CONTRATO DE SEGURO
INTERPRETAÇÃO DO CLAUSULADO
Sumário

I - Não se discutindo no recurso o acerto da decisão que julgou excluída, por não ter sido comunicada, a cláusula que limitava o âmbito da cobertura do seguro relativa a “Perdas ou danos resultantes de furto ou roubo ocorrido no local de risco” aos casos em que tivesse ocorrido “com arrombamento ou escalamento de portas, janelas, montras, telhados, paredes, sobrados, tetos ou qualquer outra construção que dê acesso ao local de risco e desde que resultem vestígios inequívocos”, nem da decisão que considerou válido o contrato de seguro, desprovido dessa cláusula, importa interpretar o restante clausulado, designadamente a cláusula que se refere à descrita cobertura.
II - Para tanto há que considerar as regras de interpretação e integração dos negócios jurídicos constantes dos artigos 236.º a 238.º do CC, partindo do texto das cláusulas do contrato de seguro (em que constam conceitos que, embora sendo de uso corrente, também pertencem ao domínio do direito penal), sem perder de vista a finalidade do mesmo.
III - Considerando o local do risco e o conceito de receio segurável mencionados na Apólice, é de concluir que o risco de furto abrangido pela cobertura respeitava ao furto de objetos existentes dentro da residência, remetendo-nos para os casos de furto qualificado previstos no art.º 204.º, n.º 1, al. f), e n.º 2, al. e), do Código Penal, tudo situações que um declaratário normal, colocado na posição dos segurados, por certo entendia estarem abrangidas pela cobertura contratada, até pela especial censura penal que merecem, não havendo motivo para que considerasse cobertas apenas as ocorrências praticadas da forma descrita na cláusula excluída.
IV - Por isso, estando provado que, entre o dia 3 e o dia 6 de julho de 2020, pessoa cuja identidade não foi possível apurar acedeu ao interior da habitação dos Autores, através da janela da sala e dali retirou, sem o conhecimento e a autorização dos Autores e com ilegítima intenção de apropriação, os bens a estes pertencentes, verificou-se efetivamente um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 1, alínea f), do Código Penal, ocorrência que se tem de considerar abrangida pela cobertura do contrato de seguro em apreço.

Texto Integral

Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO

AEGON SANTANDER PORTUGAL NÃO VIDA COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., Ré na ação declarativa de condenação que, sob a forma de processo comum, foi intentada por TP e VM, interpôs o presente recurso de apelação da sentença que julgou parcialmente procedente a ação.
Na Petição Inicial, apresentada em 08-06-2021, os Autores peticionaram que a Ré fosse condenada no pagamento da quantia de 5.985,88€, alegando, para tanto e em síntese, que:
- Os Autores celebraram com a Ré um contrato de seguro proteção lar, que inclui a cobertura, entre outros riscos, do furto do recheio da sua habitação (até ao limite de 56.000€ e objetos de valor especial até ao limite de 8.400€), em vigor desde 26-03-2020;
- Quando os Autores estavam ausentes de casa, em férias no Algarve, no dia 05-07-2020, o alarme da casa foi acionado, mas não se aperceberam então do alerta por SMS no telemóvel;
- Durante a sua ausência, foram furtados do interior da sua residência os bens que descrevem, no valor total de 5.985,88€;
- A Ré recusa pagar tal importância, invocando que, face às condições particulares do contrato, só estavam abrangidos pela cobertura do furto os casos de furto ou roubo ocorrido “com arrombamento ou escalamento de portas, janelas, montras, telhados, paredes, sobrados, tetos ou qualquer outra construção que dê acesso ao local de risco e desde que resultem vestígios inequívocos”;
- Os Autores desconheciam, por não lhes terem sido comunicadas, as condições contratuais, designadamente a condição invocada pela Ré, apenas tendo tomado conhecimento das mesmas quando foram enviadas pela Ré em 31-12-2020.
A Ré apresentou Contestação, em que se defendeu por impugnação, de facto e de direito, e por exceção, pugnando pela improcedência da ação, alegando, em síntese, que:
- Os Autores não lograram provar de forma inequívoca e objetiva a titularidade dos bens descritos, nem que os mesmos foram furtados;
- Em particular, não provaram que um (eventual) furto tenha sido praticado com arrombamento e/ou escalamento, o que era, conforme previsto nas condições do seguro, indispensável para que pudesse ser acionada a cobertura de furto ou roubo;
- “os limites das coberturas garantias e risco por si assumidos” eram “do conhecimento dos ora Autores no momento da subscrição da presente apólice”.
Realizou-se a audiência prévia, no decurso da qual foi proferido despacho saneador (tabelar), bem como despacho de identificação do objeto de litígio e enunciação dos temas da prova.
Foi realizada a audiência final, com produção de prova testemunhal.
Após foi proferida a sentença recorrida, cujo dispositivo tem o seguinte teor:
“Pelo exposto, nos termos das disposições legais supra citadas, julgo parcialmente procedente a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum de declaração, instaurada por TP e VM contra a sociedade Aegon Santander Portugal Não Vida Companhia de Seguros, S.A. e, em consequência:
1 - Condeno a ré Ageas Portugal, Companhia de Seguros, S.A. a pagar a quantia de €4.832,20 (quatro mil, oitocentos e trinta e dois euros e vinte cêntimos) referente ao montante dos bens alegadamente furtados e cobertos pela apólice de seguro n.º …;
2 - Absolvo a ré do restante pedido contra si formulado pelos autores.
Custas da ação a cargo dos autores e da ré, na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 20% a cargo dos primeiros e em 80% a cargo da segunda, nos termos dos artigos 527º, n.º 1 e 2 e 607º, n.º 6 do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.”
É com esta decisão que a Ré não se conforma, formulando na sua alegação de recurso as seguintes conclusões:
1. Salvo melhor entendimento, a douta Sentença proferida, denota um erro notório na apreciação da prova, pois perante todos os elementos constantes dos autos, fez uma incorreta interpretação dos preceitos jurídicos a aplicar ao caso em concreto.
2. Efetivamente, atenta a documentação carreada aos autos, em sede de Contestação, entende a aqui Recorrente, salvo o devido respeito, que a decisão levada a cabo pelo douto Tribunal não faz uma leitura conjugada dos elementos probatórios que instruem os presentes autos, conduzindo a uma decisão injusta e desfasada da realidade efetivamente apurada.
3. Assim, a ora Recorrente considera que, atento o Contrato de Seguro em discussão nos presentes autos, e bem assim, a demais prova documental que os instrui, outra decisão se impunha, o que relevaria para o correto enquadramento do sinistro participado nas coberturas de seguro contratadas, o que, salvo o devido respeito, que é muito, ficou aquém da análise que se lhe impunha.
4. A ora Recorrente considera que a matéria dada como provada nos pontos 6 e 7 da douta sentença foi incorretamente apreciada, a qual conduziu a uma decisão injusta e incoerente com a factualidade efetivamente levada e discutida no processo.
5. São, nomeadamente, estes os pontos que a ora Recorrente considera incorretamente julgados, na medida em que, dos elementos probatórios constantes nos presentes autos, e, bem assim, dos depoimentos testemunhais recolhidos, não é possível, salvo o devido respeito, concluir pela procedência do entendimento sufragado pelo douto Tribunal a quo.
6. Na verdade, entende a ora Recorrente que não pode ser dado como provado os factos  supra reproduzidos, dada a realidade evidenciada pelos elementos probatórios constantes nos presentes autos, e, bem assim, pelos depoimentos testemunhais  recolhidos, o que comportaria, no seu entender, uma análise e desfecho totalmente  diferente do que veio a ser considerado pelo douto Tribunal a quo.
7. Pelo que, conforme se demonstrará, os pontos 6 e 7 dos factos dados como provados deveria passar a constar do leque de factos dados como não provados.
8. Na verdade, não se entende como é que o Tribunal a quo concluiu que «Os autores lograram provar, conforme lhes competia nos termos do artigo 342º, n.º 1 do Código Civil, a verificação do risco coberto, ou seja, a ocorrência de um sinistro - in casu, um acontecimento anormal, fortuito e casual decorrente do furto dos objetos segurados –, bem como os danos sofridos em consequência de tal sinistro, o que, conjugado com a cobertura de “Furto ou Roubo” constante da apólice, é suscetível de criar na esfera jurídica da autora segurada um crédito indemnizatório contra a ré seguradora.».
9. Isto porque, em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, foi possível contar com o depoimento da testemunha CV, empregada de limpeza que, alegadamente, terá visto o imóvel seguro após ter sido assaltado.
10. Conforme decorre do depoimento prestado, a testemunha CV revelou ter um  depoimento incoerente e contraditório, nomeadamente quanto (i) à data em que terá  regressado ao imóvel seguro após a alegada ocorrência do furto; (ii) à identidade da  pessoa que a terá contactado aquando da ocorrência do alegado furto - isto é, se a mesma foi contactada pela Guarda ou, ao invés, pelo ora lesado, aqui Autor; (iii) se,  efetivamente, a testemunha havia deixado a habitação segura devidamente fechada ou  se, por outro lado, a janela da sala se encontrava entreaberta.
11. A bem dizer da verdade, o suprarreferido depoimento contraria o facto dado como provado em 8), mais precisamente quando dá como integralmente reproduzido o Auto de Notícia, de onde consta que «O lesado apenas viu este alerta após ter chegado à sua habitação, já no dia 06 (seis) de julho de 2020, pelas 14:00H, constatando que a sua residência tinha sido alvo de furto.».
12. Isto porque, muito se estranha que o ora Autor tenha afirmado, junto das autoridades policiais, que apenas se deu conta que a sua habitação havia sido furtada quando regressou ao local (vide facto 8 dado como provado), quando a referida testemunha referiu, a posteriori, ter sido contactada pelo ora Autor, previamente à sua chegada à habitação, a dar-lhe conta da ocorrência do alegado furto.
13. No demais, muito se estranha que tenha sido afirmado pela referida testemunha que, quando chegou ao local, apenas se deu conta da Guarda Nacional Republicana, quando, na verdade, quem contactou a GNR – segundo alegado, mas não provado pelo Autor, – terá sido o próprio!
14. Contrariamente ao que entendeu a douta sentença recorrida, a referida testemunha prestou um depoimento, por diversas vezes, contraditório, revelando não ter plena noção dos factos que se encontram em discussão nos presentes autos, pelo que o mesmo não deverá ter colhimento.
15. Sempre se dirá que não poderia ter sido dada grande credibilidade ao depoimento prestado pela referida testemunha, porquanto não foi tal depoimento claro, preciso e isento.
16. Aliás, contrariamente ao que entendeu a douta sentença recorrida, a referida testemunha entrou, por diversas vezes, em contradição com o que já havia dito, revelando não ter plena noção dos factos que se encontram em discussão nos presentes autos.
17. Por outro lado, em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, foi, igualmente, possível contar com o depoimento da testemunha RA, perito que realizou a vistoria à fração segura, e que contribuiu com os seus conhecimentos para o apuramento da verdade, e da testemunha JF, gestora que acompanhou o sinistro em discussão nos presentes autos.
18. Contrariamente à testemunha CV, ressalve-se que os depoimentos das testemunhas supratranscritos acabam por revestir uma importância extrema para a  decisão a proferir; porém, não foram tidos em conta, e com a relevância que mereciam  e como deviam, (i) quanto ao facto de nunca ter sido devidamente provada a ocorrência  do alegado furto; (ii) o facto de nunca ter sido explicado à aqui Recorrente os moldes  em que terá ocorrido o alegado furto, nomeadamente a justificação para o facto de a  janela da sala ter sido deixada aberta e, bem assim, ter sido, alegadamente, substituída  a fechadura da porta de entrada; (iii) e, consequentemente, o facto de nunca terem sido  remetidas, à aqui Recorrente, as faturas de reparação da janela por onde, alegadamente, se terão introduzido os meliantes.
19. Salvo o devido respeito, note-se, então, que o douto Tribunal a quo parece não ter descortinado devidamente os depoimentos testemunhais prestados, assim como o objeto contratual em discussão, porquanto, salvo o devido respeito, não resultou inequívoco, da prova testemunhal produzida em sede de Audiência de Julgamento, que o imóvel seguro tenha sido alvo de um furto, por onde os alegados meliantes entraram através da janela da sala.
20. Efetivamente, nenhuma prova foi feita, sequer, quanto à existência de alegados danos na janela da sala, nem tampouco quanto à sua eventual reparação!
21. De facto, considerando todo o supra exposto, não se vislumbra que tenha resultado inequívoco a ocorrência do alegado furto e, bem assim, os moldes em que o mesmo terá ocorrido!
22. Pelo que, a ora Recorrente entende, desde logo, que a douta decisão recorrida peca por parca nos argumentos utilizados, desconsiderando o teor dos referidos depoimentos, os quais revestem relevância para a descoberta da verdade material, e que não poderiam ter sido ignorados, até porque os depoimentos corroboram, na íntegra, a documentação carreada para os autos!
23. Por outro lado, resulta evidente do depoimento da referida gestora que a mesma não se encontrava no momento da celebração do Contrato de Seguro, tendo a testemunha referido, por diversas vezes, que não sabe os procedimentos da contratação.
24. Desta feita, entende a aqui Recorrente que andou mal o douto Tribunal a quo quando concluiu que a testemunha confirmou que, no momento da celebração, a aqui Recorrente nunca solicita nenhuma fatura de aquisição dos bens seguros, porquanto tal conclusão não resulta do depoimento prestado!
25. O que implicaria, in casu, uma decisão diversa à proferida pelo douto Tribunal a quo!
26. Nestes termos, em sentido diverso do entendimento do Tribunal de 1.ª Instância, deverá a douta sentença ser substituída por outra que venha a dar como não provados os factos  6) e 7) da matéria dada como provada, e, consequentemente, deverá a ação ser julgada  ação declarativa de condenação deveria ter sido julgada totalmente improcedente,  absolvendo-se, consequentemente, a Recorrente do pedido contra si formulado.
27. Como vem previsto no Preâmbulo do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, «O contrato de seguro considera-se validamente celebrado, vinculando as partes, a partir do momento em que houve consenso (por exemplo, verbal ou por troca de correspondência), ainda que a apólice não tenha sido emitida».
28. Não obstante a clara tendência de se sacrificar a posição contratual das Seguradoras, no pressuposto de que estas figuram, na verdade, como sendo o “lado forte” do contrato, na medida em que, em regra, encontram-se numa posição economicamente mais favorecida, não será admissível impor às Seguradoras a aceitação ou o pagamento de todo e qualquer risco/prejuízo, ainda que não contratados, no pressuposto que estes possam ser inerentes à celebração de um contrato de seguro.
29. Ressalvando o devido respeito por diversa opinião, a violação do equilíbrio contratual conseguido através da estipulação de determinadas condições específicas para cada tipo de contrato, permitiria uma efetiva ameaça ao importantíssimo papel social e económico desempenhado pelas Companhias de Seguro.
30. Efetivamente, as partes devem pautar a sua conduta pelo princípio da boa-fé, o qual deve estar presente, no decorrer de todas as fases negociais - ou seja, na fase pré-contratual, durante a vigência do contrato e mesmo depois do termo desse vínculo -, como resulta da leitura conjugada dos artigos 227.º e 762.º do Código Civil.
31. A ideia de procedimento de boa-fé está ligada a ideias de fidelidade, lealdade, honestidade e confiança na celebração e cumprimento dos negócios jurídicos e impõe às partes, quer nas negociações preliminares, quer na formulação das cláusulas definitivas, quer no cumprimento das obrigações (quer em relação ao devedor, quer em relação ao credor), que ajam sem embuste, nem dolo, para que os interesses de todas elas tenham a equilibrada solução prevista por cada uma delas e subjacente ao contrato.
32. Dito isto, entende a aqui Recorrente, a este respeito, que o douto Tribunal a quo não logrou, no entender da ora Recorrente, atentar ao conteúdo e teor das Condições Gerais do Seguro, oportunamente juntas com a douta Contestação, e, bem assim, a toda a alegação carreada aos autos pela ora Ré.
33. Efetivamente, nos termos das referidas Condições Particulares, garante-se apenas e tão só, o pagamento dos danos que resultem de furto ou roubo que tenha sido praticado com arrombamento e/ou escalamento (veja-se, neste sentido, as condições particulares juntas com a douta Contestação).
34. Conforme resulta do facto dado como provado no ponto 4, foi possível apurar que a ora Recorrente não poderá ser responsabilizada pelas eventuais indemnizações resultantes de «[...] perdas ou danos resultantes de furto ou roubo ocorrido no local de risco, desde que ocorram as seguintes situações: Com arrombamento ou escalamento de portas, janelas, montras, telhados, paredes, sobrados, tetos ou qualquer outra construção que dê acesso ao local de risco e desde que resultem vestígios inequívocos; Com ação constrangedora por meio de violência ou ameaças físicas, exercidas sobre o Segurado, qualquer pessoa do seu agregado familiar, ou outras pessoas que se encontrem no local de risco; Chaves falsas, cuja utilização tenha sido comprovada por prova pericial das autoridades competentes. [...]».
35. Não compreende a ora Recorrente como pôde o douto Tribunal considerar de maneira substancialmente diferente!
36. O que, surpreendentemente, considerou e erradamente, a nosso ver!
37. Nesta medida, ressalvando o devido respeito, que é muito, a condenar-se a ora Recorrente no pagamento dos montantes indemnizatórios peticionados pela ora Recorrida, desconsiderando a real cobertura do contrato em apreço, o que surge patente nas condições especiais da apólice em análise e se encontram juntas aos autos, violar-se-ia, por completo, o equilíbrio contratual das partes.
38. É que, salvo melhor opinião, a entender-se no sentido da douta 1.º Instância está-se a desprestigiar no todo o Contrato de Seguro, condenando a ora Recorrente em objeto diverso do contratualmente assumido, quanto, deveriam ser excluídos da indemnização todos os itens que direta ou indiretamente façam parte do conteúdo do imóvel seguro.
39. Por essa mesma razão, sempre se dirá que o douto Tribunal a quo fez uma interpretação errada do ponto 4 dado como facto provado.
40. Face ao que antecede, tendo por base a convicção errada quanto à prova produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, nos termos em que supra se encontram descritos, é entendimento da ora Recorrente que o Tribunal de que se recorre fez uma incorreta interpretação e aplicação das supracitadas normas constantes no Contrato de Seguro, tendo levado a uma decisão incoerente e injusta por parte do Tribunal a quo.
41. Logo, em sentido diverso do entendimento do Tribunal de 1.ª Instância, e demonstrada que está a existência de prova efetiva quanto à cobertura contratada e provada que está a validade do contrato de seguro naqueles termos, deverá a douta sentença ser substituída por outra que venha a absolver a ora Recorrente do pagamento aos ora Autores dos montantes apurados, devendo sempre a presente ação declarativa de condenação ter sido julgada totalmente improcedente, absolvendo-se, consequentemente, a Recorrente do pedido contra si formulado, alterando-se assim a decisão de facto e de direito.
42. Por tudo quanto se encontra exposto, entende a ora Recorrente que a douta sentença recorrida deverá ser alterada, absolvendo-se a Ré de todos os pedidos contra si formulados.
 Termina a Apelante requerendo que seja dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a sentença proferida, sendo substituída por outra que faça refletir a alteração da matéria de facto não provada, absolvendo a Ré do pedido.
Não foi apresentada alegação de resposta.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
Identificamos as seguintes questões a decidir:
1.ª) Se deve ser modificada a decisão da matéria de facto (no tocante aos pontos 6 e 7);
2.ª) Se a Ré não está obrigada a pagar a quantia fixada, por não se ter verificado um sinistro abrangido pela cobertura do contrato de seguro em apreço.

Factos provados

Na sentença foram considerados provados os seguintes factos (acrescentámos, para melhor compreensão, e por estar plenamente provado, pelo doc. 1 junto com a PI e pelo doc. 1 junto com a Contestação, o que consta entre parenteses retos – artigos 662.º, n.º 1, 607.º, n.ºs 3 e 4, ex vi 663.º, n.º 2, do CPC):
1. A Ré tem por objeto social a atividade de seguradora do ramo não vida.
2. Consta de caderneta predial urbana do Serviço de Finanças de Lisboa, que se encontra junto aos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, além do mais, que os Autores são titulares do rendimento tributável de uma moradia unifamiliar sita na Rua …, n.º …, em Alcochete.
3. A Ré firmou com a Autora um acordo escrito denominado “contrato de seguro de Proteção Lar”, do ramo “Multirriscos Habitação”, titulado pela apólice n.º …, cujas condições gerais [vertidas no doc. 2 junto com a Contestação] e particulares [vertidas no doc. 1 junto com a PI e doc. 1 junto com a Contestação] pré elaboradas pela Ré e sem prévia negociação individual se encontram junto aos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, com início em 26 de março de 2020, renovável anualmente, tendo como objeto o recheio do imóvel sito na Rua …, n.º …, 2890-183 Alcochete, o valor de 56.000,00 € (cinquenta e seis mil euros) e objetos de valor especial no valor de 8.400,00 € (oito mil e quatrocentos euros) e, como coberturas, incêndio, gastos de salvamento e demolição, fenómenos da natureza, fenómenos sísmicos, atos de vandalismo, danos materiais, quebra de vidros e outros elementos, danos por água, riscos elétricos, avaria e danos acidentais em eletrodomésticos, deterioração de bens refrigerados, furto ou roubo, privação de uso, duplicação de documentos, responsabilidade civil familiar, proteção jurídica, multisserviços [constando designadamente na dita Apólice e condições particulares, no intitulado “Quadro Coberturas”, entre outras, a Cobertura de “Furto ou roubo” e as seguintes respetivas “Sub-coberturas”: “Furto ou roubo de recheio”, “Roubo de dinheiro na habitação”, Roubo praticado sobre a pessoa”, “Roubo ou extravio de cheques e cartões”, “Substituição de chaves e fechaduras”].
4. Das condições gerais referidas em 3) consta, além do mais, o seguinte:
“(...) DEFINIÇÕES
(...) Bens protegidos
Recheio
Considera-se parte do recheio segurável nesta Apólice os bens móveis que se encontrem no local de risco, que sejam:
·           Conjunto de móveis, eletrodomésticos não encastráveis e outros objetos de uso doméstico e pessoal;
·           Instrumentos associados a uma atividade profissional de prestação de serviços, (Ex. Médicos, Advogados, contabilistas, etc.) até ao limite máximo indemnizável de 3000€;
·           Objetos de Valor Especial quando não excedam 15% do capital de recheio contratado. Não se considera como parte do recheio, não sendo segurável por esta apólice:
·           Animais de qualquer espécie;
·           Quaisquer veículos motorizados ou embarcações em garagens;
·           Quaisquer objetos que não se encontrem em local fechado não acessível a terceiros, como por exemplo objetos em jardins, alpendres, garagens comuns ou arrecadações não fechadas;
·           Quaisquer objetos que não sejam propriedade do Segurado;
·           Mercadorias ou mostruários de qualquer espécie;
·           Dinheiro, exceto para o limite indicado na cobertura de Furto ou Roubo;
·           Metais preciosos ou semi-preciosos não trabalhados ou em barra, títulos monetários de qualquer espécie (Ex. Ações, Obrigações, cheques, bilhetes de lotaria, etc.);
·           Títulos de crédito e títulos representativos de bens ou valores, qualquer que seja a sua natureza, cautelas de penhor, manuscritos, desenhos e plantas, escrituras e outros documentos.
Objetos de valor Especial
Considerando-se como tal as pedras preciosas, os metais preciosos ornamentais, pérolas, joias, gravuras e quadros, armas, antiguidades ou raridades de qualquer natureza, coleções de filatelia e numismática ou de qualquer outra natureza.
Caso o Tomador do Seguro indique que o valor destes objetos é superior a 15% do capital total do recheio, devem estes ser discriminados e valorizados individualmente em formulário próprio para o efeito, a analisar pelo Segurador. Caso o Segurador aceite garantir estes objetos, o seu capital específico será tarifado à parte, e adicionado ao valor do capital seguro respeitante ao restante recheio.
Bens não protegidos
Edifício Aplicável a seguros exclusivamente de recheio: Não está coberto por esta apólice o edifício onde se encontram os bens seguros. Entende-se por edifício a construção e instalações fixas de água, gás, eletricidade, equipamentos de climatização (incluindo caldeiras, esquentadores, radiadores, compressores AC mais os respetivos aparelhos), equipamentos encastráveis, de comunicações, elevadores, mobiliário fixo ou encastrado nas paredes de forma fixa e inamovível, portas, janelas, persianas e toldos fixos.
Veículos em garagem
Não estão cobertos por esta Apólice nenhum tipo de veículos (automóveis, motociclos, motorizados nem embarcações).
CAPITAIS SEGUROS
Para Recheio
A determinação do capital seguro é da responsabilidade do Tomador do Seguro, e deve corresponder à totalidade do recheio existente no local de risco.
Deve segurar-se cada objeto pelo seu valor de substituição por outro semelhante ou de características similares. Quando se tratem de objetos de arte, antiguidades, raridades e objetos de valor histórico, deve segurar-se cada objeto pelo seu valor comercial no mercado da especialidade. (...)”.
(...) COBERTURAS DA SUA APÓLICE
(...) Furto ou Roubo
Definições
As situações em que haja tentativa ou efetiva subtração dos bens seguros realizada por terceiros, conforme definidos neste contrato, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa.
Furto: Casos em que não existe emprego de violência sobre pessoas ou bens.
Roubo: Casos em que existe emprego de violência sobre pessoas ou bens.
Disposições Comuns
·           Para efeitos de utilização desta cobertura, é necessária a participação formal às autoridades competentes.
·           Restituição dos objetos subtraídos:
1. Se os objetos roubados ou furtados forem restituídos, no todo ou em parte, o Segurado deve avisar imediatamente o Segurador;
2. Se, nesse momento, a indemnização ainda não estiver paga, apenas é devida a parte correspondente às deteriorações sofridas pelos objetos, sem poder ultrapassar o valor que seria suportado pelo Segurador no caso de os objetos não terem sido recuperados;
3. Se a indemnização já estiver paga, o Segurado pode:
- Entregar ao Segurador os objetos recuperados, no estado em que se encontrem e que ele se
compromete a salvaguardar, sob pena de responder por perdas e danos;
- Reembolsar o Segurador da indemnização recebida, deduzindo, após prévio acordo daquela, a
indemnização correspondente às alterações sofridas pelos objetos.
O que está coberto? (...)
Furto ou roubo de recheio
As perdas ou danos resultantes de furto ou roubo ocorrido no local de risco, desde que ocorram as seguintes situações:
·           Com arrombamento ou escalamento de portas, janelas, montras, telhados, paredes, sobrados, tetos ou qualquer outra construção que dê acesso ao local de risco e desde que resultem vestígios inequívocos;
·           Com ação constrangedora por meio de violência ou ameaças físicas, exercidas sobre o Segurado, qualquer pessoa do seu agregado familiar, ou outras pessoas que se encontrem no local de risco;
·           Chaves falsas, cuja utilização tenha sido comprovada por prova pericial das autoridades competentes. (...)”.
5. No dia 3 de julho de 2020, sexta-feira, à tarde, CV, empregada de limpeza residente na Rua …, n.º …, em Alcochete, esteve a fazer limpezas na habitação referida em 3).
6. Após o descrito em 5), pessoa cuja identidade não foi possível apurar acedeu ao interior da habitação referida em 3) através da janela da sala e dali retirou, sem o conhecimento e a autorização dos Autores e com ilegítima intenção de apropriação, os seguintes bens a estes pertencentes:
a) uma televisão “TV LG SMART TV 32’ – Mod. 32LF5800”, no valor de cerca de € 278,99 (duzentos e setenta e oito euros e noventa e nove cêntimos);
b) uma “Playstation 4 PRO 1 TB” com comando, no valor de 399,99 € (trezentos e noventa e nove euros e noventa e nove cêntimos);
c) um “Sound Bar LG SJ8”, no valor de cerca de 405,00 € (quatrocentos e cinco euros);
d) um jogo “GTA 5”, no valor de cerca de 69,99 € (sessenta e nove euros e noventa e nove cêntimos);
e) um jogo “Pro evolution soccer 2020”, no valor de cerca de 69,99 € (sessenta e nove euros e noventa e nove cêntimos);
f) um computador “Portátil Asus VivoBook 15 15.6” F512DA-R7BVXSS1”, no valor de cerca de 649,90 € (seiscentos e quarenta e nove euros e noventa cêntimos);
g) um computador “PC Desktop Fujitsu Esprimo I7-9700 CPU @3.00 GHZ + Licença Office 365 pro e configurações”, no valor de cerca de 1.383,36 € (mil, trezentos e oitenta e três euros e trinta e seis cêntimos);
h) um “Teclado Logitec G413”, no valor de cerca de 99,99 € (noventa e nove euros e noventa e nove cêntimos);
i) um monitor “HP 27W JJ98AA#ABB”, no valor de cerca de 149,99 € (cento e quarenta e nove euros e noventa e nove cêntimos);
j) um computador “Portátil Asus X450JF II N. Série: E1N0WU086071026”, no valor de cerca de 800,00 € (oitocentos euros);
k) uma máquina fotográfica “Canon EOS600D”, no valor de cerca de 500,00 € (quinhentos euros) e
l) um comando “TV LG42SL9000”, no valor de 25,00 € (vinte e cinco euros).
7. Após o descrito em 6), no dia 6 de julho de 2020, a Guarda Nacional Republicana deslocou-se à habitação referida em 3), a pedido dos Autores.
8. Em 9 de julho de 2020, o militar da Guarda Nacional Republicana elaborou e assinou o auto de notícia que se encontra junto aos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta, além do mais, o seguinte:
“(...) Período da Ocorrência – 2020-07-01 13:00 a 2020-07-06 14:00
Data/Hora Conhecimento dos factos – 2020-07-06 14:15 (...)
ENQUADRAMENTO
Proveniência do crime – Fora de flagrante delito
Denúncia por particular? – Sim
Tipificação do crime – Furto em interior de residência
Valor – 5985,88 EURO (EUR)
Modus Operandi – Arrombamento – Outro
Motivo da intervenção policial – Não aplicável
Crime contra – Desconhecidos
Suspeitos conhecidos? – Não
OPC deslocou-se ao local? – Sim
LOCAL DOS FACTOS
(...) Rua/Nome: Rua … – Lagoa do Láparo
N.º/Lote: …
Código Postal: 2890-183 ALCOCHETE
Tipo de Local: Vivenda Geminada (...)
DENUNCIANTE
Tipo de Denunciante – Lesado/Ofendido (...)
TP (...)
TESTEMUNHAS
(...) CV (...)
DESCRIÇÃO DOS FACTOS E INFORMAÇÃO COMPLEMENTAR
(...) Quando me encontrava de patrulhas às ocorrências no período 08/16, acompanhado pelo Guarda 851 Cardoso, foi comunicado para nos deslocarmos ao local dos factos.
Chegado ao local dos factos, falamos com o lesado, Sr. TP que nos informou do seguinte: No dia 01 (um) de julho de 2020, saiu da habitação com a sua esposa e filho, deixando toda a sua habitação fechada.
No dia 03 (três) de julho de 2020, a testemunha teve na habitação, uma vez que à cerca de um ano que é empregada doméstica.
No dia 05 (cinco) de julho de 2020, pelas 06:23H, o lesado, recebeu um alerta no seu telemóvel, com a informação de movimento na zona da sala, uma vez que o lesado tem instalado na residência sensores de movimento em algumas divisões da habitação, sendo estes ativados, ativam o alarme sonoro.
O lesado apenas viu este alerta após ter chegado à sua habitação, já no dia 06 (seis) de julho de 2020, pelas 14:00H, constatando que a sua residência tinha sido alvo de furto.
Segundo o lesado, as janelas da sala que dão acesso ao interior da habitação, estavam abertas, tendo sido arrombadas, tendo o(s) suspeito(s), introduzindo-se pelas traseiras da habitação, onde tem acesso através do quintal de outras habitações.
Fomos informados pelo lesado, que faltava diverso material electrónico, seu e da sua esposa.
Junta-se lista com todo o material furtado, lista elaborada pelo lesado com toda a informação correspondente aos artigos furtados, perfazendo um valor total de 5.985,88€
No local compareceu ainda a testemunha, que informou que esteve no local no dia 03 (três) de julho de 2020 a efetuar a limpeza, sendo já uma prática habitual, e que nesse dia, o material em questão, encontrava-se na sala.
As restantes divisões da casa, não se encontravam remexidas, apenas no piso superior (piso 1), estava um armário aberto que continham uma mala, e estavam ambos remexidos.
Salienta-se que o lesado tem seguro de recheio de habitação, na seguradora AGEON (seguradora da entidade Bancária Santander Totta) com o n.º de apólice ….
Compareceu ainda no local do furto, o Núcleo de Investigação Criminal (NIC) e o Núcleo de Apoio Técnico (NAT).
À posterior, no dia 08 (oito) de julho de 2020, chegou via postal ao Posto Territorial de Alcochete, uma carta anónima com a seguinte informação, que passo a transcrever na íntegra: “O furto do dia 05/07/2020, na rua …, foi efetuado entre as 06:30 e as 07:02, e foi através da casa do TA, saltaram o quintal nas traseiras da casa e furtaram os bens, não sei se foi o TA, mas vi duas pessoas a carregaram uma televisão e outros objetos, também vi um VW não sei a matrícula, não consigo precisar se era um polo ou golf, mas era azul forte. Na casa reside o TA, a irmã e o namorado desta, nesse dia houve uma festa e estava lá mais gente”.
Junta-se lista com todo o material furtado; carta com a informação transcrita no auto, enviado por anónimo e com o registo de entrada SRV 00350120.
Caso se venha a apurar o(s) infrator(es) do ilícito, o lesado deseja procedimento criminal (...)”.
9. Em anexo ao auto de notícia referido em 8), consta um documento escrito intitulado “Lista de bens furtados”, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual se encontra exarado, além do mais, o seguinte:
“Quant.          Descrição        Valor
1          TV LG SMART TV 32’ – Mod. 32LF5800     278,99 (...)
1          Playstation 4 PRO 1 TB c/ comando 399,99 (...)
1          Sound Bar LG SJ8      405,00
1          Jogo GTA 5     69,99
1          Jogo Pro evolution soccer 2020        69,99
1          Comando Playstation Camuflado      59,99
1          Portátil Asus VivoBook 15 15.6” F512DA-R7BVXSS1 649,90
1          PC Desktop Fujitsu Esprimo I7-9700 CPU @3.00 GHZ
+ Licença Office 365 pro e configurações    1 383,36
1          Rato Logitec G203     42,89
1          Teclado Logitec G413           99,99
1          Monitor HP 27W JJ98AA#ABB        149,99 (...)
1          Router Asus RT-AC68U         151,90
1          Portátil Asus X450JF II N. Série: E1N0WU086071026 800,00 (...)
1          Máquina Fotografica Canon EOS600D       500,00
1          Lente Canon EF-S 55-250mm           379,99
1          Bolsa Case Logic        35,00 (...)
5          Cartões de Memoria SanDisk 64 GB 140,00
1          Comando TV LG42SL9000    25,00 (...)
1          Box Formuler Z7 + 4k           120,00
1          Apple iPhone 6S Plus – 64GB (Rosa Dourado)        210,00 (...)
1          Auscultadores Bluetooth JBL V700 Elite      288,90 (...)
1          Pen dizendo MAERSK, penso que 4 gbs       ?
1          Pen 64 GB cinza metalica, genero de porta chaves  ?
1          CASE LOGIC 18’ LAPTOP CASE - Mala Portatil   90,00 (...)
1          Carregador telemóvel Xiaomi           15,00
Total    5985,88”.
10. Na sequência do descrito em 8) foi instaurado um processo de inquérito, que correu termos sob o n.º …/…, no Departamento de Investigação e Ação Penal do Montijo.
11. No âmbito do processo de inquérito referido em 10), foi proferido em 11 de março de 2021 o despacho de arquivamento, que se encontra junto aos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta, além do mais, o seguinte:
“(...) Os presentes autos tiveram início com a denúncia apresentada por TP, dando conta que no dia 05/07/2020, a sua residência, sita na Rua … n.º … em Alcochete foi alvo de furto. Mais refere que as janelas da sala, das traseiras da habitação estavam abertas, pelo que terá sido por aí que os suspeitos teriam entrado, e que o acesso àquele local teria sido feito através do quintal nas traseiras, que confronta com os quintais das residências circundantes.
Tais factos são suscetíveis de, em abstrato, configurar a prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 203.º n.º 1 e 204.º n.º 1 alínea f) do Código Penal.
Procedeu-se ao competente inquérito, tendo-se realizado todas as diligências probatórias, possíveis e pertinentes, com vista a apurar da existência dos crimes noticiados, a determinar os seus agentes e a sua responsabilidade, e a descobrir e recolher provas em ordem à decisão sobre a acusação, conforme determina o artigo 262.º n.º 1 do Código de Processo Penal, nomeadamente, a inquirição como testemunha do ofendido TP (...), AP (...), RG (...), AL (...), JV (...), AA (...), e TA (...) junção do relatório técnico de inspeção judiciária (...) e relatório tático fotográfico (...).
Da inspeção judiciária realizada, concluiu-se que o acesso ao interior da residência foi feito pelo logradouro, tendo inicialmente o(s) suspeito(s) efetuado escalamento da vedação que separa as moradias, sendo que para tal o(s) autor(es) do furto teve(tiveram), forçosamente, de passar pelo logradouro da moradia contigua. Não tendo sido detetados sinais de arrombamento, concluiu-se ainda que terá sido utilizada chave falsa ou a porta terá sido deixada aberta. Não foram recolhidos vestígios lofoscópicos, tendo sido detetados vestígios de utilização de luvas.
Pelo OPC é referida uma carta anónima remetida via postal para o Posto territorial de Alcochete da GNR, consta que “o furto do dia 05/07/2020, na rua …, foi efetuado entre as 06:30 e as 07:02, e foi através da casa do TA, saltaram o quintal nas traseiras da casa e furtaram os bens, não sei se foi o TA, mas vi duas pessoas a carregaram uma televisão e outros objetos, também vi um VW não sei a matrícula, não consigo precisar se era um polo ou golf, mas era azul forte. Na casa reside o TA, a irmã e o namorado desta, nesse dia houve uma festa e estava lá mais gente”.
Inquirido o lesado TP, pelo mesmo foi dito que falou com o vizinho que reside no n.º 18 da mesma rua – AP – uma vez que este possuía sistema de videovigilância. Confrontado com a denuncia anónima, o mesmo referiu estar convencido ser este este vizinho o autor, uma vez que de nenhuma outra casa circundante à sua seria possível ver o que é mencionado na denúncia anónima com o pormenor com que é descrito, e que numa das vezes que falou com o vizinho a este propósito, este lhe confirmou ser o autor da denuncia, e ter verificado dia anterior ao furto, através do seu sistema de videovigilância, dois indivíduos a percorrem parte de um telhado existente na sua residência e que fica junto ao n.º 24.
AP, inquirido, declarou ter sido contactado pelo seu vizinho TP, que lhe pediu para verificar nas suas câmaras de videovigilância se viu alguém a passar no telhado junto à sua residência na noite dos factos, o que fez, não tendo verificado nada de anormal nem ninguém desde as 20h00 de dia 04-07-2020 e as 06h00 de dia 05-07-2020, e disso dando conta ao lesado. Mais referiu que, em data que não sabe precisar, foi contactado pessoalmente pela vizinha residente na casa alvo de furto, que o questionou sobre se teria verificado algo de anormal após a visualização das imagens e se tinha conhecimento de uma carta anónima enviada ao processo, tendo-lhe respondido que não, que não tinha verificado nada de anormal nem tinha conhecimento de nenhuma carta anónima. Instado a esclarecer se as câmaras de videovigilância captam alguma parte da área da residência do lesado, nomeadamente o quintal das traseiras do n.º 25, pelo mesmo foi dito que não. Por fim, questionado sobre se na data dos factos, se apercebeu de algum barulho ou algo a decorrer na casa do seu vizinho do lado, o mesmo afirmou que não.
RG, inquirida, declarou ser amiga de TA, e conhecida de AA, que na noite de 4 para 5 de julho de 2020, foi convidada pelo TA para fazerem um churrasco na casa deste na Rua …, que nesse jantar estavam também um amigo de nome B… e o M… que foram consigo, e o AA, que que jantaram e que posteriormente estiveram no quintal até de madrugada a consumir bebidas alcoólicas e a conversar, tendo a mesma saído da casa cerca das 05h00, acompanhada dos seus dois amigos, ficando na residência o TA e o AA. Questionada, esclareceu ser proprietária de um veículo da marca Volkswagen, modelo Polo, de cor azul forte e de matrícula …-…-….
AL, ouvida em declarações, referiu ser irmã de TA, que este reside na Rua … n.º …, em casa dos seus avós paternos. Referiu ainda que entre junho e julho de 2020 foi namorada de AA, que era frequente dormir na casa dos seus avós, não se recordando em concreto se tal sucedeu na noite de dia 4 para 5 de julho, que se recorda que durante uma noite, que não sabe precisar quando, notou que o seu cão de nome “Speed” ladrou de forma anormal durante essa noite, e que no dia seguinte enquanto se encontrava a dar de comer ao seu cão foi questionada pelo vizinho do n.º 18, sobre se tinha visto algo porque durante a noite este terá ouvido o som de telhas a partir e o cão a ladrar, tendo ambos efetivamente verificado que se encontrava partida uma telha.
Mais declarou que passadas cerca de 2 a 3 semanas foi ao café da praia, em Alcochete com um amigo que trata por “Padrinho” que, em conversa informal lhe perguntou se sabia o que tinha acontecido, e lhe disse que o AA tinha roubado a casa do vizinho do lado dos seus avós, e que de imediato se lembrou de um dia que não sabe precisar, quando se encontrava na casa do “Padrinho” ter visto o AA a chegar com uma coluna som, do tipo Sound bar, grande, redonda, de cor escura e da marca LG e um subwoofer que não se recorda a marca, de cor cinzento.
JV, conhecido como “Padrinho”, inquirido como testemunha começa por esclarecer que o TA o trata por “Padrinho” por ser seu afilhado, e que o AA também o faz, mas por afinidade. Sobre o furto ocorrido em julho de 2020, na casa ao lado da casa dos avós do TA, sita em Rua …, declarou não ter conhecimento referindo, contudo, que em meados de agosto de 2020, AA foi ter com ele ao pavilhão de Alcochete e o questionou sobre se podia guardar umas coisas no seu quintal, ao que lhe respondeu que não, uma vez que não tinha ali espaço e que aquele local estava em obra.
AA, inquirido, declarou que à data dos factos era namorado da irmã do TA, que na noite de dia 4 para 5 de julho de 2020, foi convidado pelo TA e pela sua irmã para fazerem um churrasco na casa dos avós destes, sendo essa também a residência do TA, na Rua …, em Alcochete. Que foi ao churrasco e por volta das 01h00 do dia 5 de julho de 2020, foi embora para sua casa dormir, não se recordando se foi de boleia com a RG ou apeado, que nesse jantar, para além do TA, estava lá uma rapariga de nome RG, que tem um carro azul e trabalha no “Lidl” e dois amigos da RG. Que não se recorda a que horas foi para casa do TA, mas que foi a RG é que lhe deu boleia, que chegaram todos ao mesmo tempo a casa do TA e que quando chegaram só lá estava o TA. Mais refere que depois de jantaram, pelas 01h00 foram todos embora, ficando apenas o TA sozinho em casa. Questionado sobre se conhece um homem de alcunha “Padrinho”, e se alguma vez levou para casa dele algum sistema de som, do tipo sound bar, o mesmo disse que apenas levou quatro ou cinco vezes uma coluna sua da marca Sony, de cor preta e de pequenas dimensões. Por fim, declarou apenas ter tido conhecimento do furto na residência junto à casa do TA, quando foi contactado pelos OPC.
TA, inquirido, declarou não ter morada fixa, pernoitando muitas vezes na rua e que a morada Rua … n.º …, 2890 Alcochete é da casa onde residem os seus avós Ondina e GA e que se desloca a essa morada, cerca de uma vez por semana, para tomar banho, buscar roupa e comer. Questionado, disse ter tido conhecimento do furto investigado nos autos através dos guardas que o notificaram para ser inquirido, que se recorda que nesse dia estava na casa dos avós, até porque era domingo e lá tinha estado a passar o fim de semana, que foi jantar fora com a sua irmã e regressou a casa, em hora que não recorda, acompanhado pela mesma (AL), e que após o regresso a casa dos avós, lá se encontravam o seu cunhado AA, uma amiga de nome RG e mais três ou quatro pessoas que não recorda quem eram. Refere que durante algum tempo, que não recorda quanto, estiveram a consumir bebidas alcoólicas, e que “apagou” dado o seu estado de embriaguez, tendo apenas acordado na manhã seguinte, sozinho. Instado a esclarecer, refere não saber a que horas as pessoas que lá se encontravam saíram da casa, e que não se apercebeu de quaisquer barulhos ou movimentos estranhos na rua.
Confrontado com as declarações das demais testemunhas, referiu que se encontrava bastante alcoolizado, que “fez muitas misturas ao jantar”, que quando regressou a casa dos avós após o jantar já se encontrava nesse estado, mas que ainda assim continuou a beber, e como tal pouco recorda dessa noite.
Cumpre decidir,
Resulta de tudo quanto supra foi exposto que, das diligências realizadas, não foram recolhidos quaisquer elementos que permitam identificar o(s) autor(es) dos factos em investigação.
Por outro lado, e muito embora resultem diversas incongruências quanto ao que, de facto, se passou naquela noite na casa dos avós do suspeito, do depoimento das várias testemunhas não resultam quaisquer elementos de prova relevantes tendentes à descoberta da verdade, desconhecendo-se a existência de quaisquer testemunhas que tenham assistido aos factos e consigam identificar os suspeitos.
Assim, e não se vislumbrando, por ora, quaisquer outras diligências a realizar que possam contribuir para a identificação do(s) autor(es) dos factos denunciados, determino o arquivamento dos autos, ao abrigo do disposto no artigo 277.º n.º 2 do Código de Processo Penal, sem prejuízo da possibilidade de reabertura do inquérito, nos termos do disposto no artigo 279.º n.º 1 do Código de Processo Penal, caso venham a surgir, decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal, novos elementos de prova. (...)”.
12. O sinistro foi comunicado à Ré no dia 7 de julho de 2020 telefonicamente.
13. De acordo com a participação dos Autores à Ré, alegadamente no dia 5 de julho de 2020, pelas 06,23 horas, durante o período de férias dos Autores, foi emitido um alarme que indiciava que alguém teria acedido ao interior do imóvel seguro, nomeadamente, através das janelas das traseiras, tendo alegadamente furtado diversos artigos, nomeadamente, uma TV LG, uma playstation 4 Pro 1 e um monitor HP.
14. A Ré, através dos seus peritos, encetou diligências de averiguação no sentido de apurar as causas do evento participado, bem como apurar os danos sofridos em decorrência do mesmo.
15. A Uon Consulting elaborou o relatório de peritagem datado de 1 de setembro de 2020, que se encontra junto aos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta, além do mais, o seguinte:
“(...) Factos Apurados: Em sede de peritagem e conforme relatos do interlocutor presente Sr. TP (marido da Segurada), o mesmo informa que na passada madrugada do dia 05/07/2020 pelas 06h23, acederam ao interior da sua moradia por possível recurso a escalada do muro no logradouro tardoz há habitação e respetivo acesso ao interior pela janela de correr da sala. Ao chegar á habitação após fim de semana ausente, o Sr. TP deparou-se com a falta de vários equipamentos eletrónicos furtados (...).
Foi-nos também dado a observar a substituição da fechadura pertencente à porta principal de acesso à moradia, reparação de trincos de janela de correr da sala bem como a instalação de um alarme pela empresa Securitas (instalação realizada posteriormente à ocorrência reclamada). Segurado disponibilizou a fatura da reparação supramencionada, não constando qualquer reparação à janela por onde ocorreu o suposto arrombamento, impossibilitando-nos aferir a ocorrência em apreço). (...)
Observações: Em análise ao local de risco e aos elementos facultados, não nos é possível aferir qualquer método de entrada à habitação, não existindo indícios de entrada por método escalada/arrombamento conforme indicado em auto de notícia pelo segurado.
Em visita, constatámos as reparações já efetuadas a nível da janela onde ocorreu o suposto arrombamento, não havendo fotografias fornecidas pelo Segurado a provar a destruição da mesma, não existindo de igual forma fotografias ou faturas de aquisição dos bens reclamados, somos da opinião que a presente ocorrência não encontra o pressuposto enquadramento conforme descrito nas condições gerais da apólice vigente. (...).”
16. A Ré endereçou à Autora, que recebeu, uma carta datada de 25 de setembro de 2020, que se encontra junto aos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, da qual consta, além do mais, o seguinte:
“(...) Apólice: …
Data do Sinistro: 05/07/2020
Processo de Sinistro n.º …
(...) Reportamo-nos ao sinistro ocorrido na 2890-183 – ALCOCHETE, no dia indicado, e do qual resultaram os prejuízos que foram objeto de avaliação
Após análise dos elementos que instruem o nosso processo, e no seguimento da peritagem realizada constatou-se que não nos é possível aferir qualquer método de entrada na habitação, não existindo indícios de entrada por método de escalada/arrombamento conforme indicado em auto de notícia, por V. Exa.
Em visita, constatou-se as reparações já efetuadas ao nível da janela onde ocorreu o arrombamento participado por V. Exa, não havendo fotografias fornecidas a provar a destruição da mesma, não existindo de igual forma fotografias ou faturas de aquisição dos bens reclamados.
Desta forma, concluímos que a ocorrência participada não tem enquadramento contratual nas garantias da apólice, nomeadamente na cobertura de Furto ou Roubo.
Lamentavelmente, não podemos dar seguimento a este assunto e vamos proceder ao encerramento do nosso processo de sinistro.
Para que possa confirmar o atrás exposto, transcrevemos infra o extrato das Condições Gerais que suportam a nossa decisão final:
“Furto ou Roubo:
O que está coberto?
As perdas ou danos resultantes de furto ou roubo ocorrido no local de risco, desde que ocorram nas seguintes situações:
- Com arrombamento ou escalamento de portas, janelas, montras, telhados, paredes, sobrados, tetos ou qualquer outra construção que dê acesso ao local de risco e desde que resultem vestígios inequívocos;
- Com ação constrangedora por meio de violência ou ameaças físicas, exercidas sobre o Segurado, qualquer pessoa do seu agregado familiar, ou outras pessoas que se encontrem no local de risco;
- Chaves falsas, cuja utilização tenha sido comprovada por prova pericial das autoridades competentes.” (...)”.
17. A Ré endereçou à ilustre mandatária dos Autores um e-mail datado de 12 de outubro de 2020, 17:09, que se encontra junto aos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta, além do mais, o seguinte:
“(...) Mais uma vez acuso a receção do vosso email e volto a adicionar a minha advogada para dar seguimento ao processo.
FT tf@….com escreveu no dia segunda, 12/10/2020 à(s) 15:35:
Exmo. Senhor,
Agradecemos o envio da sua missiva, cujo teor mereceu a nossa melhor atenção.
No que diz respeito ao processo em epígrafe vimos por este meio clarificar:
Após análise dos elementos que instruem o nosso processo, e no seguimento da peritagem realizada constatou-se que não nos é possível aferir qualquer método de entrada na habitação, não existindo indícios de entrada por método de escalada/arrombamento conforme indicado no auto de notícia, por V. exa.
Em analise as condições da cobertura de furto verificamos que:
Furto ou Roubo de recheio
As perdas ou danos resultantes de furto ou roubo ocorrido no local de risco, desde que ocorram nas seguintes situações:
- Com arrombamento ou escalamento de portas, janelas, montras, telhados, paredes, sobrados, tetos ou qualquer outra construção que dê acesso ao local de risco e desde que resultem vestígios inequívocos;
- Com ação constrangedora por meio de violência ou ameaças físicas, exercidas sobre o Segurado, qualquer pessoa do seu agregado familiar, ou outras pessoas que se encontrem no local de risco;
- Chaves falsas, cuja utilização tenha sido comprovada por prova pericial das autoridades competentes.
Na análise as circunstâncias do sinistro não foram apresentadas/recolhidas vestígios inequívocos da ocorrência e modus operandi, sendo que, conforme indicado acima, um requisito para acionar a cobertura de Furto/roubo de conteúdo.
Na análise ao Auto de notícia não se constata que se tenham apurado vestígios inequívocos por parte do guarda interveniente e/ou Unidade de investigação.
Ressalvamos que em momento algum do processo de sinistro, desde a abertura do mesmo a 10-07¬2020, foi indicado da existência uma tentativa de beneficiar e/ou ações dolosas por parte do Estimado Cliente. O que foi informado foi que, uma vez que não foi possível o apuramento claro e inequívoco de vestígios da ocorrência estamos impossibilitados de acionar a cobertura supra mencionado.
Em visita, constatou-se as reparações já efetuadas ao nível da janela onde ocorreu o arrombamento participado por V. Exa, não havendo fotografias da data de ocorrência fornecidas a provar a destruição da mesma.
Desta forma, consideramos que não se verificam fundamentos bastantes para justificar a alteração da decisão anteriormente comunicada, motivo pelo qual reiteramos a mesma.
Lamentavelmente, não podemos dar seguimento a este assunto e vamos proceder ao encerramento do nosso processo de sinistro. (...)”.

Da modificação da decisão da matéria de facto

Na motivação da decisão da matéria de facto, foram tecidas pelo Tribunal a quo, no que ora importa, as seguintes considerações:
“A convicção do Tribunal fundou-se na apreciação crítica do conjunto da prova produzida em sede de audiência de julgamento, valorada à luz da lei e das regras de experiência, em conformidade com o disposto no artigo 607º, n.º 4 e 5 do Código de Processo Civil, designadamente:
- nos depoimentos das testemunhas:
- CV, empregada de limpeza, que prestou um depoimento claro e objetivo, revelando ter conhecimento dos factos em apreço, motivo por que tal depoimento mereceu credibilidade ao Tribunal, em particular, na parte em que foi inequivocamente confirmado pelos demais meios de prova; referiu que trabalhou como empregada de limpeza para os autores em 2020 cerca de três/quatro meses antes dos factos em apreço; afirmou que na sexta-feira foi trabalhar para casa dos autores entre as 14,30 horas e as 18,30 horas, tendo deixado tudo em ordem e tudo fechado; revelou ter conhecimento dos bens existentes na casa dos autores objeto de furto, tendo confirmado a existência de uma televisão, uma “playstation”, um equipamento de som, comandos, três ou quatro computadores, um monitor, um teclado, uma máquina fotográfica e dois ou três jogos; referiu que na segunda feira seguinte voltou a casa dos autores, a pedido destes, tendo constatado que a mesma havia sido assaltada, sendo sua convicção que entraram na casa através da janela da sala porque a mesma não fechava muito bem e não tinha persiana;
- RA, perito da ré, que relatou as circunstâncias em que se deslocou à habitação dos autores para realizar uma peritagem devido a um furto, tendo afirmado ter visto as várias divisões da casa onde se encontravam os equipamentos alegadamente furtados; confirmou o teor do relatório de peritagem por si elaborado e constante dos autos; referiu que no local existem diversas moradias em banda; esclareceu que o acesso à casa dos autores foi efetuado por escalamento do muro da habitação e através da janela da sala;
- JF, gestora de sinistros da ré, que revelou não ter qualquer conhecimento direto dos factos em apreço, motivo por que o seu depoimento apenas foi valorado na parte em que foi inequivocamente confirmado pelos demais meios de prova e/ou pelas regras da experiência comum; apesar de ter afirmado não ter estado presente no momento da contratação, contribuiu para o esclarecimento da natureza, objeto e conteúdo do contrato de seguro em causa; afirmou que o sinistro em causa não tem enquadramento na cobertura de furto contratada, por inexistirem vestígios inequívocos do alegado furto; reconheceu que, aquando da contratação, a ré nunca pediu qualquer fatura de aquisição dos bens objeto de seguro; revelou não ter conhecimento se e quando foram entregues pela ré as condições de seguro;
- nos documentos constantes dos autos, maxime, as condições particulares da apólice de seguro oferecidas com a petição inicial sob o doc. 1 e com a contestação sob o doc. 1; o auto de notícia e a lista de bens furtados oferecidos com a petição inicial sob o doc. 2; a missiva datada de 25 de setembro de 2020 oferecida com a petição inicial sob o doc. 3 e com a contestação sob o doc. 5; os e-mails oferecidos com a petição inicial sob os docs. 4 e 6; o despacho de arquivamento e a respetiva notificação oferecidos com a petição inicial sob o doc. 5; as condições gerais e especiais de seguro oferecidas com a contestação sob o doc. 2; o relatório de peritagem oferecido com a contestação sob o doc. 3 e a confirmação de vistoria, incluindo a caderneta predial urbana, oferecida com a contestação sob o doc. 4.
(…) A convicção do Tribunal relativamente à factualidade provada referida em 6) baseou-se no teor do auto de notícia e da lista de bens furtados oferecidos com a petição inicial sob o doc. 2, conjugado com os depoimentos das testemunhas CV e RA, com o teor do relatório de peritagem e da confirmação da vistoria oferecidos com a contestação sob os docs. 3 e 4 e com as regras da experiência comum. O valor dos bens furtados consta da lista de bens apresentada pelo lesado junto das autoridades policiais competentes e foi confirmado pelo relatório de peritagem mandado efetuar pela própria ré.
O auto de notícia oferecido com a petição inicial sob o doc. 2 serviu para atestar a factualidade provada referida em 7) e 8). (…)”
A Ré discorda de que tenha sido produzida prova dos factos atinentes à ocorrência de um furto, pretendendo que sejam considerados não provados os factos vertidos nos pontos 6 e 7.
Apreciando.
Em primeiro lugar, consideramos que, apesar da aparente abrangência desta impugnação, parecendo abarcar a matéria de facto constante da segunda parte do ponto 7 - isto é, que a Guarda Nacional Republicana se deslocou à habitação referida em 3), a pedido dos Autores -, estamos em crer que a Ré-Apelante não pretendeu questionar este último facto, até porque nunca o negou, antes pelo contrário (cf. art.º 54.º da Contestação), reconhecendo ter sido efetuada a participação de um furto à competente autoridade policial.
Seja como for, consta dos autos a cópia do auto de notícia elaborado pela GNR do Posto Territorial de Alcochete, que cabalmente demonstra que o Autor, aí identificado como denunciante/lesado/ofendido, denunciou um furto na sua residência, que terá ocorrido entre as 13h do dia 01-07-2020 e as 14 h do dia 06-07-2020, e que dois agentes da GNR se deslocaram ao local, onde falaram com o lesado, retirando-se da respetiva “descrição dos factos e informação complementar” ter sido o Autor quem solicitou a comparência da autoridade policial.
Assim, e sendo obviamente irrelevante saber se a solicitação da comparência da GNR foi feita pelo Autor ou pelos Autores, queda inalterada, neste particular, a decisão da matéria de facto.
No que verdadeiramente importa, invoca a Ré, em síntese, que:
- o depoimento da testemunha CV, empregada de limpeza, foi prestado de forma incoerente e contraditória, nomeadamente quanto (i) à data em que terá regressado ao imóvel seguro após a alegada ocorrência do furto; (ii) à identidade da pessoa que a terá contactado aquando a ocorrência do alegado furto - isto é, se a mesma foi contactada pela Guarda ou, ao invés, pelo ora lesado, aqui Autor; (iii) se, efetivamente, a testemunha havia deixado a habitação segura devidamente fechada ou se, por outro  lado, a janela da sala se encontrava entreaberta; estar este depoimento em contradição com o facto dado como provado em 8), mais precisamente quando dá como integralmente reproduzido o Auto de Notícia;
- o depoimento da testemunha Rúben Sérgio Ruivo Amaro, perito que realizou a vistoria à fração segura e que contribuiu com os seus conhecimentos para o apuramento da verdade;
- o depoimento da testemunha JF, gestora de sinistros, que acompanhou o procedimento.
Contrariamente ao que a Ré defende, não nos parece que o depoimento da testemunha CV se tenha mostrado contraditório ou pouco isento. Apenas se nos afigurou um pouco impreciso quanto a alguns aspetos, para o que muito terá contribuído a circunstância de a testemunha não dominar bem a língua portuguesa (aliás, identificou-se como sendo de nacionalidade romena, como também consta no auto de notícia). De qualquer modo, afirmou a testemunha, com segurança e de forma inequívoca, que foi trabalhar na sexta-feira (verificámos, consultando o calendário do mês de julho de 2020, que o dia 3 foi uma sexta-feira) e que na casa estavam todos os objetos que lhe foram sendo descritos. Mais afirmou que, quando saiu, deixou a casa fechada, e que só lá voltou, na segunda-feira, quando a chamaram, dando-lhe conta de que a casa tinha sido assaltada.
Não se descortinou nenhuma contradição entre este depoimento e os factos vertidos em 8, incluindo as declarações do Autor mencionadas no auto de notícia. Com efeito, ainda que o Autor possa ter recebido um alerta por SMS no seu telemóvel, às 6.23 h do dia 05-07-2020, quando estava em férias, é possível que o Autor não se tenha apercebido disso na altura, mas apenas quando chegou a casa e viu o estado em que a mesma se encontrava, por ter ido então verificar se havia algum alerta de intrusão, entrando depois em contacto com a GNR.
Note-se, aliás, que a testemunha começou por dizer que a “chamaram” e depois, a instâncias da mandatária da Ré, disse que “foi chamada na segunda-feira da TA e da Guarda” (estando incorreta a transcrição apresentada pela Apelante, segunda a qual a testemunha terá dito “fui chamada, na segunda-feira, pela Guarda”), acrescentando (ter sido chamada) “a dizer que a casa foi assaltada”.  Embora tenha sido pouco clara, percebeu-se que o contacto foi feito pelo Autor TA ou por um agente da GNR na presença do Autor, quando este já tinha chegado a casa com a família e constatado o assalto, admitindo-se que possa ter sido solicitada pela GNR a presença da empregada doméstica, por ter sido a última pessoa que os Autores sabiam ter estado lá em casa, sendo estes os únicos que dispunham, como é óbvio, dessa informação e do contacto telefónico da testemunha.
De referir ainda que, à pergunta da Sr.ª Juíza sobre se (a testemunha) sabia como é que tinham (os assaltantes) entrado na casa, respondeu que achava que teria sido pela “janela grande” da sala, acrescentando, que “A janela estava fechada, mas não estava fechada assim muito bem. Tentei fechar melhor, mas não fechava bem … E lá não tinha persianas». Ora, com esta afirmação não lográmos perceber se a testemunha se estava a referir ao facto de ter deixado a janela em questão na sexta-feira fechada, mas sem estar “muito bem” fechada, ou se, ao invés, tendo constatado, na segunda-feira, que a janela da sala estava aberta, assumiu que seria por aí que os assaltantes teriam entrado, verificando que a janela não fechava bem. Seja como for, resultou claro do que a testemunha disse que apenas regressou à casa dos Autores já após a ocorrência do furto e que tinha deixado a casa bem fechada na sexta-feira, conforme resulta da passagem transcrita pela própria Apelante, na sua alegação de recurso:
Testemunha: «Sim, eu fui na sexta-feira, à tarde, às 14h30m – 18h30m, e deixei tudo em ordem.
Tudo fechado, tudo pronto, tudo em ordem.».
Mandatário dos Autores: «Portanto, a Sra. teve lá na sexta?»
Testemunha: «Sim, na sexta à tarde.»
Mandatário dos Autores: «(...) Isto aconteceu no domingo (...) a Sra. disse que estava tudo fechado?».
Testemunha: «Sim, estava tudo fechado.»
Quanto ao depoimento da testemunha RA, de modo algum se retira do que disse que não tenha ocorrido um furto. Pelo contrário, a descrição que fez do que lhe foi dado observar, até reforçou a nossa convicção a respeito da ocorrência dos factos em apreço, designadamente na parte em que afirmou:
“(…) solicitei ao Segurado para me mostrar qual foi o ponto de acesso (...) onde me levou às traseiras da moradia. Verifiquei que se tratava de uma moradia em banda (...). A entrada teria sido por uma janela, de correr, da sala e antes disso o escalamento do muro da habitação”.
A testemunha também referiu que o Autor lhe disse que tinha procedido à reparação das dobradiças e do trinco da janela da sala, pelo que solicitou o comprovativo disso, uma vez que, quando lá esteve (no dia 13 de julho, note-se), já tinha sido efetuada a reparação, tendo-lhe sido apresentada fatura relativa à reparação da porta de entrada. É verdade que a testemunha respondeu, a instâncias da mandatária da Ré, que não lhe tinham mostradas faturas para comprovar que os bens furtados existiam, mas não se vê qual a relevância disso, considerando que nada indica que a Seguradora tenha então solicitado tais faturas.
Quanto ao depoimento da testemunha JF, não se revestiu de relevância, pelo menos da que a Ré lhe pretende atribuir no que concerne aos factos em apreço, parecendo-nos indiferente para o caso a afirmação que fez a respeito do não recebimento de comprovativo da compra dos bens, até porque não sabia como havia sido feita a contratação do seguro, designadamente se era necessário declarar a existência e o valor dos bens existentes (embora nos pareça que seria algo inusitado que uma tal declaração fosse necessária relativamente aos bens integrantes do recheio, passíveis de, a qualquer momento, na vigência do contrato, serem adquiridos, não sendo “Objetos de valor especial”). A testemunha explicou, a instâncias da mandatária da Ré “Trata-se de um sinistro de furto e o motivo do não enquadramento foi por que não se verificou estarem reunidos os pressupostos para o enquadramento dessa cobertura” e ainda “Foi-nos informado que teria ocorrido um escalamento, mas não foi verificado nenhum vestígio que comprovasse a intrusão, nomeadamente danos (...) na janela. Não verificámos danos dessa janela, não temos nenhuma fotografia da janela, nem nos foi remetida nenhuma fatura desses danos”.
A Apelante faz, na sua alegação recursória, várias objeções, muitas em jeito de interrogação, no sentido de demonstrar a existência de um erro de julgamento de facto, mas em nada contendem com a convicção que lográmos formar a respeito da ocorrência de um furto na casa dos Autores, não divergindo da que foi a convicção do Tribunal a quo.
Para tanto, foi de especial relevância o depoimento da testemunha CV, prestado nos termos acima referidos, sendo de registar ainda que até descreveu, com espontaneidade, o estado em que a casa se encontrava, dando conta da existência de uma garrafa de uísque vazia no chão da sala e de ter sido consumida comida (iogurte) que estava no frigorífico (disse que “ficou só embalagem vazia na mesa”).
Atentámos, em particular, no auto de notícia (doc. 2 junto com a PI), bem como no denominado relatório de peritagem (docs. 3 e 4 juntos pela Ré com a sua Contestação), aí se dando conta (“Foi-nos também dado a observar”), além do mais, da substituição da fechadura da porta principal de acesso à moradia, da reparação de trincos da janela de correr da sala (“constatámos as reparações já efetuadas a nível da janela onde ocorreu o suposto arrombamento”), bem como da instalação de um alarme pela empresa Securitas (instalação realizada posteriormente à ocorrência); no relatório constam diversas fotografias, incluindo a do “local onde foi realizado o acesso por escalamento à fração segura” e a da “câmara de vigilância pertencente à moradia do vizinho do segurado”.
Mais atentámos na existência de carta anónima que, segundo referido no relatório, o Autor acreditava ter sido enviada por um vizinho da urbanização, de idade avançada, e que não se quis identificar com possível medo de represálias.
Tivemos em atenção o conteúdo do despacho de arquivamento, em particular os depoimentos que aí foram prestados, resultando da sua análise que existiam indivíduos suspeitos de terem praticado os factos numa determinada ocasião.
Ao contrário do que a Apelante defende, não podemos aceitar que tenha ficado por demonstrar a reparação do trinco da dita janela apenas por não ter sido apresentada uma fatura, tanto mais quando até é mencionado expressamente, no aludido relatório de peritagem, ter sido contratado pelo segurado um “Reparador”, a “Montiperes Caixilharia de Alumínio e Ferro, Lda.”, que facilmente poderia ter sido contactada para confirmar se, como nos parece possível, efetuou, além do mais, a reparação do trinco, apesar disso não estar discriminado na fatura, no valor de 292,50€, que também consta do dito relatório (cf. doc. 4 junto com a Contestação).
De referir, por último, que nada de estranho se vê na circunstância de ter sido trocada a fechadura da porta principal, facto que foi inclusivamente referido pela testemunha RA como sendo normal. Na verdade, lá diz o ditado “casa roubada trancas à porta”, sendo compreensível um reforço da segurança perante um evento desta natureza.
Improcedem, pois, as conclusões da alegação de recurso atinentes à impugnação da decisão da matéria de facto, que se mantem inalterada.

Da verificação de sinistro abrangido pela cobertura do contrato de seguro

Na fundamentação de direito da sentença teceram-se designadamente as seguintes considerações de direito (sublinhado nosso):
«(…) Confirmando-se a ocorrência do sinistro – que equivale à verificação, total ou parcial, do evento compreendido no risco assumido pelo segurador, nos termos do artigo 99º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro - e das suas causas, circunstâncias e consequências, o segurador, tratando-se de seguro de danos, deve pagar ao segurado o capital seguro até ao limite do dano, decorrendo tal obrigação de pagamento da responsabilidade contratual assumida, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 102º e 128º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro.
De acordo com o artigo 342º, n.º 1 do Código Civil, aos autores cabe a alegação e o ónus da prova dos factos constitutivos do direito invocado, in casu, a ocorrência do sinistro, os danos dele decorrentes e o nexo de causalidade entre o sinistro e tais danos.
Nos termos do artigo 342º, n.º 2 do Código Civil, à ré cabe a alegação e o ónus da prova da verificação de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pelos autores.
1.2. No caso sub judice, resulta da factualidade apurada que a ré firmou com a autora um acordo escrito denominado “contrato de seguro de Proteção Lar”, do ramo “Multirriscos Habitação”, titulado pela apólice n.º …, com início em 26 de março de 2020, renovável anualmente, tendo como objeto o recheio do imóvel sito na Rua …, n.º …, Alcochete, no valor de €56.000,00 (cinquenta e seis mil euros) e objetos de valor especial no valor de €8.400,00 (oito mil e quatrocentos euros) e, como coberturas, além do mais, furto ou roubo.
Os autores lograram provar, conforme lhes competia nos termos do artigo 342º, n.º 1 do Código Civil, a verificação do risco coberto, ou seja, a ocorrência de um sinistro - in casu, um acontecimento anormal, fortuito e casual decorrente do furto dos objetos segurados –, bem como os danos sofridos em consequência de tal sinistro, o que, conjugado com a cobertura de “Furto ou Roubo” constante da apólice, é suscetível de criar na esfera jurídica da autora segurada um crédito indemnizatório contra a ré seguradora.
A autora aderente no contrato de seguro em apreço efetuou a participação do sinistro, confiando na proteção do seguro com cobertura de “Furto ou Roubo”, visando a garantia do pagamento da indemnização devida por danos causados por furto.
No entanto, a autora foi surpreendida pela atuação da ré seguradora que declinou a responsabilidade assumida por via do contrato de seguro após a adesão, invocando, além do mais, a falta de enquadramento do sinistro na cobertura de seguro contratada.
Cumpre, então, verificar se a ré logrou provar factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pelos autores, nos termos do artigo 342º, n.º 2 do Código Civil.
A ré declinou a obrigação de indemnizar decorrente do contrato de seguro em causa, invocando, para tal e além do mais, a existência de uma cláusula constante das condições gerais que restringia a cobertura respeitante ao “Furto ou Roubo” às “perdas ou danos resultantes de furto ou roubo ocorrido no local de risco, desde que ocorram as seguintes situações: com arrombamento ou escalamento de portas, janelas, montras, telhados, paredes, sobrados, tetos ou qualquer outra construção que dê acesso ao local de risco e desde que resultem vestígios inequívocos; com ação constrangedora por meio de violência ou ameaças físicas, exercidas sobre o Segurado, qualquer pessoa do seu agregado familiar, ou outras pessoas que se encontrem no local de risco; chaves falsas, cuja utilização tenha sido comprovada por prova pericial das autoridades competentes. (...)”.
Ora, estando em causa um contrato de adesão, que integra cláusulas contratuais gerais que foram elaboradas sem prévia negociação individual e às quais a autora segurada se limitou a aderir, deve desde logo convocar-se para a resolução do presente litígio o regime jurídico previsto no Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro.
Tal significa que impende sobre a ré, enquanto seguradora, a obrigação de comunicar e explicar as condições gerais do contrato de seguro à autora segurada, uma vez que aquela é a responsável primeira por essa comunicação e informação no âmbito dos contratos de adesão, nos termos dos artigos 5º e 6º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, e 18º, n.º 1 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro.
Na verdade, o ónus de informação completa e esclarecida sobre o conteúdo do contrato e respetivas exclusões em vista da proteção da autora segurada impende sobre a ré seguradora, por força do princípio da boa fé contratual previsto no artigo 227º do Código Civil, das disposições conjugadas dos artigos 5º e 6º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro e 18º, n.º 1 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, e da necessidade da salvaguarda da proteção do consumidor segurado, como parte mais fraca e vulnerável.
In casu, não ficou demontrado nos autos que a ré seguradora, na altura da contratação, tenha efetivamente disponibilizado e comunicado à segurada aderente o conteúdo integral das condições gerais e particulares indispensáveis à definição da cobertura do seguro e das suas exclusões, mormente o clausulado de que agora se pretende prevalecer.
Ora, a falta de comunicação de tal cláusula do seguro à autora aderente tem como efeito a sua eliminação do conteúdo contratual, nos termos do artigo 8º, alíneas a) e b) do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, não podendo a ré seguradora prevalecer-se da mesma para se eximir da sua responsabilidade de ressarcir pela ocorrência do risco de furto sob cobertura.
No caso em apreço, ficou demonstrado que pessoa cuja identidade não foi possível apurar acedeu ao interior da habitação dos autores através da janela da sala e dali retirou, sem o conhecimento e a autorização destes e com ilegítima intenção de apropriação, os bens identificados no ponto 6) da factualidade provada, tendo o sucedido sido participado às autoridades policiais competentes.
É certo que não se provou o modo exato como os autores do furto se terão introduzido na habitação dos ora autores. Contudo, é inquestionável que o furto em apreço foi praticado “mediante a introdução ilegítima” na casa dos autores, onde se encontravam os inúmeros objetos furtados. É quanto basta para se considerar o sinistro em causa abrangido dentro do conceito de furto qualificado previsto no artigo 204º, n.º 1, alínea f) do Código Penal, interpretado no sentido de abranger aqueles riscos pelos quais são habitualmente conhecidos os seguros por furto ou roubo em habitação (neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30/06/2015, processo n.º 90/12.3TBVZL.C2, in www.dgsi.pt).
Por conseguinte, atenta a factualidade apurada e as considerações supra expostas, é de concluir que os danos resultantes do sinistro verificado se encontram a coberto do contrato de seguro celebrado entre a autora e a ré seguradora.
Nestes termos, a ré incorreu na obrigação de indemnizar a autora pelo prejuízo derivado do furto em causa correspondente ao valor dos objetos furtados e não recuperados, no montante global de €4.832,20 (quatro mil, oitocentos e trinta e dois euros e vinte cêntimos).
Quanto ao mais, dir-se-á que os autores não lograram fazer a prova dos factos constitutivos do direito de crédito no qual suportaram a pretensão feita valer em juízo, conforme lhes competia nos termos do artigo 342º, n.º 1 do Código Civil, pelo que a ausência de prova sobre os fundamentos do direito invocado, apenas contra os mesmos poderá ser valorada, em face dos critérios de repartição do ónus de prova convocáveis, nos termos dos artigos 342º, n.º 1 do Código Civil e 414º do Código de Processo Civil.
Face ao exposto, deverá ser julgada parcialmente procedente a presente ação e, em consequência, deverá a ré ser condenada a assumir o sinistro participado pela autora segurada, por se encontrar abrangido pelo contrato de seguro válido e eficaz titulado pela apólice n.º … e a pagar o valor de €4.832,20 (quatro mil, oitocentos e trinta e dois euros e vinte cêntimos) referente ao montante dos bens alegadamente furtados e cobertos pela referida apólice.
A Ré-Apelante insurge-se contra a decisão recorrida, que considera incompreensível.
Uma parte da sua argumentação centra-se na discordância quanto à decisão da matéria de facto provada, que, como vimos, quedou inalterada.
Por outro lado, mostra-se correta a qualificação jurídica que do contrato de seguro em apreço foi feita na sentença, não se discutindo a validade do mesmo.
Ademais, contrariamente ao que a Apelante afirma, é evidente que o Tribunal a quo atentou nas condições do seguro a que se refere nos pontos 3. e 4. do elenco dos factos provados, não se podendo entender que tenha errado na interpretação das mesmas, pois o que se decidiu na sentença - mal ou bem, não importa, já que a Apelante agora não o questiona - foi determinar a exclusão da cláusula contratual geral que aí consta e de que a Ré se pretendia prevalecer, decisão essa que se mostra fundamentada nos termos acima citados.
Recordamos ter sido alegado pelos Autores, na Petição Inicial, que as cláusulas gerais constantes das Condições do contrato não lhes foram oportunamente comunicadas (só foram enviadas a 31-12-2020), tendo a Ré alegado o contrário na sua Contestação. Embora dos temas da prova constasse, além do mais, a matéria atinente ao “cumprimento dos deveres de informação, comunicação e esclarecimento das cláusulas contratuais por parte da ré aos autores”, foi considerado não provado que: g) aquando do descrito em 3) os autores tenham tomado conhecimento de todas as condições da apólice de seguro; h) os autores tenham assinado a apólice de seguro referida em 3; v) os autores tivessem conhecimento de todas as condições gerais e particulares da apólice de seguro referida em 3); w) após várias insistências e contactos telefónicos é que a ré tenha enviado aos autores, em 31 de dezembro de 2021, as condições gerais e particulares da apólice de seguro; y) a ré tenham enviado aos autores cópia da assinatura do acordo escrito referido em 3); ee) as condições gerais da apólice de seguro referida em 3) tenham sido enviadas “por pen” aos autores, por e-mail em data posterior à comunicação do sinistro. Sendo certo que a Apelante não impugnou a decisão da matéria de facto quanto a nenhum dos factos que foram considerados não provados.
Ora, o Tribunal recorrido decidiu que a falta de comunicação de cláusula constante das condições gerais que restringia a cobertura respeitante ao “Furto ou Roubo” às perdas ou danos resultantes de furto ou roubo ocorrido no local de risco desde que ocorridas em determinada situações, era eliminada do conteúdo contratual, nos termos do art.º 8.º, alíneas a) e b) do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, não podendo a Ré seguradora prevalecer-se da mesma para se eximir da sua responsabilidade de ressarcir pela ocorrência do risco de furto sob cobertura.
Uma vez que a Ré não questiona, no presente recurso, o acerto do decidido quanto à exclusão dessa cláusula, parece-nos inaceitável defender que um tal clausulado contratual não tenha sido devidamente interpretado.
Assim, o que importa é verificar se, ante a exclusão da citada cláusula, a situação fáctica que ficou provada constitui um sinistro abrangido pela cobertura do contrato de seguro em apreço. O Tribunal a quo respondeu afirmativamente, por considerar que a situação fáctica configurava um furto incluído na cobertura do furto do recheio, citando em abono deste entendimento o acórdão da Relação de Coimbra no acórdão de 30-06-2015, proferido no processo n.º 90/12.3TBVZL.C2, que versou sobre situação próxima da que nos ocupa, designadamente uma cláusula contratual geral, aí constante das condições especiais, nos termos da qual a seguradora garantia ao segurado “uma indemnização pelas perdas ou danos resultantes da subtracção, destruição e deterioração das coisas seguras, em consequência de furto ou roubo, tentado ou consumado, desde que praticado: a) Com arrombamento ou escalamento de portas, janelas, montras, telhados, paredes, sobrados, tectos ou qualquer outra construção que dê acesso ao local de risco e desde que resultem vestígios inequívocos; b) Com acção constrangedora por meio de violência ou ameaças físicas exercidas sobre o Segurado, qualquer pessoa do seu agregado familiar ou outras pessoas que se encontrem no local de risco.
Ora, parece-nos apropriado transpor as considerações feitas nesse acórdão, já que, à semelhança do caso aí apreciado, também na situação sub judice, não só não se provou que aos Autores tivesse sido dado conhecimento das limitações previstas na cláusula intitulada “O que está coberto” [“(…) desde que ocorram nas seguintes situações: Com arrombamento ou escalamento de portas, janelas, montras, telhados, paredes, sobrados, tetos ou qualquer outra construção que dê acesso ao local de risco e desde que resultem vestígios inequívocos (…)”], como nem sequer era expetável que com elas pudessem contar sem que lhes tivessem sido devidamente comunicadas e explicadas. Nesse acórdão, depois de lembrar o disposto no art.º 37.º do Regime Jurídico do contrato de Seguro, aprovado pela Lei n.º 72/2008, de 16-04, concluiu-se que qualquer restrição ao âmbito da cobertura do risco associado ao conceito comum de “furto” ou de “roubo”, haveria de ter sido devidamente explicada para que a cobertura pudesse ficar aquém daquela com que o tomador de seguro podia de boa-fé contar, tendo em consideração o objeto e a finalidade do contrato, devendo, na ausência de tal comunicação, a citada cláusula ter-se por excluída do contrato de seguro celebrado entre as partes.
Ante essa exclusão, entendeu-se que o contrato de seguro subsistia válido, citando-se, muito apropriadamente, o acórdão do STJ de 18-12-2008, proferido no processo n.º 08B3307, disponível em www.dgsi.pt: “II - Não sendo aplicáveis ao contrato de seguro em causa as Cláusulas Gerais, por a seguradora não as ter explicado ao aderente, nos termos dos art.ºs 5º e 6º do DL 446/85 de 25.10, o contrato mantém-se, de acordo com o art.º 9º dessa lei, sendo possível a integração complementadora. III - Não pode vir a mesma proponente invocar o desequilíbrio nas prestações que resultaria da manutenção do contrato sem a aplicação de tais Cláusulas.”
De facto, prevê o art.º 9.º do RJCCG, sob a epígrafe “Subsistência dos contratos singulares”
“1 - Nos casos previstos no artigo anterior os contratos singulares mantêm-se, vigorando na parte afectada as normas supletivas aplicáveis, com recurso, se necessário, às regras de integração dos negócios jurídicos.
2 - Os referidos contratos são, todavia, nulos quando, não obstante a utilização dos elementos indicados no número anterior, ocorra uma indeterminação insuprível de aspectos essenciais ou um desequilíbrio nas prestações gravemente atentatório da boa fé.”
No caso em apreço, como já acima referimos, a Ré-Apelante continua a clamar pela aplicação da cláusula reproduzida no ponto 4. do elenco dos factos provados, sem questionar o acerto da decisão que a julgou excluída, nem da decisão que considerou válido o contrato de seguro, desprovido da dita cláusula limitadora do âmbito da cobertura.
Portanto, os elementos essenciais do contrato em apreço subsistem, importando interpretar o restante clausulado, designadamente a cláusula onde se diz estar coberto o “Furto ou roubo de recheio As Perdas ou danos resultantes de furto ou roubo ocorrido no local de risco” com o capital seguro “até ao limite de 56.000€”. Para tanto, importa que tenhamos presentes as regras de interpretação e integração dos negócios jurídicos constantes dos artigos 236.º a 238.º do CC, partindo do texto das cláusulas do contrato de seguro (em que constam conceitos que, embora sendo de uso corrente, também pertencem ao domínio do direito penal), sem perder de vista a finalidade do mesmo.
Assim, considerando o local do risco e o conceito de receio segurável mencionados na Apólice, parece-nos seguro concluir que o risco de furto abrangido pela cobertura respeitava (unicamente) ao furto de objetos existentes dentro da residência dos Autores, remetendo-nos precisamente para os casos de furto qualificado previstos no art.º 204.º, n.º 1, al. f), e n.º 2, al. e), do Código Penal, nos termos do qual:
“1 - Quem furtar coisa móvel ou animal alheios:
(…) f) Introduzindo-se ilegitimamente em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou espaço fechado, ou aí permanecendo escondido com intenção de furtar;
(…) é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.
2 - Quem furtar coisa móvel ou animal alheios:
(…) e) Penetrando em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas;
(…) é punido com pena de prisão de dois a oito anos.”
A este propósito, não resistimos a citar uma passagem do aludido acórdão da Relação de Coimbra (omitindo as notas de rodapé), quando aí se afirma, ao analisar as duas citadas alíneas, ser «curioso constatar que, se há uns anos atrás as hipóteses previstas nessas duas alíneas faziam parte, em regra, do âmbito dos seguros multirriscos habitação, da comparação das diversas Condições Gerais e Especiais relativas a tal tipo de seguros atualmente disponíveis na net, constata-se uma tendência de as seguradoras virem a restringir, cada vez mais e progressivamente, os riscos de furto por si cobertos, procedendo a alterações nas Condições Gerais e Especiais no sentido de eliminar a cobertura relativamente aos casos de introdução em habitação previstos no nº1, da al. f), do artigo 204º e, quanto aos previstos no nº2, alínea e) eliminando os casos de introdução mediante o uso de chaves falsas, exigindo ainda que, em caso de arrombamento ou o escalamento deles “resultem vestígios inequívocos” (suprimindo a referência alternativa a que seja “constatada pela autoridade policial”).
Não se põe aqui em causa o direito das seguradoras a imporem tais restrições, dentro do princípio da liberdade contratual e de conformação do conteúdo contratual, nos termos previstos no artigo 11º do DL nº 72/2008, com o limite de que as condições especiais e particulares não podem modificar a natureza dos riscos cobertos tendo em conta o tipo de contrato de contrato de seguro celebrado (artigo 45º). Desde que essas restrições sejam devidamente comunicadas e explicadas aos que com eles pretendem contratar.
Na falta de comunicação de tais restrições, e de acordo com o princípio da confiança será de adotar o conceito de furto qualificado previsto nas referidas alíneas f), do nº1, e alínea e), nº2, do artigo 204º do Código Penal, por abrangerem aqueles riscos que definem normalmente o seu âmbito de incidência e pelos quais são vulgarmente conhecidos os seguros por furto ou roubo em habitação.
É certo que tal representa um alargamento do risco suportado pela seguradora, face ao que esta pretendia ter segurado. Mas, como se afirma no Acórdão do STJ de 18.12.2008, “sibi imputet. A manutenção do contrato a que alude o art.º 9º, nº1 do DL 446/85, tendo em conta o espírito da legislação sobre a proteção dos consumidores, é também uma forma de sancionar as más práticas negociais dos proponentes nos contratos de adesão. Pelo que se torna aceitável um relativo desequilíbrio nas prestações derivado da aplicação desse artigo 9º. Desde que, não fique desvirtuado no essencial aquilo que as partes quiseram.»
Estamos inteiramente de acordo com esta visão, que tem sido acolhida noutros arestos, em situações próximas da que nos ocupa, impondo o cumprimento de contratos de seguros com a exclusão de cláusulas contratuais gerais que introduzem uma “inesperada” limitação do âmbito da cobertura. Veja-se, a título exemplificativo, os seguintes acórdãos do STJ:
- 11-02-2015, na Revista n.º 4262/12.2TBMTS.P1.S1 - 1.ª Secção, de que citamos a seguinte passagem do respetivo sumário (disponível em www.stj.pt): “VII - Prevendo o contrato de seguro a ocorrência de furto ou roubo de bens seguros mediante a introdução ilegítima em espaço fechado basta que se apure que indivíduos de identidade não apurada entraram na habitação da autora sem recorrerem ao arrombamento para que se preencha a condição de indemnização pelas perdas ocasionadas na esfera patrimonial da segurada pela subtracção de bens guardados em cofre, sendo dispensável que se demonstre a propriedade desses bens já que tal também não foi necessário para a celebração daquele ajuste.”
- 30-03-2017, na Revista n.º 161/08.0TNLSB.L1.S1 - 2.ª Secção, como se alcança da seguinte passagem do respetivo sumário (disponível em www.stj.pt):
«III - A interpretação de uma cláusula constante das condições especiais de um contrato de seguro cabe dentro das competências do STJ, uma vez que está em causa averiguar se a Relação fez uma correta interpretação e aplicação dos critérios legais cabíveis, como os constantes do art.º 236.º do CC. 
IV - Não decorrendo da matéria de facto provada qual a vontade real das partes, há que verificar qual o sentido que um declaratário normal – i.e., medianamente instruído e diligente –, colocado na posição da parte no contrato de seguro, poderia apreender da posição da outra parte. 
V - Perante o teor da cláusula contratual em questão, com o título “Cobertura Geral (Danos sofridos pela embarcação” - “A AA toma a seu cargo: (…) d) Roubo XE "Roubo"  da embarcação segura/ou acessórios fixos discriminados na Apólice (…)” – um tomador médio ficaria convencido que o risco coberto por ela, relativo à situação de desaparecimento da embarcação, ficaria apenas condicionado ao facto de esta ter sido objeto de um furto, ou seja, de uma subtração por outrem com a intenção de apropriação, sem que, portanto, a mesma tivesse que ocorrer com violência física ou psíquica. 
VI - Essa interpretação, para além de ser a que conduz a um maior equilíbrio das prestações (art.º 237.º do CC), é a que tem correspondência com o texto da cláusula já que o termo “roubo” é muito mais utilizado na linguagem comum (com um significado não limitado pela violência) do que na linguagem jurídica.» 
- de 18-02-2021, no proc. 64/18.0T8BRG.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt, conforme se alcança da seguinte passagem do respetivo sumário:
“VIII - Impõe-se interpretar as cláusulas contratuais para se aferir se a situação dos autos encerra um sinistro condizente a uma ocorrência concreta do risco contratado, importando, pois, saber qual o valor jurídico da declaração negocial para daí reconhecer se a facticidade adquirida processualmente encerra uma ocorrência concreta do risco contratado, nos mesmos termos em que é configurado no contrato de seguro.
IX. Consignando-se nas Condições Gerais da Apólice a cobertura dos danos causados aos bens seguros, nomeadamente, pela ocorrência do risco de furto, enquanto acto intencional de subtrair coisa móvel alheia, com intenção ilegítima de apropriação, para si ou para outra pessoa, quando verificada a introdução ilegítima em habitação, dever-se-á entender que não é exigida a demonstração da dinâmica de acesso à habitação, de arrombamento, escalamento ou chaves falsas, prevenidas em outras alíneas das Condições Gerais da Apólice, sendo suficiente para o preenchimento da previsão que ocorra uma introdução não consentida, com apropriação também não consentida de bens.”
Não merece acolhimento toda a restante argumentação da Ré-Apelante, designadamente quando defende que “não será admissível impor às Seguradoras a aceitação ou o pagamento de todo e qualquer risco/prejuízo, ainda que não contratados, no pressuposto que estes possam ser inerentes à celebração de um contrato de seguro”, que “a violação do equilíbrio contratual conseguido através da estipulação de determinadas condições específicas para cada tipo de contrato, permitiria uma efetiva ameaça ao importantíssimo papel social e económico desempenhado pelas Companhias de Seguro”, lembrando que “as partes devem pautar a sua conduta pelo princípio da boa-fé, o qual deve estar presente, no decorrer de todas as fases negociais” e que “a ideia de procedimento de boa-fé está ligada a ideias de fidelidade, lealdade, honestidade e confiança na celebração e cumprimento dos negócios jurídicos e impõe às partes, quer nas negociações preliminares, quer na formulação das cláusulas definitivas, quer no cumprimento das obrigações (quer em relação ao devedor, quer em relação ao credor), que ajam sem embuste, nem dolo, para que os interesses de todas elas tenham a equilibrada solução prevista por cada uma delas e subjacente ao contrato”.
Estas considerações genéricas em nada contendem com a realidade inelutável, bem patente no caso sub judice, da inadmissibilidade legal da imposição aos segurados de restrições ou limitações ao âmbito da cobertura do contrato constantes das cláusulas contratuais gerais do contrato de seguro que não lhes foram oportunamente comunicadas, mormente cláusulas que implicam “deixar de fora”, por assim dizer, situações que um declaratário normal, colocado na posição dos segurados, por certo considerava abrangidas pela cobertura contratada, até pela especial censura que merecem por parte do legislador penal, ante a dignidade e relevância dos bens jurídicos protegidos (precisamente por estarem em causa crimes contra a propriedade perpetrados no interior da habitação).
Por isso, estando provado que, entre o dia 3 e o dia 6 de julho de 2020, pessoa cuja identidade não foi possível apurar acedeu ao interior da habitação dos Autores, através da janela da sala e dali retirou, sem o conhecimento e a autorização dos Autores e com ilegítima intenção de apropriação, os bens a estes pertencentes, verificou-se efetivamente um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 1, alínea f), do Código Penal, ocorrência que, conforme entendeu o Tribunal a quo, se tem de considerar abrangida pela cobertura do contrato de seguro em apreço.
Destarte, não tendo sido suscitadas outras questões e não se descortinando quaisquer questões de conhecimento oficioso, impõe-se concluir, sem necessidade de mais considerações, que improcedem as conclusões da alegação de recurso em apreço, o qual não merece provimento, sendo de manter a sentença recorrida.

Vencida a Ré-Apelante, é responsável pelo pagamento das custas processuais (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).
***
III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, mantendo-se, em consequência, a sentença recorrida.
Mais se decide condenar a Ré-Apelante no pagamento das custas do recurso.

D.N.
Lisboa, 20-04-2023
Laurinda Gemas
Arlindo Crua
António Moreira