TRÁFICO DE DROGA
CO-AUTORIA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE
Sumário

I. Estando dois arguidos acusados da prática de um qualquer crime em coautoria, e tendo havido separação de processos por força da declaração de contumácia de um deles, na sentença referente ao arguido não contumaz não pode ser desprezada a factualidade constante da acusação referente à coautoria e respeitante ao coautor contumaz (apesar de o mesmo não ter sido julgado), dada a sua relevância para apurar a responsabilidade criminal do arguido não contumaz, não podendo a sentença, consequentemente, deixar de se pronunciar sobre tal materialidade, elencando-a nos  “factos provados” ou nos “não provados”, sob pena de viciação.
II . Uma sentença/acórdão em que se omitam factos relevantes constantes da acusação nos “factos provados” e em simultâneo nos “não provados” mostra-se ferida da nulidade  prevista no art.º 379º, n.º 1, al. a), do CPP, por violação do disposto no art.º 374º, n.º 2, também do CPP.

Texto Integral

Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
 Por sentença de 03.05.2022 foi o arguido A absolvido da prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25º, al. a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às tabelas I-A e I-B anexas.
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Recurso da decisão
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso da sentença, tendo extraído da sua motivação as seguintes CONCLUSÕES (que transcrevemos):
I. O presente recurso funda-se em divergências que se prendem com a absolvição do arguido A, da prática do crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25º, al. a) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às tabelas I-A e I-B anexas.
II. O arguido A deve ser condenado pela prática do crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25º, al. a) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às tabelas I-A e I-B anexas porquanto se mostram preenchidos todos os elementos do tipo objectivo e subjectivo deste crime.
III. A sentença posta em crise é nula por omissão de pronúncia – artigo 379º, nº1, al. c) do código de processo penal quanto aos artigos 1º, 4º, 6º e 8º da acusação, os quais não foram dados por provados ou não provados.
IV. A sentença posta em crise é nula por excesso de pronúncia – artigo 379º, nº1, al. c) do código de processo penal pois que a questão que lhe foi posta para apreciação foi, não a de saber se foi ou não recebida uma quantia monetária pelo arguido A em troca dos estupefacientes vendidos naquele local (que inculca a dita ideia de pagamento do serviço prestado), mas sim saber se a referida quantia [de €295,70, apreendida ao arguido B] foi ou não entregue aos arguidos em troca de estupefacientes (cfr. artigo 6º da acusação, versus a al. D) dos factos não provados).
V. Existe igualmente erro de julgamento – artigo 412º, nº 2 do código de processo penal – quanto à valoração das declarações do arguido, as quais foram incorrectamente valoradas como depoimento indirecto e consequentemente, não admitidas ou valoradas.
VI. Existe erro notório na apreciação da prova – artigo 410º, nº2, al. c) do código de processo penal – se concatenados os factos dados por provados e não provados com a fundamentação da matéria de facto, pois que não é possível concluir se não que o arguido se encontrava na imediações (à porta) do lote 13 a desempenhar funções de vigilante, olhando em todas as direcções com o fito de avisar B caso avistasse a polícia (Facto não provado B) e que agiu em conjugação de vontades e esforços com B e no desenvolvimento de um plano por ambos previamente arquitectado, com o propósito concretizado de ter consigo os mencionados estupefacientes, cujas características, naturezas e quantidades conheciam, com o fito de os entregar a terceiros, a troco do recebimento de quantias monetárias (Facto não provado E).
VII. Existe erro de julgamento - artigo 412º, nºs 3 e 4 do código de processo penal – quanto aos seguintes pontos da matéria de facto não provada: alíneas B), C), D) e E).
VIII – Com efeito, se atentarmos nos depoimentos dos outros 3 agentes policiais (concatenado com o depoimento do agente JC), podemos constatar que eles são todos coincidentes e convergentes entre si, explicando com pormenor o decurso desta operação policial e a forma como actuaram em conjunto e se entreajudaram nas tarefas que tinham adstritas.
Nesta conformidade, ao contrário do que foi decidido pelo Tribunal a quo, cremos que não podem deixar de ser dados como provados todos os factos constantes da acusação, i.e:
1.º No dia 01.03.2021, pelas 04h10m, os arguidos A e B encontravam-se na Rua Quinta do Loureiro, em Lisboa.
2.º O arguido A estava posicionado à porta de entrada do Lote 13 e desempenhava a função de vigilante, isto é, olhava em todas as direcções, com o fito de avisar o co-arguido, caso avistasse a polícia.
3.º O arguido A controlava, também, as pessoas que podiam ou não entrar ou referido prédio,
4.º O arguido B, por seu turno, estava no hall de entrada do mencionado imóvel.
5.º O arguido B tinha consigo o seguinte:
1. 19 embalagens que continham heroína, com o peso líquido de 4,395g;
2. 15 embalagens que continham cocaína (éster metílico de benzoilecgonina), com o peso líquido de 2,590g;
3. A quantia de €295,70.
6.º A referida quantia foi entregue aos arguidos em troca de estupefacientes.
7.º Os arguidos agiram em conjugação de vontades e esforços e no desenvolvimento de um plano por ambos previamente arquitectado, com o propósito concretizado de ter consigo os mencionados estupefacientes, cujas características, naturezas e quantidades conheciam, com o fito de os entregar a terceiros, a troco do recebimento de quantias monetárias.
8.ºOs arguidos actuaram de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
IX. O arguido A deve assim ser condenado em pena de prisão pela prática de tal crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade
X. Nada tendo a opor à suspensão da sua execução ou à sua substituição por outra pena nos termos do Código Penal.
Nestes termos e nos demais de direito aplicável, que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve o arguido A deve ser condenado pela prática do crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25º, al. a) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às tabelas I-A e I-B anexas, devendo ser-lhe aplicada pena de prisão (ainda que substituída ou suspensa nos termos da lei penal).
Contudo, V. Exas decidindo farão, uma vez mais, a já costumada JUSTIÇA.
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Resposta do arguido:
O Arguido respondeu ao recurso no sentido da sua improcedência e da manutenção da decisão.
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O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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Parecer do Ministério Público junto da Relação
Subidos os autos a este Tribunal da Relação, ao abrigo do disposto no art.º 416°, do CPP, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto aderiu às alegações de recurso apresentadas na 1ª Instância.
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Cumprido o disposto no art.º 417º, n.º 2, do CPP, não foi apresentada resposta.
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Após exame preliminar e colhidos os Vistos, realizou-se a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir, nos termos resultantes do labor da conferência.
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A delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sendo essas que balizam os limites do poder cognitivo do tribunal superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como ocorre por exemplo com os vícios previstos nos artigos 410º, n.º 2, ou 379º, n.º 1, ambos do CPP (cfr. art.ºs 412º, n.º 1, e 417º, n.º 3, ambos do CPP).
Posto isto, passamos a delimitar o thema decidendum, que o mesmo é dizer a elencar as questões colocadas à apreciação deste tribunal, pela ordem em que vêm invocadas nas conclusões, e que são as seguintes:
1. A nulidade do acórdão recorrido, concretamente da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, por omissão e excesso de pronúncia.
2. O vício da sentença do erro notório na apreciação da prova, previsto no art.º 410º, n.º 2, al. c), do CPP.
3. A impugnação da decisão sobre a matéria de facto, em virtude de existir erro de julgamento relativamente aos pontos B), C), D) e E) dos factos dados como não provados.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
A Decisão Recorrida:
A decisão recorrida tem o seguinte teor (que se transcreve parcialmente, nas partes mais relevantes ao conhecimento do recurso):
I. Relatório
O Ministério Público deduziu acusação para julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, contra o arguido:
- A, filho de ... e de ..., natural de S. Sebastião da Pedreira, nascido a 18/02/1980, solteiro, desempregado a realizar biscates na construção civil e residente na Rua ...Lisboa.
pelos factos descritos na acusação e pelos quais lhes imputa, a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25º, al. a) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às tabelas I-A e I-B anexas.
 (…)
III. Fundamentação
 Factos provados
Dão-se como provados os seguintes factos que têm interesse para a decisão da causa:
1. No dia 01/03/2021, pelas 04h10m, o arguido encontrava-se na Rua Quinta do Loureiro, em Lisboa.
2. O arguido encontrava-se posicionado nas imediações do lote 13 a mexer no seu telemóvel.
3. Dentro daquele lote encontrava-se B que tinha consigo 19 embalagens de heroína e 15 embalagens de cocaína e, ainda a quantia de €295,70.
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4. O arguido não tem antecedentes criminais registados.
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5. O arguido vive num albergue, num quarto partilhado com mais 3 pessoas.
6. Tem dois filhos e encontra-se responsável pelo pagamento de uma pensão de alimentos na quantia de € 240,00.
7. O arguido tem o 9º ano de escolaridade e encontra-se a realizar biscates na área da construção civil auferindo um rendimento mensal variável entre €120,00 e os €500,00.
 Factos não provados
Com relevância para a decisão da presente causa, não resultou provado o seguinte facto:
A. Que o arguido se encontrasse naquele local a pernoitar.
B. Que o arguido se encontrava nas imediações do lote 13 a desempenhar funções de vigilante, olhando em todas as direcções com o fito de avisar B caso avistasse a polícia.
C. Que o arguido se encontrava a controlar as pessoas que podiam ou não entrar no referido prédio.
D. Que o arguido tenha recebido uma quantia monetária em troca dos estupefacientes vendidos naquele local.
E. Que o arguido agiu em conjugação de vontades e esforços com B e no desenvolvimento de um plano por ambos previamente arquitectado, com o propósito concretizado de ter consigo os mencionados estupefacientes, cujas características, naturezas e quantidades conheciam, com o fito de os entregar a terceiros, a troco do recebimento de quantias monetárias.
Motivação da matéria de facto
Para formar a convicção do Tribunal, no que respeita aos factos dados como provados e não provados, procedeu-se a uma análise crítica e conjugada de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento. Foi ainda considerada a restante prova constante dos autos, tendo o Tribunal apreciado toda a prova, atendendo às regras da experiência comum, tendo sempre em consideração o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127º do Código de Processo Penal.
Designadamente, foi tida em consideração a prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, tendo sido valorados os depoimentos que foram prestados pelas testemunhas JC, PM, DM e JN,, todos agentes da P.S.P. chamados para agir no indicado local.
Também foram tidas em consideração na formação da convicção do Tribunal as declarações do arguido que, estando presente na audiência de discussão e julgamento, decidiu prestá-las.
Por fim, foi igualmente alvo de valoração a documental e pericial presente nos autos, designadamente o auto de notícia por detenção (fls. 2 a 5), fotografia (fl.20), certificado de registo criminal do arguido e relatório do exame pericial (fls. 112 e 113).
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Concretizando.
A factualidade vertida no ponto 1 dos factos provados resulta da coerência, neste ponto, entre as declarações do arguido que afirmou encontrar-se naquele local (embora tenha dito que se encontrava a dormir) e o depoimento dos quatro agentes da P.S.P. que se deslocaram ao local, aqui testemunhas, tendo todas afirmado que viram ali o arguido.
De seguida, dá-se também como provado o ponto 2 dos factos provados, nos termos do qual o arguido se encontrava nas imediações daquele local a mexer no seu telemóvel, ainda que a versão do arguido não tenha sido essa.
Isto porque a primeira testemunha indicada, JC, afirmou, num discurso que se mostrou credível por sereno, espontâneo e coerente afirmou que chegou ao local e encontrou o arguido fora daquele prédio, a enviar mensagens do seu telemóvel. Também o agente JN, que acompanhou o primeiro, referiu o mesmo cenário, tendo dito que “ficou a guardar o Sr. A na entrada”. Também os agentes PM e DM, que afirmaram ter chegado uns segundos depois dos primeiros e que escassos metros os separavam afirmaram que o arguido foi o primeiro a ser interceptado porque se encontrava fora do lote identificado.
Também o facto vertido no ponto 3 dos factos provados resulta do depoimento daquelas testemunhas, sendo ainda corroborado pela prova documental e pericial junta aos autos, oportunamente mencionada.
O ponto 4 dos factos provados resulta do certificado de registo criminal do arguido, devidamente junto aos autos.
Por fim, resulta a factualidade vertida nos pontos 5 a 7 dos factos provados, das declarações do arguido que, relativamente a estes pontos, se mostraram espontâneas e sinceras pelo que mereceram a credibilidade do presente Tribunal.
*
Relativamente aos factos indicados como não provados, foi tida em consideração a falta de prova carreada para os autos nesse sentido, conforme se explicitará de seguida.
O facto vertido no ponto A resulta da versão apresentada pelo arguido que, conforme já exposto, sendo contraditória com o depoimento das quatro testemunhas, não se mostrou credível, resultando numa tentativa, por parte do arguido, de se desresponsabilizar pelos factos dos quais vem acusado.
No entanto, também a factualidade vertida nos pontos não provados B e C constante da acusação não resultou suficientemente provada.
De facto, todos as testemunhas afirmaram que viram o arguido nas imediações daquele lote. No entanto, o agente PM afirmou não saber se aquele havia acordado recentemente, não tendo explicitado o que se encontrava o arguido a fazer naquele local.
Também o agente DM afirmou que o arguido se encontrava de pé à porta do prédio e que deduzia que o mesmo se encontrava a vigiar, não tendo, no entanto, apresentado qualquer facto concreto que lhe permitisse essa afirmação. Ainda o agente JN afirmou que o arguido “estava só ali”, não conseguindo explicitar o que o mesmo se encontrava a fazer.
Apenas o agente JN, aqui testemunha, afirmou com mais certeza que o arguido se encontraria a vigiar o lote. No entanto, perguntado sobre o que lhe permitia fazer essa afirmação, referiu apenas que seria pelo arguido “estar com postura de vigia às quatro da manhã à frente de um prédio ao telemóvel e a olhar para a estrada”. Ora, tal não permite ao presente Tribunal considerar tal função de vigia com certeza, existindo outras razões plausíveis que pudessem justificar aquela presença.
Mais se diga que esta testemunha afirmou que quando chegou ao local, viu duas pessoas a fugir, das quais não consta o aqui arguido, que não encetou fuga.
Ainda esta testemunha, para suportar a sua afirmação, indicou que o mesmo se encontrava a mandar mensagens e que aquele lhe disse, quando interceptado, que estaria a enviar mensagens ao B. por forma a pedir estupefaciente que as pessoas, à entrada, lhe indicavam querer, o que, além de não demonstrar a função de vigia e ser manifestamente insuficiente para se considerar este facto como provado, resulta de um depoimento indirecto.
Face ao exposto, não se pode assim considerar como provado o constante da acusação, ou seja, que o arguido se encontrava a olhar em todas as direcções – tendo, inclusive a testemunha e agente JN afirmado que o mesmo estava “distraído” ao telemóvel, o que não é compatível com a função de vigilante, - e que tinha o fito de avisar B caso avistasse a polícia.
Não resultou igualmente provado, por total ausência de prova nesse sentido, o vertido no ponto C, ou seja, que o arguido se encontrava a controlar as pessoas que podiam ou não entrar no referido prédio.
Também não houve qualquer elemento probatório que corroborasse o disposto na acusação e vertido aqui no ponto D dos factos não provados, isto é, que o arguido tenha recebido uma quantia monetária em troca dos estupefacientes vendidos naquele local.
Neste seguimento e por fim, resulta também como não provada a factualidade vertida no ponto E dos factos não provados, por não ter existido prova que sustentasse tal versão.
 Motivação de direito
(…)
V. Decisão
Em face do exposto, o tribunal julga a acusação totalmente improcedente e em conformidade decide:
- Absolver o arguido, A, da prática de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25º, al.a) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às tabelas I-A e I-B anexas.
(…)
*
Da análise dos fundamentos do recurso (pela ordem de lógica jurídica):
4. Da nulidade do acórdão recorrido, concretamente da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, por omissão e excesso de pronúncia.
Começando pela invocada omissão de pronúncia, considera o Recorrente que que o acórdão recorrido está inquinado de nulidade, por não se ter pronunciado sobre factos que lhe incumbia obrigatoriamente apreciar, nomeadamente por não se ter pronunciado, nem nos factos provados, nem nos não provados, sobre a materialidade constante dos pontos 1º, 4º, 6º e 8º, da acusação, factualidade que se mostra relevante à boa decisão da causa.
As normas violadas serão, portanto, a dos art.ºs 374º, n.º 2, e 379º, n.º 1, ambos do CPP.
Diremos já assistir razão ao Recorrente.
Na verdade, a sentença recorrida padece de falta de rigor.
Senão vejamos.
O arguido A foi acusado do crime de tráfico de menor gravidade em coautoria com o arguido B, e não em autoria, como erradamente consta da decisão recorrida, logo no 4º parágrafo.
Por clareza, passamos a transcrever integralmente a acusação.
O Ministério Público acusa em processo comum e com intervenção de tribunal singular:
B, filho de ..., nascido a 18.12.1993, natural de Cabo Verde, solteiro, residente na ..., Lisboa e
A, filho de ... e de ..., natural de S. Sebastião da Pedreira, solteiro, sem residência conhecida,
Porquanto os autos indiciam suficientemente que:
1.º No dia 01.03.2021, pelas 04h10m, os arguidos A e B encontravam-se na Rua Quinta do Loureiro, em Lisboa.
2.º O arguido A estava posicionado à porta de entrada do Lote 13 e desempenhava a função de vigilante, isto é, olhava em todas as direcções, com o fito de avisar o co-arguido, caso avistasse a polícia.
3.º O arguido A controlava, também, as pessoas que podiam ou não entrar ou referido prédio,
4.º O arguido B, por seu turno, estava no hall de entrada do mencionado imóvel.
5.º O arguido B tinha consigo o seguinte:
1. 19 embalagens que continham heroína, com o peso líquido de 4,395g;
2. 15 embalagens que continham cocaína (éster metílico de benzoilecgonina), com o peso líquido de 2,590g;
3. A quantia de €295,70.
6.º A referida quantia foi entregue aos arguidos em troca de estupefacientes.
7.º Os arguidos agiram em conjugação de vontades e esforços e no desenvolvimento de um plano por ambos previamente arquitectado, com o propósito concretizado de ter consigo os mencionados estupefacientes, cujas características, naturezas e quantidades conheciam, com o fito de os entregar a terceiros, a troco do recebimento de quantias monetárias.
8.ºOs arguidos actuaram de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Os arguidos incorreram na prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25.º, alínea a), do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às tabelas I-A e I-B anexas.

A decisão recorrida parece ter desprezado parte da factualidade acusada de onde ressalta a coautoria. E ao fazê-lo ficaram a faltar “peças” relevantes para a ponderação da condenação do arguido A.
Julga-se que o raciocínio subjacente a essa tomada de posição residiu no facto de, por força da declaração de contumácia do coarguido B (entretanto reaparecido, diga-se) e da separação de processos, ter sido considerada irrelevante neste processo a factualidade referente à conduta deste coarguido, tanto mais que tal poderia implicar eventual contradição de julgados.
Porém, tal raciocínio não merece acolhimento, primeiro porque o caso julgado nunca se imporia ao arguido não julgado B, e nessa medida não podia haver contradição de julgados, e em segundo porque  o apuramento da conduta do coarguido B é da máxima relevância para apurar a responsabilidade criminal do arguido A, na medida em que este está acusado em coautoria.

Ora, nos termos do art.º 26º, do CP, a coautoria supõe o acordo para a realização conjunta do facto e a intervenção direta na execução do crime.
E é no que toca à concretização do que seja “executar o facto” que residem as maiores problemáticas.
É com base na teoria do domínio do facto, hoje largamente maioritária, que se tem procurado dar resposta a essa concretização. Nas palavras de Figueiredo Dias (em “Direito Penal, Parte Geral, T. I, Gestlegal, 3º edição, págs. 894 e seguintes), autor é quem domina o facto, quem dele é “senhor”, quem toma a execução nas suas próprias mãos”, de tal modo que dele depende decisivamente o se e o como da realização típica. O facto surge como unidade de sentido objetiva-subjetiva: numa sua vertente aparece como obra de uma vontade que dirige o acontecimento,  noutra vertente como fruto de uma contribuição para o acontecimento dotada de um determinado peso e significado objetivo.
O domínio do facto, na coautoria de crimes dolosos de ação, não significa que cada coautor domine a totalidade do facto. O coautor terá de dominar o facto, através da divisão de tarefas com os coagentes, desde que durante a execução possua uma função relevante para a realização típica (a que Roxin chamou o domínio funcional do facto). O coautor não domina o facto global por si mesmo, nem por intermédio dos outros, mas em conjunto com os outros. Trata-se de um domínio do facto coletivo, ou de um “condomínio do facto”.
O ponto de toque está na essencialidade da função/contribuição do coagente para a realização típica.
Nesta medida, a tarefa destinada a um certo comparticipante pode até não fazer parte da ação-típica, mas terá de ser de tal modo relevante que permita a realização da mesma.
Questionando que peso, relevo, importância e significado deve ter o contributo do agente, quer realize ou não um elemento típico, para que possa ser tido como coautor (em contraposição com um cúmplice), Figueiredo Dias responde ser indispensável que do contributo objetivo dependa o se e o como da realização típica e não apenas que o agente se limite a oferecer ou a pôr à disposição os meios de realização. Noutra formulação, atribuída a Roxin, refere que o contributo do coautor, segundo o plano conjunto “põe, no estádio da execução, um pressuposto indispensável à realização do evento almejado”, de tal forma que, tendo lugar esse concreto contributo “todo o empreendimento resulta”, e não tendo lugar “todo o empreendimento falha”.
Assim, seguindo esta tese, é consentâneo não ser necessário para a verificação da coautoria que cada coagente cometa a totalidade da ação típica, que execute todos os factos típicos.
Também não oferece dúvidas sobre a existência de coautoria quando o  comparticipante pratique apenas uma parte da ação típica, conforme repartição de tarefas previamente acordada, em vista do fim almejado.
Já quando o agente não pratique sequer parte da ou das ações típicas, de novo na sequência da repartição de tarefas acordada,  existirá coautoria (em contraposição com a cumplicidade) se o contributo na execução for essencial ou indispensável à produção da ou das ações típicas.
É também sabido que a cada coautor é imputável a totalidade da conduta criminosa, apesar de poder ter uma intervenção meramente parcial na execução.

Regressando ao caso dos autos, de acordo com a versão da acusação, que é a que aqui releva, cabia ao coarguido A a função de “vigia” da “banca” de venda de droga montada pelo coarguido e líder B.
Sem prejuízo,  na qualidade de coautor, seria imputável ao arguido A, a totalidade da conduta criminosa que teve lugar no dia 01.03.2021 (no caso, a venda do estupefaciente e ainda  a detenção/apreensão do estupefaciente), ainda que o A apenas possa ter tido (de acordo com a acusação) uma intervenção meramente parcial na execução, a qual, aliás, não consubstancia nenhuma das ações típicas (o que não impede a existência de coautoria, como já referimos).
Tal permite, desde logo, afirmar a relevância de se dar como provada (ou não provada) a materialidade constante da acusação e referente à intervenção também parcial do arguido B, sob pena de não ser possível, sequer, sindicar em termos de recurso a sentença recorrida.
Ora, analisada a factualidade dada como provada e não provada elencada na sentença, em contraponto com a materialidade constante da acusação, facilmente se chega à conclusão de que nela nada se refere a propósito:
- Do concreto local onde o arguido B se encontrava, dentro do lote 13, constando da acusação que estaria no hall do prédio, local onde havia montado a “banca” de venda de estupefaciente (4º da acusação), facto que é relevante para aferir desde logo da venda do estupefaciente, pelo qual, relembramos, o arguido A, de acordo com a acusação, é corresponsável;
- Do recebimento pelo arguido B, na sequência da venda de estupefacientes antes realizada, da quantia que foi apreendida (295,70 Euros) (6º da acusação), facto que é relevante para aferir, de novo, da venda do estupefaciente, pela qual o arguido A, de acordo com a acusação, é corresponsável;
- Dos factos constantes do artigo 8º da acusação, correspondentes ao elemento subjetivo do crime imputado aos arguidos, em coautoria.
Concluímos, pois, que a sentença recorrida é omissa, porque não elenca (nem nos factos provados, nem nos não provados) uma parte relevante da materialidade trazida aos autos pela acusação pública, materialidade sem a qual não é sequer possível sindicar a sentença recorrida em sede de impugnação da matéria de facto, dado que o objeto do recurso é a sentença recorrida e, não constando elencada na mesma sequer os factos atinentes ao elemento subjetivo do crime acusado, este tribunal superior, mesmo que considerasse existir erro de julgamento previsto no art.º 412º, do CPP, e pretendesse modificar a matéria de facto, nunca poderia dar como provada factualidade não constante dos factos não enumerados na sentença, apesar de estarem descritos na acusação, o que inviabiliza a possibilidade de condenar o arguido pelo crime acusado.

Impõe-se, agora, discutir se esse desacerto ou “problema” identificado do acórdão recorrido inquina a validade, em sentido amplo, da sentença, na afirmativa de que vício e as sequências desse apreciado desacerto.
Conforme já se escreveu no acórdão por nós relatado no processo 392/20.5PZLSB.L1, desta 9º Secção, e que aqui repetiremos:
Verificam-se divergências na jurisprudência, e até na doutrina, sobre se a falta na sentença/ou acórdão de factos relevantes constantes da acusação/ou pronúncia (assim como da contestação e dos pedidos cíveis) nos factos provados e em simultâneo nos não provados consubstancia o vício previsto no art.º 410º, n.º 2, al. a), do CPP, ou a nulidade prevista no art.º 379º, n.º 1, a), ou ainda a nulidade prevista no art.º 379º, n.º 1, al. c), todos do CPP.
Confrontando cada uma das três soluções:
Relativamente ao vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, resulta da alínea a), do n.º 2, do art.º 410º, do CPP, na parte aqui relevante, que o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Em sede de recurso a sindicância da matéria de facto pode ser realizada através da invocação dos vícios da decisão previstos no n.º 2, do art.º 410º, do CPP, por via da chamada revista alargada ou ampliada, na qual se impugna a matéria de facto de forma restrita, ou seja, desde que o vicio resulte da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, sem o recurso a elementos estranhos à própria decisão, não podendo tais vícios serem fundamentados com recurso, por exemplo, a quaisquer dados ou prova existente nos autos, ainda que provenientes do próprio julgamento.
Nestes vícios há algo de errado na decisão da matéria de facto e tal é percecionado pelo leitor de forma imediata, visível ou patente do próprio texto da decisão, sem necessidade de recurso a outros elementos.
Os vícios aqui em causa são da própria decisão (em contraponto com os erros de julgamento), que terá de ser considerada de forma autossuficiente, e resultam do respetivo texto, encarado por si só ou conjugado com as regras gerais da experiência comum, ou seja, são vícios intrínsecos e inerentes à própria decisão, à sua estrutura interna, sendo o seu conhecimento considerado ainda matéria de direito.
Haverá insuficiência para a decisão da matéria de facto provada sempre que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito ou quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão (desde que contida na acusação ou na defesa dos arguidos).
Como se lê em “Recursos Penais”, de Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, Rei Livros, 9ª edição, pág. 74 e 75, “A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher. Porventura melhor dizendo, só se poderá falar de tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final”.
Já não ocorre esse vício quando o Tribunal investigou tudo o que podia e devia e, não obstante, os factos dados como provados são insuficientes para preencher os elementos do tipo pelo qual o arguido foi condenado e para determinação da sanção aplicável.
Especificamente no que concerne à falta de elenco na sentença/ou acórdão nos factos provados e em simultâneo nos não provados de certa materialidade constante da acusação/ou pronúncia (assim como da contestação ou pedidos cíveis), desde que relevantes, várias são as decisões de tribunais superiores que apontam no sentido de que essa falta de elenco consubstancia o erro-vício mencionado:
Vejam-se, a título de mero exemplo, os acórdãos em abono desta posição citados pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 10.01.2013, processo 905/05.2JFLSB. L1-9, relatado por Abrunhosa de Carvalho (disponível em dgsi.pt), no qual se refere que: “Considerando, relativamente à questão em causa nos presentes autos, que constitui o vício de insuficiência, pronunciou-se o STJ de 17/02/2003, nos seguintes termos: “… A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é a que decorre da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados pela acusação ou defesa ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão. …”. No mesmo sentido se pronunciaram os acórdãos da RE de 28/11/2012, relatado por Ana Bacelar Cruz, in JusNet 6700/2012, e da RG de 01/09/2006, relatado por Fernando Monterroso, in www.gde.mj.pt, processo 1311/06-1, do qual citamos: “…Mas, se a sentença não dá como «provado», nem como «não provado» algum facto relevante, que devia ter sido investigado, a questão não é de nulidade da sentença, mas da existência do vício do art.º 410 nº 2 al. a) do CPP – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Este vício verifica-se quando há omissão de pronúncia pelo tribunal relativamente a factos alegados por algum dos sujeitos processuais ou resultantes da discussão da causa, que sejam relevantes para a decisão …”.”
O ponto é, ousamos nós realçar, que essa insuficiência da matéria de facto provada para a decisão proferida (no caso também da falta de elenco de materialidade relevante constante das peças processuais nos “factos provados” e “ não provados”) resulte imediatamente patente da própria decisão, considerada de forma autónoma - sem ir buscar outros elementos, sem recorrer por exemplo a dados do inquérito, da instrução, do próprio julgamento -, ou com o apoio das regras de experiência comum, exigência que resulta expressamente do art.º 410º, n.º 1, da CPP, na parte em que se dispõe “desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”, e que, portanto, não pode ser dispensada.
Veja-se, neste sentido, o que se encontra na já citada obra em “Recursos Penais”, de Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, Rei Livros, 9ª edição, agora págs. 84 e 85, enquanto aborda o tema da “inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada”, e dentro deste “as nulidades da sentença”: “há que aditar mais alguns considerandos. Desde logo para assinalar que, como resulta expressamente da lei, qualquer um dos vícios enunciados no n.º 2 do art.º 410º tem de resultar “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comuns”. Isto significa que não se pode ir buscar outros elementos para fundar o vício invocado fora da decisão, nomeadamente ir à cata de eventuais contradições entre a decisão e outras peças processuais, como por exemplo recorrer a dados do inquérito, da instrução ou do próprio julgamento. (…) Por outro lado, o recurso às regras de experiência comum, de que se pode lançar mão para justificar o vício invocado, tem de ser feito cum grano salis, pois tal prescrição não se aplica a todos os vícios referenciados no n.º 2, do art.º 410º. (…) se essas regras podem ser invocadas no caso de insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada, já não o podem ser quando se trate de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (…) na hipótese de erro notório na apreciação da prova, as regras de experiência comum podem, em princípio, ser invocadas.

No que concerne às nulidades da sentença:
Preceitua o art.º 379º, do CPP, sob a epígrafe à “nulidade da sentença”, que:
1 - É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º
3 - Se, em consequência de nulidade de sentença conhecida em recurso, tiver de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido, o recurso que desta venha a ser interposto é sempre distribuído ao mesmo relator, exceto em caso de impossibilidade.
De acordo com o n.º 3, do art.º 410º, do CPP, “o recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal à matéria de direito, e inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.”.
Dispõe o  art.º 374º, n.º 2, do CPP, referente aos “requisitos da sentença” que “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
As sentenças ou acórdãos judiciais, enquanto atos decisórios, carecem necessariamente de fundamentação, através da  enumeração ou especificação da matéria de facto provada e não provada (reportada à factualidade constante da acusação e/ou da pronúncia, da contestação do arguido, do pedido cível do demandante) e de motivação explícita do processo de convencimento ou da convicção do julgador - art.ºs 205.º, n.º 1, da CRP, 97.º, n.ºs 1, al. a) e 5, e 374º, ambos do CPP.
No que toca à enumeração da matéria de facto provada e não provada, a necessidade da sua enumeração exaustiva, naturalmente desde que os factos se mostrem relevantes para a decisão da causa, visa garantir, para além de qualquer dúvida, que o julgador contemplou todos os factos submetidos à sua apreciação.

Em matéria de poder de cognição das nulidades da sentença previstas no citado art.º 379º, do CPP,  é hoje pelo menos largamente maioritária a posição jurisprudencial do respetivo conhecimento oficioso, conforme se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no 111/17.3PTCBR.C1, datado de 20.06.2018 (disponível em dgsi.pt), onde se pode ler: com a Lei n.º 59/98 de 25 de agosto, foi introduzido um novo n.º 2 ao art. 379.º do Código de Processo Penal, estabelecendo que «As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º.».
Passando este n.º 2 a regular o regime do conhecimento e arguição das nulidades da sentença, a jurisprudência largamente maioritária, designadamente do STJ, passou a decidir desde então que as nulidades da sentença previstas no n.º 1 do art.º 379.º do C.P.P., são de conhecimento oficioso.
As razões do conhecimento oficioso das nulidades da sentença são as sucintamente explanadas pelo Conselheiro Oliveira Mendes, em obra coletiva de Conselheiros do STJ, que aqui se reproduzem, com a devida vénia:
«Quanto ao seu conhecimento pelo tribunal de recurso a lei, mediante a alteração introduzida em 1998, com o aditamento do n.º 2, estabelece que «as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso», o que não pode deixar de significar que o tribunal de recurso, independentemente de arguição, está obrigado a conhecê-las. A letra da lei é unívoca: «as nulidades da sentença devem ser … conhecidas em recurso». Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de outubro de 2010, proferido no Processo n.º 70/07.0JBLSB1.S1, as nulidades da sentença, conquanto não sejam insanáveis, uma vez que não incluídas nas nulidades previstas no artigo 119.º. do CPP, são cognoscíveis em recurso, mesmo que não arguidas, visto que as nulidades da sentença enumeradas no artigo 379.º, n.º 1, têm regime próprio e diferenciado do regime geral das nulidades dos restantes atos processuais.
Aliás, nem poderia ser de outra forma, sob pena de o tribunal de recurso, na ausência de arguição, ter de confirmar sentenças sem qualquer fundamentação, violadoras do princípio do acusatório e mesmo sem dispositivo. A não serem as nulidades da sentença suscetíveis de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso, passaríamos a ter decisões, quer absolutórias quer condenatórias, eivadas de vícios e de anomias, algumas inexequíveis, apesar de sindicadas por tribunal superior.» “Código de Processo Penal comentado”, António Henriques Gaspar, José Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António Oliveira Mendes, António Pereira Madeira e António Pires da Graça, Ed. Almedina, 2014, pág.1183).
No mesmo sentido, entre outros, decidiram os acórdãos do STJ, de 25 de novembro de 1999 (BMJ n.º 491, pág.200), de 14 de maio de 2003 (proc. n.º 518/03 - 3.ª Secção), de 23 de maio de 2007 (proc. n.º 1405/07 -3.ª), de 15-10-2008 (Proc. n.º 2864/08 -3.ª Secção), e de 27-10-2010 (proc. n.º 70/07.0JBLSB.L1.S1), estes últimos consultáveis em www.dgsi/stj.pt.

Detalhando as diversas nulidades da sentença aqui com relevo:
Quanto à nulidade prevista no art.º 379º, n.º 1, al. a), do CPP, concretamente no segmento referente à falta ou omissão de elenco dos factos dados como provados e não provados, é consabido que o tribunal deve decidir sobre todos os factos alegados pela acusação/ou despacho de pronúncia ou pela defesa e ainda os que resultem da discussão da causa, desde que sejam relevantes para a resolução das diversas questões em que se desdobra a análise da culpabilidade e da determinação da espécie e da medida da pena (art.ºs. 368º, n.º 2, e 369º, n.º 2, do CPP).
No sentido de que a falta de enumeração, ainda que parcial ou pontual, da factualidade alegada e relevante nos “factos provados” e nos “não provados” inquina a sentença desta nulidade, vejam-se, por exemplo:
. O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 24.04.2019, processo 708/15.6T9CBR.C1 (disponível em dgsi.pt) que, reportando-se à falta de enumeração da factualidade invocada na contestação e no pedido cível nos factos provados e não provados, refere, com interesse “No fundo, a enumeração dos factos provados e não provados a integrar a fundamentação que obrigatoriamente deve constar na sentença, em conformidade com os citados artigos 374.º, n.º 2, 339.º, n.º 4, 368.º, n.º 2 e 369.º, traduz-se na tomada de posição por parte do tribunal sobre todos os factos sujeitos à sua apreciação e em relação aos quais a decisão terá de incidir, incluindo os que, embora não fazendo da acusação ou da pronúncia, da contestação, do pedido de indemnização e da contestação a este, tenham resultado da discussão da causa e revestem relevância para a decisão. Daí que, como se sublinha Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 312/2012, aquela enumeração assuma também extrema importância como meio de evidenciar os factos que foram efectivamente considerados e apreciados pelo tribunal e sobre os quais recaiu um juízo de prova.(…) Não o fazendo estará a omitir aspectos considerados essenciais para a fundamentação da sentença, levando a que esta fique inquinada da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP. (…) Em síntese conclusiva, uma vez que a referida matéria alegada na contestação e discutida no julgamento reveste relevância para a decisão, a mesma deveria ter sido apreciada na sentença e levada ao elenco factual que, em função da ponderação probatória que efectuou, o julgador considerou provado ou não provado, pelo que tal omissão constitui fundamento de nulidade da sentença recorrida, nos termos previstos no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), com referência ao artigo 374.º, n.º 2, ambos do CPP.
. O acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 08.10.2014, processo 554/11.6TAOAZ.P1, relatado por Castela Rio, que afasta a aplicação da alínea c), do art.º 379º, do CPP, no caso de serem omitidos do elenco dos factos provados e não provados materialidade relevante e constante da acusação/pronúncia, contestação ou pedido cível, por considerar que “o objeto de uma tal nulidade não é a omissão de pronúncia sobre «factos» mas sobre «classes ou categorias» de «questões e sub questões» que se configurarão como principais ou acessórias, primárias ou secundárias, iniciais ou subsequentes como imposto em cada caso concreto pela lógica formal e material do raciocínio jurídico que competir desenvolver de subsunção dos factos ao Direito para perfectibilizar a Decisão Final seja de absolvição ou de condenação, in totum ou parcial, crime ou cível, as quais são aludidas no art.º 368-2-a-b-c-d-e-f e a «determinação da sanção» nos art.ºs 369 sgs do CPP. (…) «...é considerado por todos como um bom homem», «Uma pessoa cordata e pacífica, que não se mete em desacatos», que «Tem bom comportamento anterior e posterior aos factos que lhe são imputados», que «É pessoa bem aceite e integrada no meio social em que vive a trabalha» e que «É de modesta condição sócio-económica» - foram factos alegados pelo Arguido B… com relevância para escolha e quantificação da pena (…)  manifesto incumprimento do dever a quo de pronúncia especificada sobre todos os sobreditos factos alegados que têm de ser expressamente julgados «provados» ou «não provados» como competir para que o Recorrente possa ulteriormente cumprir substancialmente os ónus processuais penais recursórios do art 412-3-a-b-4 e ou 412-2-a-b-c do CPP; assim ocorre a nulidade do art.º 379-1-a ut art.º 374-2 do CPP que importa anulação da Decisão Final recorrida ut art.º 122-1-2-3 do CPP para suprir-se a quo a sobredita nulidade.
. Ainda o aresto citado pelo também já referido acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 10.01.2013, processo 905/05.2JFLSB. L1-9, que assim dispõe: e decidiu o acórdão da RP de 22/01/1992, relatado por Castro Ribeiro, in www.gde.mj.pt, processo 9150789, de cujo sumário citamos: “…I - O conhecimento das causas da nulidade da sentença precede a averiguação da existência dos vícios indicados no número 2 do artigo 410 do Código de Processo Penal, pois, considerada nula a sentença, perdera interesse apurar a suposta existência desses vícios. II - Se a sentença não se pronunciar sobre factos essenciais descritos na acusação, tal omissão de pronúncia envolve nulidade de sentença (artigos 374º, número 2 e 379 alínea a) daquele Código) mais do que o vício da alínea a) do número 2 do artigo 410 do mesmo diploma: insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. …”

Passando agora à nulidade da sentença decorrente de omissão de pronúncia sobre questões que o tribunal devesse apreciar, prevista no art.º 379º, n.º 1, al. c), do CPP, este vício prende-se com o incumprimento do dever de resolver todas as questões submetidas à apreciação do tribunal, excetuando aquelas cuja apreciação esteja prejudicada pela solução dada a outra.
Por “questão” deverá ser entendido todo e qualquer problema concreto (não já os motivos, argumentos ou pontos de vista e doutrinas expostos pelos sujeitos processuais) que seja submetido à apreciação do tribunal pelos intervenientes processuais, desde que sobre eles o julgador não esteja legalmente impedido de se pronunciar, e bem assim os de conhecimento oficioso.
São classicamente dados como exemplos o não conhecimento de algum crime imputado ao arguido, a omissão de pronúncia sobre a prescrição, a aplicação de penas acessórias ou penas de substituição, a aplicação do regime aplicável a jovens delinquentes, a não suspensão da execução da pena aplicada, a aplicação de perdão ou amnistia, etc…
A omissão de pronúncia sobre alguns concretos factos constantes da acusação/ou pronúncia (assim como da contestação e dos pedidos cíveis), no pressuposto da sua relevância, é também por muitos incluída nesta concreta nulidade da sentença.
Neste sentido veja-se:
. Paulo Pinto de Albuquerque, em “Comentário do CPP”, 3ª ed., pág. 960, o qual refere caber na omissão de pronúncia sobre questões que o tribunal devesse apreciar, designadamente, “a omissão de pronúncia sobre factos concretos da acusação, da pronúncia ou da contestação que sejam relevantes para a boa decisão da causa”.
. O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 07.12.2016, processo 7/12.5GAPCV.C1 (disponível em dgsi.pt), de cujo sumário resulta que:
I - O futuro laboral do recorrente, após a sua libertação, sendo certo que se trata de questão de facto suscitada pelo recorrente e cuja resposta, numa das perspectivas admissíveis, pode, eventualmente, relevar para a discussão da pretendida substituição da pena de prisão decretada.
II - Não o tendo o tribunal colectivo considerado, nem provado, nem não provado, o acórdão recorrido padece de omissão de pronúncia e, por isso, da nulidade prevista no art.º 379.º, nº 1, al. c), do CPP.
III - Impõe-se, na sequência da declaração de tal nulidade, que a 1ª instância profira novo acórdão, suprindo-a.
. Ainda o já diversas vezes citado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 10.01.2013, processo 905/05.2JFLSB. L1-9, assim sumariado
 “I - Quando o tribunal não dá como provados ou não provados factos relevantes alegados na acusação, no pedido cível ou na contestação, o vício de que padece é o de nulidade por omissão de pronúncia (art.º 379º/1-c) do CPP) e não o de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art.º 410º/2-a) do CPP);
II – O vício de nulidade por omissão de pronúncia (art.º 379º/1-c) do CPP), como os outros dois previstos nas alíneas a) e b) do mesmo número, podem ser sanadas pelos tribunais que as proferiram, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, mas não pelo tribunal de recurso.
Podendo ainda ler-se neste acórdão:
No sentido de que uma tal omissão constitui o vício de nulidade da sentença, previsto no art.º 379º/1-c) do CPP, parece ter decidido o acórdão do STJ de 14/05/2008, relatado por Maia Costa, in www.gde.mj.pt, processo 08P1130, de cujo sumário citamos: “…I - Numa situação em que o Tribunal da Relação considerou a prova insuficiente relativamente a dois dos crimes pelos quais o arguido foi condenado, absolvendo-o dos mesmos, mas sem que previamente procedesse à fixação (definitiva) dos factos provados e não provados – operação que antecedia a decisão sobre a absolvição do recorrente, pois a decisão em matéria de direito é, no iter decisório, necessariamente subsequente à fixação dos factos –, é nulo o acórdão proferido por aquele Tribunal, por omissão de pronúncia sobre a matéria de facto (art.º 379.º, n.º 1, al. c), do CPP) posta em causa no recurso interposto pelo recorrente, e que à Relação competia estabelecer em definitivo, por força do art.º 428.º do CPP.
(…) Inclinamo-nos, para já, (…) no sentido de que esta patologia constitui o vício de nulidade da sentença por omissão de pronúncia porque, como o último acórdão citado, entendemos que a apreciação das causas de nulidade da sentença tem precedência lógica e legal sobre a averiguação dos vícios da apreciação da prova. Sem sabermos se o tribunal recorrido considera provado ou não provado determinado facto, não podemos determinar se, relativamente a esse facto, há um vício de apreciação da prova.
Por outro lado, só este entendimento é coerente com o de que todos os vícios de apreciação da prova previstos no art.º 410º/2 do CPP têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Na verdade, salvo se na decisão recorrida se reproduzirem a acusação ou a pronúncia e a contestação, o que não é legalmente exigido, nem constitui prática comum, a omissão de decisão sobre se se consideram provados ou não provados factos alegados naquelas peças, não pode resultar do texto da decisão recorrida por si só, sendo necessário recorrer às referidas peças.”

Tudo visto, também nós propendemos para incluir a situação em apareço neste recurso (recordando: a falta de elenco nos “factos provados” e em simultâneo nos “não provados” de factualidade relevante constante da acusação pública) nas nulidades da sentença previstas no art.º 379º, n.º 1, do CPP, pelas seguintes razões:
Primeiro porque da sentença recorrida,  considerada de forma autossuficiente, isto é, encarada só por si, sem recurso neste caso à acusação pública, ainda que conjugada com as regras gerais da experiência comum, não resulta evidente o desacerto.
Dito de outra forma, para concluir pela viciação da decisão recorrida é necessário o seu confronto com a acusação pública, pois só da confrontação das duas peças é possível inferir que o tribunal recorrido deveria ter feito referência, nos “factos provados” ou nos “não provados”, àquela materialidade constante expressamente da acusação pública.
Tal circunstância afasta a aplicabilidade do art.º 410º, n.º 2, al. a), do CPP.
Em segundo lugar porque o conhecimento das nulidades da sentença tem precedência sobre o dos erros-vício.

 Por fim, dentro das nulidades da sentença acima mencionadas, propendemos, por ora, pela verificação da nulidade de falta de enumeração de materialidade relevante constante da acusação pública nos “factos provados” e nos “não provados” (art.ºs 379º, alínea a), e 374º, n.º 2, ambos do CPP), o que, é certo, não deixa de  consubstanciar também uma omissão de pronúncia, porém parece-nos que a “omissão de pronúncia” prevista na alínea c) está mais direcionada para a omissão de apreciação das questões aludidas no art.º 368º, n.º 2, do CPP, e as relacionadas com a determinação da sanção (art.ºs 369º e seguintes do CPP).

Dito isto, as consequências da nulidade da sentença são duas:
Primeiro, a nulidade é sanável, devendo, no caso em concreto, ser suprida pelo tribunal a quo que proferiu a sentença nula, dado que o poder de suprimento pelo Tribunal da Relação não pode conduzir a uma supressão de um grau de jurisdição, o que implica o reenvio do processo para reelaboração de nova sentença, com vista a ser suprimido o vício identificado.
Em segundo, que fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pelo Recorrente, elencadas supra.

III – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em declarar nula a sentença recorrida e determinar a sua substituição por outra em que o vício apontado seja suprido pelo tribunal recorrido.
Sem custas (artigos 513º, nº 1, do CPP).
Notifique e D.N.

Lisboa, 27 de abril de 2023
Madalena Augusta Parreiral Caldeira
António Bráulio Alves Martins
Maria do Carlos Duarte do Vale Calheiros