CASO JULGADO
INDEFERIMENTO LIMINAR
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Sumário

1 - Se o passivo invocado para fundamentar o pedido de insolvência já existia à data da anterior declaração de insolvência e se nenhum outro activo tiver acrescido àquele que existia naquele momento, a pretensão formulada (delimitada pelo pedido e respectiva causa de pedir) é idêntica àquela que já foi reconhecida e declarada na anterior sentença.
2 - Depois de ter sido proferida sentença a declarar a insolvência em determinado processo – que, entretanto, foi encerrado – e não estando em causa a situação prevista no artigo 39º, nº 7, alínea d), do CIRE –, deve ser liminarmente indeferida a petição inicial por via da qual o devedor vem requerer, novamente, a sua declaração de insolvência , para o efeito de usufruir da exoneração do passivo que lhe foi negado no processo anterior, por se configurar a excepção de caso julgado. 
3 - A exoneração do passivo está sempre dependente da existência de um processo de insolvência e pressupõe, naturalmente, que esse processo esteja em condições de ser admitido e que nele venha a ser declarada a insolvência do devedor.

Texto Integral

Acordam na Secção de Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. LL…, veio no dia 9/12/2022 apresentar-se à insolvência e requerer a exoneração do passivo restante.
Por despacho proferido dia 14/12/2022 determinou-se a notificação do Requerente para se pronunciar sobre a excepção do caso julgado.
Por requerimento de 16/12/2022, o Requerente LL… veio informar que os valores agora apresentados são de valor superior ao existente pois venceram juros e coimas e não lhe foi deferido anteriormente a exoneração de passivo e por isso crê não existe a excepção do caso julgado.
Por decisão proferida dia 19/12/2022 decidiu-se:
(…)
I.3 Cumpre apreciar e decidir, da exceção do caso julgado, nos termos do artigo 27.º/1, al. a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
 II. Fundamentos de facto
 Com pertinência à decisão da exceção, consideram-se assentes os factos processuais supra relatados, e ainda, com fundamento na consulta dos autos 44/16.0T8VFX:
1. No p. 44/16.0T8VFX, o Devedor apresentou relação de credores com igual teor.
2. Foi declarado insolvente por sentença proferida a 01-02-2016.
3. Não foram apreendidos bens
4. Os autos foram encerrados por insuficiência da massa insolvente em 31-05-2016.
5. O incidente de exoneração do passivo restante foi liminarmente indeferido em 31-05-2016: “Na petição inicial, o insolvente veio requerer a exoneração do passivo restante.
Notificado na sua própria pessoa e na pessoa do seu patrono, com a cominação de indeferimento liminar, o insolvente não juntou aos autos o seu certificado de registo criminal actualizado nem apresentou qualquer razão plausível para tal omissão.
Como referem Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação das Empresas Anotado, Volume II, p. 186, «Em face do que resulta do art.º 238.º, justifica-se, todavia, que, sendo omissas estas indicações, o juiz profira despacho de aperfeiçoamento, cujo cumprimento implicará o indeferimento do pedido por falta de requisitos essenciais, cabendo aplicar analogicamente o art.º 27.º, n.º 1, al. b), do Código».
Nestes termos, atenta a falta de um elemento essencial para apreciação e decisão acerca do requerido, indefere-se liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo insolvente.”.
 III. Fundamentos de direito
III.1 Dispõem os artigos 580.º e 581.º, ambos do Código de Processo Civil, que a exceção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, verificando-se esta quando a primeira causa tiver sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, e tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.
Por outro lado, repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
Existe identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
Por último, há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico.
III.1.a O caso julgado é exceção dilatória – artigos 576.º/1/2 e 577.º, alínea i) -, de conhecimento oficioso – artigo 578.º -, e importa o indeferimento liminar da petição inicial ou a absolvição da instância.
III.2 Doutra parte, estabelece o artigo 3.º/1 que é considerado em situação de insolvência o “devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.
Destarte, na insolvência, a causa de pedir integra o passivo do devedor, e o seu ativo, este insuficiente para a satisfação do primeiro.
 III.3 Aplicando.
O Requerente foi declarado insolvente por sentença proferida em 01-02-2016, no p. n.º 44/16.0T8VFX.
Alegou causa de pedir idêntica à ora invocada: ativo correspondente ao seu salário, e passivo titulado por 2 credores.

Destarte, verifica-se sucessão de ações entre as mesmas partes, visando a obtenção do mesmo efeito jurídico, com base nos mesmos factos. Conclui-se pela trilogia de identidades integradora da exceção do caso julgado.
(…)

Impõe-se o indeferimento liminar da petição inicial.

IV. Decisão final
Pelo exposto, julgo procedente a exceção do caso julgado, e, por consequência, indefiro liminarmente a petição inicial.
Custas a cargo do Requerente, com taxa de justiça reduzida a um quarto (artigos 302.º/1 e 304.º, ambos do CIRE), sem prejuízo do eventual benefício do apoio judiciário.
Valor da ação e da causa: 30.000,00€ (artigos 15.º e 301.º).
Registe.
 Notifique.”
Inconformado com essa decisão, veio o Requerente interpor o presente recurso de apelação, tendo apresentado alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:
1. O despacho recorrida viola os princípio do CIRE
2. Pois o recorrente tem valores novos em débito e por isso se apresentou de novo à insolvência.
3. Não existe excepção do caso julgado.
4. Os valores apresentados são novo.s
5. Donde deve ser dado provimento à insolvencia.
Termina pedindo seja revogada o despacho proferido e decretada a insolvencia.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
II. As questões a decidir resumem-se a saber:
- se ocorre a excepção do caso julgado;
- se é caso de revogar a decisão recorrida que indeferiu liminarmente a p.i.
*
III. Do mérito do recurso:
Da factualidade a atender:
Não tendo os presentes autos sido instruídos com certidão do processo nº 44/16.0T8VFX, solicitamos acesso electrónico aos mesmos.
Em face do teor desses autos e do presente processo, consideram-se provados os seguintes factos:
A) No âmbito do processo n.º 44/16.0T8VFX (adiante denominado 1º processo):
1. No dia 05/01/2016 LL… apresentou-se à insolvência e requereu a declaração da sua insolvência, bem como a concessão da exoneração do passivo restante.
2. Na p.i. alegou os seguintes factos:
i. O requerente é casado -  vide doc. 1. (na respectiva certidão consta averbado que por sentença de 5/12/2012, transitada em julgado, proferida pelo 2º Juízo do TFM de Loures, foi decretada a simples separação judicial de bens entre cônjuges)
ii. O requerente tem dois filhos - vide docs. 2 e 3.
iii. O requerente vive em casa alugada , vide doc. 4
iii. O requerente investiu as suas poupanças no negócio que faliu, o qual não teve sucesso comercial e familiar, quer pela quebra no negócio, quer pelo incumprimentos dos seus clientes, roubos de empregados, pois possuía vários talhos.
iv Sem vendas, fecho de talhos, dois filhos que nem sequer consegue sustentar, foi um descalabro.
v.Tudo se agudizou com os avais que deu.
vi. E com reversões fiscais, separação tudo se desmoronou.
vii. O que fez como que deixasse de pagar impostos, prestações à banca e acabou por ruir a sua actividade a titulo pessoal.
viii. O requerente teve de deixar o negócio onde investiu a sua vida nos últimos 5 anos.
ix. Tentou junto dos seus credores fazer acordos de pagamento, sem sucesso pois não tinha qualquer capacidade de negociação com aqueles.
x. O requerente nos últimos 3 anos trabalha por conta de outrem, para a empresa RR…. – vide doc. 5.
xi. Ganha só 300 euros mensais.
xi. Está sem dinheiro para fazer face às despesas mensais, não fosse o ordenado da mulher tudo seria pior.
xii. A sua vida depende apenas dos biscates que faz e que lhe dá para as suas despesas diárias e básicas.
xii. Muitas das vezes, teve de recorrer a empréstimos pessoais para fazer face às despesas, até renda de casa paga a prestações.
xiii.A crise instalada impossibilita-o de conseguir emprego para além do que possui.
xiv. O requerente pensou até em emigrar mas o facto de ter pais muito idosos e filhos não o possibilita.
xv. O requerente sabe da existência de processo executivo a correr contra si:
- PROCESSO N 2384/14.4YYLSB LISBOA INST. CENTRAL 1 SECÇAO J 3 EXEQUENTE BB…, SA valor em 25.000.00€.
xvi. O requerente possui bens: a quota da sociedade que consta em doc. junto aos autos.
3. Com a p.i. juntou uma listagem dos maiores credores, com o seguinte teor:
“1. BB… SA, com sede ….. valor 25.000,00 euros débito desde Fevereiro de 2015, com garantias reais avais pessoais
2. DD… Loures 4 – Praceta dos Bombeiros Voluntários, Sacavém, débito desde Janeiro de 2012, valor em débito de 15.000 euros, sem garantias reais”.
4. Na sequência de convite do tribunal, o requerente informou que tem contra si pendente a acção executiva n.º 2384/14.4LSB Lisboa, em que é exequente o BB…, sendo o valor de 25.000,00 euros. Informou ainda que os credores que possui são os descritos no ponto 3 e que o seu único bem é a casa arrendada.
 5. Por sentença proferida dia 1/02/2016, transitada em julgado dia 29/02/2016, decidiu-se, além do mais, o seguinte:
“1) Declaro a insolvência de LL…, casado, com o NIF …, residente na Rua …...
2) Fixa-se a residência ao insolvente na morada indicada em 1).
3) Nomeio Administrador da Insolvência o Sr. Dr. AA (…);
(…)
5) Ordeno a apreensão, para imediata entrega ao administrador da insolvência nomeado dos elementos de contabilidade do insolvente, caso existam, e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou, por qualquer forma, apreendidos ou detidos;
(…)
7) Por não dispor de elementos, não se declara aberto o incidente de qualificação da insolvência, sem prejuízo do disposto no artigo 187º do C.I.R.E.;
8) Determinar a suspensão de todas as acções executivas instauradas contra o insolvente – artigo 88º, nº1 do C.I.R.E..
9) Designo o prazo de trinta dias para a reclamação de créditos;
(…)
14) Para realização da Assembleia de Credores e de Apreciação do Relatório a que alude o artigo. 156º do C.I.R.E., designo o próximo dia (…)”.
6. No âmbito do referido processo, por despacho de 31/05/2016, transitado em julgado dia 26/09/2016, decidiu-se:
Na petição inicial, o insolvente veio requerer a exoneração do passivo restante.
Notificado na sua própria pessoa e na pessoa do seu patrono, com a cominação de indeferimento liminar, o insolvente não juntou aos autos o seu certificado de registo criminal actualizado nem apresentou qualquer razão plausível para tal omissão.
Como referem Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação das Empresas Anotado, Volume II, p. 186, «Em face do que resulta do art.º 238.º, justifica-se, todavia, que, sendo omissas estas indicações, o juiz profira despacho de aperfeiçoamento, cujo cumprimento implicará o indeferimento do pedido por falta de requisitos essenciais, cabendo aplicar analogicamente o art.º 27.º, n.º 1, al. b), do Código».
Nestes termos, atenta a falta de um elemento essencial para apreciação e decisão acerca do requerido, indefere-se liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo insolvente.
Notifique.
Custas pela massa insolvente.
***
O Sr. Administrador da Insolvência de LL… veio requerer o encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente.
Ouvidos os credores e os devedores, não foi deduzida oposição ao encerramento do processo.
Cumpre, pois, apreciar e decidir.
Conforme estipula o art.º 232º, nºs 1 e 2 do CIRE, verificando o Administrador da Insolvência que a massa insolvente é insuficiente para a satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da massa insolvente, dá conhecimento desse facto ao juiz e este, ouvidos o devedor, a assembleia de credores e os credores da massa insolvente, declara encerrado o processo, salvo se algum interessado depositar à ordem do tribunal o montante determinado pelo juiz segundo o que razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das custas do processo e restantes dívidas da massa insolvente.
Ora, ouvidos os credores não foi requerido, por qualquer interessado, o depósito referido no nº2 do art.º 232º.
Nestes termos, declaro encerrado, por insuficiência da massa insolvente, o presente processo de insolvência, atento o disposto nos art.ºs 230º, nº1, al. d) e 232º nº2 do CIRE, com os efeitos constantes das als. a), b), c) e d) do nº1 do art.º 233º do CIRE.
Atento o disposto no artigo 233.º, n.º 6 do CIRE, qualifico como fortuita a insolvência.
Registe, notifique e dê publicidade à presente decisão nos termos previstos nos art.ºs 37º, nº 7 e 38º, nº 7 em conjugação com o disposto no art.º 230º nº 2 do CIRE.
***
Dê-se pagamento à remuneração e ao reembolso das despesas do Sr. A.I, tendo em conta o disposto nos art.ºs 23º, nº 1, 29º, nºs. 2 e 8, 30º, nº 1 da Lei nº 22/2013 de 26.02 e dos art.ºs 1º, nº 1 e 3º da Portaria 51/2005, de 20.01.
***
Atendendo a que foi determinado o encerramento do processo de insolvência, nos termos do disposto no art.º 230º, nº1, al. d) do CIRE, não tendo sido apreendido qualquer bem ou direito para a massa insolvente, e não tendo ocorrido qualquer acto de liquidação, não se justifica a prestação autónoma de contas, uma vez que não existem quaisquer receitas, mas apenas despesas, estas contidas no montante a que alude o art.º 29º, nº 8 da Lei nº 22/2013, de 26.09.
Notifique.”

B) No âmbito dos presentes autos n.º 3916/22.0T8VFX (adiante denominado 2º processo):
7. No dia 9/12/2022 LL… apresentou-se de novo à insolvência e requereu a declaração da sua insolvência, bem como a concessão da exoneração do passivo restante.
8. Na p.i. alegou, em síntese, que:
i. O requerente encontra-se divorciado.
ii.  O requerente trabalha, vide doc. 2 (neste consta auferir a quantia mensal ilíquida de €705,00).
iii. O requerente vive em casa alugada por amigo a quem paga 375.00 euros mês
iv. O requerente trabalha nos último três anos nas RR….
v. Desde 2015 que a sua situação se veio agudizar financeiramente e pessoalmente.
vi. Isto porque, todos os seus investimentos e poupanças foram colocados num negócio de carnes que correu mal.
vii. O requerente começou a ver o seu parco rendimento a ser penhorado.
viii. Todos os bens que possuía deu para pagamento de dividas.
ix. Hoje vive apenas do vencimento, pois não pode ter subsídios estatais.
x. Com os negócios sem darem resultados práticos, o requerente teve de pedir a insolvência, tendo sido declarado insolvente.
xi. Teve neste ultimo ano de recorrer a empréstimos pessoais para cobrir as despesas básicas do seu dia a dia e a bancos que infelizmente não pode cumprir.
xii. A crise económica da empresa, da qual era gerente, afundou o seu agregado familiar, pois avalizou livranças e empréstimos.
xiii. Tentou junto dos seus credores fazer acordos de pagamento, sem sucesso, pois não tinha qualquer capacidade de negociação com aqueles.
xiv. Está numa situação em que não pode honrar os seus compromissos, já que bens seus inexistem.
xv. O requerente sabe que existe um processo executivo a correr contra si - vide doc. 3 (neste identifica-se o proc. n.º 2384/14.4YYLSB J3, exequente: BB…, valor: 25.000,00€).
9. Com a p.i. juntou uma listagem dos maiores credores, com o seguinte teor (doc. 5):
“1. BB…SA, com sede na Rua … valor 25.000,00 euros débito desde Fevereiro de 2015, com garantias reais avais pessoais
2. DD… Loures 4 – Praceta dos Bombeiros Voluntários, Sacavém, débito desde Janeiro de 2012, valor em débito de 15.000 euros, sem garantias reais”.

Do caso julgado:
Na decisão recorrida indeferiu-se liminarmente a p.i. com fundamento na excepção do caso julgado.
Exarou-se, além do mais, nessa decisão:
“O Requerente foi declarado insolvente por sentença proferida em 01-02-2016, no p. n.º 44/16.0T8VFX.
Alegou causa de pedir idêntica à ora invocada: ativo correspondente ao seu salário, e passivo titulado por 2 credores.
Destarte, verifica-se sucessão de ações entre as mesmas partes, visando a obtenção do mesmo efeito jurídico, com base nos mesmos factos. Conclui-se pela trilogia de identidades integradora da exceção do caso julgado.”
Dissentindo, propugna a apelante que a decisão recorrida viola os princípios do CIRE, pois que tem valores novos em débito e por isso se apresentou de novo à insolvência, inexistindo caso julgado.
Vejamos.
Conforme resulta dos factos supra enunciados, o Requerente/apelante foi declarada insolvente no âmbito do processo n.º 44/16.0T8VFX, por sentença proferida dia 01/02/2016, transitada em julgado.
Nesses autos, por decisão prolatada dia 31/05/2016 foi indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, por falta de junção do certificado de registo criminal actualizado.
Nessa decisão foi ainda declarado encerrado o processo de insolvência, por insuficiência da massa insolvente, nos termos dos art.ºs 230º, nº 1, al. d) e 232º nº2 do CIRE, com os efeitos constantes das als. a), b), c) e d) do nº1 do art.º 233º do CIRE.

No dia 9/12/2022 o apelante veio instaurar nova acção, na qual peticionou uma vez mais a sua declaração de insolvência e a exoneração do passivo restante, pretensão que foi liminarmente indeferida, com fundamento na excepção do caso julgado.
É desta decisão que vem interposto o presente recurso.

A questão que importa apurar é se ocorre ou não a aludida excepção de caso julgado.
A excepção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário – art.º 580º, n.º 1, do CPC. E esta repete-se quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir- art.º 81º do CPC.
Enquanto excepção, o caso julgado obsta à reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por sentença transitada (cfr. artigos 576º, nº 2, e 577º, alínea i), do CPC).
Como se refere no Ac da R. Coimbra de 3/12/2019, Maria Catarina Gonçalves (relatora), acessível em www.dgsi.pt (que seguiremos de perto):
A questão de saber se existe identidade de sujeitos (identidade que, segundo dispõe o citado artigo 581º, nº 2, ocorre quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica) reveste, na nossa perspectiva, algumas especificidades no âmbito do processo de insolvência.
O processo de insolvência – nos termos em que está legalmente configurado – inicia-se com uma fase (a que poderemos chamar declarativa) que se destina a verificar se existe situação de insolvência e a declarar (ou não) tal insolvência. Nessa fase, o processo desenrola-se apenas entre o devedor e o credor requerente ou apenas com a intervenção do devedor quando é este que se apresenta à insolvência – cfr. artigos 27º a 35º – e, se terminar com uma sentença que indefira o pedido de declaração de insolvência, não haverá intervenção de outros credores, importando notar que, em conformidade com o disposto no artigo 45º, apenas o requerente pode reagir (mediante recurso) contra essa sentença.
No entanto, se essa fase inicial culminar com uma sentença de declaração de insolvência, o processo passará a assumir diversos contornos, assumindo-se, a partir daí como um processo de execução universal (cfr. artigo 1º, nº 1) que, além de abranger todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que venham a ser adquiridos na pendência do processo (património que passa a integrar a massa insolvente) – cfr. artigos 46º, nº1, e 149, nº 1 –, é dirigido a todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração ou tenham sido adquiridos no decorrer do processo – cfr. artigos 47º, nº 1 e nº 3. Todos esses credores são legalmente considerados como credores da insolvência (cfr. citado artigo 47º) que, nessa qualidade, estão habilitados a intervir nos autos, exercendo os seus direitos e reclamando os seus créditos no processo.”
É esse o caso dos credores cujos créditos foram reconhecidos.
No caso em análise, as partes são as mesmas, tanto mais que os credores são os mesmos nos dois processos.
De resto, tendo os processos sido desencadeados por apresentação do devedor, até à prolação da decisão que declara ou não a respectiva insolvência, o processo desenrola-se sem o contraditório dos credores relacionados pelo devedor – cfr. os art.ºs 24, nº 1, al.ª a), 27 e 28 do CIRE.
Não é, por conseguinte, defensável a tese de que esta fase declarativo-constitutiva tem os credores da insolvência como partes - cfr. AC RC 26 de Outubro de 2021 (Freitas Neto – relator), acessível em www.dgsi.pt.
Ademais, é o próprio Requerente que reconhece que todos os créditos já existiam à data em que, no âmbito do primeiro processo, foi declarada a insolvência (a 01-02-2016).
Assim, todos os credores indicados no segundo processo já eram credores da insolvência no âmbito do primeiro processo de insolvência; nessa qualidade, eram destinatários da citação – efectuada por edital e anúncio nos termos do artigo 37º, nº 7 – para exercerem os seus direitos no processo naquela qualidade de credores da insolvência, devem ser considerados como sujeitos do processo, designadamente para efeitos de caso julgado.
De sorte que voltando o actual processo a ser iniciado por apresentação do devedor é óbvia a identidade de sujeitos em ambos os processos.

Quanto à questão da identidade de pedido e causa de pedir:
Não há dúvida que o efeito jurídico que se pretende obter na segunda acção é formalmente idêntico àquele que se pretendia obter na anterior acção: a declaração de insolvência e a exoneração do passivo restante.
Também não se duvida que uma pessoa pode ser declarada insolvente mais do que uma vez, mas, com excepção da situação vertida no art.º 39º, n.º 7, al. d) do CIRE, não pode sê-lo com base nos mesmos factos, com base na mesma realidade.
Por conseguinte, “será a causa de pedir de cada uma dessas pretensões que nos permitirá aferir se o efeito jurídico e a concreta pretensão que se pretende obter nesta acção é idêntica àquela que já foi obtida na anterior acção.
Dispondo o artigo 3º, nº 1, que se considera em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, impõe-se concluir que a verificação (ou não) dessa situação há-de ser uma constatação a retirar, sobretudo, da comparação entre o activo e o passivo vencido do devedor, ainda que possam existir outras circunstâncias que também relevem para apurar se o devedor está ou não impossibilitado de cumprir aquelas obrigações.
Daí que a causa de pedir do pedido de declaração de insolvência corresponda, por regra, ao concreto passivo e activo que exista em determinado momento temporal e à impossibilidade de o activo do devedor lhe permitir cumprir o passivo que nesse momento se encontra vencido. E se é certo que o pedido de declaração de insolvência poderá radicar apenas num dos factos que se encontram previstos no artigo 20º, nº 1, também é certo que tal acontece porque tais factos são legalmente considerados como factos índice ou factos que indiciam a situação de insolvência, ou seja, a impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas” – cfr. o citado Ac. RC de 3/12/2019.
Analisada a questão sob este prisma, e no que toca ao activo, verifica-se que em ambos os processos o devedor alegou não possuir bens e decorrerem os seus rendimentos unicamente do seu vencimento (no 1º processo alegou auferir a quantia mensal líquida de €300,00; já no 2º processo alegou auferir a quantia mensal ilíquida de €705,00).
No que toca ao passivo:
No primeiro processo a Requerente/apelante alegou:
i. Os seus credores são os seguintes:
1. BB… SA, com sede na Rua …, valor 25.000,00 euros, débito desde Fevereiro 2015, com garantias reais avales pessoais;
2. DD….Loures 4 – Praceta dos Bombeiros Voluntários, Sacavém, débito desde Janeiro de 2012, no montante de 15.000,00 euros, sem garantias reais.
No segundo processo o Requerente/apelante alegou e apresentou a listagem dos seus maiores credores, a saber:
1. BB… SA, com sede na Rua …., valor 25.000,00 euros, débito desde Fevereiro 2015, com garantias reais avales pessoais;
2. DD…. Loures 4 – Praceta dos Bombeiros Voluntários, Sacavém, débito desde Janeiro de 2012, no montante de 15.000,00 euros, sem garantias reais.
Destes dados de facto decorre que o passivo indicado no 2º processo já existia na data da instauração da primeira acção e que, no que toca ao activo, apenas se registou uma pequena variação no valor do vencimento auferido pela Requerente, mantendo-se assim a impossibilidade do cumprimento das obrigações vencidas, que já existia anteriormente e que fundamentou a declaração de insolvência no primeiro processo, sem que tivesse ocorrido qualquer outro facto (pelo menos não foi alegado) que fosse susceptível de determinar qualquer alteração da situação.
Deste modo, a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas que justifica o novo pedido não é nova: é a mesma que já se verificava no anterior processo.
Não estamos, pois, perante a invocação de “factos novos”.
E assim sendo, conclui-se que a pretensão formulada nos autos é, efectivamente, idêntica à pretensão que já foi deduzida na acção anterior, sendo idêntica a causa de pedir nos dois processos.
Verifica-se, pois, a excepção de caso julgado, posto que na presente acção não é invocada a constituição de novas dívidas e não é invocada a existência de qualquer património a liquidar que pudesse justificar e conferir alguma utilidade a uma nova declaração de insolvência.
Bem andou, pois, o tribunal a quo ao indeferir liminarmente a p.i..
Efectivamente, e no que toca ao pedido de exoneração do passivo restante, este está sempre dependente da existência de um processo (principal) de insolvência e da declaração da insolvência, não correspondendo, portanto, a uma pretensão que possa ser formulada de forma autónoma. como resulta do disposto nos artigos 235º e 295º, al. c) do CIRE.
E a mera circunstância do pedido de exoneração ter sido indeferido no primeiro processo, não confere à Requerente o direito de vir instaurar novo processo de insolvência tendo como referência a mesma situação de insolvência e com vista à exoneração do passivo que já existia àquela data, por a tal obstar a excepção do caso julgado (quanto ao pedido de declaração da insolvência) e a circunstância do pedido de exoneração do passivo restante depender da declaração de insolvência.
A referida excepção “visa evitar que o órgão jurisdicional duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior” – cfr.. Miguel Teixeira de Sousa (“O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material”, BMJ 325, p. 49).
A verificação da excepção do caso julgado conduz ao indeferimento liminar do pedido de insolvência (art.º 590º, n.º 1, do CPC) e tal obsta ao prosseguimento da acção quanto ao pedido de exoneração do passivo restante.
Improcede, por isso, a apelação.

Sumário:
5 - Se o passivo invocado para fundamentar o pedido de insolvência já existia à data da anterior declaração de insolvência e se nenhum outro activo tiver acrescido àquele que existia naquele momento, a pretensão formulada (delimitada pelo pedido e respectiva causa de pedir) é idêntica àquela que já foi reconhecida e declarada na anterior sentença.
6 - Depois de ter sido proferida sentença a declarar a insolvência em determinado processo – que, entretanto, foi encerrado – e não estando em causa a situação prevista no artigo 39º, nº 7, alínea d), do CIRE –, deve ser liminarmente indeferida a petição inicial por via da qual o devedor vem requerer, novamente, a sua declaração de insolvência , para o efeito de usufruir da exoneração do passivo que lhe foi negado no processo anterior, por se configurar a excepção de caso julgado. 
7 - A exoneração do passivo está sempre dependente da existência de um processo de insolvência e pressupõe, naturalmente, que esse processo esteja em condições de ser admitido e que nele venha a ser declarada a insolvência do devedor.

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V. DECISÃO:
Nesta conformidade, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Notifique.

Lisboa, 11 de Abril de 2023
Manuel Marques
Pedro Brighton
Teresa Sousa Henriques