passivo e que nos presentes autos foi reclamado menos de 1/3 desse valor, cerca de €300K, do qual cerca de € 65K corresponderá a créditos laborais a titulo de compensação devida pela cessação do contrato de trabalho que, em princípio, seriam devidas independentemente da data em que a devedora fosse declarada insolvente, e cerca de € 32K correspondem a contribuições sociais vencidas em 01.03.2020.
[59]Tenha-se presente que a elaboração das contas anuais a que reporta a al. a) do nº 3 não se confunde com a elaboração/organização de contabilidade a que reporta a al. h) do nº 2 – esta é que permite que aquelas sejam apresentadas.
[60]Norma repristinada pelo art. 12º do Decreto-Lei n.º 22-A/2021 de 17.03 relativamente às contas do exercício de 2020.
[61] Nos termos do art. 121º, nº 2 do Código do IRC.
[62]Obrigação declarativa que cumpre em simultâneo a obrigação de informação contabilística anual das empresas à Autoridade Tributária e Aduaneira, ao Banco de Portugal, ao Instituto Nacional de Estatística, ao Instituto de Registos e Notariado, e à Direção Geral das Atividades Económica.
[63]Prevê o art. 15º, nº 4 do Código de Registo Comercial que O pedido de registo de prestação de contas de sociedades e de estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada deve ser efectuado até ao 15.º dia do 7.º mês posterior à data do termo do exercício económico. Do art. 42º constam os termos e os elementos objeto desse registo.
[64]A apontar em sentido oposto releva-se aqui o facto de ter resultado demonstrado que entre julho e novembro de 2020 a devedora realizou pagamentos a trabalhadores, a fornecedores e ao Estado, a este ultimo, no montante total de pelo menos €56.500,00. Mais se destaca que as recorrentes alegam acumulação de €1M de passivo e que nos presentes autos apenas foi reclamado menos de 1/3 desse valor, cerca de €300K, do qual cerca de € 65K corresponderá a créditos laborais a titulo de compensação devida pela cessação do contrato de trabalho, que seriam devidas independentemente da data em que a devedora fosse declarada insolvente, e cerca de € 32K correspondem a contribuições sociais vencidas em 01.03.2020.
[65]Acórdão da RC de 06.10.2020, proc. nº 3422/19.0T8VIS-B.C1. No mesmo sentido, entre outros, acórdãos do STJ de 17.01.2023, proc. 14604/18.1T8LSB-A.L2.S1, e de 15.02.2023, proc. 822/15.8T8VNG-C.P2.S1.
[66]Considerando aquela que foi a estratégia de defesa dos recorridos ZZ – imputação da administração de facto e em exclusivo da devedora aos recorridos RR e, com esse fundamento, a sua não afetação pela qualificação da insolvência - anota-se que é consensual na doutrina e na jurisprudência que um administrador de direito que não exerce de facto está a incumprir o dever funcional social que sobre ele recai, precisamente, o dever de administrar, incompatível com o não exercício do cargo e que, em princípio, conduzirá à responsabilização por omissão, designadamente, dos deveres de manter contabilidade organizada, de colaboração, de apresentação à insolvência, de prestação e depósito de contas e, em ultima análise, o dever de vigilância sobre quem exerce de facto a administração da sociedade (nesse sentido, e com indicação de outros arestos na matéria, acórdão desta Relação de 23.03.2021, proc. nº 1396/11.4TYLSB-B.L1).
[67]Coutinho de Abreu, Responsabilidade civil dos administradores, apud Ricardo Costa, Os administradores de facto das sociedades comerciais, p. 780, disponível em ---. Com pertinência ao caso por referência à estratégia de defesa dos recorridos ZZ, Ricardo Costa defende que havendo responsabilidade do administrador de facto, o administrador de direito responde pela sua própria atuação se coexistiu com aquele administrador de facto ou, não tendo atuado, responde por omissão ilícita, “se se demitiu em absoluto da gestão social e a entregou, ainda que por afastamento não querido da vida da sociedade, ao administrador de facto directo; nesta circunstância, o exercício de poderes que consentiu ou tolerou (por ex., não registando a cessação de funções do administrador com título extinto) e o sucessivo comportamento danoso do administrador de facto representam a infracção do dever de controlar (culpa in vigilando) a gestão efectiva, mesmo se não levada a cabo por quem não está legitimamente investido para o efeito.” (ob. cit., p. 781).
[68]Publicado no Diário da República n.º 115/2015, Série II de 2015.06.16.
[69]Coutinho de Abreu e Elisabete Ramos, Responsabilidade Civil de Administradores e de Sócios Controladores”, in IDET-Miscelâneas, nº 3, Almedina, 2004, p. 43.
[70]“Administração de Sociedades Anónimas e Responsabilidade dos Administradores, Almedina, p. 201
[71]“Administradores de Facto, Vinculação e Responsabilidade por Omissão”, Almedina, 2021, p. 23
[72]Vd. David Nunes dos Reis, ob. cit., p. 20 e 29.
[73]David Nunes dos Reis, ob. cit., p. 27 e s.
[74]David Nunes dos Reis, ob. cit., p. 28.
[75]Ob. cit., p. 29 e 30.
[76] Expressão utilizada por Ricardo Costa, ob. cit.
[77]O controlo dos fluxos de caixa, ou seja, dos recebimentos/entradas e dos pagamentos/saídas e, consequentemente, das disponibilidades de tesouraria em cada momento.
[78]“A responsabilidade dos administradores na insolvência”, ROA, 2006, disponível em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados-roa/ano-2006/ano-66-vol-ii-set-2006/doutrina/manuel-a-carneiro-da-frada-a-responsabilidade-dos-administradores-na-insolvencia/
[79]“Responsabilidade Civil Societária dos Administradores de Facto”, in Temas Societários, IDET/Almedina, Coimbra, 2006, p. 29, nota 4.
[80]Defendendo e justificando a responsabilização cumulativa do administrador de direito e do administrador de facto, vd. Coutinho de Abreu e Elisabete Ramos, ob. cit. Na jurisprudência, acórdão da RC de 22.11.2016, processo nº 2675/13.1TBLRA-E.C1, e acórdão desta Relação e secção de 23.03.2021, proc. nº 1396/11.4TYLSB-B.L1, disponível na pagina da dgsi.
[81]Ob. cit., p. 42.
[82]Distinguindo as figuras de gerente da sociedade e gerente de comércio, ainda que o primeiro, por regra, cumule a dupla qualidade, Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, A Preposição//Representação Comercial, Almedina, 2017, p. 399 a 401.
[83]Ob. cit., p. 11.
[84]Sem nos retermos na exposição jurídica dos conceitos, anota-se apenas que representação e administração são figuras e realidades jurídicas distintas, sem relação de correspondência ou confusão entre uma e outra. Sobre as várias formas, vias ou natureza da representação pelo ‘preposto’ gerente de comércio, Vd. Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, ob. cit., p. 160 e ss.
[85]Ob. cit. p. 27.
[86] Ob. cit. p. 25.
[87]Ob. cit. p. 19.
[88]Ob. cit. p. 149.
[89]Ob. cit. p. 151.
[90]Ob. cit. p. 152.
[91]Ob. cit., p. 160. Vd. ainda com interesse, a respeito do contrato de trabalho como relação subjacente ao ‘preposto’ gerente de comércio, p. 238 e 242.
[92]No mesmo sentido, Carneiro da Frada e Francisco Mendes Correia, em “Actuação do Gerente de Comércio por Conta e Tutela de Contraparte”, Revista de Direito Comercial, Janeiro 2021, p. 22 – “a relação de gerência advém muitíssimas vezes, singelamente, de um contrato de trabalho.”
[93]Ob. cit., p. 245.
[94]Ob. cit., p. 320.
[95]Ob. cit., p. 321, 326, 327 e 329.
[96]Com as alterações introduzidas ao teor dos nº 2, al. e) e nº 4 pela Lei nº 9/2022 de 11.01.
[97]Vd. Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência”, Almedina, 7ª ed., pág. 159.
[98]Acórdão do Tribunal Constitucional nº 280/2015 de 20.05, apud Catarina Serra, O incidente de Qualificação da Insolvência depois da Lei nº 9/2022, em Revista Julgar nº 48, 2022, p. 25.
[99]O que se afirma por referência aos bens que foram identificados pela AI no seguimento da declaração da insolvência: 1960 ações da Agrogarante, 118 unidades de participação em Fundo de investimento (Fundo Valor Prime, comercializado pelo Banco Montepio), um cheque a favor da insolvente no valor de € 23,27, um veículo cujo paradeiro era desconhecido da AI até à elaboração do relatório, e uma fotocopiadora, detida pela insolvente ao abrigo de contrato de locação.
[100]Que, de resto, bem se compreende, para obviar à tentação de os credores transformarem o incidente de qualificação em ações de responsabilização societária nos termos do art. 78º do CSC que, além do mais, obliterava a exclusiva legitimidade que para o efeito e na pendência do processo o art. 82º, nº 3, al. b) do CIRE atribui ao administrador da insolvência.
[101]Sem prejuízo de concordarmos com as sínteses expostas sob as conclusões, 1., 2. e 3., divergimos da qualificação desta responsabilidade defendida por Henrique Sousa Antunes como marcadamente punitiva, e da restrição das especificações previstas pelo nº 4 ao plano das relações internas no caso de pluralidade de afetados para sustentar e manter que o montante dos créditos não satisfeitos é a medida da obrigação de indemnizar prevista pelo nº 2 (“Natureza e funções da responsabilidade civil por insolvência culposa”, em V Congresso de Direito da Insolvência, Coordenação Catarina Serra, Almedina 2019, p. 135 e ss.).
[102]Que não encontra fundamento legitimador no exercício da administração de patrimónios ou de empresas sendo que, se assim fosse, bastaria a mera declaração da insolvência para a desencadear independentemente da sua natureza culposa, ou seja, independentemente da prática de facto ilícito e culposo.
[103]Maria do Rosário Epifânio (O incidente de qualificação da insolvência, em Estudos e Homenagem ao Professor Saldanha Sanches, Coimbra Editora, 2011, vol. II, p. 579 a 603) também enquadra a responsabilidade civil prevista pela al. e) do nº 2 do art. 189º do CIRE na responsabilidade aquiliana prevista pelo art. 483º do Código Civil mas, diferentemente do entendimento que perfilhamos, imputa a este efeito natureza punitiva e faz coincidir o dano com o montante dos créditos não satisfeitos o que, a nosso ver, pressupõe a consideração de um outro conceito de causalidade, distinto do nexo de causalidade adequada integrante da responsabilidade civil prevista pelo art. 483º do Código Civil, que se situa na relação, essencial à constituição da obrigação de indemnizar, entre o facto ilícito e culposo qualificador da insolvência e o dano dos credores.
[104]Texto cit., p. 142.
[105]Texto citado.
[106]Função que, como acima se referiu, é cumprida pelos efeitos previstos pelas als. b) a d).
[107]Ob. cit., p. 26 a 31.
[108]Nesse sentido, acórdãos da RL de 27.04.2021, proc. nº 540/19.8T8VFX-C.L1, do STJ de 22.06.2021 (proc. 439/15.78OLH-J.E1.S1), de 06.09.2022 (proc. 291/18.0T8PRG-C.G2.S1)
[109]Nos termos dos arts. 18º, 22º, nº 2 e 4, 23º, nº 2 e 24º, nº 2 da Lei Geral Tribuária.