INSOLVÊNCIA DE PESSOA SINGULAR
VERIFICAÇÃO E GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PRINCÍPIO DA PROTECÇÃO DA CONFIANÇA
Sumário

I - Não constitui nulidade a não notificação ao insolvente, depois de este ter impugnado a reclamação de crédito de um dos credores, da lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos, pois que, juntamente com tal lista, a sua impugnação será autuada e apreciada pelo tribunal.
II - Não constitui violação do princípio do contraditório a prolação de uma decisão de extinção da instância, num incidente de impugnação de um crédito, por falta de constituição de advogado, após renúncia do anterior, depois de o impugnante ter sido notificado dessa renúncia e da necessidade de constituição de novo advogado, sem que o tenha feito no prazo que lhe foi apontado.
III - Num incidente de impugnação de um crédito reclamado no âmbito de um processo de insolvência, o impugnante assume a posição de requerente.
IV - O princípio de protecção de confiança não assume uma densidade tal que importe, para a secretaria do tribunal, encarregada de operar um sistema com conteúdos pré-definidos e, por isso, necessariamente genéricos, o diagnóstico da concreta situação jurídica do destinatário de uma notificação, apenas exigindo que lhe seja faculte a percepção da essência da situação e da conduta que de si é esperada.

Texto Integral

PROC. Nº 2083/18.8T8STS-B.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 7

REL. N.º 747
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: João Diogo Rodrigues
Anabela Andrade Miranda

*
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1 – RELATÓRIO

Nos autos de verificação e graduação de créditos que correm por apenso ao processo em que foi decretada a insolvência de AA, foi apresentada a lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos da insolvente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 129º, n.ºs 1 e 2 do C.I.R.E., pela Administradora da Insolvência.
Foi apresentada impugnação à lista, pela insolvente, relativamente aos créditos reclamados por:
1) Banco 1..., S.A,
2) Banco 2..., S.A,
3) DR. BB,
4) CC.
Foram suscitadas algumas outras questões, por diferentes credores, que mereceram decisão do tribunal, sem ulterior impugnação.
Em relação à impugnação oferecida pela insolvente, foi proferida a seguinte decisão:
“Conforme referimos, supra, no presente apenso de reclamação de créditos, fora deduzida impugnação à Lista de créditos reconhecidos pela devedora insolvente.
Verifica-se que nos autos principais, a devedora insolvente fora notificada da renúncia ao mandato dos seus mandatários, renúncia que já fora concretizada a 05.01.2022 (cfr. autos principais).
(…)
Ora, dado que a devedora fora notificada da renúncia ao mandato a 05.01.2022 (cfr. autos principais), com a expressa menção que a mesma produz efeitos a contar daquela notificação pessoal e ainda fora notificada das consequências legais previstas no art. 47.º CPC, ou seja, e no que ao caso interessa, que sendo obrigatória a constituição de mandatário, tinha o prazo de 20 dias para constituir novo mandatário, - art.º 47.º, nº 3 do Código de Processo Civil, sob pena de: Extinção do procedimento ou do incidente inserido na tramitação da ação, se a falta for do requerente, opoente ou embargante, e não tendo a devedora constituído mandatário naquele prazo de 20 dias, importa extrair as necessárias consequências legais no presente apenso de reclamação de créditos e no que respeita à instância de impugnação de créditos deduzido pela devedora, por requerimento de 23.01.2019.
Assim, e nos termos do art. 47.º, n.º 3, c), do CPC, ex vi art. 17.º CIRE, julgo extinta a instância de impugnação de créditos deduzida pela devedora, por requerimento de 23.01.2019, sem prejuízo da apreciação já efetuada quanto à impugnação deduzida pelo credor CC e dos elementos objetivos carreados para os autos, designadamente, quanto aos exatos montantes a reconhecer aos credores Banco 1..., SA e Banco 2..., SA, e por eles indicados no requerimento de 15.06.2022.”.
Sucessivamente, foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos, que dispôs: “(…) julgo reconhecidos os créditos constantes da Lista atualizada de créditos junta pela Sra. AI a 04.11.2021, corrigindo-se os montantes dos créditos dos credores Banco 1..., SA e Banco 2..., SA, os quais ascendem ao montante global de €8.684,20, de natureza comum, devendo aquando do rateio serem notificados estes credores para esclarecer se entretanto os créditos reclamados já foram cumpridos e quais os remanescentes dos créditos ainda não pagos.
(…)
Por todo o exposto, procede-se à graduação dos créditos acima reconhecidos, nos seguintes termos:
1º) em primeiro lugar, o crédito privilegiado de BB no montante de € 14.644,96 (assumindo o remanescente do seu crédito natureza comum);
2º) Os créditos comuns; e
3º) Os créditos subordinados.
(…)”
*
É desta decisão que vem interposto recurso, pela insolvente, que o terminou formulando as seguintes conclusões:
1 - Vem o presente recurso de Apelação interposto da sentença que decidiu "julgo extinta a instância de impugnação de créditos deduzida pela devedora, por requerimento de 23.01.2019, sem prejuízo da apreciação já efectuada quanto à impugnação deduzida pelo credor CC e dos elementos objetivos carreados para os autos (...)".
2 –A administradora de insolvência, doravante AI, apresentou lista de créditos reconhecidos rectificada em 04.11.2021 mas esta não foi notificada às partes que tinham mandatário constituído.
3 – Com efeito, a AI juntou no mesmo dia comprovativo da notificação às partes que não haviam constituído mandatário, mas vê-se do formulário da peça que nenhum mandatário foi notificado, assim como do histórico do Citius resulta que aquela peça não foi comunicada a nenhum mandatário.
4 – Esta omissão, porque influiu no andamento dos autos, constitui nulidade processual que expressamente se invoca e que acarreta a anulação de todo o processado subsequente, o que se requer, devendo ser ordenada a realização da omissa notificação, como determina o art. 201.º do CPC.
5 –A prolação da decisão recorrida que declarou a extinção da instância relativa à impugnação da relação de créditos reconhecidos pela recorrente ocorreu sem lhe ser dada a possibilidade de se pronunciar sobre tal, o que acarreta nulidade por omissão do contraditório, imposto pelo art. 3.º do CPC.
6 - Urge fazer uma breve análise cronológica, e temos que, em:
a) 15.06.2018 deu entrada a petição, reclamando o credor BB um crédito total de 57.472,16, sendo:
I - €40.015,65 a título de honorários e despesas por conta do cliente, sem indicação de processo judicial e acrescida de juros de mora desde 20.11.2013, €7.314,64.
II-10.141,87€ relativos a injunção 42351/18.7YIPRT, €9.979,72 de capital, €60,15 de juros e €102,00 de taxa de justiça.
b) 20.08.2018 contestação da insolvente, em que alega nulidade da citação na injunção identificada e invoca o proc. 6798/15.4T8VNF, que corria termos no Juízo Local Cível de Santo Tirso, em que era peticionado o alegado débito de 40.015,65€ e no qual havia um laudo já confirmado por Acórdão do Conselho Superior e que indicava como valor adequado 7.500€.
c) 19.11.2018 - foi proferida sentença que declarou a insolvência da recorrente e definiu o crédito do BB assim:" é manifesto que o crédito em causa é litigioso."
d) 11.01.2019 - A AI apresentou o relatório referido no art. 155.º CIRE, incluindo uma lista provisória de credores;
e) 23.01.2019 - A insolvente, ainda no proc. principal, impugna lista de credores reconhecidos.
f) 06.02.2019 AI inicia de processo de impugnação e junta lista de credores reconhecidos, art. 129.º do CIRE e é elaborada capa do apenso B.
g) 12.02.2019 - AI responde à impugnação da insolvente, dizendo tão somente:
"Quanto ao crédito Nº - 4 de BB
13. O credor requerente BB reclama o pagamento de honorários, no valor de 40.015,65 € de capital, acrescido 8.139,07 € de juros. Reclama o pagamento de honorários, referentes a uma acção administrativa, no valor de 9.979,72 € de capital, acrescido de 343,41 € de juros e 102,00 € de taxa de justiça.
14. A insolvente reconhece ter recorrido, de forma continuada, aos serviços de advocacia do Sr. Dr. BB.
15. A reclamação do Sr. Dr. BB encontra-se suficientemente fundamentada.
16. Pelo contrário, os argumentos aduzidos pela insolvente não permitem sustentar uma eventual impugnação deste crédito.
17. E, embora invoque a extinção do crédito em questão por pagamento, a insolvente não logrou provar documentalmente tal pagamento.
18. A restante argumentação vertida pela insolvente encontra-se decidida, com trânsito em julgado, na douta sentença de declaração da insolvência.
19. O crédito do requerente BB, deverá ser reconhecido pelo valor de 18.143,21€, com natureza comum, beneficiando, na qualidade de credor requerente da insolvência, do privilégio previsto no art.98º do CIRE" - negritos ora apostos).
(Não aborda a existência de accção e laudo, ignora a invocação de nulidade da citação, diz não ter feito prova do pagamento mas ignora a documentos).
h) 26.02.2019 AI rectifica valor do credor BB.
i) 18.03.2019 AI responde às reclamações da Lista de Créditos Reconhecidos.
j) 04.11.2021 AI junta Relação de Créditos rectificada (ESTA LISTA NUNCA FOI NOTIFICADA AOS MANDATÁRIOS!)
l) 10.11.2021 No processo principal, o mandatário da insolvente renuncia ao mandato.
m) 05.01.2022 Citação da insolvente da renúncia ao mandato.
n) 27.04.2022 foi proferido despacho no processo principal que determinou: "Atenta a notificação da renúncia do ilustre mandatário da insolvente e sendo obrigatória a constituição de advogado (cfr.art.40º, n.º 1, al.a) e n.º 2 do CPC ex vi art.17º,n.º 1 do CIRE), deveria a devedora constituir novo mandatário forense.
Não o tendo feito até à presente data, não prosseguirá o incidente da exoneração do passivo restante, prosseguindo o processo os seus demais termos legais, aproveitando-se os atos anteriormente praticados pelo advogado – art. 47º, n.º 3 do CPC.
Notifique, sem prejuízo do disposto no art. 281º, n.º 1 do CPC, quanto ao procedimento de exoneração do passivo restante."
o) 28.04.2022 foi expedida notificação à insolvente do despacho precedente;
p) 07.10.2022 foi proferida a sentença recorrida.
7 - O busílis da questão estará no enquadramento da situação dos autos na al.b) ou c)do nº 3 do art.47.º do CPC, sendo ainda relevante o teor da citação da renúncia e o despacho de 27.04.2022 proferido no processo principal.
8 – A al. b) daquele dispositivo manda seguir os termos do processo, aproveitando-se os actos anteriormente praticados, enquanto a al. c) determina a extinção do procedimento ou incidente.
9 - Ora, a recorrente é requerida no processo de insolvência, foi na sua contestação que desde logo impugnou os créditos do requerente, assim como foi ainda no processo principal que apresentou a impugnação da lista provisória de créditos reconhecidos.
10 - A alínea b) em causa fala de "requerido", assim como refere na alínea b) "procedimento ou o incidente inserido na tramitação de qualquer ação" e identifica "requerente, opoente ou embargante" e a recorrente é requerida nos autos e impugnante da lista de credores.
11 - Há que destacar que as impugnações da lista de credores são apresentadas no processo principal, só depois se passando a tramitar como apenso e todas juntas.
12–Situação diversa de todos os incidentes e apensos a que a lei se refere, estando tal reflectido no Citius, pelo que não se pode com rigor enquadrar a posição processual da recorrente em nenhuma das especificadamente referidas no nº 3 do art. 47.º do CPC.
13 - Aqui o que temos é a invocação de créditos pelo requerente da insolvência, impugnados logo na contestação apresentada e depois novamente "impugnados" ainda no processo principal.
14 - Refira-se que foi também na mesma contestação que foi peticionada a exoneração do passivo restante.
15 - Mas já quanto a esta matéria foi decidido que haveria suspensão da instância e eventual deserção, como resulta expressamente do despacho de 27.04.2022, proferido no processo principal e em que a matéria é tratada assim: "procedimento de exoneração do passivo restante"
16 – Não se vislumbram diferenças significativas entre o procedimento /tramitação da exoneração do passivo restante e a impugnação de créditos, no tocante à sua autonomia em relação ao processo principal.
17 - Crê-se que atento o facto de a exoneração ser um pedido da insolvente, a não constituição de mandatário implica a suspensão da instância e a sua eventual deserção, enquanto a impugnação do crédito do requerente constitui uma contestação, figurando a insolvente no primeiro caso como "autora" e no segundo, como "ré".
18 -Daqui resulta que seria de aplicar o disposto na al. b) e não na al.c) do referido nº 3 do art. 47.º do CPC.
19 - Esquematicamente, o requerente pede que se reconheça que lhe é devido o valor x, enquanto a requerida contesta a existência e montante de tal débito, reiterando a impugnação na reação à lista de créditos reconhecidos.
20 - Impunha-se assim a prossecução dos autos, com aproveitamento dos actos praticados e a sua consideração, fosse decidindo logo ou realizando a devida audiência de julgamento para produção das provas indicadas, cotejando-se todas as provas dos autos ao abrigo do princípio da aquisição das provas.
21 - A situação dos autos é em tudo diversa das que se enquadram nas situações e com os intervenientes referidos na al. c) em causa.
22 -Haveria alguma autonomia, aí sim, num apenso de verificação ulterior de crédito, em que no tocante ao novo credor, caso se verificasse a situação dos autos, daria lugar à extinção desse apenso.
23 – No caso, não se podia extinguir o incidente ou apenso, pela singela razão de que a impugnação fora apresentada ainda no processo principal e apenas uma questão organizacional determina a sua tramitação em apenso, mas englobando todas as impugnações apresentadas, tendo as demais sido apreciadas na sentença recorrida.
24 - Por outro lado, da citação da recorrente apenas constava, como aliás também da própria lei, que haveria lugar à extinção do procedimento caso a mesma figurasse como "requerente, opoente ou embargante."
25 - Da nota de citação consta: "Fica notificada, na qualidade de insolvente/autora (...)".
26 - O Tribunal considerou a recorrente como "insolvente/autora" e lê-se da mesma nota de citação: "Sendo obrigatória a constituição de mandatário, deverá, no prazo de VINTE DIAS, constituir novo mandatário, - art.º 47.º, nº 3 do Código de Processo Civil, sob pena de:
- Ser ordenada a suspensão da instância, se a falta for do autor ou do exequente;
- O processo prosseguir seus termos aproveitando-se os atos anteriormente praticados pelo advogado, se a falta for do réu, executado ou requerido;
- Extinção do procedimento ou do incidente inserido na tramitação da ação, se a falta for do requerente, opoente ou embargante.", (negrito nosso).
27 - Do cotejo desta Nota de Citação não é possível depreender-se que ficaria sem efeito a contestação/impugnação do crédito do requerente da insolvência, quer no que toca ao seu pedido inicial quer no que respeita à impugnação da Lista de Créditos Reconhecidos.
28 - Sempre o “princípio da confiança” imporia que em caso algum a consequência pudesse ser tão gravosa, dado que nem da leitura da Nota de Citação nem de uma análise mais detalhada assim se concluiria.
29 – Também o “princípio da segurança jurídica”, levaria ao mesmo resultado.
30 - No que respeita à necessária consideração da recorrente como "requerente do incidente de impugnação da lista de créditos reconhecidos", tal não tem o mínimo de cobertura legal nem lógica.
31 -Apenas faria sentido a extinção do procedimento ou incidente caso se tratasse de algo com suficiente autonomia e que decorresse tão só de opção expressa da recorrente, o que não é o caso.
32 – A própria plataforma Citius quando se opta por "Apensar a processo existente "num processo de insolvência, como o presente, indica várias hipóteses apenas sendo possível no caso a opção “Outros Incidentes”.
33 – Após esta opção, apenas teria relevância escolher de novo "Outros Incidentes", mas depois surgem 14 hipóteses muito concretas e especificadas, sendo que nenhuma contém novas opções e nunca surge a hipótese de criar “incidente” ou “apenso” de impugnação de lista de créditos.
34 - Quem contesta um crédito ou impugna um acto que aprova uma lista de créditos ou um dos créditos ali reconhecidos, não é requerente, não é opoente nem é embargante.
35 - As formas de atacar actos decisórios podem ser recursos, pedidos de reforma, impugnação, reclamações, mas nunca quem o faz pode ser tido como requerente.
36 - A figura de “opoente” tem conexão com situações concretas totalmente diversas da dos autos.
37 - Quem contesta um crédito e/ou impugna uma lista de créditos aprovados não é requerente nem embargante, nem tão pouco opoente!
38 - A posição processual da ora recorrente no que respeita à sua intervenção na contestação do crédito e na impugnação da lista de créditos reconhecidos, é similar à de ré, sendo em termos de plataforma considerada como "Insolvente” e o credor que apresentou a acção, “Requerente”.
39 - Em caso algum se pode ter a recorrente como alguém que deu início a um incidente autónomo, por sua vontade, que apenas a ela respeita e com a devida autonomia, já que simplesmente "impugnou/contestou" o crédito e a lista em que o mesmo veio a ser reconhecido.
40 - Situação em que faz todo o sentido a apreciação dos actos praticados pelo mandatário e eventualmente a realização de julgamento com aproveitamento das peças apresentadas e de todas as provas carreadas.
41 - Incumbe ao Tribunal aquilatar da legalidade dos actos do administrador de insolvência, cabendo a este o dever de fundamentar os seus actos, decidir todas as questões que lhe são colocadas e apreciar todas as provas que lhe são apresentadas.
42 - A AI, em 06.02.2019, tudo o que diz sobre o crédito do requerente desta acção, mau grado a qualificação do mesmo como "litigioso" na sentença que declarou a insolvência e o invocado pela insolvente que infra se analisará, é:
"Parecer - Aceita-se o valor reclamado."
43 - Já na sua resposta de 12.02.2019 a AI, conforme já visto supra, resume-se:
“15. A reclamação do Sr. Dr. BB encontra-se suficientemente fundamentada.
16. Pelo contrário, os argumentos aduzidos pela insolvente não permitem sustentar uma eventual impugnação deste crédito."
44 - Estas "pseudo-análises" de uma e outra posição servem para todo e qualquer processo, contenda, etc, pela singela razão de que não analisam absolutamente nada e nada dizem de concreto, não servindo para fundamentar nenhuma decisão.
45 - Foram reconhecidos dois créditos:
a) um invocado na p.i. sem indicação de processo judicial, que por acaso tinha sido peticionado em processo que estava pendente, que havia sido contestado e tinha sido aprovado pouco antes do pedido de insolvência o último Acórdão do Conselho Superior da Ordem dos Advogados que manteve o laudo de7.500€, em vez de o requerente aguardar a decisão daquele processo, requerendo a insolvência como se o pedido feito na dita acção tivesse procedido ou alguma viabilidade que fosse;
b) um outro crédito relativo a injunção mas sobre este foi invocado não ser devido e haver nulidade da citação por ter sido enviada para uma morada que o requerente sabia já não ser a real e com a falsa indicação de haver domicílio convencionado.
46 - Ora, o Tribunal já havia considerado o crédito do requerente da insolvência como "litigioso", mas a AI considerou-o sem análise efectiva da contestação ou depois, da impugnação.
47 - A saber, ignorou por completo que havia um processo judicial pendente e nem sequer falou do laudo da Ordem dos Advogados, laudo que embora não sendo vinculativo, obriga a que seja analisado e demonstrada a razão da opção por aceitar um valor superior ao quíntuplo do ali indicado.
48 - Assim como a AI não diz uma única palavra sobre a alegada nulidade da citação decorrente de se ter indicado um domicílio que já não era efectivo, ainda por cima com a falsa alegação de haver domicílio convencionado.
49 – Era tudo: "argumentos que não permitiam sustentar uma eventual uma impugnação de crédito"...
50 - Verifica-também que sempre a decisão da AI seria nula por absoluta falta de fundamentação e por omissão de pronúncia.
51 - Há que notar que a total adesão a uma posição, desconsiderando a descrição judicial do crédito como litigioso, não abordando a eventual nulidade da citação num caso e ignorando totalmente um laudo emitido por quem de Direito, com a desproporção patente, dificilmente se enquadra numa actuação com "absoluta independência e isenção", conforme determina o nº 2 do art. 12. da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, que aprovou o Estatuto do Administrador Judicial.
TERMOS EM QUE deve ser julgada procedente a Apelação, e:
a) Reconhecida a nulidade decorrente da não notificação às partes que tinham mandatário, da lista de crédito rectificada em 04.11.2021;
b) Reconhecida a nulidade decorrente da não notificação da requerida/impugnante da possibilidade de ser decidida a extinção da instância em relação à sua impugnação da lista de créditos reconhecidos, por violação do princípio do contraditório;
c) Anulado todo o processado às omissões referidas e ordenada a baixa dos autos para efectivação dos actos omissos;
d) À cautela, deve ser enquadrada a situação dos autos na al. b) do nº 3 doart.47.º do CPC e não na al.c) do mesmo, ordenando-se a baixa dos autos para prolação de decisão que conheça do mérito se se entender haver elementos para tal, ou ordenada a realização de audiência de julgamento para produção de provas, assim se fazendo, SÃ JUSTIÇA!
Não foi oferecida qualquer resposta ao recurso.
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Cumpre apreciá-lo.
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2- FUNDAMENTAÇÃO

Não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC, é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso.
No caso, as questões a decidir são as seguintes:
- Da nulidade constituída pela falta de notificação da lista de créditos reconhecidos, rectificada, junta pela AI em 4/1/2021, às partes que haviam constituído mandatário;
- Da nulidade da decisão que declarou extinta a instância quanto à impugnação oferecida pela insolvente/apelante, por omissão de contraditório;
- Do mérito da decisão que declarou extinta a instância quanto à impugnação oferecida pela insolvente/apelante, por falta de mandatário, por ser aplicável a al. b) do nº 3 do art. 47º do CPC, e não a al. c);
- Do mérito da decisão que declarou extinta a instância quanto à impugnação oferecida pela insolvente/apelante, por falta de mandatário, em função de princípios de protecção de confiança e de segurança jurídica, face ao teor da notificação remetida a propósito da necessidade de constituição de mandatário.
- Do mérito da decisão que reconheceu o crédito reclamado pelo Dr. BB, face aos termos que justificaram o seu reconhecimento pela AI.
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No art. 6º das conclusões da apelante, vem feita uma súmula de alguns actos processuais que é útil recordar, para solução das questões que antecedem. Aí se refere:
a) 15.06.2018 deu entrada a petição, reclamando o credor BB um crédito total de 57.472,16, sendo:
I - €40.015,65 a título de honorários e despesas por conta do cliente, sem indicação de processo judicial e acrescida de juros de mora desde 20.11.2013, €7.314,64.
II-10.141,87€ relativos a injunção 42351/18.7YIPRT, €9.979,72 de capital, €60,15 de juros e €102,00 de taxa de justiça.
b) 20.08.2018 contestação da insolvente, em que alega nulidade da citação na injunção identificada e invoca o proc. 6798/15.4T8VNF, que corria termos no Juízo Local Cível de Santo Tirso, em que era peticionado o alegado débito de 40.015,65€ e no qual havia um laudo já confirmado por Acórdão do Conselho Superior e que indicava como valor adequado 7.500€.
c) 19.11.2018 - foi proferida sentença que declarou a insolvência da recorrente e definiu o crédito do BB assim:" é manifesto que o crédito em causa é litigioso."
d) 11.01.2019 - A AI apresentou o relatório referido no art. 155.º CIRE, incluindo uma lista provisória de credores;
e) 23.01.2019 - A insolvente, ainda no proc. principal, impugnou lista de credores reconhecidos.
f) 06.02.2019 - AI inicia de processo de impugnação e junta lista de credores reconhecidos, art. 129.º do CIRE e é elaborada capa do apenso B.
g) 12.02.2019 - AI responde à impugnação da insolvente, dizendo tão somente:
"Quanto ao crédito Nº - 4 de BB
13. O credor requerente BB reclama o pagamento de honorários, no valor de 40.015,65€ de capital, acrescido 8.139,07 € de juros. Reclama o pagamento de honorários, referentes a uma acção administrativa, no valor de 9.979,72€ de capital, acrescido de 343,41 € de juros e 102,00€ de taxa de justiça.
14. A insolvente reconhece ter recorrido, de forma continuada, aos serviços de advocacia do Sr. Dr. BB.
15. A reclamação do Sr. Dr. BB encontra-se suficientemente fundamentada.
16. Pelo contrário, os argumentos aduzidos pela insolvente não permitem sustentar uma eventual impugnação deste crédito.
17. E, embora invoque a extinção do crédito em questão por pagamento, a insolvente não logrou provar documentalmente tal pagamento.
18. A restante argumentação vertida pela insolvente encontra-se decidida, com trânsito em julgado, na douta sentença de declaração da insolvência.
19. O crédito do requerente BB, deverá ser reconhecido pelo valor de 18.143,21€, com natureza comum, beneficiando, na qualidade de credor requerente da insolvência, do privilégio previsto no art.98º do CIRE" - negritos ora apostos).
h) 26.02.2019 - AI rectifica valor do credor BB.
i) 18.03.2019 - AI responde às reclamações da Lista de Créditos Reconhecidos.
j) 04.11.2021 - AI junta Relação de Créditos rectificada, a qual não foi notificada aos Mandatários constituídos no processo
l) 10.11.2021 - No processo principal, o mandatário da insolvente renunciou ao mandato.
m) 05.01.2022 - Notificação da insolvente da renúncia ao mandato.
n) 27.04.2022 foi proferido despacho no processo principal que determinou: "Atenta a notificação da renúncia do ilustre mandatário da insolvente e sendo obrigatória a constituição de advogado (cfr.art.40º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do CPC ex vi art.17º, n.º 1 do CIRE), deveria a devedora constituir novo mandatário forense.
Não o tendo feito até à presente data, não prosseguirá o incidente da exoneração do passivo restante, prosseguindo o processo os seus demais termos legais, aproveitando-se os atos anteriormente praticados pelo advogado – art. 47º, n.º 3 do CPC.
Notifique, sem prejuízo do disposto no art. 281º, n.º 1 do CPC, quanto ao procedimento de exoneração do passivo restante."
o) 28.04.2022 foi expedida notificação à insolvente do despacho precedente.
Esta súmula permite constatar que o objecto mediato da presente apelação é única e exclusivamente o crédito de BB, Montante, que fora reclamado com o valor de 58.579,85€ (Capital – 50.097,37 €; Juros – 8.482,48€), e que a AI entendia dever reconhecer-se por esse mesmo montante.
Este crédito, após a sua reclamação pelo próprio credor, havia sido impugnado pela insolvente, que, por diversas razões, concluiu pela sua exclusão da lista de créditos reconhecidos (tal como em relação a outros que para o caso não relevam).
Depois, a AI entendeu pronunciar-se no sentido do seu reconhecimento, quer num primeiro momento, quer por requerimento de 26/2/2019, quer na lista rectificada que apresentou em 4/11/2021, rectificação essa motivada pela exclusão de um imóvel que fora apreendido para a insolvência e que dela foi separado, igualmente em circunstâncias e com efeitos aqui irrelevantes.
É neste contexto que cumpre apreciar a primeira questão colocada pela apelante: a da alegada nulidade decorrente da falta de notificação às partes que haviam constituído advogado, daquela lista rectificada, de créditos reconhecidos, apresentada em 4/11/21.
Acontece que não só não se verifica a alegada nulidade, como que se uma tal omissão da notificação devida se tivesse verificado, nem por isso ela consubstanciaria uma nulidade, por não ser apta a influir no exame e decisão da causa, como exige o art. 195º, nº 1 do CPC.
Por um lado, a notificação da lista rectificada aos credores ou a qualquer interessado, incluindo o insolvente, não é uma formalidade exigida pelo art. 129º, nº 4 do CIRE, que apenas impõe que o AI “avise” do conteúdo da lista os “credores não reconhecidos, bem como aqueles cujos créditos forem reconhecidos sem que os tenham reclamado, ou em termos diversos dos da respectiva reclamação”. E isto bem se compreende, já que, perante os demais, incluindo para o insolvente que tenha impugnado algum dos créditos reclamados, como aconteceu no caso em apreço, a apresentação de tal lista não tem qualquer efeito decisório. A questão colocada por via da impugnação do crédito reclamado há-de ser tramitada ulteriormente, nos termos do art. 132º e ss, pelo que seria desprovida de efeito a notificação, ao insolvente impugnante, do parecer do A.I., consubstanciado na organização de tal lista.
De resto, por isso mesmo, ainda que se entendesse que uma tal notificação era devida – o que se não admite, como acabámos de referir – a sua omissão, designadamente no caso concreto, não determinou qualquer efeito, pois não motivou que a insolvente ficasse impedida de exercer qualquer direito processual em relação ao crédito reclamado pelo credor Dr. BB, desde logo por já o ter previamente impugnado em termos que sempre levariam à necessidade da sua apreciação pelo tribunal. Talvez por isso mesmo, no seu recurso, a apelante se limite a invocar a referida nulidade, assumindo-a como secundária, mas sem que tenha especificado em que termos é que a mesma teria sido apta a prejudicar o exame e decisão da questão, o que era essencial para que o apontado vício ascendesse à categoria de nulidade processual.
Pelo exposto, rejeita-se a verificação da invocada nulidade, improcedendo a apelação em relação a esta matéria.
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Seguidamente, vem a apelante arguir outra nulidade, agora transmitida à decisão que declarou extinta a instância quanto à impugnação por si oferecida ao mesmo crédito reclamado pelo credor BB, afirmando que a mesma não foi precedida do necessário contraditório. Cita, em favor da sua tese, um acórdão em que, foi declarada a extinção da instância por inutilidade da lide, sem prévia audição das partes.
É, porém, errado o pressuposto desta arguição, tal como é impertinente a citação do referido acórdão.
Com efeito, nesse acórdão do TRE, (proc. nº 500/12.0TBABF-K.E1, em dgsi.pt) foi proferida uma decisão surpresa, que nenhuma das partes podia antever ou devia esperar. Por isso, ali se afirmou que o respeito pelo princípio do contraditório exigia que as partes fossem ouvidas sobre a intenção do tribunal, antes de qualquer decisão ser proferida.
Diferentemente, no caso em apreço, a decisão de extinção da instância no incidente de impugnação do crédito referido foi decretada perante a superveniente falta do patrocínio forense exigido, na implementação de uma solução anteriormente anunciada e para a qual a ora apelante fora especial e pessoalmente advertida, como resulta da nota de 5/1/22. Com efeito, foi-lhe dirigida a comunicação revelada pelo expediente dessa data, que apresentava o seguinte teor:
“Fica notificado, na qualidade de insolvente/ autora, nos termos e para os efeitos a seguir mencionados:
Da renúncia ao mandato apresentado pelo seu ilustre mandatário, nos termos do disposto art.º 47.º, nº 1 do Código do Processo Civil, e que produz efeitos a contar da presente notificação.
Sendo obrigatória a constituição de mandatário, deverá, no prazo de VINTE DIAS, constituir novo mandatário, - art.º 47.º, nº 3 do Código de Processo Civil, sob pena de:
- Ser ordenada a suspensão da instância, se a falta for do autor ou do exequente;
- O processo prosseguir seus termos aproveitando-se os atos anteriormente praticados pelo advogado, se a falta for do réu, executado ou requerido;
- Extinção do procedimento ou do incidente inserido na tramitação da ação, se a falta for do requerente, opoente ou embargante.”
A eventual inadequação dos termos desta notificação é questão que infra também nos ocupará. Sem prejuízo disso, o que se constata é que a ora apelante foi advertida das consequências da falta da sua representação por advogado. Por isso, quando, a 27.04.2022, foi decretada, em relação ao incidente de impugnação do crédito reclamado por BB, a extinção da correspondente instância, só podemos concluir que para essa hipótese, como eventual consequência da não constituição de novo mandatário, estava ela alertada. A decisão que lhe foi aplicada não pode considerar-se uma decisão surpresa, pois que a hipótese de uma tal aplicação lhe foi anunciada. E não se pode dizer que quanto a ela não foi observada o princípio do contraditório, tal como imposto pelo nº 3 do art. 3º do CPC, pois que, nessa mesma altura, perante esse anúncio, lhe foi dada a oportunidade de em divergência se pronunciar.
Assim, a decisão em questão, de extinção da lide por falta de representação por mandatário, foi uma decorrência legal, lógica e cronológica da notificação que lhe foi dirigida sobre a cessação da sua representação pelo Il. Advogado Dr. DD, e sobre a necessidade de se fazer representar por outro advogado, sob pena de se produzirem as consequências descritas (suspensão da instância, se a falta fosse do autor ou do exequente; o processo prosseguir seus termos aproveitando-se os actos anteriormente praticados pelo advogado, se a falta fosse do réu, executado ou requerido; extinção do procedimento ou do incidente inserido na tramitação da ação, se a falta fosse do requerente, opoente ou embargante).
Acresce que, como refere o tribunal recorrido no despacho em que rejeita a verificação desta nulidade, os autos bem revelam a atenção da ora apelante à situação que se verificou e para a qual foi advertida: logo em 6/1/2022 foi requerida a possibilidade de exame de processo pelo Il. Advogado que a partir de 27/10/2022 a passou a representar no processo, após prolação da sentença recorrida, em 7/10/2022. Se temos por certo que a mera entrada para consulta do processo não traduz qualquer intervenção no processo apta a determinar, por exemplo, que logo a partir d e então se contasse um prazo para arguir qualquer nulidade, pois que de nenhuma intervenção se trata, a realidade processual descrita é suficiente para que fique prejudicada a convicção de que a ora apelante se encontrava alheia ao estado dos autos e à necessidade de constituir advogado, sob pena de poderem ocorrer as consequências pertinentes e referidas na notificação que recebeu, consoante o que fosse pertinente.
Rejeita-se, pois, que a decisão em causa padeça de qualquer vício, por ter sido proferida em violação do princípio do contraditório, tal como estabelecido no nº 3 do art. 3º do CPC, estando por isso impregnada pela correspondente nulidade.
Improcederá, pelo exposto, a apelação, também nesta parte.
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Seguidamente, e constituindo a questão essencial deste recurso – tal como bem refere a apelante – vem afirmado que, no caso da presente impugnação, pela insolvente, de um crédito reclamado por um credor e reconhecido no parecer produzido pelo AI, a respectiva intervenção deve considerar-se como estando do lado passivo do incidente, pelo que a falta de representação por advogado deve originar o efeito previsto na al. b) do nº 3 do art. 47º do CPC [b) O processo segue os seus termos, (…) aproveitando-se os atos anteriormente praticados]; ou seja, em divergência para com a solução decretada na decisão recorrida, que considerou a insolvente, ao impugnar aquele crédito, como requerente (parte activa) do incidente, subsumindo a ausência da sua representação por advogado ao disposto na al. c) daquela mesma norma [c) Extingue-se o procedimento ou o incidente inserido na tramitação de qualquer ação, se a falta for do requerente, opoente ou embargante].
Em suma, segundo a apelante, a circunstância de ter deixado de estar representada por advogado deveria determinar que o incidente de impugnação do crédito reclamado prosseguisse para julgamento e decisão, aproveitando-se os termos da impugnação antes oferecida, e não que se extinguisse a instância nesse incidente, tudo se passando como, por falta de oposição, devesse simplesmente aceitar-se o parecer da AI conforme com o crédito reclamado, com o inerente reconhecimento desse mesmo crédito.
Sobre esta questão, é esclarecedor o Ac. TRP de 20.04.2017 (proc. nº 2116/14.7T8VNG-E.P1, em dgsi.pt), a cuja solução só podemos aderir. Aí se decidiu:
I - Em processo de insolvência a impugnação da impugnação da lista de credores reconhecidos configura-se, em termos processuais, como uma oposição por embargos, iniciada precisamente pelo requerimento de impugnação, e em que a decisão será proferida com base no que vier alegado no requerimento de impugnação da lista e na resposta a essa impugnação, já que os requerimentos de reclamação de créditos, que são dirigidos ao administrador da insolvência, nem sequer são presentes ao juiz - cfr. artºs 128º/2 e 132º do CIRE; II - Dentro deste enquadramento a exigência em termos de alegação (da inexistência do crédito ou da sua qualificação) recai em primeiro lugar sobre o impugnante, que, nos termos do disposto no nº 1 do artº 130º do CIRE haverá de alegar os factos em que se consubstancia a indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou a incorreção do respetivo montante, e/ou da qualificação dos créditos reconhecidos. Só depois, e em face do que tiver sido alegado no requerimento de impugnação, recairá sobre o reclamante o ónus da resposta previsto no artº 131º, nº 1, do CIRE.
Da estrutura assim descrita, que é aquela que resulta da análise do regime dos arts. 130º, 131º do CIRE, resulta claro que o impulso processual de cada incidente de impugnação de crédito reclamado, incidente cuja instância se estabelece entre o impugnante e o reclamante, i.é, o titular do crédito reclamado, como resulta do nº 4 do art. 134º (“As impugnações apenas serão objecto de notificação aos titulares de créditos a que respeitem, se estes não forem os próprios impugnantes”) é do autor da impugnação. É a este que cabe o impulso da discussão sobre a existência, valor ou natureza do crédito reclamado, salvo se a impugnação proceder do próprio reclamante, por não lhe ter sido reconhecida razão na sua pretensão.
Como tal, no caso de renúncia do advogado do impugnante, a situação deve ser superada por via da constituição de novo advogado, no caso de ser obrigatório o patrocínio, sob pena de se extinguir o incidente de impugnação, por aplicação do disposto na al. b) do nº 3 do art. 47º do CPC.
Pelo exposto, também quanto a esta solução é insusceptível de crítica a decisão recorrida, não podendo obter provimento o recurso que lhe vem oposto.
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Mais alega a insolvente que “Do cotejo desta Nota de Citação [teor da notificação para constituição de advogado, de 5/1/2022, que acima já se transcreveu] não é possível depreender-se que ficaria sem efeito a contestação/impugnação do crédito do requerente da insolvência, quer no que toca ao seu pedido inicial quer no que respeita à impugnação da Lista de Créditos Reconhecidos.” E que “Sempre o princípio da confiança imporia que em caso algum a consequência pudesse ser tão gravosa, dado que nem da leitura da Nota de Citação nem de uma análise mais detalhada assim se concluiria.”
O princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo, quer a ideia de segurança jurídica, quer a ideia de protecção da confiança) é enunciado por Gomes Canotilho (“Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 7.ª edição, pág. 257, também citado na apelação) nos seguintes termos: “o indivíduo tem do direito poder confiar em que aos seus atos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçados em normas jurídicas vigentes e válidas por esses atos jurídicos deixado pelas autoridades com base nessas normas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico” [cfr. JJ. Gomes Canotilho, in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 7.ª edição, pág. 257].
Este excerto, também citado no Ac. do STJ de 30-11-2017 (proc. nº 88/16.2PASTS-A.S1) completa o que aí se descreve e que igualmente se cita: “(…) estabelece o actual artigo 157.º, no n.º 6 – Os erros e omissões dos atos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes.
Como se extrai do acórdão deste Supremo Tribunal de 5 de Abril de 2016, proferido na Revista n.º 12/14.7TBMGD-B.G1.S1, (…): “Ao erro ou omissão referentes a notificações da secretaria judicial são de equiparar actos equívocos, ou de dúbia interpretação, e que possam afectar negativamente direitos dos seus destinatários, desde que a interpretação lesiva que deles possa ser feita, aferido pelo standard interpretativo do destinatário normal – artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil – possa ser acolhida.
Na dúvida deve entender-se, e assim se entende, que a parte não pode ser prejudicada por actos praticados pela secretaria judicial, como estatui o artigo 157.º, n.º 6, do Código de Processo Civil vigente e preceituava identicamente, o n.º 6 do artigo 161.º do CPC”.

Como consta do mesmo acórdão, entendem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre em Código de Processo Civil Anotado, volume I, pág. 316, em anotação ao aludido artigo 157.º: “O n.º 6 estabelece a regra de que a parte não pode ser prejudicada por erro ou omissão da secretaria judicial. Esta regra implica, por exemplo, que o acto da parte não pode “em qualquer caso” ser recusado ou considerado nulo se tiver sido praticado se tiver sido praticado nos termos e prazos indicados pela secretaria, embora em contrariedade com o legalmente estabelecido (veja-se, designadamente, o art.º 191.º - 3).”.
Será à luz destes esclarecimentos sobre o conteúdo e aplicação dos princípios invocados pela apelante que cumpre ponderar sobre se os termos em que lhe foi feita a notificação sobre a necessidade de constituir um novo advogado, face à renúncia apresentada por aquele que a vinha representando, foram uma causa razoável para não o fazer no prazo que lhe era assinalado para o efeito, por não a levarem a prefigurar que os direitos que fazia valer nos autos de insolvência – no caso concreto, o de impugnar o crédito reclamado pelo credor Dr. BB – haveriam de ficar prejudicados por essa inacção.
Não pode deixar de atentar-se em que os termos da notificação, ao incluírem as diferentes alternativas previstas no nº 3 do art. 47º, sem especificação da situação da destinatária, ora apelante, deixaram por concretizar a consequência da não constituição de novo advogado. Diferente seria se apenas lhe apontassem a hipótese que caberia à sua situação, qual seja a da al. c) daquele nº 3, do que decorreria a concreta cominação de que a impugnação do crédito que iniciara se iria extinguir.
Porém, deve analisar-se se isso era exigível, para a salvaguarda da segurança jurídica e da protecção da confiança que lhe deveriam ser garantidas.
Antes de mais, e diferentemente de muitas das hipóteses que a jurisprudência é chamada a tratar, cumpre verificar que a notificação em causa não induziu a insolvente/impugnante a qualquer conduta processualmente impertinente ou extemporânea, nem justificou que se tivesse convencido sobre não dever ou não ter de praticar um acto que lhe era essencial.
Com efeito, o que alega é que não tendo sido interpelada como “requerente, opoente ou embargante”, não lhe deveria ser aplicado o efeito previsto na norma em causa para essa qualidade, tanto mais que sendo insolvente e impugnante, a nenhuma dessas categorias se pode subsumir.
Acontece, porém, que essa circunstância, bem como a de não se encontrar – segundo alega – no Citius uma categoria sob a qual se pudesse classificar a sua intervenção não podem ser relevantes, pois que o princípio geral de protecção da confiança, com o conteúdo assinalado supra, não pressupõe que toda e qualquer pessoa possa aceder ao significado integral de todo e qualquer acto, maxime quando o mesmo assume um significativo cariz técnico, de tal forma que o acto que lhe é subsequente sempre haverá de ser praticado através de mandatário forense, como acontecia no caso em apreço.
Aliás, o que a notificação dirigida à insolvente lhe suscitou foi a necessidade de se fazer representar por advogado, para continuar a intervir no processo, necessidade essa que ela interpretou adequada e imediatamente.
Veja-se, com efeito, que logo no dia 6/1/22 o Il. Advogado que acabou por ser constituído seu mandatário na causa veio aos autos requerer que lhe fosse facultada a consulta electrónica dos autos, o que foi deferido e lhe foi notificado a 20/1/2022. Assim, quando vem a ser constituído mandatário forense, pela autora, em 27/10/2022, este acto só pode presumir-se como conexo com aquela consulta do processo, traduzindo que, notificada da renúncia do seu anterior advogado, a insolvente logo tratou de garantir a sua representação por outro.
Conclui-se, assim, que o princípio de protecção confiança não pode ter-se por desrespeitado pelos termos da notificação dirigida à insolvente, pois que foram suficientes para suscitar a sua compreensão quanto à necessidade de se fazer representar por advogado, não sendo já essencial, para o mesmo efeito, que essa mesma notificação se operasse em termos de lhe fazer compreender a dimensão técnico-jurídica da situação e a consequência específica de não suprir aquela falta, tanto mais que se conclui que logo adoptou conduta em ordem a assegurar essa mesma representação nos termos que foram entendidos por pertinentes.
Aquele princípio geral não pode assumir uma densidade tal que importe, para o serviço de secretaria do tribunal, encarregado de operar um sistema com conteúdos pré-definidos e, por isso, necessariamente genéricos, o diagnóstico da situação jurídica do destinatário de uma notificação, em ordem a tornar-lhe inteligíveis todas as vertentes do acto que lhe é comunicado. Essencial é que compreenda a sua essência e a conduta que de si é esperada, o que, no caso da insolvente e ora apelante, correspondia à percepção da necessidade de se fazer representar por advogado, face à renúncia do seu anterior mandatário, sob pena de ver serem afectados os direitos processuais que vinha exercendo e consoante a natureza destes. Já a concretização destes, dependente daquele diagnóstico da sua situação jurídica e processual, haveria de ser cometida ao novo advogado cuja intervenção logo lhe foi transmitido e percebeu ser essencial.
Nestes termos, não será também à luz da alegada violação do princípio geral de confiança e de segurança jurídica que poderá reconhecer-se qualquer tutela à pretensão da apelante.
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Por fim, alegou a apelante que, atentas as razões expostas na sua impugnação, jamais poderia reconhecer-se o crédito do credor reclamante em causa.
Traduz-se, esta pretensão, em suma, na apreciação do mérito da impugnação que deduziu contra a reclamação do crédito do Dr. BB.
Consequentemente, esta pretensão só poderia ser apreciada se tivesse sido revogada a decisão que declarou extinta a instância em tal incidente de impugnação, o que, como supra se justificou, não pode admitir-se.
Mostra-se, por isso, prejudicada a apreciação do objecto do recurso, nesta parte.
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Resta, em conclusão, negar provimento ao recurso sob análise, na confirmação integral da decisão recorrida.
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Sumariando:
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3 - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em confirmar a decisão recorrida, negando provimento ao presente recurso.
Custas pela apelante.
Registe e notifique.
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Porto, 28 de Fevereiro de 2023
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
Anabela Andrade Miranda