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CRIME DE DENEGAÇÃO DE JUSTIÇA
CONCEITO DE FUNCIONÁRIO
Sumário
I. O conceito de funcionário, previsto no artigo 386.º, n.º 1, do Código Penal, insere-se no Capítulo IV, sob a epígrafe “dos crimes cometidos no exercício de funções públicas” e o crime de denegação de justiça e prevaricação, previsto e punido pelo artigo 369.º, n.º 1, do Código Penal, insere-se no Capítulo III, sob a epígrafe “dos crimes contra a realização da justiça”, tornando-se claro, perante o elemento sistemático, que o sujeito ativo - “funcionário”- encontra-se aqui restringido [em relação ao conceito amplo previsto no artigo 386.º do Código Penal] àqueles que atuem no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar [a saber: magistrados, funcionários judiciais, jurados e órgãos de colaboração na administração da justiça, como são exemplo os órgãos de polícia criminal]. II. Uma interpretação teleológica aponta no mesmo sentido, considerando a razão de ser da norma, o específico bem jurídico protegido, que é a realização da justiça, maxime pelos órgãos de administração da justiça. [sumário elaborado pela relatora]
Texto Integral
DECISÃO SUMÁRIA
I-RELATÓRIO
I.1 No âmbito dos presentes autos, cujos termos se iniciaram na sequência de denúncia apresentada pela assistente A, inconformada com o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, a 26-04-2022, veio esta requerer a abertura de instrução, pugnando pela prolação de despacho de pronúncia dos arguidos B, C e D, pela prática de um crime de denegação de justiça e prevaricação, previsto e punido pelo artigo 369.º, n.º 1 do Código Penal.
Finda a fase de instrução, a 21 de outubro de 2022, foi proferida decisão instrutória, de não pronúncia, do seguinte teor [transcrição]: “IV- DECISÃO Por todo o exposto, decide-se não pronunciar B, D e E, pela prática de um crime de prevaricação e de denegação de justiça previsto e punido pelo artigo 369°, n.º 1 do Código Penal.”.
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I.2 Recurso da decisão
Inconformada com tal decisão, dela interpôs recurso a assistente para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]: “(…) (A) A decisão impugnada julgou, contra legem, não estar o processo disciplinar incluído na incriminação do artigo 369.º, n.º 1, do Código Penal; (B)Entendendo que tal se aplicaria à “fase jurisdicional do processo disciplinar” ou ao “processo jurisdicional por infracção disciplinar”. (C) Mas não existe na ordem jurídica uma “fase jurisdicional do processo disciplinar”, nem qualquer “processo jurisdicional por infracção disciplinar” dado que das decisões de aplicação de sanções disciplinares públicas, cabe acção administrativa a intentar nos tribunais administrativos – artigos 224.º da LGTFP e 37.º e 191.º e do CPTA; (D) E a actuação contra legem em “processo jurisdicional” já está prevista noutra parte do tipo do artigo 369.º, n.º 1, do CP; (E) O artigo 369.º, n.º 1, do CP inclui explicitamente no tipo da prevaricação o também o “processo disciplinar”; (F) E, dado que por imposição constitucional – artigo 269.º, n.º 1 e 3 da CRP – os funcionários públicos estão apenas sujeitos ao interesse público, tal como definido pelos órgãos próprios, estando, por consequência, sujeitos a sanções que podem restringir direitos fundamentais, a referência a “processo disciplinar” entende-se feita apenas ao processo disciplinar público, designadamente ao previso nos artigos 176.º a 240.º da LGTFP; (G) Dada a natureza pública do processo disciplinar, o Código Penal incrimina, de igual modo, a violação de segredo em matéria de processo disciplinar (artigos 200.º da LGTFP e 371.º, n.º 2, alínea b) do Código Penal); (H) Incriminando, de igual modo, o artigo 365.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, como denúncia caluniosa, quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de uma falta disciplinar, com intenção de que contra ela se instaure procedimento disciplinar; (I) Pelo que, quer pelo argumento literal, quer pelo lógico, quer pelo sistemático, é manifesto que o processo disciplinar público integra a incriminação do artigo 369.º, n.º 1, do CPC; (J) Ao decidir em contrário, violou a decisão impugnada tal preceito; Termos em que, deve a decisão impugnada ser revogada sendo substituída por outra que pronuncie os arguidos nos termos requeridos.”.
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O recurso foi admitido, nos termos do despacho proferido a 29-11-2022, com efeito e regime de subida adequados.
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I.3 Respostas ao recurso
Efetuada a legal notificação, foi apresentada resposta ao recurso pelo:
=> Ministério Público, que, pese embora não tenha vertido a sua posição por meio de conclusões, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso apresentado pela assistente.
=> Arguido C, com as seguintes conclusões [transcrição]: 1. Nunca existiu qualquer processo disciplinar; 2. É factor determinante para o cometimento do crime em apreço a existência dum processo disciplinar; 3. Na prática do crime, o arguido tem de estar consciente de que está a prejudicar alguém, i.e., exige-se dolo directo e necessário, o que não se verificou. Termos em que o recurso da Assistente Deverá ser indeferido por manifestamente improcedente.”.
=> Arguido D, com as seguintes conclusões [transcrição]: “(…) I. A fls. 15 da douta decisão recorrida afirma-se, “Em conclusão, conclui-se que, por um lado os arguidos (apesar de funcionários em sentido amplo) não preenchem as qualidades específicas para poderem ser sujeitos activos do crime de denegação de justiça, por outro lado, os factos alegados e descritos no RAI, não preenchem o tipo objectivo da incriminação, na medida em que não integram fase jurisdicional do processo disciplinar, nem preenchem o tipo subjectivo da incriminação, porquanto, a sequência de actos indiciados, avaliada à luz do senso comum e ponderadas as declarações dos arguidos prestadas em inquérito, não permite afirmar, para além da duvida razoável, que os arguidos agiram cientes de que violavam a lei ou com o propósito de beneficiarem ...”. II. Quanto ao elemento subjetivo, a assistente não põe sequer em causa a ausência de indícios do elemento subjetivo, que “a sequência de atos indiciados pela prova documental junta aos autos, avaliada à luz do senso comum e ponderadas as declarações dos arguidos prestadas em inquérito, não permite afirmar, para além da dúvida razoável, que os arguidos agiram cientes de que violavam a lei ou com o propósito de beneficiarem ...”, sequer alega que algum dos arguidos haja agido com negligência, pelo que o recurso não poderá proceder. III. Tanto mais que Não há por certo plágio e muito menos infração disciplinar do docente ... como a assistente parece dar por irrefutável na sua alegação, porquanto, IV. Estatui o Art.º 1.º do Código dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos que “Consideram-se obras as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico”. Assim, contrariamente ao sistema anglo-saxónico do Copyright, o direito de autor que merece tutela é a “criação”, e não a mera produção de um texto, foto, etc… quando o mesmo não possua novidade ou singularidade que o permita caraterizar como uma criação original, uma expressão particular de um autor (com ou sem qualidade – o mérito não é um requisito). V. No que tange ao ensino da contabilidade pública, a produção de materiais formativos e pedagógicos visa expor e explicar uma criação de terceiros - o legislador que as criou - não há novidade (as normas são técnicas estão publicadas e públicas) nem há originalidade (as normas contabilísticas são criadas pelo legislador e existem para uniformizar práticas contabilísticas, para impedir práticas inovadoras); VI. As normas contabilísticas expostas nos slides, são normas técnicas e, o Art.º 2.º n.º 2 do Código de direitos de autor estatui que “2 - As ideias, os processos, os sistemas, os métodos operacionais, os conceitos, os princípios ou as descobertas não são, por si só e enquanto tais, protegidos nos termos deste Código”. Mas ainda que os ditos slides fossem protegidos por direito de autor, a sua utilização, sem o consentimento do autor, numa aula (é apenas disso que se trata) é permitida nos termos do Art.º 75.º n.º 2 Código dos Direitos de Autor, que se transcreve: 2 - São lícitas, sem o consentimento do autor, as seguintes utilizações da obra: […] e) A reprodução, no todo ou em parte, de uma obra que tenha sido previamente tornada acessível ao público, desde que tal reprodução seja realizada por uma biblioteca pública, um arquivo público, um museu público, um centro de documentação não comercial ou uma instituição científica ou de ensino, e que essa reprodução e o respectivo número de exemplares se não destinem ao público, se limitem às necessidades das actividades próprias dessas instituições e não tenham por objectivo a obtenção de uma vantagem económica ou comercial, directa ou indirecta, incluindo os actos de reprodução necessários à preservação e arquivo de quaisquer obras; […] f) A reprodução, distribuição e disponibilização pública para fins de ensino e educação, de partes de uma obra publicada, contando que se destinem exclusivamente aos objectivos do ensino nesses estabelecimentos e não tenham por objectivo a obtenção de uma vantagem económica ou comercial, directa ou indirecta; […] r) A inclusão episódica de uma obra ou outro material protegido noutro material; VII. Mas ainda que, contra as normas transcritas se quisesse forçosamente concluir que se estava perante uma violação do direito de autor, o Supremo Tribunal Administrativo entende que não cabe apreciar a eventual violação de direitos de autor em sede disciplinar, mas o que aqueles comportamentos, poderão significar no que tange à “capacidade funcional do serviço” como o esclarece o Acórdão do STA, de 21/09/2004, Proc. n.º 047146, ou o Acórdão do STA, de 12/01/2005, Proc. n.º 0930/04. VIII. No que tange ao elemento objetivo, é correto o entendimento da douta decisão impugnada de que dada a redação do 369º, nº 1, do CP, quando por um lado se refere ao “âmbito de inquérito processual” e, por outro lado, ao “processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar”, decorrendo assim da letra da lei que, a área de tutela típica da incriminação em causa, no que aqui interessa analisar, reporta-se ao “processo jurisdicional por infração disciplinar”, o que significa que se refere à fase judicial do processo, sendo esse também o sentido do elemento histórico. IX. Sendo certo que, não houve uma fase jurisdicional posterior à decisão administrativa como nem sequer houve uma fase administrativa por não ter havido nem poder haver um processo disciplinar para apreciar o dito “plágio”, ainda que se pudesse considerar que deveria ter sido instaurado tal processo. X. O crime objeto destes autos – Denegação de Justiça e prevaricação – é doloso, preenchendo-se o tipo subjetivo apenas e tão só com dolo direto, com resulta inequivocamente do uso da palavra “conscientemente”; XI. E só atua dolosamente quem, conscientemente, de forma grave, se afasta do direito e da lei, quem, nos termos do art.º 14.º do CP, representando um facto que preenche um tipo de crime, atuar com intenção de o realizar (dolo direto); XII. Conclui o douto despacho recorrido que “a sequência de actos indiciados, avaliada à luz do senso comum e ponderadas as declarações dos arguidos prestadas em inquérito, não permite afirmar, para além da dúvida razoável, que os arguidos agiram cientes de que violavam a lei ou com o propósito de beneficiarem ...”. XIII. E a recorrente, conforma-se com este entendimento, nada lhe contrapõe, nem alega sequer qualquer factualidade indiciada referente ao elemento subjetivo do tipo, como negligência inconsciente que fosse… XIV. Ora, se não há quaisquer indícios (e muito menos indícios suficientes) do preenchimento de algum elemento subjetivo, só por isso que fosse, nunca se poderia concluir pela prolação de um despacho de pronúncia. Face ao exposto, Deve a douta decisão impugnada ser confirmada. Assim se fazendo Justiça! »
I.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso.
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I.5. Resposta
Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta ao sobredito parecer.
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I.6. Efetuando o exame preliminar, verifica-se ser de proferir, de imediato, decisão sumária, com fundamento nos artigos 417º, nº 6, alínea b) e 420º, nº 1, alínea a), ambos do Código do Processo Penal.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
Face às conclusões extraídas pela recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, a questão a apreciar e decidir consiste em saber se em vez da decisão de não pronúncia dos arguidos pela prática do crime de denegação de justiça e prevaricação previsto e punido pelo artigo 369.º, n.º 1, do Código Penal, deveriam os mesmos ser pronunciados pelo referido crime, conforme pugnado pela assistente.
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Cumpre, assim, desde já, trazer à colação a decisão recorrida que, na parte que aqui releva, se transcreve: “(…) III – INDÍCIOS E QUALIFICAÇÃO JURÍDICA (…) OS INDÍCIOS RECOLHIDOS: Em face das declarações dos arguidos e testemunhas e documentos juntos aos autos, indicia-se que: a) O ISCAL é uma instituição de ensino superior público integrada no IPL, sendo o Presidente do ISCAL o órgão superior de governo e representação externa da instituição, competindo-lhe exercer o poder disciplinar, em conformidade com a lei. b) Conforme o Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (RJIES), aprovado pela Lei n.º 62/2007, de 10/09: “1 - A autonomia disciplinar confere às instituições de ensino superior públicas o poder de punir, nos termos da lei e dos estatutos, as infracções disciplinares praticadas por docentes. investigadores e demais funcionários e agentes, bem como pelos estudantes. 2 - O exercício do poder disciplinar rege-se pelas seguintes normas: a) Pelo Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, no caso dos funcionários e agentes públicos"; c) O poder disciplinar pertence ao reitor ou ao presidente, conforme os casos, podendo ser delegado nos directores ou presidentes das unidades orgânicas, sem prejuízo do direito de recurso para o reitor ou presidente. d) Sendo que, a infracção disciplinar prescreve no prazo de um ano, após a respectiva prática e o direito de instaurar procedimento disciplinar, no prazo de 60 dias, conforme artigo 178º do LGTFP. e) Em 14-02-2020 a assistente remeteu ao arguido B, este no exercício de funções de Presidente do ISCAL, e-mail onde lhe dava conta que um docente do ISCAL, de nome V..., havia plagiado partes de uma obra sua, de uma obra sua em coautoria e de uma obra de outros autores. f) Do referido email, constavam como anexos, "Contabilidade do Sector público.pdf", "P.92.pdf", "P.93.pdf", "P.94.pdf", "P.96.pdf", "P.97.pdf", "P.98.pdf", "P.99.pdf", "P.105.pdf", "P .108. pdf", "P.llO.pdf", "P.111.pdf", "paulogomessantos.pdf" e "SemelhançasGFSP.docx". g) Os referidos anexos eram consubstanciados pelas páginas das obras originais copiadas, indicadas em "P" seguido do número de página e PDF, pela obra onde a contrafacção ocorria "Contabilidade do Sector Público" e, no ficheiro "semelhanças" pela indicação das páginas do original copiadas e pelas da cópia. h) Na verdade, a Participante havia apresentado uma comunicação com a designação "O Novo Modelo Contabilístico das Entidades Públicas Reclassificadas que Aplicam SNC: Um Novo Desafio aos TOC (IV Congresso dos Técnicos Oficiais de Contas, realizado em Lisboa, nos dias 14 e 15 de Setembro de 2012). i) Tal apresentação encontrava-se no powerpoint e a pedido da organização do Congresso, a assistente havia disponibilizado cópia a fim de ser exibida na página internet da Ordem dos Contabilistas Certificados, onde a mesma foi publicada. j) O referido ... elaborou e usou na sua actividade docente, na cadeira de "Gestão Financeira do Sector Público" do curso de Licenciatura em Finanças Empresariais, um powerpoint com cópia de partes da referida comunicação, como pode ver-se no confronto das suas págs. 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, com as págs. 4, 5, 6, 8, 9, 10, 7 de "O Novo Modelo Contabilístico das Entidades Públicas Reclassificadas que Aplicam SNC: Um Novo Desafio aos TOC", da assistente e conforme o quadro que juntou aos autos. k) Incluiu e usou obras da participante em coautoria, bem como obras de outros autores, sem indicação de citação. l) Em 17 de Fevereiro de 2020, B reencaminhou à assistente e-mail expedido pelo Professor V…. em que refere que utilizou numa apresentação powerpoint slides onde não destacou devidamente a autoria de toda a informação, porquanto não lhe pareceu relevante, por estar disponível via OCC, tendo retirado os powerpoints e pedido desculpa ao Prof. AB… de quem tinha recebido um telefonema. m) Mais refere que a informação havia sido obtida via Internet. n) O referido V..., encontrava-se provido com contrato de trabalho em funções públicas a termo resolutivo certo. o) E, por despacho do Presidente do IPL, de 12-11-2020, foi integrado no mapa de pessoal docente do ISCAL no âmbito do Programa PREVPAP 6. p) O arguido B, na qualidade de Presidente do ISCAL, era superior hierárquico do Prof. V... e, por essa via, tinha competência legal para instaurar procedimento disciplinar para apreciar a conduta do mesmo. q) Em 17-02-2020, a denunciante remeteu e-mail a B, renovando o “pedido para que sejam apurados os factos e seguidos os procedimentos adequados à situação em causa" r) B remeteu o assunto ao Presidente do IPL, o arguido D. s) A assistente remeteu a D, na qualidade de Presidente do IPL, um email onde relata a situação de plágio e, ainda, o facto de o Presidente do ISCAL, em face da participação efectuada, ter dela dado conhecimento ao visado V... e nada mais lhe ter comunicado, remetendo-lhe toda a documentação para "apuramento dos factos". t) D remeteu a participação ao Departamento de Assessoria Jurídica do IPL para análise. u) O arguido C, jurista desse departamento, emitiu parecer a recomendar que o Conselho Técnico Cientifico do ISCAL designasse dois peritos/professores adjuntos ou coordenadores da área ou áreas disciplinares em que se insere a matéria aqui colocada em crise, a saber, a Unidade Curricular de Gestão Financeira do Sector Público, com a função de elaborar parecer completo e devidamente fundamentado que deverá concluir se existiu ou não, e em que termos a prática de plágio na actuação o Professor V... e que antes da decisão final do Presidente do ISCAL, o docente V... deveria ser notificado a fim de exercer direito de audiência prévia. v) No parecer emitido o arguido C não alertou para os prazos de prescrição. w) A informação foi presente a D que despachou com o termo “Concordo”. x) Esta informação e despacho foram remetidos a B. y) Decorrido cerca de um ano e meio a face ao silêncio dos denunciados, veio a denunciante a remeter e-mail a solicitar uma resposta. z) Em 14-07-2020, em resposta a interpelação da assistente, o arguido B, escreveu: "Ora, tendo a questão sido deixada à minha discricionaridade(sic), não foi meu entendimento que tal seguimento devesse ser dado. (...) Se há alguma questão a resolver entre a Sra. Professora e o Prof. V... aconselho a que o façam entre vós ou noutros fóruns, sem que seja necessário ocupar os nossos órgãos de gestão. A estes deverão estar acometidas (sic) outras atribuições, de relevância para a instituição, corno a Sra. Professora bem o saberá urna vez que ocupou o cargo de Presidente do CTC, ainda que de forma manifestamente efémera". aa) Em 21-07 -2021, a assistente remeteu ao arguido D um email, incluindo um anexo com a exposição de todos os factos até à data, dando conta desta resposta e solicitando " ... 0 apuramento de todos os factos, e, em função das respectivas conclusões, sejam retiradas todas as consequências legais e disciplinares aplicáveis, relativamente ao Professor ... e ao Senhor Presidente do ISCAL, conforme exposição em anexo". bb) Em resposta, o arguido D remeteu à assistente, em 21-07-2021, um email, informando que o assunto fora enviado para o Gabinete Jurídico. cc) Com a data de 29-07-2021, o arguido C continuando a nada dizer sobre a prescrição, - emitiu a Informação n. o 228/DAJ/2021, da qual consta, " ... neste momento'' e porque pode estar em causa a prática de um crime, deve o Sr. Presidente do IPL, determinar expressamente a conduta a adoptar no que se refere ao apuramento da situação de plágio supra indicada, designadamente a sufragada na nossa Informação n.º 168/DAJ/2020, de 22 de Abril, esclarecendo-se a situação da requerente de forma fundamentada, o que não se verificou anteriormente". dd) A Informação teve a concordância de Catarina Reis do Departamento de Assessoria Jurídica do IPL, e foi objecto de despacho do arguido D ao Presidente do ISCAL, o arguido B, a fim de "promover a pronuncia do CTC". ee) Em 23-08-2021, a assistente remeteu a D um email, solicitando informação sobre se " ... o meu pedido de apuramento dos factos sobre se o Senhor Presidente do ISCAL cumpriu todos os seus deveres funcionais" ff) Como não tivesse tido resposta, em 15-09-2021, a assistente remeteu a D, um email, nos seguintes termos: " ... venho por este meio, requerer, nos termos do artigo 82º do Código do procedimento Administrativo, e respeitante a cada uma das situações (alegada situação de plágio e alegada violação dos deveres funcionais), informação individualizada sobre o serviço onde os procedimentos se encontram, os actos e diligencias praticados e as eventuais decisões adoptadas". gg) A 22-09-2021, D respondeu, referindo, " ...atentas as divergências de entendimento perfilhadas até ao presente momento informa-se que foi solicitado parecer jurídico a um escritório de advogados externo ao Instituto Politécnico de Lisboa, pelo que aguardamos que o mesmo nos seja remetido". * Relativamente ao acrescentado pela assistente no seu RAI, refere-se que: Quanto à alegação de que “Os arguidos B e D, depois de tomarem conhecimento da participação da assistente relativa a factos alegadamente praticados por V..., não procederam como estavam legalmente obrigados, por referência ao disposto nos artigos 207º, n.º 1 da Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho e 224º, n.º 2, alínea b) do CPP”: O art.º 207º, n.º 1 da Lei n.º 35/2014 dispõe que “1 - Assim que seja recebida participação ou queixa, a entidade competente para instaurar procedimento disciplinar decide se a ele deve ou não haver lugar. Da sequência de factos indiciados verifica-se que, nem o arguido B, na qualidade de Presidente do ISCAL, nem D, na qualidade de Presidente do IPL proferiram formalmente despacho liminar na sequência da participação apresentada pela assistente; B remeteu a participação ao Presidente do IPL (arguido ...), que por sua vez, solicitou parecer jurídico sobre a natureza dos factos participados ao arguido C. Quanto à alegação de que “Os arguidos praticaram os factos acima descritos cientes de que violavam a lei e com o propósito de favorecerem V..., poupando-o às consequências académicas do conhecimento publico dos factos participados pela assistente”, A sequência de actos indiciados pela prova documental junta aos autos, avaliada à luz do senso comum e ponderadas as declarações dos arguidos prestadas em inquérito, não permite afirmar, para além da dúvida razoável, que os arguidos agiram cientes de que violavam a lei ou com o propósito de beneficiarem V..., mantendo-se, também neste segmento, o juízo indiciário insuficiente exarado pelo MP. * ENQUADRAMENTO JURÍDICO – DA ATIPICIDADE DOS FACTOS PARTICIPADOS: Dispõe o artigo 369º do Código Penal que: “1- O funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra -ordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar acto no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 120 dias. 2- Se o facto for praticado com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, o funcionário é punido com pena de prisão até cinco anos. 3- Se, no caso do n.º 2, resultar privação da liberdade de uma pessoa, o agente é punido com pena de prisão de um a oito anos. 4- Na pena prevista no número anterior incorre o funcionário que, sendo para tal competente, ordenar ou executar medida privativa da liberdade de forma ilegal, ou omitir ordená-la ou executá-la nos termos da lei. 5- No caso referido no número anterior, se o facto for praticado com negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa”. Recorrendo aos critérios de interpretação da lei (enunciados no artigo 9º do Código Civil e, começando pelo elemento histórico, verificamos, recuando ao Código Penal de 1886, que os crimes de prevaricação (previsto no artigo 284º), de denegação de justiça (previsto no artigo 286º), de falta de promoção de procedimento judicial (previsto no artigo 287º) e de promoção dolosa do Ministério Público (previsto no artigo 288º) estavam inseridos no Livro II (dos crimes em especial), do título III (dos crimes contra a ordem e tranquilidade pública), no capítulo XIII (dos crimes dos empregados públicos no exercício de suas funções), na secção I (Prevaricação). Dispunha o artigo 286º (denegação de justiça) do Código Penal de 1886: “Todos os juízes ou autoridades administrativas, que se negarem a administrar a justiça, que devem às partes, depois de se lhes ter requerido, e depois da advertência ou mandado de seus superiores, serão condenados em suspensão.” O crime de denegação de justiça tutelava “o interesse público de assegurar o cumprimento regular e eficaz das funções públicas, excluídas as legislativas, contra a inércia dolosa dos empregados públicos em relação a um determinado acto ou ofício”. As incriminações relativas à prevaricação e à denegação de justiça foram a fonte dos crimes de prevaricação e de denegação de justiça previstos respectivamente nos artigos 442º e 443º do Anteprojecto da Parte Especial do Código Penal de Eduardo Correia, inseridos no capítulo III (dos crimes contra a realização do Direito), do título IV (crimes contra o Estado), que tinham o seguinte teor: Artigo 442º (prevaricação): “O funcionário que conscientemente conduzir ou decidir contra direito um processo em que, por virtude da sua competência, intervém, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém, será punido com prisão de 6 meses a 4 anos.” Artigo 443º (denegação de justiça): ”O funcionário que se negar a administrar a justiça ou a aplicar o direito que, nos termos da sua competência lhe cabe, e lhe foi requerido, será punido com prisão até um ano ou multa até 30 dias.” O texto do artigo 442º do Anteprojecto de Eduardo Correia passou para o crime de “prevaricação” previsto no artigo 415º do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei nº 400/82, de 23.9, havendo apenas alteração na moldura legal que subiu para prisão de 1 a 5 anos e o texto do artigo 443º do mesmo Anteprojecto passou (com ligeira alteração, não significativa) para o crime de “denegação de justiça” previsto no artigo 416º do Código Penal, na versão de 1982. A nível sistemático foram inseridos no capítulo III (dos crimes contra a realização da justiça), do título V (dos crimes contra o Estado) da parte especial do Código Penal, enquadramento que ainda hoje se mantém. No Anteprojecto de Revisão do Código Penal, de Julho de 1987, esses mesmos crimes de prevaricação e de denegação de justiça foram de novo objecto de alteração, tendo sido proposto aglutinar na mesma incriminação (ali previsto artigo 370º, então ainda com a epígrafe de “prevaricação”) vários crimes do Código Penal, na versão de 1982 (concretamente os previstos nos artigos 413º a 417º, com as epígrafes respectivas de “promoção dolosa”, de “não promoção”, de “prevaricação”, de “denegação de justiça” e de “prisão ilegal”), que assim eram substituídos. A revisão aprovada pelo DL nº 48/95, de 15.3, introduziu mais algumas modificações em relação à versão anterior, sendo os dois referidos crimes (artigos 415º e 416º do CP, na versão de 1982) incluídos num só, designado por “Denegação de justiça e prevaricação”, previsto no artigo 369º (redacção que se mantém), sendo descriminalizadas algumas condutas que eram punidas na versão do Código Penal de 1982. Assim, enquanto no artigo 369º, nº 1, do Código Penal se prevê “o tipo matricial” do crime de Denegação de justiça e de prevaricação, os regimes contidos nos seus nº 2, 3, 4 e 5 consagram “modificações típicas em função da especial gravidade do resultado consequente à conduta ou da particular direcção de vontade do agente”. O elemento histórico mostra-nos claramente que na incriminação em causa o legislador não quis incluir a fase não jurisdicional do processo disciplinar (ver, neste sentido, Ac. TRP, de 14.03.2012, in www.dgsi.pt). A esta conclusão se chega também por via do elemento literal, dada a redacção do 369º, nº 1, do CP, quando por um lado se refere ao “âmbito de inquérito processual” e, por outro lado, ao “processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar”, decorrendo assim da letra da lei que, a área de tutela típica da incriminação em causa, no que aqui interessa analisar, reporta-se ao “processo jurisdicional por infracção disciplinar”, o que significa que se refere à fase judicial do processo. Também pelo elemento sistemático podemos chegar a igual conclusão, considerando por um lado a unidade do sistema jurídico como um todo, o capítulo onde a incriminação em causa se insere, sendo claro que o sujeito activo (funcionário) aqui está restringido (em relação ao conceito amplo previsto no art.º 386º do CP) àqueles que actuem no âmbito de inquérito processual ou de processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar (v.g. magistrados e funcionários judiciais). O elemento teológico aponta no mesmo sentido, considerando a razão de ser da norma, o específico bem jurídico protegido que é a realização da justiça, maxime pelos órgãos de administração da justiça, assegurando que estes funcionam de forma integra e correcta, de acordo com os princípios gerais de direito, nomeadamente, com imparcialidade, com objectividade e com justiça. O sujeito activo, funcionário, terá de actuar no “exercício dos deveres do cargo” que tem, no âmbito de inquérito processual (inquérito criminal) ou de processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar (estes na fase judicial). Esta interpretação é a interpretação que, s.m.o., está de acordo com o princípio da legalidade, com o fim subjacente à norma incriminadora e com o bem jurídico protegido. Regressando aos factos participados e aos que constam alegados no RAI, face ao exposto, logo se conclui que a actuação imputada pela assistente aos arguidos se desenrola no âmbito de relações laborais publicas, em momento prévio a instauração de procedimento disciplinar, portanto, muito longe ainda de intervenção jurisdicional. Não se pretende com este entendimento, abrir a porta à impunidade de hipotéticas infracções disciplinares, cujo ius puniendi encontra o regime jurídico respectivo uma cadeia hierárquica de exercício (cf. art.º 196º da Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho), não podendo ceder-se à tentação de instrumentalizar o direito criminal (fazendo interpretações dos tipos criminais que não cabem na letra e no espírito da lei), para colmatar eventuais deficiências do sistema de fiscalização do cumprimento de obrigações decorrentes do exercício de funções publicas. Em conclusão, conclui-se que, por um lado os arguidos (apesar de funcionários em sentido amplo) não preenchem as qualidades específicas para poderem ser sujeitos activos do crime de denegação de justiça, por outro lado, os factos alegados e descritos no RAI, não preenchem o tipo objectivo da incriminação, na medida em que não integram fase jurisdicional do processo disciplinar, nem preenchem o tipo subjectivo da incriminação, porquanto, a sequência de actos indiciados, avaliada à luz do senso comum e ponderadas as declarações dos arguidos prestadas em inquérito, não permite afirmar, para além da duvida razoável, que os arguidos agiram cientes de que violavam a lei ou com o propósito de beneficiarem .... Termos em que outra solução não resta senão a de se concluir pela prolação de despacho de não pronúncia. (…)”. »
II.3- Apreciação do recurso:
Sustenta a recorrente que a Mm.ª JIC julgou contra legem, ao entender não estar o processo disciplinar incluído na incriminação do artigo 369.º, n.º1, do Código Penal, pois, no seu entendimento, quer pelo argumento literal, quer pelo lógico, quer pelo sistemático, é manifesto que o processo disciplinar público integra a incriminação do artigo 369.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Conclui, assim, a recorrente no sentido de que a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que pronuncie os arguidos pelo referido crime.
Vejamos:
Dispõe, no que aqui releva, o artigo 369.º do Código Penal, sob a epígrafe, “denegação de justiça e prevaricação” que: “1 - O funcionário que, no âmbito deinquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar acto no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 120 dias. 2 - Se o facto for praticado com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, o funcionário é punido com pena de prisão até 5 anos. (…)”. [sublinhado nosso]
O específico bem jurídico protegido pelo tipo legal em análise é a realização da justiça, “mais concretamente, este tipo de crime pretende assegurar o domínio ou supremacia do direito objetivo na sua aplicação pelos órgãos de administração da justiça, máxime, judiciais”[1], “na sua vertente da integridade dos órgãos de administração de justiça[tribunais em sentido amplo, incluindo os juízes, os magistrados do MP, os funcionários judicias e os jurados] e dos órgãos de colaboração na administração da justiça [polícias][2]
Trata-se de um crime específico próprio, sendo os agentes do crime os juízes, os magistrados do MP, os funcionários judicias e os jurados, e, na fase de inquérito, também os polícias.[3] “Pode dizer-se que, enquanto noutros tipos de crime incluídos neste capítulo, a lesão do bem jurídico realização da justiça provém de agentes que se situam fora do aparelho estadual da administração da justiça (assim, no falso testemunho, no favorecimento pessoal), na fattispecie em apreço (como também no favorecimento por funcionário: art.º 368.º) o ataque ao bem jurídico dá-se de dentro, i. é, por parte dos órgãos deputados pela comunidade estadual justamente para a tarefa da correcta realização da justiça. É esta perversão ab imo – transformação do direito em injusto por parte de quem é chamado a servir de garante institucional à própria Ordem Jurídica - que convoca a particular censura da norma incriminatória. (…) desta forma, não causará surpresa o facto de, muito embora o tipo abranja uma larga série de funcionários para além dos magistrados, o delito em apreço continue a ser prespectivado como a resposta penal aos abusos da função judicial.[4] O delito pressupõe uma específica qualidade do agente: ser funcionário. Note-se, de toda a forma, que não basta o desempenho de essa genérica função nos termos definidos no artigo 386. Importa, ainda, a função concreta assumida pelo agente, isto é, o exercício dos deveres do cargo tem de verificar-se no âmbito de um processo jurisdicional, contra-ordenacional ou disciplinar, tudo modalidades contenciosas de processo. Exclui-se, assim, e como aliás resulta expressamente dos trabalhos preparatórios, o processo administrativo gracioso (cf. Actas 1993 426).[5]
Em igual sentido se pronunciou Maia Gonçalves[6]referindo que “A versão originária aludia a conduzir ou decidir contra direito um processo, enquanto que o texto actual alude a inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar. A clara intenção da CRCP foi afastar do âmbito deste artigo o processo administrativo gracioso (36.ª sessão, em 22 de junho de 1990).
O tipo subjetivo só admite o dolo directo, em face da exigência típica resultante da expressão “conscientemente”. [7]
Anota Maia Gonçalves[8] que “o dispositivo do n.º 1 corresponde, grosso modo, ao art.º 415.º da versão originária. Como no domínio dessa versão, e mesmo no do CP de 1886 (art.º 284.º), além dos elementos gerais do dolo, continua a ser exigível um dolo específico, consistente na intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, mas agora só no caso do n.º 2. No caso do n.º 1 basta o dolo genérico, que terá de revestir a modalidade de dolo directo, não sendo admissível o dolo eventual, como bem se deduz da exigência de o agente proceder conscientemente e contra direito. Por outro lado, não é a prática de qualquer acto que infringe regras processuais que se pode, sem mais, reconduzir a um comportamento contra o direito, com o alcance definido no n.º 1 do art.º 369.º do CP; é preciso que esse desvio voluntário dos poderes funcionais afronte a administração da justiça, de forma tal que se afirme uma negação de justiça. Não basta, pois, que se tenha decidido mal, incorrectamente, contra legem, sendo necessário que quem assim decidiu tenha consciência de que, desviando-se dos seus deveres funcionais, violou o ordenamento jurídico pondo em causa a administração da justiça[9].
Por sua vez, o artigo 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal dispõe que: “1 - Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
Os indícios suficientes estão conceptualizados nos termos do n.º 2, do artigo 283º, do Código Processo Penal, do qual decorre que: “(…) 2- Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. Tanto a doutrina como a jurisprudência têm realçado que a “possibilidade razoável” de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa: “o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido” ou, noutras palavras, os indícios são suficientes quando existe “uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
Aqui chegados:
Voltando, agora, a nossa atenção para os presentes autos, verifica-se que quer a Digna Magistrada do Ministério Público, aquando da prolação do despacho de arquivamento, quer a Mm.ª JIC, no âmbito do despacho de não pronúncia ora recorrido, entenderam que a factualidade aqui subjacente não integra o crime de denegação de justiça e prevaricação, pelo qual a assistente pretende ver os arguidos pronunciados.
E, diga-se, entenderam bem.
Com efeito:
Apreciada a situação sub judice à luz dos considerandos acabados de expor, só se pode antever que uma submissão dos arguidos a julgamento não conduziria à sua condenação pelo crime de denegação de justiça e prevaricação, pelo que outra decisão não se impunha tomar à Mm.ª JIC a não ser aquela que tomou - a decisão de não pronúncia - .
E tal decisão impunha-se, pelas seguintes razões:
Da matéria indiciada constante da decisão impugnada, que não foi colocada em causa pela recorrente, decorre que os arguidos não integram qualquer órgão de administração de justiça, ainda que no sentido mais amplo supra exposto, pois não são juízes, magistrados do Ministério Público, funcionários judiciais, jurados, nem integram qualquer órgão ou entidade de colaboração na administração da justiça, pelo que o conceito de “funcionário”, a que se reporta o artigo 369.º, n.º 1, do Código Penal, não se encontra preenchido na situação dos autos.
Acresce que o exercício dos deveres dos cargos que estão atribuídos aos arguidos, não se verificaram no âmbito de um processo jurisdicional, contraordenacional, nem mesmo, diga-se, no âmbito de um processo disciplinar, pois da factualidade indiciada não decorre que o mesmo tenha sido instaurado, mas sim o contrário, constituindo a falta deste o motivo que levou a recorrente a insurgir-se contra os arguidos.
E é isso mesmo o que decorre da decisão recorrida, concretamente do trecho que aqui se passa a transcrever: “(…)Da sequência de factos indiciados verifica-se que, nem o arguido B, na qualidade de Presidente do ISCAL, nem D, na qualidade de Presidente do IPL proferiram formalmente despacho liminar na sequencia da participação apresentada pela assistente; B remeteu a participação ao Presidente do IPL (arguido D), que por sua vez, solicitou parecer jurídico sobre a natureza dos factos participados ao arguido C.
Assim sendo, prevendo a lei como pressuposto determinante para o cometimento do crime em apreço a existência de um processo disciplinar, pois tal crime é cometido no seu âmbito [“(…) no âmbito de (…) processo (…) disciplinar (…)”], e sendo incontroverso que o mesmo nunca foi instaurado, também por este prisma nunca a conduta dos arguidos integraria o crime de denegação de justiça e prevaricação pelo qual a recorrente pretende ver a respetiva pronúncia.
Além disso, como vimos, o tipo subjetivo do crime em apreço só admite o dolo direto e a matéria indiciada, que, relembre-se, não foi colocada em causa pela recorrente, não o contempla, pelo que, também por esta vertente, o presente recurso sempre teria de sucumbir.
Analisadas as sucessivas alterações legislativas respeitantes ao crime em apreço, o seu elemento histórico mostra-nos que na incriminação em causa o legislador não quis incluir a fase não jurisdicional de qualquer um dos processos elencados no artigo 369.º, n.º1, do Código de Processo Penal e a sua interpretação literal é clara quando se refere ao “âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar”, tornando-se manifesto que a situação dos autos não integra tal tipologia criminal, pois a factualidade ocorreu fora do âmbito de qualquer um dos processos ali mencionados, não integrando, sequer, o invocado procedimento disciplinar, que nunca chegou a ser instaurado.
Também pelo elemento sistemático podemos chegar a igual conclusão, considerando que o conceito de funcionário, previsto no artigo 386.º do Código Penal, insere-se no Capítulo IV, sob a epígrafe “dos crimes cometidos no exercício de funções públicas” e o crime em análise insere-se no Capítulo III, sob a epígrafe “dos crimes contra a realização da justiça”, sendo claro que o sujeito ativo - “funcionário”- encontra-se aqui restringido [em relação ao conceito amplo previsto no artigo 386.º do Código Penal] àqueles que atuem no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar [a saber: magistrados, funcionários judiciais, jurados e órgãos de colaboração na administração da justiça, como são exemplo os órgãos de polícia criminal].
Por fim, temos a interpretação teleológica que aponta no mesmo sentido, considerando a razão de ser da norma, o específico bem jurídico protegido que é a realização da justiça, maxime pelos órgãos de administração da justiça, assegurando que estes funcionam de forma integra, de acordo com os princípios gerais de direito, com imparcialidade, com objetividade, com justiça.
Da análise da factualidade indiciada constante da decisão recorrida, facilmente se apreende que, pese embora os arguidos possam integrar o conceito de funcionário em sentido amplo, não preenchem as características específicas para poderem ser sujeitos ativos do crime de denegação de justiça e prevaricação, previsto e punido pelo artigo 369.º, nº 1, do Código Penal.
Mas mesmo que assim não se entendesse, os factos indiciados nunca preencheriam o tipo objetivo daquela incriminação, pois a atuação de cada um dos arguidos nem sequer ocorreu no âmbito do invocado processo disciplinar, que nunca chegou a existir, já para não falar que da factualidade indiciada também não decorre o preenchimento do elemento subjetivo do tipo incriminatório em apreço.
Em suma, perante a desnecessidade de mais amplas considerações e sem desdouro para o esforço argumentativo da recorrente, entendemos que a decisão recorrida - ao considerar que a conduta dos arguidos não integra qualquer responsabilidade criminal, designadamente, da tipologia pela qual a assistente os pretende ver pronunciados - não merece qualquer censura, não foi proferida contra legem, em violação de qualquer preceito legal, designadamente dos trazidos à colação pela recorrente, pelo que será de manter, perante a factualidade indiciada, da qual transparece a inexistência de umapossibilidade razoávelde aos arguidos vir a ser aplicada, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança, circunstancialismo que não permitia à Mm.ª JIC tomar outra decisão, a não ser aquela que tomou - a prolação de despacho de não pronúncia. »
III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, ao abrigo dos artigos 417º, nº 6, alínea b) e 420º, nº 1, alínea a), ambos do Código do Processo Penal, rejeita-se o recurso interposto pela assistente, por ser manifestamente improcedente, confirmando-se a decisão recorrida de não pronúncia.
Condena-se a recorrente no pagamento de 3 [três] unidades de conta de taxa de justiça e da quantia de 3 [três] unidades de conta ao abrigo do estatuído no n.º 3 do artigo 420.º do Código de Processo Penal.
Notifique.
»
Lisboa, 19 de abril de 2023
[Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]
Isilda Maria Correia de Pinho
_______________________________________________________ [1] A. Medina de Seiça, inComentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, edição de 2001, pág. 609. [2] Paulo Pinto de Albuquerque, inComentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª edição atualizada, agosto de 2021, pág. 1239. [3] Paulo Pinto de Albuquerque, obra citada, pág. 1240. [4] A. Medina de Seiça, obra e página citadas. [5] A. Medina de Seiça, obra citada, pág. 610. [6]InCódigo Penal Português, Anotado e Comentado, 16.ª edição, Almedina, 2004, pág. 1020-1021. [7] Paulo Pinto de Albuquerque, obra citada, pág. 1241. [8]In obra e páginas citadas. [9] Acórdão do STJ, de 12-07-2012, Processo n.º 4/11.8TRLSB.S1, in www.dgsi.pt
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 08.02.2007, proferido no Processo n.º 4816/06, citado no referido aresto, «Nem todo o acto que infringir as regras processuais pode ser considerado “contra direito” no sentido específico do artigo 369º, n.º, 1, do Código Penal, pois então qualquer nulidade processual seria sancionável como crime».