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PROCEDIMENTO DE INJUNÇÃO
TRANSAÇÃO COMERCIAL
SEGURADORA
NÃO PAGAMENTO DO PRÉMIO
JURISPRUDÊNCIA COMUNITÁRIA
Sumário
I - Nos termos do DL 63/2013 o conceito de transação comercial deve ser interpretado de forma ampla, de acordo com a intenção do legislador comunitário, por forma a restringir a sua aplicação, essencialmente, aos contratos celebrados com consumidores. II - A menção relativa à responsabilidade civil deve entender-se como dizendo respeito à obrigação extra-contratual, conclusão a que se chegaria por mera aplicação do conceito de transacção comercial. III - As decisões comunitárias têm definido esse conceito de transação de forma ampla, incluindo a actividade seguradora. IV - Uma empresa seguradora pode assim utilizar o processo criado por esse diploma, quando a sua causa de pedir é o não pagamento dos prémios devidos pela prestação de serviço.
Texto Integral
Nº 50892/22.5YIPRT.P1
Sumário:
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1. Relatório
A..., S.A. de Seguros Y Reaseguros intentou um REQUERIMENTO DE INJUNÇÃO, na qual alegou, que:
1º A requerente dedica-se à actividade seguradora, designadamente ao ramo dos seguros de crédito.
2º A requerida, por seu lado, é uma empresa que se dedica à confecção de vestuário.
3º No dia 01/09/2019, por escrito consubstanciado na apólice nº ..., os representantes da requerente e da requerida celebraram um contrato de seguro de crédito, através do qual a requerente assumia a indemnização pelos prejuízos que o seu segurado, a ora requerida, sofresse em consequência da falta de pagamento dos seus créditos seguros.
4º Com o referido contrato em vigor a requerida não pagou 2 (dois) recibos de reajuste do prémio de seguro, a seguir discriminados: - Recibo de reajuste do prémio, emitido em 08/10/2020, no valor de 829,73€; -Recibo de reajuste do prémio, emitido em 03/11/2020, no valor de 5.139,87€, ambos relativos à anuidade de 01/09/2019 a 31/08/2020.
5º Por força do referido contrato foram ainda emitidas 9 (nove) liquidações de sinistro a favor da requerida, no valor de 333,50€, a seguir indicadas
Pelo que é credora da requerida pelo montante de 5.636,10, acrescida de despesas e juros.
Citada, veio a ré apresentar oposição arguindo: a) a A INEPTIDÃO DO REQUERIMENTO INICIAL; e b) a INEXISTÊNCIA/INEXIGIBILIDADE DO CRÉDITO RECLAMADO por violação das disposições relativas às cláusulas contratuais gerais.
Após remessa para o Tribunal foi proferido despacho que absolveu a ré do pedido por se entender que o processo de injunção não poderia ser usado com base nessa causa de pedir.
Inconformado veio a autora recorrer, recurso esse que foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo
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2. Foram apresentadas as seguintes conclusões
A) Não decidiu bem o Tribunal “a quo” ao absolver a requerida da instância.
B) A causa de pedir nos presentes autos é a falta de pagamento dos prémios de seguro por parte da requerida e o pedido diz respeito ao valor dos mesmos, ou seja, à contrapartida pelo risco assumido pela requerente.
C) A requerente não alicerça a sua pretensão no direito ao “pagamento da indemnização assumida pela requerente perante o seu segurado”.
D) Os valores mencionados pela requerente no item 5º do requerimento injuntivo constituem uma mera compensação devida à requerida.
E) Não se estão a reclamar nos autos quaisquer pagamentos de indemnizações por responsabilidade civil, incluindo os efectuados por companhias de seguros.
F) O regime processual da injunção é aplicável ao caso em apreço, sendo por isso, o meio processualmente adequado para fazer valer a pretensão da requerente.
G) De qualquer modo, mesmo que se estivesse perante o uso indevido do procedimento de injunção – o que não se concede –, apenas estaríamos perante um erro na forma de processo, pelo que dever-se-iam ter aproveitado todos os actos já praticados.
H) A tramitação dos presentes autos, até ao presente momento, não prejudicou as garantias de defesa da requerida, que até tinha deduzido a sua oposição e poderia ter-se pronunciado sobre os documentos juntos aquando da resposta à oposição.
I) Tendo sido ultrapassada a fase inicial do procedimento injuntivo, ficou precludido o conhecimento das questões que poderiam ter levado à recusa do procedimento de injunção.
J) Não se verifica, pois, a excepção dilatória que o tribunal recorrido julgou procedente.
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2.1. Não foram apresentadas contra-alegações
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3. Questões a decidir
Verificar se está verificada ou não a exclusão de admissibilidade do art. 2º, nº2, al. c), do DL n.º 62/2013, de 10 de Maio.
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4. Motivação de facto
1º A autora alegou no seu requerimento que: dedica-se à actividade seguradora, designadamente ao ramo dos seguros de crédito.
2º A requerida, por seu lado, é uma empresa que se dedica à confecção de vestuário.
3º No dia 01/09/2019, por escrito consubstanciado na apólice nº ..., os representantes da requerente e da requerida celebraram um contrato de seguro de crédito, através do qual a requerente assumia a indemnização pelos prejuízos que o seu segurado, a ora requerida, sofresse em consequência da falta de pagamento dos seus créditos seguros.
4º Com o referido contrato em vigor a requerida não pagou 2 (dois) recibos de reajuste do prémio de seguro, a seguir discriminados: -Recibo de reajuste do prémio, emitido em 08/10/2020, no valor de 829,73€; -Recibo de reajuste do prémio, emitido em 03/11/2020, no valor de 5.139,87€, ambos relativos à anuidade de 01/09/2019 a 31/08/2020.
5º Por força do referido contrato foram ainda emitidas 9 (nove) liquidações de sinistro a favor da requerida, no valor de 333,50€, a seguir indicadas.
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5. Motivação jurídica
Estamos perante um requerimento de injunção.
Esta tramitação processual foi adoptada, pela primeira vez entre nós, pelo DL nº 404/93, de 10.12, cuja redação original dispunha: “para efeitos do presente diploma, considera-se injunção a providência destinada a conferir força executiva ao requerimento destinado a obter o cumprimento efectivo de obrigações pecuniárias decorrentes de contrato cujo valor não exceda metade do valor da alçada do tribunal de 1º instância”.
Mais tarde esse diploma foi alterado pelo DL nº 269/98, de 1.9, dispunha também no art. 1º, que “é aprovado o regime dos procedimentos especiais destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1º instância”.
Surgiu, depois o DL 32/2003 de 17/2, que transpôs a Directiva nº 2000/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho para a ordem jurídica interna, com a finalidade de «combater os atrasos de pagamento nas transacções comerciais» (art 1º).
Este diploma, alargou a possibilidade de recurso às injunções a todos os pagamentos efectuados como remuneração de transacções comerciais (art.2º), e definiu “transacção comercial”(art 3º,al. a), como «qualquer transacção entre empresas, ou entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração», e, “empresa” (art 3º al b)), como«qualquer organização que desenvolva uma actividade económica ou profissional autónoma, mesmo que exercida por pessoa singular».
Depois, o DL n.º 62/2013, de 10 de Maio transpôs também a directiva n.º 2011/7/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 2011.
Nessa versão, aplicável ao caso, ficam excluídas do seu âmbito de aplicação além do mais, Os pagamentos de indemnizações por responsabilidade civil, incluindo os efetuados por companhias de seguros (art. 2º, nº2, al. c).(nosso sublinhado).
Face à letra da lei e ao disposto no art. 9º, do CC é evidente que a posição do tribunal recorrido não possui fundamento literal.
Basta dizer que esta exclusão, no seu sentido literal essa norma diz respeito (apenas e só) a casos fundados em responsabilidade extra-contratual e não transacções comerciais.
Com efeito, a responsabilidade civil integra, em termos amplos, a responsabilidade civil contratual e a extracontratual fundada na violação de normas que impõem deveres de ordem geral e protegem direitos absolutos do lesado.
Pelo que essa referência (que pretende restringir o âmbito da transacção comercial) terá de ser interpretado como referindo-se, apenas a “indemnizações” decorrentes da aplicação das normas dos arts. 483 e segs, do CC).
O que não é o caso, já que a causa de pedir da apelante baseia-se na celebração de um contrato e visa obter o pagamento do prémio de seguro, com emissão de uma factura.
Nessa medida o despacho recorrido confundiu prémio de seguro com indemnização; responsabilidade contratual com extra-contratual e adoptou uma interpretação perante a qual uma seguradora, apenas por o ser, não poderia usar o processo de injunção para cobrar os seus serviços.
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2. Da interpretação sistemática
O conceito de transação comercial, conceito nuclear no referido diploma, continua a ser: “uma transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas destinada ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração (art. 3º, al. b).
Note-se que esta definição continua semelhante à do DL 32/03, de 17 de Fevereiro e mesmo, à do diploma original da injunção.[1]
E, a propósito deste elemento mantém validade as considerações de que:
“A expressão transacção pressupõe a existência de uma relação contratual em moldes, por isso, semelhantes aos já exigidos pelo procedimento de injunção. Desde logo, os arts. (…) consagram expressamente a palavra contrato. Depois, estamos perante um contrato cujo objecto imediato é uma prestação pecuniária ou seja, que consiste numa quantia em dinheiro.. Essa expressão pressupõe que a obrigação prevista no diploma seja uma obrigação pecuniária e não de valor (…) ”[2].
Deste modo, teremos de concluir que a prestação de serviços no âmbito do contrato de seguro constituiu também uma transação, na medida em que constitui um acordo bilateral e oneroso, celebrado, neste caso, entre duas empresas comerciais.
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3. Da interpretação comunitária
As normas comunitários e (por maioria de razão) as nacionais que as transpõem regulam apenas os procedimentos a adoptar no caso de incumprimento não visando regular a disciplina dos contratos[3].
Acresce que, as normas que excluem o âmbito de aplicação, devem ser interpretadas de forma conforme com a intenção legislativa que, neste caso, visa essencialmente impedir a sua aplicação aos contratos celebrados com consumidores.[4]
Porque, o teor literal da directiva excluiu apenas, e de forma facultativa, “Os Estados-Membros podem excluir as dívidas que forem objecto de processos de insolvência ou falência intentados contra o devedor, incluindo os procedimentos destinados a reestruturar a dívida”.[5]
A jurisprudência do TUE nesta matéria é considerável.
Assim o AC de 9.7.2020, processo C-199/19 considerou que o conceito de transação comercial “deve ser interpretada à luz dos considerandos 8 e 9 desta diretiva, dos quais resulta que a mesma visa todos os pagamentos efetuados para remunerar transações comerciais, incluindo as realizadas entre empresas privadas, e com exclusão das transações efetuadas com os consumidores e de outros tipos de pagamentos[6].
Deste o Direito Comunitário consagrou um conceito alargado/amplo de transação comercial.
Do mesmo modo, o conceito de prestação de serviços, “deve ser valorado “através de uma interpretação autónoma e uniforme em toda a União Europeia, tendo em conta as exigências da aplicação uniforme do direito da União associadas ao princípio da igualdade. Estes conceitos constituem, assim, conceitos autónomos do direito da União, cujo alcance não pode ser determinado por referência aos conceitos conhecidos do direito dos Estados-Membros ou das classificações operadas no plano nacional, mas tendo simultaneamente em conta os termos, o contexto e os objetivos da disposição que as prevê”.[7]
E que “o tratado FUE dá ao conceito de «serviço» uma definição ampla, de modo a abarcar qualquer prestação que não esteja abrangida por outras liberdades fundamentais, com a finalidade de não deixar escapar uma atividade económica ao âmbito de aplicação das liberdades fundamentais” [8]
Será com base nestes elementos que teremos de interpretar, se dúvidas houvesse, a restrição nacional à luz do principio da conformidade com o direito comunitário.[9]
Do qual, decorre desde logo a interpretação o mais restrita possível dos obstáculos à aplicação dessas normas às transações entre empresas ou profissionais liberais, por forma a assegurar a aplicação prevalente das normas comunitárias.
Ou seja, em termos práticos, quando estivermos perante transações entre empresas, objecto de factura[10] a regra será a sua inclusão e, apenas em casos limitados, e seguros, é que se aplicará a restrição legal prevista no diploma nacional.
Desde logo, porque, se assim não for restringir-se-ia a aplicação comunitária a todo o sector segurador, ao contrário da clara intenção do legislador comunitário (cfr. considerandos da directiva).
Depois, porque “o pagamento de indemnizações”, não deriva de transacções comerciais, e, em regra, não se encontra titulado por uma factura.
Logo, a razão de ser da regulamentação especial desse diploma (evitar a mora nas transações comercias) não lhe é aplicável.
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4. Conclusão
No caso presente a causa de pedir nos presentes autos é a mera falta de pagamento de prémios de seguro por parte da requerida, e o pedido diz respeito ao valor dos mesmos, ou seja, à contrapartida pelo risco assumido pela requerente.
Estamos assim perante a falta de pagamento de facturas, devidas pela prestação de um serviço, entre duas empresas comerciais sem qualquer ligação com uma obrigação de indemnização extra-contratual.
Logo, é manifesta a procedência da apelação.
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6. Deliberação
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção em julgar a presente apelação procedente por provada e, por via disso, revogar o despacho proferido determinando o prosseguimento dos autos na forma processual escolhida pela apelante.
Sem custas, porque a parte obteve total vencimento.
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Porto em 23.3.23
Paulo Duarte Teixeira
Ana Vieira
António Carneiro da Silva
___________ [1] O art. 3º, al. a), do DL nº 32/2003, definia transacção comercial como “qualquer transacção entre empresas ou entre empresas e entidade públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração”. [2] Paulo Duarte Teixeira, “Os pressupostos objectivos e subjectivos do procedimento de injunção”, Themis, 2006º, 13, pág 169 a 212 [3] Ennio Russo, La Nuova Disciplina dei Ritardi di Pagamento nelle transazioni commerciali, Contratto e Imprensa, 203, p. 445 e segs [4] Considerando 8 da directiva: “O âmbito de aplicação do presente directiva deverá limitar-se aos pagamentos efectuados para remunerar transacções comerciais. A presente directiva não deverá regulamentar as transacções com os consumidores, os juros relativos a outros pagamentos, como por exemplo os pagamentos efectuados nos termos da legislação em matéria de cheques ou de letras de câmbio, ou os pagamentos efectuados a título de indemnização por perdas e danos, incluindo os efectuados por companhias de seguros. Os Estados-Membros deverão também ter a possibilidade de excluir as dívidas que forem objecto de processos de insolvência, incluindo processos destinados à reestruturação da dívida. [5] Art. 1º, nº3, da directiva consultada em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX %3A32011L0007&qid=1678125824380 [6] Nos termos já decididos pelos Acs de 28 de novembro de 2019 KROL, C 722/18, EU:C:2019:1028, n. 31. [7] Para além do já citado, Acórdão de 29 de setembro de 2015, Gmina Wrocław, C 276/14, EU:C:2015:635, n. 25. [8] cfr. Acórdão de 3 de outubro de 2006, Fidium Finanz, C‑452/04, EU:C:2006:631, n. 32. Nos mesmos termos o recente Ac de 1.12.22, processo nº C-419/21 que decidiu: “a utilização da expressão «qualquer transação» evidencia que o conceito de «transações comerciais», como foi recordado no n. 20 do presente acórdão, deve ser entendido em sentido amplo e, por conseguinte, não coincide necessariamente com o conceito de «contrato». Esta disposição estabelece duas condições para que uma transação possa ser qualificada de «transação comercial». Esta transação deve, por um lado, ser efetuada entre empresas ou entre empresas e entidades públicas. Por outro lado, deve conduzir ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra remuneração. [9] Comes Canotilho e Suzana Tavares da Silva, Metódica Multinível (…), RLJ, nº 395, pág. 184 Alessandra Silveira in “Princípios de Direito da União Europeia” – Doutrina e Jurisprudência, ed. Quid Juris, ed. 2009, p. 95;. e Ac. STJ de 27.11.2018, nº 46/13.9TBGLG.E1.S1 (Cabral Tavares). Ac da RP de 14.12.2017, nº 2872/15.5T8PNF.P1 (Fátima Tavares). [10] Segundo os motivos da directiva: "(2) A maior parte dos bens e serviços é fornecida no mercado interno por operadores económicos a outros operadores económicos e a entidades públicas em regime de pagamentos diferidos, em que o fornecedor dá ao cliente tempo para pagar a factura, conforme acordado entre as partes, ou de acordo com as condições expressas na factura do fornecedor ou ainda nos termos da lei”.