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PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO (PEAP)
HOMOLOGAÇÃO DO ACORDO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Sumário
I - O Processo Especial Para Acordo de Pagamentos (abreviadamente PEAP) é um processo especial autónomo, regulado pelos artigos 222º-A a 222º-J, aditados ao CIRE pelo DL 79/2017, de 30/6, que veio facultar às pessoas singulares um processo idêntico ao Processo Especial de Revitalização (abreviadamente PER, regulado pelos artigos 17º-A a 17º-J, do CIRE, com alterações introduzidas pelo referido DL), este deixado para as empresas. II - É um instrumento pré-insolvêncial de natureza hibrida (uma parte extrajudicial e outra judicial) que visa proporcionar ao devedor um acordo de pagamentos com os seus credores, tendente a evitar a declaração de insolvência e os seus efeitos, através da reestruturação da dívida. Tem como pressuposto que o devedor se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente (arts. 222º-A, nº1, 222º-B e 3º, nº4, do CIRE), embora se não exija a demonstração de suscetibilidade de recuperação. III - Sendo dotado de regulamentação específica, à aprovação e homologação do acordo de pagamentos têm aplicação subsidiaria as normas referentes à aprovação e homologação do plano de insolvência - compreendidas nos arts. 209.º a 216.º CIRE -, o que decorre do estatuído no nº5, do art. 222º-F, de tal diploma (que consagra que apresentado o acordo de pagamento e votado pelos credores - cujos créditos foram por ele modificados -, segue-se decisão do juiz de homologação ou não homologação, a que são aplicáveis as regras relativas à aprovação e homologação do plano de insolvência, previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º, com as devidas adaptações). IV - No exercício do poder-dever de controlar a legalidade do acordo de pagamento aprovado pelos credores, deve o juiz, mesmo oficiosamente, recusar a homologação quando ocorra violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza (art. 215º, do CIRE). V - Não integrando violação não negligenciável de normas, designadamente das aplicáveis ao conteúdo do acordo, como as que impõem a observância do princípio da igualdade, tratamento diferente de situações objetivamente diversas, já as integra tratamento diferente dado a situações objetivamente iguais ou similares (v. art. 194º, do CIRE), sendo de recusar a homologação do acordo de pagamento quando, para créditos da mesma natureza, esteja previsto diverso pagamento prestacional, com maior protelar no tempo do pagamento de alguns deles, mesmo que os de importâncias inferiores, e esteja previsto perdão de juros numa situação e não em outra, igualmente se verificando ofensa a tal princípio quando para um crédito subordinado (o do pai do requerente/apelante) esteja previsto o tratamento dado aos créditos comuns, cabendo recusar a homologação.
Texto Integral
Apelação nº 2952/21.8T8OAZ.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo de Comércio de Oliveira de Azeméis - Juiz 2
Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: Teresa Maria Sena Fonseca
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto
Sumário(cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO
Recorrentes: AA e BB
AA e BB, vieram instaurar o presente processo especial para acordo de pagamento alegando, em síntese, encontrarem-se em situação económica difícil, mas ainda em situação de recuperação, e manifestando a sua vontade em estabelecer negociações com os seus credores, de modo a concluir com estes um acordo de pagamento.
Foi proferido o despacho previsto no artigo 222º-C, n.º 4 do CIRE.
A Sr. A.J.P. elaborou e juntou aos autos lista provisória de créditos.
Foram deduzidas impugnações, já decididas.
Nos termos previstos no artigo 222º-F, n.º 2 do CIRE, os requerentes remeteram ao Tribunal a versão final do acordo de pagamento (refª 41270432).
Foi o acordo publicitado através do portal CITIUS.
Comunicou a Sr. A.J.P. o resultado da votação:
- as declarações de voto expressamente emitidas representam 91,37% do total de créditos com direito de voto;
- os votos favoráveis representam 84,81% do total de créditos com direito de voto;
- os votos contra representam 6,56% do total de créditos com direito de voto.
- ao crédito de CC, de natureza subordinada, corresponde a 19,64% dos créditos com direito de voto.
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Foi proferida sentença com a seguinte parte dispositiva: “Pelo exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 194º, 215º e 222º-F, n.º 5, todos do CIRE, decide-se recusar a homologação do acordo de pagamento aprovado nestes autos. Registe e notifique. Custas pelos devedores – cfr. art. 222º-F, n.º 9 do CIRE. Valor – o da alçada do Tribunal da Relação - cfr. artigo 301º do CIRE”.
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Os Requerentes, não conformados, apresentaram recurso de apelação da sentença que recusou a homologação do acordo de pagamento aprovado, pretendendo seja a mesma revogada e substituída por outra que determine a homologação do plano, apresentando, para tanto, “Alegações” de recurso com as seguintes, aperfeiçoadas, “Conclusões”: 1) Os Recorrentes não concordam com a Sentença de recusa da homologação do Acordo de Pagamento, por entender que o Tribunal não considerou os factos constantes dos autos, não fez uma correta aplicação do direito, pelo que deverá a mesma ser revogada e substituída por outra que determine a homologação do plano. 2) A proposta de plano de pagamento não ofende as normas imperativas e a não homologação do plano colocaria os credores numa situação pior em caso de insolvência, pois os credores comuns não seriam ressarcidos. 3) O princípio da igualdade dos credores, consagrado no art.º 194.º do CIRE, embora imperativo, não pode ser visto em termos absolutos, pois não impõe sempre uma identidade de tratamento entre créditos com idêntica classificação (podendo existir diferenciações em função de concretas circunstâncias), nem implica toda e qualquer solução de tratamento diferenciado entre créditos de natureza diversa, implicando uma avaliação da proporcionalidade, adequação e razoabilidade. 4) No que respeita ao primeiro fundamento invocado pelo Tribunal ad quo para recusa do plano (quanto à previsão dos créditos de natureza comuns e pagamento integral do crédito ao Banco 1..., incluindo juros e perdão de juros quanto aos demais credores), os Recorrentes estabeleceram apenas a previsão de perdão dos juros reclamados e constantes da Lista de Créditos Reconhecidos (daí a referência no plano à expressão “juros reclamados”) e quanto ao Banco 1..., não constando da Lista a existência de juros reclamados, os Recorrentes não estabeleceram essa previsão. 5) Na Lista de Créditos Reconhecidos, consta que o crédito reconhecido, no valor de 8.899,17€ ao Banco 1... foi reconhecido a título de capital (não constando o reconhecimento de juros), não sendo os mesmos obrigados a supor algo que não consta da Lista e que não foi reconhecido pela Sra. AJP. 6) A previsão de perdão de juros reclamados quanto a alguns credores não viola o princípio da igualdade, nem se mostra excessiva, desproporcionada ou desrazoável, atento o valor irrisório destes e o facto de não haver qualquer previsão de redução do capital da totalidade dos credores comuns. 7) O crédito do Banco 1... é proveniente de contrato de mútuo e resulta de um processo executivo instaurado, onde ocorreu penhoras aos Recorrentes. 8) Não existe violação do princípio da igualdade, pois consta expresso no plano que o eventual tratamento diferencial dos credores, dos créditos tributários, das instituições financeiras, comparativamente aos demais credores resulta da natureza dos respetivos créditos, do escopo prosseguido por essas instituições e do valor dos créditos. 9) No que se refere ao segundo fundamento invocado pelo Tribunal ad quo (previsão no plano de uma diferenciação para os créditos que são superiores ou inferiores a € 1.000,00, com previsão de pagamento até 90 e 120 prestações), não ocorre violação do principio da igualdade, pelos seguintes motivos: quase totalidade dos créditos reclamados se refere a créditos comuns, a diferenciação é necessária de molde aos Recorrentes conseguirem proceder ao pagamento das prestações mensais razoáveis face aos seus rendimentos mensais equivalentes ao SMN e o seu agregado familiar constituído por três filhos, com nove, sete e dois anos de idade. 10) As diferenciações aludidas não estabelecem uma desigualdade de tratamento entre credores que seja manifestamente desproporcionada, excessiva ou desrazoável e, assim, deve-se considerar que as mesmas respeitam o princípio da igualdade, sob a perspetiva do princípio da proporcionalidade. 11) No que se refere ao terceiro fundamento invocado pelo Tribunal ad quo (pagamento do crédito de natureza subordinada nos mesmos moldes dos créditos comuns), os Recorrentes não concordam com a decisão, pois na Lista de Créditos Reconhecidos (onde se basearam para fazer o plano) o crédito de CC foi reconhecido como comum e não como subordinado. 12) Na sindicância da observância do princípio da proporcionalidade e da eventual diferenciação dos credores, a lei deixa aos credores a decisão sobre o destino do processo (o plano foi aprovado por grande maioria dos credores de 84,81%), e o objetivo que norteia este processo é evitar a insolvência dos Recorrentes. 13) Nesta medida entende-se não haver, na referida diferenciação, uma patente e manifesta violação do princípio da igualdade, sob a perspetiva do princípio da proporcionalidade, pelo que em face de tudo o até aqui exposto, conclui-se que o Acordo de Pagamento também não viola o disposto no art.º 194º do CIRE e, por isso, a apelação deve proceder – o que ora se requer”.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS - OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil. Assim, as questãões a decidir são as seguintes: 1- Do meio processual utilizado: o Processo Especial para acordo de pagamento (PEAP) e seu específico regime; 2- Da verificação ou não do fundamento de não homologação do Acordo de pagamentosfirmado no âmbito do PEAP, ou seja se o “Acordo de Pagamento” viola o princípio da igualdade entre credores.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO 1. FACTOS PROVADOS
Os factos relevantes para a decisão, vicissitudes processuais, constam já do relatório que antecede, mais se acrescentando que decidido se mostra nos autos que resulta da certidão de nascimento de BB que o credor CC é Pai do Requerente BB e, por isso, o crédito daquele é um crédito subordinado – cfr. arts. 48º e 49º n.º 1 al. b) do CIRE.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO 1º- Do Processo Especial para acordo de pagamento (PEAP)
Tendo o legislador decidido restringir a aplicação do processo especial de revitalização às empresas, criou um outro processo, especial e autónomo, destinado às pessoas singulares. Alterou os preceitos que regulam o Processo especial de revitalização – arts 17º-A e segs - e aditou ao CIRE os artigos 222º-A a 222º-J pelo DL 79/2017, de 30/6, que entrou em vigor no dia 1 de julho de 2017 (v. o seu art. 8º), criando um outro processo especial – o Processo Especial para Acordo de Pagamentos (PEAP).
Trata-se, na verdade, de um processo especial, como a própria lei o assume, e novo, sendo que “Em consequência da desnecessária restrição do processo especial de revitalização às empresas, viu-se o legislador obrigado a criar um novo processo de recuperação para as entidades sem natureza empresarial, denominado processo especial para acordo de pagamento (PEAP), totalmente moldado sobre o regime daquele, às vezes com reprodução quase integral dos preceitos relativos ao PER. É assim que este artigo é muito semelhante ao art. 17º-A. Melhor seria, por isso, ter deixado o processo de revitalização aplicar-se aos devedores não empresariais, o que era aliás a doutrina maioritária, evitando assim uma desnecessária duplicação de processos.
Conforme salientam Ana Alves Leal/Cláudia Trindade, RDS IX (2017), 1, pág 80, o elemento distintivo essencial entre o PER e o PEAP “não é só o facto de o PER se destinar a devedores empresários é o facto de também pressupor a recuperabilidade destes, diversamente do que sucede no regime do PEAP” (sublinhado e negrito nosso). Efectivamente, não se encontra neste artigo qualquer referência à susceptibilidade de recuperação, prevista no art. 17º-A, nº1, nem se prevê a aprovação de qualquer plano de recuperação, mas apenas de um acordo de pagamentos. Por esse motivo, também não se exige que o devedor obtenha uma certificação de que não se encontra em situação de insolvência actual, ao contrário do que está previsto para o PER”[1].
Pondo termo a intensa discussão doutrinária[2], o referido diploma regulou a matéria, resultando agora do referido nº1 que apenas podem recorrer ao processo especial de revitalização as empresas, independentemente de serem pessoas singulares ou coletivas, não tendo deste modo acesso ao PER o devedor que não seja empresário, o qual tem que recorrer ao processo especial para acordo de pagamento (arts 222º-A e ss.). O processo especial para acordo de pagamento destina-se às pessoas que não podem recorrer ao PER, uma vez que, mesmo estando em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, não são titulares de uma empresa[3].
Analisando os “Pressupostos legais” do processo especial para acordo de pagamento e a tramitação processual deste processo autónomo refere Menezes Leitão “Ao contrário do que sucede com o PER, ao qual apenas podem recorrer as empresas, independentemente de serem pessoas singulares ou coletivas (art. 17º-A, nº2, CIRE, o PEAP é restrito aos devedores não empresários, pelo que apenas eles têm acesso a este processo (art. 222º-A, nº1).
A lei refere que o PEAP pode ser usado pelo devedor que se encontre em situação económica difícil (art. 222º-B) ou em situação de insolvência meramente iminente (art.3º, nº4), não se exigindo no PEAP, ao contrário do que o art. 17º-A, nº1, refere para o PER que o devedor ainda seja suscetível de recuperação. Tirando essa referência, os pressupostos do PEAP da situação económica difícil e de insolvência meramente iminente são absolutamente idênticos aos do PER, sendo estranhamente repetida no art. 222º-B a definição prevista no art. 17º-B, apenas se substituindo “empresa” por “devedor”.
Também à semelhança do que sucede no PER (art. 17º-A, nº2), prevê-se igualmente no PEAP a entrega pelo devedor de uma declaração escrita e assinada que ateste que preenche os requisitos legais para esse acesso, ou seja de que se encontra em situação económica difícil ou insolvência meramente iminente (art. 222º-A, nº2). Neste caso, no entanto, já não se estabelece a necessidade de que seja atestado que o devedor não se encontra em situação de insolvência efectiva, o que pode ser igualmente explicado por a suseceptibilidade de recuperação ser uma exigência estranha ao PEAP”[4].
E analisando a tramitação específica deste processo especial verifica-se que a homologação do acordo de pagamento impede o devedor de recorrer ao mesmo processo pelo prazo de dois anos e se o devedor não se encontrar em situação de insolvência, o encerramento do processo especial para acordo de pagamentos acarreta que o devedor perde a possibilidade de voltar a recorrer ao processo especial de revitalização por um período de dois anos – nº7, do art. 222º-G[5].
Em ordem a evitar o recurso sucessivo ao processo especial por parte dos devedores, o nº7 determina que o termo do mesmo de harmonia com os números anteriores impede o devedor de a ele recorrer pelo referido prazo[6].
O termo do PEAP que ocorra por não aprovação do acordo nos termos referidos no art. 222º-G, nº1, ou por desistência das negociações (cfr. art. 222º-G, nº6) impede o devedor de recorrer a novo PEAP pelo mencionado prazo (cfr. referido nº7). Reencontra-se aqui o efeito de “quarentena” (impossibilidade de recorrer ao PEAP pelo prazo de dois anos) de que se falou atrás, a propósito do PER[7].
Pelo cotejo entre os preceitos que regem sobre o PER e o PEAP assente está que o principal elemento que os distingue é o de que a ideia de recuperação do devedor está ausente do PEAP e basta atentarmos na respetiva tramitação para concluirmos pelas grandes semelhanças que devem levar a considerar que, os demais princípios àquele processo especial aplicáveis, e cuja densificação a doutrina e a jurisprudência têm vindo a efetuar, encontram acolhimento neste[8].
Escreve-se no referido Acórdão “a finalidade do processo de insolvência que vem plasmada no artigo 1.º, n.º 1, do CIRE, de acordo com o qual aquela se reconduz à satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência baseado na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores. Igualmente no âmbito do PER verificamos que o legislador não teve em mente apenas o interesse da recuperação do devedor, compatibilizando-o com o interesse dos credores, de cuja manifestação de vontade, faz depender o juízo sobre a ponderação do referido interesse individual relativamente ao colectivo, sempre num quadro pautado pelos princípios anunciados logo na exposição de motivos da Lei que introduziu aquele processo especial, avultando para o caso em apreço desde logo o princípio nono ali enunciado de acordo com o qual as propostas apresentadas e os acordos realizados durante o procedimento, incluindo aqueles que apenas envolvam os credores, devem reflectir a lei vigente e a posição relativa de cada credor. Ou seja, o legislador não coloca integralmente «nas mãos» do devedor e dos credores o conteúdo dos acordos, impondo que estes sejam alcançados reflectindo a lei vigente e a posição relativa de cada credor. Ora, conforme já dissemos acima, existe uma quase identidade entre o PER e o PEAP, salvo quanto à ideia de recuperação do devedor que está ausente do PEAP, o qual visa apenas que o devedor estabeleça negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento” (negrito nosso).
Escreve-se no Acórdão da Relação de Coimbra de 2/8/2017 “Apesar da letra da lei não o distinguir, o seu espírito tem subjacente a revitalização da atividade económica do devedor, entendido como agente económico, como organizador de capital e trabalho, visando o exercício de uma atividade económica. A principal motivação da criação do processo de revitalização foi, como expresso na sua exposição de motivos, “a manutenção do devedor no giro comercial” e “o combate ao desaparecimento de agentes económicos, visto que cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas”[9].
Sendo o PEAP um processo de natureza híbrida, pois parte da sua tramitação é extrajudicial (no decurso das negociações) e outra parte é judicial, é essencialmente, um processo negocial, tendente à obtenção de um acordo de pagamento que possibilite ao devedor fazer face às suas obrigações, decorrendo primordialmente entre o devedor e os seus credores, com a intervenção do Administrador Judicial Provisório, nomeado pelo Tribunal.
De um novo processo especial se trata, a reger-se por normas adjetivas próprias, não podendo ser aplicadas in casu, sem mais, normas específicas de um outro processo especial, tendo cada um destes processos a sua disciplina própria, autónoma, específica.
E como bem se analisa no Ac. desta Relação de 25/1/2021, proc. 1027/20.1T8VNG.P1, cuja Relatora foi a ora 1ª adjunta, “Tal como no PER, também no PEAP se levanta a questão de saber se e que regras reguladoras do processo de insolvência são aplicáveis a estes processos pré-insolvenciais quando se revele ausente a disciplina própria destes. A este respeito, diz-se que deve acompanhar-se “de perto o que tem sido a posição dominante nessa matéria relativamente ao regime do PER: globalmente consideradas, as normas do plano de insolvência são, por via analógica, as melhores candidatas à regulação de casos omissos em sede pré-insolvencial, designadamente, no que respeita aos requisitos do conteúdo do acordo, de votação, aprovação, homologação e efeito do acordo” (…) Quanto ao PEAP (…) torna-se claro que, naquilo que seja atinente ao acordo, o melhor candidato a uma aplicação analógica é, em abstrato, o regime do plano de pagamentos aos credores. De resto, também em abstrato, reclamar-se-á, em segundo grau, a aplicação das normas do plano de insolvência a casos omissos do regime do PEAP (também elas aplicáveis a casos omissos do regime do plano de pagamento a credores)”[3]. E no caso do acordo de pagamento no PEAP? Aplica-se analogicamente, em abstrato, o regime de plano de pagamentos aos credores? Afigura-se-nos que, em abstrato se aplicam subsidiariamente as normas do plano de insolvência, conforme demonstram as variadas remissões que se encontram no art. 222º-F, n. ºs 2, 4, 5 e 10, e a aplicação das disposições introdutórias gerais dos arts. 1º a 16º”.
Tal novo processo especial destina-se, efetivamente, a permitir ao devedor que não sendo empresa e comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente eminente, estabelecer negociações com os credores de modo a concluir, com estes, acordo de pagamento, que se desejaassente num plano viável e credível[10].
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2º-Da violação do princípio da igualdade entre credores.
Recusou o Tribunal a quo a homologação do Acordo de pagamento dada a violação não negligenciável de normas aplicáveis ao conteúdo do plano, que impedem a homologação, entendendo terem sido tratados créditos de forma diferente de outros da mesma natureza, com violação do princípio da igualdade entre credores.
Contra a sentença que recusou a homologação do Acordo de pagamento insurgem-se os requerentes/apelantes considerando dever ser homologado por o princípio da igualdade não ser absoluto e não ter sido flagrante a violação tendo sido respeitado o princípio da proporcionalidade.
Conhecendo do objeto do recurso, cumpre referir que o PEAP visa, como decorre do nº1, do art. 222º-A, do CIRE, permitir ao devedor a obtenção de um acordo com os seus credores no sentido de serem estabelecidos os termos da liquidação das dívidas existentes, desde que aquele se encontre numa situação económica difícil ou numa situação de insolvência iminente, verificando-se esta situação quando o devedor enfrenta dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por falta de liquidez ou por não conseguir crédito (art. 222-B do CIRE)[11], manifesta e pacificamente, o caso dos autos.
Refere-se no mencionado Acórdão, da RP de 15/11/2018. “insolvência iminente, não vindo definida no CIRE, abrangerá a situação em que o devedor – no caso de ser pessoa singular não titular de empresa – se encontra próximo de enfrentar uma impossibilidade de cumprir com as suas obrigações – v., neste sentido, A. Prata, J. Morais e R. Simões, in “CIRE Anotado”, págs. 24 e 54” e “adianta Luís M. Martins que: “o conceito de insolvência iminente é aberto e indefinido, implicando uma análise concreta da situação do devedor (tipo de obrigações que se vão vencer, incapacidade de recurso a crédito …). Esta situação passa sempre por uma previsão futura sobre a insuficiência económica e sua incapacidade de, a curto prazo, vir a realizar e honrar as obrigações assumidas e ainda não vencidas.
A situação de insolvência iminente é conjecturada quando o devedor, de acordo com os critérios do homem comum ou um gestor criterioso e empenhado, sabe e não pode desconhecer que não conseguirá ir a honrar as obrigações assumidas a curto prazo … Em bom rigor, estar numa situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente, acaba por ser a mesma coisa e com a mesma abrangência. Se tem dificuldades sérias em cumprir pontualmente as suas obrigações, acaba por se encontrar em situação de insolvência iminente …” – in “Recuperação de Pessoas Singulares”, Vol. I, 2.ª ed., págs. 20 a 21.
Catarina Serra, fazendo alusão aos pressupostos do “PEAP”, adianta que este processo, tal como o “PER”, se trata dum processo pré-insolvencial, a implicar necessariamente que o devedor, para poder desencadear esse procedimento, se encontre numa situação económica difícil ou de insolvência iminente – in “Lições de Direito da Insolvência”, págs. 584 a 585””.
Analisemos, mais detalhadamente, o regime aplicável, a que o caso se subsume.
Na verdade, estatui o Art. 222º-A, do CIRE, a “Finalidade e natureza do processo especial para acordo de pagamento”, consagrando:
“1 - O processo especial para acordo de pagamento destina-se a permitir ao devedor que, não sendo uma empresa e comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento. 2 - O processo referido no número anterior pode ser utilizado por qualquer devedor que, preenchendo os requisitos ali previstos, o ateste, mediante declaração escrita e assinada. 3 - O processo especial para acordo de pagamento tem caráter urgente, aplicando-se-lhe todas as regras previstas no presente Código que não sejam incompatíveis com a sua natureza”.
E regulando o art. 222º-C “Requerimento e formalidades” e o art. 222º-D a “Tramitação subsequente”, o artigo 222º-E, consagra “Efeitos”[12].
O art 222º-F, do CIRE, com a epígrafe “Conclusão das negociações com a aprovação de acordo de pagamento”, consagra: 1 - Concluindo-se as negociações com a aprovação unânime de acordo de pagamento, em que intervenham todos os seus credores, este deve ser assinado por todos, sendo de imediato remetido ao processo, para homologação ou recusa do mesmo pelo juiz, acompanhado da documentação que comprova a sua aprovação, atestada pelo administrador judicial provisório nomeado, produzindo tal acordo de pagamento, em caso de homologação, de imediato, os seus efeitos. 2 - Concluindo-se as negociações com a aprovação de acordo de pagamento, sem observância do disposto no número anterior, o devedor remete-o ao tribunal, sendo de imediato publicado anúncio no portal Citius advertindo da junção do plano e correndo desde a publicação o prazo de votação de 10 dias, no decurso do qual qualquer interessado pode solicitar a não homologação do plano, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 215.º e 216.º, com as devidas adaptações. 3 - Sem prejuízo de o juiz poder computar no cálculo das maiorias os créditos que tenham sido impugnados se entender que há probabilidade séria de estes serem reconhecidos, considera-se aprovado o acordo de pagamento que: a) Sendo votado por credores cujos créditos representem, pelo menos, um terço do total dos créditos relacionados com direito de voto, contidos na lista de créditos a que se referem os n.os 3 e 4 do artigo 222.º-D, recolha o voto favorável de mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções; ou b) Recolha o voto favorável de credores cujos créditos representem mais de metade da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto, calculados de harmonia com o disposto na alínea anterior, e mais de metade destes votos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções. 4 - A votação efetua-se por escrito, aplicando-se-lhe o disposto no artigo 211.º com as necessárias adaptações e sendo os votos remetidos ao administrador judicial provisório, que os abre em conjunto com o devedor e elabora um documento com o resultado da votação, que remete de imediato ao tribunal. 5 - O juiz decide se deve homologar o acordo de pagamento ou recusar a sua homologação, nos 10 dias seguintes à receção da documentação mencionada nos números anteriores, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º (….)”.
A homologação do acordo e a sua não homologação estão especialmente previstas no artigo 222º-F, sendo-lhe, ainda, aplicáveis “as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216º”, aplicação esta que cumpre efetuar por força do nº5, daquele artigo (222º-F).
Neste conspecto, sendo as “negociações concluídas com a aprovação do acordo de pagamento, mas não se verificando essa aprovação unânime dos credores, o devedor remete-o ao tribunal, o qual procede à publicação de anúncio no portal citius advertindo dessa junção, após o que corre o prazo de votação de 10 dias, no decurso do qual qualquer interessado pode solicitar a não homologação do acordo (art. 222º-F, nº2). (…) O plano considera-se aprovado desde que reúna uma das seguintes votações (art. 222º-F, nº3):
a) Sendo votado por credores cujos créditos representem, pelo menos, um terço do total dos créditos relacionados com direito de voto, contidos na lista de créditos a que se referem os nos 3 e 4 do artigo 222º-D, recolha o voto favorável de mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos corresponda a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções ou
b) Recolha o voto favorável de credores cujos créditos representem mais de metade da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto, calculados de harmonia com o disposto na alínea anterior, e mais de metade desses votos corresponda a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções.
O juiz pode, no entanto, computar os créditos que tenham sido impugnados se considerar que existe probabilidade séria de os mesmos serem reconhecidos, caso a questão ainda não tenha sido decidida (art. 222º-F, nº3, proémio)”[13].
Assim, no caso de o acordo ter sido aprovado mas sem a concordância de todos os credores, qualquer interessado pode solicitar a não homologação, nos termos e para os efeitos dos arts. 215º e 216º, aplicáveis com as adaptações necessárias, decidindo o juiz (art. 222º-F, nº5) se deve ou não homologar o referido plano, podendo recusar a sua homologação oficiosamente (nos termos do art. 215º) ou a requerimento de qualquer interessado (art. 216º).
“A não homologação oficiosa deve ocorrer no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação (art. 215º).
Já a não homologação a pedido dos interessados ocorre se tal for solicitado”[14], podendo sê-lo por um credor cuja oposição haja sido comunicada anteriormente à aprovação de plano de recuperação. “Exige-se, no entanto, que o requerente demonstre em termos plausíveis, em alternativa, que:
a) a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas;
b) O plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar (art. 216º, nº1)”[15].
“A jurisprudência tem, no entanto, considerado igualmente aplicável ao processo de revitalização, por força do art. 17º-F, o regime do art. 194º CIRE, podendo assim o plano estabelecer diferenciações entre os credores, fundadas em razões objetivas, designadamente no objetivo de obter a revitalização do devedor”[16].
O mesmo se diga em relação ao acordo de pagamentos, no PEAP, sendo este preceito aplicável por força do nº5, do art. 222º-F.
Uma das razões objetivas que pode justificar tal diferenciação é o facto de haver créditos garantidos que não podem receber um tratamento mais desfavorável que os créditos comuns, dada a existência da garantia de que beneficiam.
Assim, “Apresentado o acordo de pagamento e votado pelos credores compete ao juiz decidir se o homologa, ou não, sendo aplicáveis as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, com as necessárias adaptações” e “No controlo da legalidade do acordo de pagamento aprovado pelos credores deve o juiz recusar, mesmo ex officio, a sua homologaçãoquando, nos termos do citado artigo 215º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, ocorrer violação não negligenciável de regras procedimentais, ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza”[17] (negrito nosso).
A sentença homologatória que seja proferida vincula os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações.
Apreciando da existência de fundamentos para a rejeição do plano aprovado, nos termos conjugados do disposto nos artigos 215º e 216º do CIRE, por remissão do vertido no artigo 222º-F, n.º 5 do mesmo código, recusou o Tribunal a quo a homologação do acordo de pagamento aprovado nestes autos exarando:
“Estabelece o art. 215º do CIRE que “o juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação.” Conforme refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11-10-2017, Proc. 6/17.0T8GRD-A.C1, in www.dgsi.pt: “Tal como referido, o juiz pode/deve recusar a homologação do plano sempre que constate a existência de uma violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo. A violação de regras procedimentais corresponde a um vício de natureza formal consubstanciado na violação de uma regra ou norma que regula o formalismo que deve ser observado no processo e as formalidades a que deve obedecer o plano de recuperação/vitalização apresentado. Como referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda[1], as normas procedimentais são “…todas aquelas que regem a actuação a desenvolver no processo, que incluem os passos que nele devem ser dados até que a assembleia de credores decida sobre as propostas que lhe foram presentes – incluindo, por isso, as relativas à sua própria convocatória e funcionamento – e, bem assim, as relativas ao modo como ele deve ser elaborado e apresentado” e incluindo também as regras que determinam o modo como devem ser encetadas e conduzidas as negociações entre o devedor e os respectivos credores. A violação de normas aplicáveis ao conteúdo do plano corresponderá, por seu turno, a um vício de natureza substantiva ou material consubstanciado na violação de uma regra, norma ou princípio que regula directamente o conteúdo do plano, incluindo – como referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda[2] - não só as que respeitam à parte dispositiva do plano, mas também “…aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deve contemplar”. Mas, como sabemos, só as violações não negligenciáveis dessas normas poderão motivar a recusa de homologação do plano e, portanto, importa, antes de mais, precisar esse conceito. A violação de normas procedimentais corresponde, em bom rigor, a uma irregularidade processual que se consubstancia no facto de ter sido praticado um acto que a lei não admite ou de ter sido omitido um acto ou formalidade prescrito na lei e, nessa medida, o critério para apurar se tal violação é (ou não) negligenciável deve ser semelhante ao critério adoptado no artigo 195º do CPC com vista a determinar se a irregularidade tem aptidão necessária para produzir nulidade. Dessa forma, a violação dessas normas será não negligenciável sempre que possa afectar e influir no exame ou na decisão da causa, o que, no âmbito do processo de revitalização, equivale a dizer que tal violação será não negligenciável sempre que ela seja susceptível de afectar, de forma relevante, o processo negocial e o resultado que com ele se pretende atingir: a conclusão de um acordo entre o devedor e os seus credores em resultado das negociações entre eles estabelecidas. A violação de normas referentes ao conteúdo do plano prende-se com a substância do plano de recuperação (aquilo que ele contém ou deve conter) e, portanto, essa violação será não negligenciável sempre que tal se deva concluir por aplicação do critério supra mencionado (quando se revele aplicável) e, de um modo geral, sempre que ela acarrete um resultado que a lei não permite, seja porque o conteúdo do plano viola disposições legais de carácter imperativo, seja porque viola regras legais que, apesar de não serem imperativas, visam tutelar e proteger determinados direitos sem que os respectivos titulares tivessem consentido ou renunciado à tutela que a lei lhes confere. A violação dessas normas será, portanto, não negligenciável sempre que ela possa afectar/prejudicar a salvaguarda dos interesses – sejam eles do devedor ou dos credores – que sejam dignos de protecção legal.” Já no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 27-06-2017, Proc. 8389/16.3T8CBR.C1, in www.dgsi.pt, escreve-se o seguinte: “Muito embora a lei não o defina, vem constituindo entendimento prevalecente entre nós (na doutrina e jurisprudência) que as regras procedimentais são aquelas que visam regular a forma como deverá desenrolar-se o processo, enquanto que as segundas (as normas de conteúdo) se reportarão ao dispositivo do plano de revitalização, bem como aos princípios que lhe devam estar subjacentes. Ou seja, as primeiras “são todas aquelas que regem a atuação a desenvolver no processo, que incluem os passos procedimentais que nele devem ser dados até que os credores decidam sobre as propostas que lhes foram apresentadas – incluindo, assim, as regras que disciplinam as negociações a encetar entre os credores e o devedor e as regras que regulam a aprovação e votação do plano – e, bem assim, as relativas ao modo como o plano deve ser elaborado e apresentado”, enquanto que as segundas (as normas de conteúdo), serão todas as respeitantes à parte dispositiva do plano, mas além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente”. Por outro lado, muito embora o legislador tenha omitido também aqui a definição sobre o conceito de normas não negligenciáveis, constitui igualmente entendimento prevalecente que revestem tal natureza todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza, todas as normas que interfiram com a justa salvaguarda dos interesses/posições dos credores, diversamente se verificando quanto às infrações que afetem tão só as regras de tutela particular, que podem ser afastadas com o consentimento do protegido, sem deixar de atender, por razoável, o critério geral utilizado pela própria lei processual no artº. 195º do CPC. (Sobre esta temática, e em tal sentido, vide, entre outos, e para maior desenvolvimento, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª. Ed., Quid Juris, págs. 826/827”; Filipa Gonçalves, in “Estudos de Direito da Insolvência, coordenação de Mª. do Rosário Epifânio – O Processo Especial de Revitalização, pág. 81”; Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis, in “PER, O Processo Especial de Revitalização – Comentários aos artigos 17º-A a 17º-I do CIRE, Coimbra Editora, pág. 144”; Ac. do STJ de 07/02/2017, proc. nº. 5512/15.9T8CBR.C1.S1, pág. 36”; Ac. RC de 09/05/2017, proc. nº. 1006/15.0T8LRA-D.C1; Ac. RC de 01/10/2013, proc. nº. 1786/12.5TBTNV.C2, e Ac. RL de 12/12/2013, proc. nº. 1908/12, publicados em www.dgsi.pt”). Dentre as normas de conteúdo aplicáveis - ex vi o já citado nº. 5 do artº. 17º-F – ao Plano (neste caso de recuperação/revitalização), e a que o mesmo deve obedecer, encontra-se o artº. 194º, que consagra o princípio da igualdade (de tratamento) entre os credores, cuja violação consubstancia – como norma imperativa que é, e de acordo com o conceito atrás definido – um vício não negligenciável. Dispõe-se em tal normativo (o artº. 194º) que: “1- O Plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas. 2- O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afetado, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável. 3- (…).” Em anotação ao citado artº. 195º, e respondendo à pergunta sobre o que sucede no caso de ser tomada, com a maioria do artº. 212º, uma deliberação de aprovação de um plano de insolvência (leia-se aqui - como doravante sempre que tal expressão surja escrita -, de “recuperação” ou “revitalização”) que viole o princípio da igualdade sem a aquiescência do lesado, ou contra a vontade deles, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (in “Ob. cit., pág. 754”), depois de concluírem que, face ao regime fixado nos artºs. 215º. e 216º., a sanção não pode ser, como à primeira vista poderia parecer, a ineficácia da estipulação violadora, devendo, antes, ser outra a solução, escrevem a dado passo: “Com efeito, o princípio da igualdade dos credores configura-se como uma trave basilar e estruturante na regulação do plano de insolvência. A sua afetação traduz, por isso, seja qual for a perspectiva, uma violação grave – não negligenciável – das regras aplicáveis. O tribunal deve, por isso, se não for atempadamente recolhido o assentimento do lesado, recusar a homologação do plano. Doutro passo, se coincidir a verificação de alguma das situações contempladas no nº. 1 do artº. 216º, o credor lesado pode tomar a iniciativa de solicitar uma decisão de não homologação. Como quer que seja, se o tribunal vier a homologar o plano nas condições indicadas, o credor prejudicado tem o direito de impugnar a decisão por via de recurso, nos termos gerais. Mas, se o não fizer e a decisão transitar em julgado, então as medidas que integram o plano, como é próprio do caso julgado, tornam-se vinculativas para o credor prejudicado, não obstante o desrespeito do disposto no preceito em anotação.” (sublinhado nosso) Aliás, com tal princípio afinou um - o nono - dos princípios orientadores aprovados pela Resolução do Conselho de Ministros nº. 43/2011 de 25.10, segundo o qual o acordo deve ser equilibrado do ponto de vista dos credores, não beneficiando uns em detrimento de outros. Por sua vez, dissertando sobre tal princípio plasmado no referido preceito legal, no Ac. do STJ de 14/12/2016, in “proc. nº. 1515/14.9TBFUN-B.L1.S1 (rescrevendo/reafirmando, pelas mãos do mesmo relator, aquilo que já havia sido escrito/dito no Acórdão do mesmo tribunal de 25/03/2013, in “proc. 6148/12.1TBBRG.G1.S1, ambos publicados em www.dgsi.pt), afirma-se que “o normativo consagra de forma mitigada a igualdade dos credores da empresa em estado de insolvência do ponto em que, implicitamente, ressalva excepções assentes em “diferenciações justificadas por razões objectivas”. O princípio da igualdade não implica um tratamento absolutamente igual, antes impõe que situações diferentes sejam tratadas de modo diferente.” Daí que se venha entendendo, tal como se defende em tais arestos, e tal como decorre da parte final do nº. 1 do citado artº. 194º, que o princípio da igualdade dos credores “par conditio creditorum” não confere, aos que deles beneficiam, um direito absoluto. Esse direito de crédito pode sofrer afrouxamento ou restrição como decorre do texto constitucional que contempla, a par do princípio da igualdade, o princípio da proporcionalidade e da proibição do arbítrio coenvolvidos na legalidade do exercício de direitos e deveres. (Neste sentido, vide, entre outros, o Ac. RC de 09/05/2017, proc. nº. 1006/15.0T8LRA-D.C, acima citado). E daí que na ponderação/conjugação do que se acabou de deixar expresso se deva concluir que “a conclusão pela violação, ou não, do princípio da igualdade, mais do que decorrente de uma apreciação apriorística e meramente contabilística, deve emergir de uma ponderação global e concatenada, de sorte a alcançar-se se a vinculação do credor pelos termos do plano se apresenta, atentos certos elementos objetivos - montante, natureza, origem, finalidade, etc., do crédito -, como justa, adequada, razoável, proporcionada ou, noutra perspetiva, e ela não é excessiva, desproporcionada, desrazoável”. (Vide ainda, neste sentido, entre outros, o Ac. da RC de 04/04/2017, proc. nº. 738/16.0TACB.C1, pág. 20”, www.dgsi.pt, e o prof. Jorge Reis Novais, in “Princípios Estruturantes da República Portuguesa, pág. 171”)”. Não foi requerida a não homologação do plano nos termos previstos no artigo 216º do CIRE”.
E bem considerou, contudo, oficiosamente, efetuando a adequada subsunção do caso, ser o plano aprovado violador do princípio da igualdade, pois apesar de justificada a diferença de tratamento em relação à Autoridade Tributária, considerando a sua natureza privilegiada dos créditos e o facto dos créditos tributários serem indisponíveis, encontrando-se legalmente prevista e imposta a sua forma de pagamento prestacional, e já o mesmo se não verificar relativamente aos créditos de natureza comum, cujas diferenças são de molde a violar o princípio da igualdade, bem fundamentando:
- que se prevê o pagamento integral do crédito reconhecido ao Banco 1..., a incluir, evidentemente, juros, como decorre da lei, dado que se trata de uma obrigação pecuniária vencida e não paga, vencendo, por isso juros (cfr. art. 804º, 805º e 806º, do CC), e se prevê, apenas, o perdão de juros quanto a todos os demais credores;
- que se prevê um diferenciado pagamento prestacional dos créditos e o facto de os créditos serem superiores ou inferiores a € 1.000,00 não é justificativo de tratamento diferenciado dos credores, por forma a uns recebem pagamento ao fim de 10 anos (120 prestações mensais) e outros ao fim de 8 anos (6 meses de carência + 90 prestações mensais);
- que se prevê o pagamento do crédito, de natureza subordinada, reconhecido a CC, pai do Requerente, não nos moldes destes mas nos previstos para o pagamento dos créditos de natureza comum.
Bem decidiu o Tribunal a quo ao considerar existir violação não negligenciável, verificando-se as referidas razões a obstar à homologação do Acordo de Pagamento aprovado.
Com efeito, bem resulta injustificado perdão de jurosa uns credores comuns e não a outros – o Banco 1... -, igualmente não se justificando, sendo desproporcional e não razoável, o estabelecimento, para credores com créditos da mesma natureza, de diverso pagamento prestacional (receberem uns pagamento ao fim de 10 anos (120 prestações mensais) e outros ao fim de 8 anos (6 meses de carência + 90 prestações mensais), nada justificando estes diversos tratamentos dos credores, que igual direito ao recebimento dos seus créditos e em iguais condições têm, estando, deste modo, a ser tratado de modo diverso o que igual é. Com efeito, o facto de os créditos serem superiores ou inferiores a € 1.000,00 não é, minimamente, justificativo de um tratamento diferenciado entre credores. Acresce que, está contempladoo pagamento de crédito, denatureza subordinada, reconhecido ao credor CC, nos moldes dos créditos de natureza comum, bem resultando da certidão de nascimento do Requerente BB e da lei que o referido credor é seu pai, sendo tal crédito subordinado (cfr. arts. 48º e 49º n.º 1 al. b) do CIRE), como decidido se mostra nos autos.
O princípio da igualdade engloba: “(i)tratamento igual de situações iguais (ou tratamento semelhante de situações semelhantes); (ii) tratamento desigual de situações desiguais, mas substancial e objetivamente desiguais e não criadas ou mantidas artificialmente pelo legislador; (iii) tratamento em moldes de proporcionalidade das situações relativamente iguais ou desiguais e que, consoante os casos, se converte para o legislador ora em mera faculdade, ora em obrigação; (iv) tratamento das situações não apenas como existem mas também como devem existir (acrescentando-se, assim, uma componente ativa ao princípio e fazendo da igualdade perante a lei uma verdadeira igualdade através da lei); (v) consideração do princípio não como uma “ilha”, antes como princípio a situar no âmbito dos padrões materiais da Constituição”[18].
E uma das regras aplicável ao caso, nos termos do disposto no nº5 do art. 222º-F do CIRE, é o disposto no art. 194º do mesmo diploma, que estatui:
“1 - O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas. 2 - O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afetado, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável. 3 - É nulo qualquer acordo em que o administrador da insolvência, o devedor ou outrem confira vantagens a um credor não incluídas no plano de insolvência em contrapartida de determinado comportamento no âmbito do processo de insolvência, nomeadamente quanto ao exercício do direito de voto”.
Assim, a observância do princípio da igualdade, a exigir tratamento igualitário do que é igual e tratamento distinto do que é diverso, impõe-se sendo uma regra imperativa, com fonte legal e, mesmo, constitucional que o acordo tem de respeitar.
No caso, desrespeitado se mostra o princípio da igualdade, pois que foi dado tratamento divergente ao que é objetivamente igual, não sendo diferenciações justificadas por quaisquer razões objetivas, designadamente por diferente natureza e categoria (garantidos, privilegiados, comuns e subordinados) dos créditos[19].
Ora, sendo as mencionadas situações dos credores comuns objetivamente iguais, impõe-se, para ser observado o princípio da igualdade, um tratamento igual entre todos eles.
E não podendo as situações dos créditos privilegiados e com garantias ser equiparados aos comuns bem podendo ser desigualados, não podem, contudo, ser tratados de modo desigual os credores comuns entre si.
Dado o efetivo, não razoável, desproporcional e não adequado tratamento diferenciado dado aos credores comuns e ser tratado como credor comum um credor subordinado, o pai do requerente, bem concluiu o Tribunal a quo pela ilícita violação do princípio da igualdade entre credores, nada do referido pelos apelantes a justificando objetivamente. Padece, pois, o conteúdo do acordo das apontadas ilegalidades, sendo que a homologação remeteria iguais credores para posições desiguais, em desproporcional, ilícita e injustificada violação do princípio da igualdade.
Traduzindo a afetação do princípio da igualdade uma violação grave, não negligenciável e fundamento de recusa de homologação do acordo de pagamento, resultando o mesmo violado pelo conteúdo do acordo de pagamento, sem qualquer justificação objetiva, bem foi a homologação recusada.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, devendo, nos termos expostos, a decisão recorrida ser mantida.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
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Custas pelos apelantes, pois que ficaram vencidos – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.
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Porto, 13 de março de 2023
Assinado eletronicamente pelas Juízas Desembargadoras
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
Teresa Fonseca
____________ [1] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2017, 9ª Edição, Almedina, pág 263 [2] Cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2017, 9ª Edição, Almedina, pág 77 [3] Catarina Serra (Coord) IV Congresso do Direito da Insolvência, Setembro de 2017 Almedina, pág 271 [4] Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 8ª Edição, págs 353-354 [5] Ibidem, pág 360 [6] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2017, 9ª Edição, Almedina, pág 273 [7] Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2018 Almedina, pág 590 e pág 479 [8] Ac. da Relação de Évora de 22/2/2018 processo 494/18.8T8STB-A.E1, in dgsi [9] Ac. da Relação de Coimbra de 2/8/2017, Processo 1535/17.1T8CBR.C1, in dgsi.net [10] Ac. do STJ de 7/9/2020, proc. 3316/19.9T8CBR.C1.S1, in dgsi.pt [11] Ac. RP de 15/11/2018, proc. 118/18.3T8STS.P1, in dgsi [12] Estatuindo nº1: “1 - A decisão a que se refere o n.º 4 do artigo 222.º-C obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado acordo de pagamento, salvo quando este preveja a sua continuação”. [13] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 8ª Edição, págs 358 e seg. [14] Ibidem, pág. 348 [15] Ibidem, pág. 348 [16] Ibidem, pág. 348 e seg., aí se citando o Ac. da RE de 23/2/2016 (Mário Braz), processo 5652/15.4, em CJ 41 (2016), I, pp. 231-233 [17] Ac. RP de 26/10/2020, proc. 3975/19.2T8OAZ.P1, in dgsi.pt [18] Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, volume I, Universidade Católica Editora, pág. 166 e seg [19] Cfr. Ac. da RC de 25/6/2013, proc. 3369/10.5TBVIS-L.C1, in dgsi.pt, “I – O princípio da igualdade dos credores - ao qual deverá obedecer o plano de insolvência, salvo se os credores afectados consentirem no seu tratamento mais desfavorável - impõe que sejam tratados de forma igual os credores que se encontrem em idênticas situações, não colidindo com o referido princípio o tratamento diversificado que é dado a diversos credores, em função da diferente categoria e natureza dos respectivos créditos e em função de quaisquer outras razões objectivas que o justifiquem. II – Embora se admita – sem qualquer colisão com o princípio da igualdade – que os créditos de diferente natureza e categoria (garantidos, privilegiados e comuns) sejam tratados de modo diverso (porque, na realidade, não estão em situação idêntica), tal não significa que esses créditos tenham que merecer, necessariamente, um tratamento diferenciado, em função da sua natureza, sob pena de violação daquele princípio. III – O princípio da igualdade impõe que, sem prejuízo de qualquer razão objectiva que o justifique, os créditos garantidos e privilegiados não recebam um tratamento mais desfavorável do que os créditos comuns; mas não comporta qualquer violação do princípio da igualdade a mera circunstância de os créditos garantidos ou privilegiados ficarem submetidos a regime idêntico ao dos créditos comuns”.