RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
FASE ADMINISTRATIVA
NOTIFICAÇÃO
PRAZO PARA A IMPUGNAÇÃO
Sumário

I.– Se o prazo judicial e sua forma de contagem previstos no Código de Processo Penal e no Código de Processo Civil não são aplicáveis à impugnação da decisão da autoridade administrativa em processo de contra-ordenação, também não o são o prazo e a forma da sua determinação emergentes do Direito administrativo, designadamente do Código do Procedimento Administrativo, já que o legislador criou regime específico em tal âmbito;

II.– Da análise do regime particular emergente do art. 60.º do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, que institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo, e atendendo à concentração que resulta da especialidade da regulação e ausência de remissão específica, temos que concluir que o prazo referido não é contínuo, não tem dilações e não envolve permissão de prática nos três dias posteriores ao seu termo (sendo a falta destas vantagens compensada pela suspensão aos Sábados, Domingos e Feriados e pela sua própria extensão, assimétrica por comparação com o prazo do recurso em segunda instância).

Texto Integral

Acordam na Secção de Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa:

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I.–RELATÓRIO


Com entrada de requerimento de interposição de recurso perante a AUTORIDADE NACIONAL DE AVIAÇÃO CIVIL (ANAC) em 26.09.2022 (remessa postal datada de 23.09.2022), DEUTSCHE LUFTHANSA AKTIENGESELLSCHAFT impugnou judicialmente decisões da referida Autoridade que, conforme referiu, lhe impuseram  «uma coima única no valor de 3.000,00, 10.000,00, 3.300,00 e 250,00» EUR pela prática de contra-ordenações relativas à admissão a embarque nas suas aeronaves de passageiros não possuidores de teste laboratorial de rastreio da infecção por SARS-CoV-2.

O conteúdo do assim decidido foi transmitido à Arguida/Recorrente através de carta registada com aviso de recepção remetida pela ANAC a «Mr…. Chairman of Deutsche LufthansaAG» «Venloer Strabe 151-153 +50672 Cologne Germany», sendo que o aludido aviso de recepção foi subscrito através da aposição de uma rubrica ilegível com data de 23.08.2022.

O Tribunal «a quo» descreveu o que reputou serem os elementos relevantes para a sua decisão, o que enunciou nos seguintes termos:
1.– DEUTSCHE LUFTHANSA AKTIENGESELLSCHAFT veio impugnar judicialmente a decisão proferida pela AUTORIDADE NACIONAL DA AVIAÇÃO CIVIL (doravante “ANAC”) no processo de contraordenação n.º 300/2021.
2.– O recurso foi remetido por correio enviado no dia 23.09.2022 (cf. fls. 97), tendo a Recorrente sido notificada da decisão final no dia 23.08.2022 (cf. fls. 56), ou seja, após o termo do prazo de vinte dias úteis a que alude o artigo 59.º, n.º 3, do Regime Geral das Contraordenações (RGCO), que terminou no dia 20.09.2022.

O mesmo órgão jurisdicional proferiu decisão com o seguinte conteúdo final:
7.– Face às asserções precedentes, conclui-se, conforme bem pugnam o Ministério Público e a ANAC, que o recurso apresentado é manifestamente intempestivo, verificando-se adicionalmente que não foi alegado qualquer justo impedimento.
8.–Termos, em que, não admito o recurso apresentado por ser intempestivo.

É dessa decisão que vem o presente recurso interposto pela Arguida, que alegou e apresentou as seguintes conclusões:
a.- A Recorrente considera que a Sentença proferida pelo Tribunal a quo que não admitiu a impugnação judicial da coima aplicável à Arguida no processo n.º 296/2021 enferma de erro na interpretação e aplicação do direito, nomeadamente quanto à (in)tempestividade da impugnação judicial apresentada pela Lufthansa.
b.- Tendo a notificação sido entregue na sede no dia 23 de agosto de 2022, esta apenas foi efetivamente recebida pelo seu destinatário (Presidente do Conselho de Administração da Lufthansa) no dia 31 desse mês.
c.- Apenas a 31 de agosto a Lufthansa tomou conhecimento do ato.
d.- É, precisamente, para acautelar situações como aquela ora descrita que se considera ser aplicável a dilação de 15 dias úteis, prevista no artigo 88.º do Código de Procedimento Administrativo – caso em que a impugnação judicial teria, forçosamente, de ser considerada tempestiva.
e.- Como nota prévia, é indiscutível – nem está aqui em causa – que o recurso de impugnação de decisão administrativa faz parte, ainda, da fase administrativa do processo, daí que se preveja, no artigo 62.º do RGCO, a possibilidade de a autoridade administrativa revogar a decisão que aplicou a coima até ao envio dos autos para o Ministério Público.
f.- A exigência legal de a impugnação judicial da decisão administrativa dever ser remetida para a autoridade administrativa que emitiu a decisão condenatória justifica-se precisamente porque esta poderá, em face dos argumentos que sustentam o recurso, decidir revogar a sua decisão – caso onde não haverá início da fase judicial do processo.
g.- É assim de concluir que a apresentação do recurso de impugnação judicial à autoridade administrativa não se traduz num ato praticado em juízo, e que o prazo e as normas aplicáveis à contagem do mesmo, dentro do qual o referido recurso deve ser apresentado, não configura um prazo judicial, mas sim puramente administrativo.
h.- Neste sentido já o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 2/94, que tem sido confirmado pela jurisprudência mais recente.
i.- Uma vez estabelecida a “natureza” do prazo, a sua contagem deve ser efetuada de acordo com as regras estabelecidas no Código de Procedimento Administrativo, visto serem estas as normas gerais aplicáveis à contagem de prazos administrativos.
j.- O recurso às regras de contagem de prazo previstas no Código de Procedimento Administrativo não depende da existência de uma qualquer lacuna.
k.- Pelo contrário, o acolhimento explícito, no artigo 60.º do RGCO, das regras de contagem do processo administrativo, vem reforçar a natureza administrativa do prazo, ao qual se devem aplicar as demais regras previstas no Código de Procedimento Administrativo – incluindo as dilações previstas no artigo 88.º.
l.- As regras previstas no Código de Procedimento Administrativo são, então, diretamente aplicáveis à fase administrativa dos ilícitos de mera ordenação social, pelo que a sua aplicação não implica qualquer negação do direito subsidiário previsto no artigo 41.º do RGCO (que se mantém naquelas situações onde se pode e deve manter).
m.-Neste sentido encontramos jurisprudência constante, como demonstram (a título exemplificativo) o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto no Processo n.º 826/13.5TBMAI.P1, Relatora Maria dos Prazeres Silva e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto no Processo n.º 243/09.1TBCPV.P1, Relatora Adelina Barradas de Oliveira.
n.- No caso do primeiro Acórdão, este versava sobre uma situação em tudo semelhante àquela ora em apreço: em ambos os casos estão em causa empresas transportadoras aéreas com sede no estrangeiro, que aí foram notificadas da decisão de aplicação de coima no âmbito de um processo de contraordenação movido pela mesma entidade administrativa (INAC, ora ANAC) e em ambos os casos estava em causa julgar a aplicabilidade da dilação prevista no CPA, prevista no mesmo artigo (73.º CPA, ora 88.º depois de renumerado) ao prazo de impugnação judicial da decisão de aplicação de coima previsto no artigo 59.º do RGCO.
o.- Sendo que o Tribunal da Relação do Porto decidiu que “…se o recurso de impugnação judicial integra a fase administrativa do processo contraordenacional e se o prazo aplicável regulado nos artigos 59.º e 60.º do RGCO tem natureza administrativa, não se vislumbram motivos atendíveis para recusar a aplicação da norma do artigo 73.º do CPA [atual artigo 88.º], que está inserida no regime geral dos prazos administrativos, à semelhança do que sucede com as regras previstas no artigo 72.º do mesmo diploma legal, e que só parcialmente foram transpostas para o artigo 60.º do RGCO” (negrito nosso).
p.- O artigo 88.º do Código de Procedimento Administrativo é uma norma geral aplicável à contagem dos prazos administrativos, que encontra justificação na previsível maior dificuldade de acesso a elementos e preparação da defesa por parte dos interessados residentes no estrangeiro, resultante da distância a que se encontram do local onde decorre o procedimento.
q.- No caso em concreto, onde a notificação foi remetida para a sede da Lufthansa, na Alemanha, o prazo de 20 dias úteis não se apresenta como razoável para que o interessado tenha condições práticas para impugnar judicialmente a decisão da autoridade administrativa.
r.- Assim, a interpretação dos artigos 59.º e 60.º do RGCO deve assentar no uso das regras gerais de interpretação consagradas no artigo 9.º do Código Civil, onde se encontra pleno fundamento para se aplicar, na contagem do prazo daí resultante, as dilações previstas no artigo 88.º do Código de Procedimento Administrativo.
s.- Com efeito, (i) situando-se o ato a praticar ainda no âmbito da fase administrativa do processo contraordenacional, (ii) visando impugnar um ato administrativo (decisão de aplicação de coima por entidade administrativa), (iii) tendo o recurso de ser obrigatoriamente apresentado perante a autoridade administrativa que aplicou a coima e (iv) considerando que, até ao envio dos autos, a autoridade administrativa pode revogar a decisão de aplicação de coima, não se vê como é que não serão aplicáveis as regras de contagem de prazo previstas no procedimento administrativo.
t.-Ainda para mais quando essa ignorância das normas aplicáveis afeta, desproporcionalmente, o princípio da tutela jurisdicional efetiva dos direitos ou interesses legalmente protegidos – cfr. artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) –, nomeadamente o princípio das garantias de defesa da Recorrente na dimensão do direito ao recurso garantido pelo artigo 32.º da CRP, colidindo ainda com os princípios da legalidade, da unidade do sistema e do acesso ao direito.
u.-Ainda para mais quando essa ignorância das normas aplicáveis afeta, desproporcionalmente, o princípio da tutela jurisdicional efetiva dos direitos ou interesses legalmente protegidos – cfr. artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) –, nomeadamente o princípio das garantias de defesa da Recorrente na dimensão do direito ao recurso garantido pelo artigo 32.º da CRP, colidindo ainda com os princípios da legalidade, da unidade do sistema e do acesso ao direito.
v.-Pelo que o entendimento perfilhado pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão  caso se mantenha pela não admissão do recurso – viola de forma intolerável os princípios da  confiança, boa fé e da segurança jurídica, consagrados nos artigos 2.º e 226.º da CRP, impedindo a Recorrente de reagir judicialmente contra uma decisão sancionatória da ANAC e, assim, violando o seu direito à tutela jurisdicional efetiva.
w.-Por tudo o que ficou dito, deverá ser concedido provimento ao recurso, sendo que deverá ser, a final, revogada a sentença recorrida e ordenada a devolução dos autos ao Tribunal a quo, a fim de aí ser proferida nova sentença que não seja de rejeição.

A AUTORIDADE NACIONAL DA AVIAÇÃO CIVIL respondeu ao recurso concluindo:
A.–A recorrente, na sequência da decisão proferida pela Autoridade Nacional da Aviação Civil, datada de 3 de fevereiro de 2022, no processo de contraordenação n.º 300/2021, foi condenada numa coima de €3.300, por violação do disposto na alínea i) do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 28-B/2020, de 28 de junho.
B.–A notificação da decisão foi enviada para a sede da recorrente Deutsche Lufthansa, AG, em Venloer Straβe 151-153, 50672 Cologne, Germany, o Ofício n.º 58/DJU/PCA/2022, datado de 16 de agosto de 2022, acompanhada de uma tradução de cortesia, tendo o respetivo aviso de receção foi assinado em 23 de agosto de 2022.
C.–A recorrente interpôs recurso de impugnação judicial da decisão da ANAC, tendo o mesmo sido recebido nesta Autoridade em 26 de setembro de 2022.
D.–Não obstante, o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, por sentença datada de 18 de outubro de 2022, não admitiu o recurso apresentado por ser intempestivo.
E.–Para o efeito, considerou o Tribunal a quo a Recorrente foi notificada no dia 23 de agosto de 2022, conforme consta do aviso de receção, sendo que o prazo de vinte dias úteis terminava em 20 de setembro 2022, mas o recurso apenas foi remetido por correio enviado no dia 23 de setembro de 2022.
F.–A recorrente não se conformou com a sentença do Tribunal a quo, e impugnou a mesma, argumentando que a sua sede se localiza no estrangeiro, e por esse motivo, dispõe de uma dilação, nos termos do artigo 88º do CPA, no que respeita à notificação realizada por carta registada com aviso de receção.
G.–No entanto, labora em erro, pois a jurisprudência tem decidido de forma cristalina quanto à inaplicabilidade do direito administrativo aos processos de contraordenação.
H.–Destarte, tal dilação não é aplicável aos processos de contraordenação, uma vez que o prazo de impugnação não é um prazo administrativo, como bem argumentam Paulo Pinto de Albuquerque e António Joaquim Fernandes.
I.–Por esse motivo, o único prazo a considerar é o que consta do artigo 59º n.º 3 do RGCO, e que terminou no dia 20 de setembro de 2022.
J.–Outro argumento aduzido pela recorrente é que a suposta nulidade da notificação da decisão representa “uma preterição do direito de defesa da Lufthansa.”
K.–Ora, não lhe assiste qualquer razão. Desde logo porque, a ser verdade que só teve conhecimento da notificação da ANAC no dia 31 de agosto de 2022, ou seja, seis dias úteis depois da data em que foi recebida a notificação e que consta do aviso de receção, tal não representa qualquer preterição do seu direito de defesa.
L.–Quanto muito significaria apenas uma compressão do referido prazo com a subtração de seis dias úteis, sendo que ainda assim, a recorrente disporia de catorze dias úteis para interpor o recurso de impugnação judicial.
M.–Não obstante, veja-se que a recorrente esperou pelo último dia (do prazo contado por si) para remeter por correio registado a mencionada impugnação judicial, o que é demonstrativo da falta de cautela no cumprimento dos prazos, pois poderia e devia ter confirmado no site dos correios (da Alemanha ou de Portugal) a data que constava para a entrega da notificação da decisão da ANAC, e contar o prazo a partir desse momento e não a partir de um carimbo interno, que poderá nem sequer ser fidedigno quanto à data aposta na notificação.
N.–Pelo que, dúvidas não existem de que a recorrente não cumpriu o prazo de vinte dias úteis para a interposição de recurso, bem como não alegou nem provou a existência de qualquer justo impedimento para o cumprimento do prazo, tratando-se unicamente de falta de diligência da mesma perante uma notificação da autoridade aeronáutica.
O.–Por fim, sustenta a recorrente que o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo de não admissão do recurso viola o seu direito à tutela jurisdicional efetiva.
P.–A recorrente atuou com falta de cuidado na contagem do prazo de interposição do recurso e pretende fazer crer que o seu direito à tutela jurisdicional efetiva está a ser coartado pelo Tribunal a quo.
Q.–Mas tal não se confirma, pois, a recorrente teve conhecimento da decisão da ANAC, mas não reagiu em tempo útil, facto que só poderá ser imputado única e exclusivamente a si própria.
R.–Face ao que antecede, deve o recurso deve ser julgado totalmente improcedente.

O Ministério Público junto do Tribunal «a quo» respondeu às alegações de recurso concluindo:
1- Recorre a arguida da douta decisão que rejeitou a petição de recurso de contraordenação por intempestividade, por entender que existiu justo impedimento e que beneficia da dilação do prazo de quinze dias previsto no art.º 88.º do Código de Procedimento Administrativo;
2- A arguida, até à data da apresentação do presente recurso jurisdicional, não invocou qualquer justo impedimento e, logo, em razão do disposto no artigo 107.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi art.º 41.º, n.º 1, do RGCO, deixou precludir o direito de o invocar;
3- O prazo de 20 dias úteis para apresentar recurso de impugnação, previsto no art.º 59.º, n.º 3, do RGCO, não tem natureza judicial e não se suspende nas férias judiciais;
4- Não são aplicáveis ao prazo em apreço quaisquer dilações previstas no Código de Procedimento Administrativo, pois o processo contraordenacional tem natureza sancionatória, sendo as suas lacunas integradas apenas por recurso aos preceitos reguladores do processo criminal, devidamente adaptados (cfr. art.º 41.º, n.º 1, do RGCO);
5- Pela observância do prazo de 20 dias úteis, disposto no art.º 59.º, n.º 3, do RGCO, a arguida apenas poderia impugnar judicialmente a decisão até ao dia 20-09-2022, não podendo sequer beneficiar da possibilidade de praticar o ato nos três dias úteis subsequentes a tal data;
6- Tendo a arguida apenas remetido a impugnação no dia 23-09-2022, a mesma encontra-se ferida de intempestividade;
7- A douta decisão em recurso não merece qualquer censura.

Foi colhido o visto do Ministério Público junto deste Tribunal da Relação de Lisboa que nada acrescentou à posição assumida pelo mesmo M. P. na primeira instância, acompanhando-a.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

São as seguintes as seguintes as questões a avaliar:
1.–É aplicável na situação apreciada nos autos a dilação de 15 dias úteis, prevista no artigo 88.º do Código de Procedimento Administrativo, pelo que a impugnação judicial tem que ser considerada tempestiva?
2.–O entendimento perfilhado pelo Tribunal «a quo» viola de forma intolerável o princípio da tutela jurisdicional efetiva dos direitos ou interesses legalmente protegidos, nomeadamente o princípio das garantias de defesa da Recorrente na dimensão do direito ao recurso garantido pelo artigo 32.º da CRP, colidindo ainda com os princípios da legalidade, da unidade do sistema e do acesso ao direito e os princípios da confiança, boa fé e da segurança jurídica, consagrados nos artigos 2.º e 226.º da Constituição da República Portuguesa?

II.–FUNDAMENTAÇÃO

Fundamentação de facto

Relevam, nesta sede, os factos processuais acima enunciados.


Fundamentação de Direito
1.–É aplicável na situação apreciada nos autos a dilação de 15 dias úteis, prevista no artigo 88.º do Código de Procedimento Administrativo, pelo que a impugnação judicial tem que ser considerada tempestiva?
Pugna a Arguida pela aplicação, nos autos, na definição do prazo de que dispunha para impugnar a decisão da autoridade administrativa contra si proferida, da dilação de quinze dias enunciada na al. b) do n.º 1 do art. 88.º do Código do Procedimento Administrativo – encadeado normativo aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 07.01 – por estar a arguida sedeada no estrangeiro.
Neste campo, admite-se a existência de alguma compreensível paralaxe de génese terminológica, orgânica e jurídica.

É o próprio legislador a introduzir, neste domínio, as palavras «administrativa» e «administrativas» para referenciar as entidades intervenientes por alusão à ontologia e essência jurídica das autoridades inicialmente decisórias – vd. os art.s 21.º, 27.º-A,  28.º, 33.º, 35.º, 38.º, 40.º, 41.º, 45.º, 46.º, 48.º, 49.º, 52.º, 53.º, 55.º, 56.º, 59.º, 60.º, 62.º, 65.º-A, 70.º, 72.º-A, 73.º, 79.º, 81.º, 82.º, 83.º, 87.º, 88.º, 89.º, 90.º, 91.º, 92.º e 93.º e 95.º, todos do RGCO.

Mas será que essa aparência coincide com a realidade e tem a suficiente força para atrair o regime do Direito administrativo, designadamente o sistema de prazos do Código do Procedimento Administrativo (CPA)? Analisemos.

A resposta terá que ser afirmativa se nenhum regime específico apartar a essência da entidade que decide do regime normativo associado à sua identidade, a saber, o administrativo. E para aí chegar não seriam, neste contexto, necessários sofisticados mecanismos interpretativos.

É certo que a intervenção da autoridade administrativa surge à margem da face judicial do processo de contra-ordenação (apesar de o n.º 2 do  art. 41.º consignar que no «processo de aplicação da coima e das sanções acessórias, as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal, sempre que o contrário não resulte do presente diploma»), pelo que o regime relativo aos prazos judiciais não é, pelos menos automaticamente, aplicável à dita «fase administrativa».

Se disto houvesse dúvidas, elas sempre seriam dissipadas pelo acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do Supremo Tribunal de Justiça que definiu que: «Não tem natureza judicial o prazo mencionado no n.º 3 do artigo 59.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, com a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 356/89, de 17 de Outubro».

Esta resposta jurisprudencial já antes intuível, não soluciona, porém, o nosso problema, já que dela não resulta, de forma mecânica, a natureza administrativa do lapso temporal avaliado. Nem tal emerge, da mesma forma e de imediato, da afirmação: «o que significa que, até ao envio dos autos ao Ministério Público, tudo se mantém no âmbito meramente administrativo, não representando a interposição do recurso a imediata entrada na fase judicial do processo», já que bem pode o legislador ter criado um mecanismo específico regulador do prazo quer à margem das regras processuais relativas a um processo judicial quer das integradas no Direito administrativo.

Se é verdade que o referenciado aresto do Supremo Tribunal de Justiça notou com acerto não poderem ser importadas regras do processo penal ao abrigo do disposto no  art. 41.º do RGCO por esta ser norma apenas aplicável «à matéria do capítulo onde está inserido», não menos certo é que o legislador, adaptando já o regime do RGCO ao afirmado no acórdão de forma obrigatória, veio erigir, sem ambiguidades, um prazo que dirigiu específicamente ao momento da impugnação da decisão da autoridade administrativa. Fê-lo nos n.ºs 1 e 2 do art. 60.º, nos seguintes termos:   
1-O prazo para a impugnação da decisão da autoridade administrativa suspende-se aos sábados, domingos e feriados.
2-O termo do prazo que caia em dia durante o qual não for possível, durante o período normal, a apresentação do recurso, transfere-se para o primeiro dia útil seguinte.

Daqui sim, resulta já resposta muito consistente, construída sem particulares dificuldades de interpretação gramatical, semântica, teleológica, histórica ou outra, no sentido de que, se o prazo judicial e sua forma de contagem, previstos no Código de Processo Penal e no Código de Processo Civil, não são aplicáveis à impugnação da decisão da autoridade administrativa, também não o são o prazo e a forma da sua determinação emergentes do Direito administrativo, designadamente do Código do Procedimento Administrativo.

Porquê? Justamente porque o legislador, adaptando o regime normativo das contra-ordenações àquele aresto, criou regime específico quanto à matéria ajuizada.

E desse sistema brota, insofismável, a original suspensão da contagem dos prazos aos Sábados, Domingos e Feriados (original face ao regime do n.º 1 do art. 104.º do Código de Processo Penal, marcado pela sua remissão para o prazo contínuo definido no n.º 1 do art. 138.º do Código de Processo Civil).

Temos, pois, no RGCO, um sistema de prazos aplicável à fase judicial, sobretudo marcado pela remissão para o processo penal feita no art. 41.º, e um regime relativo ao prazo de impugnação das decisões das autoridades administrativas vertido directamente, sem remissão, no art. 60.º.

Esta especialidade e suficiência afastam, liminarmente e em absoluto, o recurso, a título subsidiário, ao Direito administrativo, designadamente ao art. 88.º do CPA.

Da análise do regime particular assim revelado – art. 60.º – e atendendo à concentração que resulta da especialidade e ausência de remissão específica no âmbito da regulação do recurso da decisão administrativa dele objecto, temos que concluir que o prazo em apreço não é contínuo, não tem dilações e não envolve permissão de prática nos três dias posteriores ao seu termo (sendo a falta destas vantagens compensada pela suspensão aos  Sábados, Domingos e Feriados e pela sua própria extensão assimétrica por comparação com o prazo do recurso jurisdicional para a Relação).

No domínio jurisprudencial, relevam neste âmbito, a título complementar, algumas das referências lançadas com muita adequação no recurso penal n.º 204/22.5YUSTR.L1 deste tribunal, nos termos que se extractam:
No que diz respeito ao acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça STJ-2/96, o mesmo julga que a disciplina autónoma do processo penal em matéria de prazos prescinde da figura da dilação. Afigura-se que idênticos fundamentos valem para o prazo de impugnação judicial aqui em questão, previsto nos artigos 59.º e 60.º do RGCO, (...) porque a dilação não se encontra especificamente prevista nesses artigos (…).
 e
Em consequência, afigura-se que, à luz dos acórdãos TC-378/2021 e STJ-2/96, na presente contraordenação, não acresce ao prazo de impugnação previsto nos artigos 59.º e 60.º do RGCO, a dilação prevista no artigo 88.º do CPA.

Face ao exposto, é manifestamente negativa a resposta que se impõe dar à questão avaliada.

2.–O entendimento perfilhado pelo Tribunal «a quo» viola de forma intolerável o princípio da tutela jurisdicional efetiva dos direitos ou interesses legalmente protegidos, nomeadamente o princípio das garantias de defesa da Recorrente na dimensão do direito ao recurso garantido pelo artigo 32.º da CRP, colidindo ainda com os princípios da legalidade, da unidade do sistema e do acesso ao direito e os princípios da confiança, boa fé e da segurança jurídica, consagrados nos artigos 2.º e 226.º da Constituição da República Portuguesa?

Como se viu em sede de resposta à questão anterior, o percurso analítico feito pelo Tribunal «a quo» atingiu conclusão que tem suporte claro e seguro no Direito constituído.

Não viola o princípio da tutela jurisdicional efectiva a fixação de prazos judiciais e respectivas preclusões. Tal fixação constituiu, aliás, lógica central subjacente ao funcionamento das regras de processo, quer a nível nacional quer dos demais Países.

Em Portugal, as regras relativas ao patrocínio obrigatório e ao acesso ao Direito e aos tribunais, indo mais longe do que foi construído por muitos outros Estados situados fora do espaço da União (já que, na área intra-UE tudo é nivelado pela Directiva 2002/8/CE do Conselho, de 27 de Janeiro de 2003, relativa à melhoria do acesso à justiça nos litígios transfronteiriços, através do estabelecimento de regras mínimas comuns relativas ao apoio judiciário no âmbito desses litígios), asseguram que os cidadãos sejam representados por profissionais do foro dotados da devida formação profissional que lhes permita bem conhecer, designadamente, esses prazos e as respectivas formas de contagem e que saibam exercer direitos processuais, o que constitui garantia suplementar de obtenção de pleno exercício do direito ao juiz e à tutela jurisdicional efectiva.

A definição segura dos apontados lapsos temporais no Direito positivado (aqui se incluindo o ora apreciado) assegura o pleno respeito do princípio da legalidade.

Um sistema assim erigido consagrando prazos entre si concatenados e tudo organizando num tecido marcado por tempos específicos para a prática de cada acto processual e assinalado pela perda de direitos de natureza adjectiva em caso de não utilização tempestiva é, insofismavelmente, unitário (uno) e coerente (porque articulado e conforme com os seus elementos constituintes).

É patente o lapso da Arguida/Recorrente ao indicar a segunda das normas apontadas na pergunta a que ora se responde. Tal até emerge, também, das suas próprias alegações. O art. 226.º da Constituição da República Portuguesa nenhuma ligação tem com o que se quis invocar. Certamente que a Arguida pretendeu, antes, brandir com a violação dos princípios fundamentais do funcionamento da Administração Pública enunciados no n.º 2 do art. 266.º da Lei Fundamental. Porém, ainda que o tivesse feito em termos adequados, nem assim lhe assistiria razão.

É desta forma porquanto é manifesto, à luz do enquadramento e análise acima concretizados, que não ficam, nos autos, comprimidos o princípio da igualdade (não há qualquer desequilíbrio entre partes emergente da fixação específica de um quadro legal, com generalidade e abstracção, no que tange à contagem de um prazo de impugnação), proporcionalidade (conceito relacional que assenta numa comparação entre os dois termos de uma equação, não se indiciando, aqui, perda de relação balanceadora e equânime), justiça (vontade perpétua de dar a cada um aquilo que lhe pertence, sendo que o que aqui pertence à Arguida é o que o legislador lhe conferiu, manifestamente sem compressão de direitos, particularmente encontrando-se a mesma representada por Distinto Profissional do Foro justamente com vista a garantir o pré-conhecimento do Direito vigente e das formas sacramentais de exercício de direitos e suas preclusões), imparcialidade (nenhum desequilíbrio em desfavor da Recorrente se vislumbra na fixação de um regime específico de contagem de prazo de impugnação no momento do confronto com a decisão administrativa) e boa-fé (não se localiza violação de uma conduta recta e proba em qualquer momento dos autos e ela não se manifesta ao nível legislativo pela regulação particular de um regime de contagem de prazo em atenção à especificidade da intervenção sendo que, aliás, o prazo concedido no fim da «fase administrativa» e que se quis utilizar corresponde ao dobro do concedido para o mesmo efeito no final da fase de impugnação judicial em primeira instância).

A existência de norma geral e abstracta anterior, aprovada nos termos constitucionais, e a subjacente possibilidade de recorrer a tribunais independentes integrados no Terceiro Poder do Estado (pois se até se definem prazo e forma da sua contagem, veiculares de um recurso), não envolve qualquer risco de abalo ao Estado de Direito Democrático, particularmente de desvio à garantia de tutela efectiva de direitos, para os efeitos do estabelecido no art. 2.º da Constituição.

Não há agressão à previsibilidade e coerência intrínseca das normas analisadas porquanto as mesmas se integram num quadro sistemático definido com clareza e antecipação (aliás concretizando jurisprudência obrigatória, como se viu) e assentam num conhecimento preciso dos demais institutos e regimes similares.

O contexto descrito em sede da resposta à questão anterior evidencia, com grande clareza, não ficarem em crise a certeza e a segurança quanto ao exercício dos direitos e não se ferirem expectativas em termos que gerem abalo da confiança dos cidadãos e empresas na ordem jurídica e na actuação do Estado, antes o mesmo revela uma estrutura normativa organizada, clara, pré-conhecida, certa, patente e bem visível –  sobretudo para os profissionais do foro – constante de normas publicadas e pré-estabelecidas.

Não há qualquer inconstitucionalidade.

Releva, como complemento desta exposição, o referido no acórdão deste Tribunal, referenciado na presente decisão, com o conteúdo que se enuncia:
Assim, o acórdão do Tribunal Constitucional TC-378/2021, julgou que não é inconstitucional a norma constante do n.º 1 do artigo 228.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, quando interpretada no sentido de que é de quinze dias úteis, a contar do conhecimento do arguido, sem possibilidade de prorrogação, o prazo para a interposição do recurso da decisão administrativa que tenha aplicado uma sanção. Pelo que, as mesmas razões indicadas nesse acórdão, valem para a norma análoga aqui em crise, prevista no artigo 59.º do RGCO, sem que, contrariamente ao que defende a arguida, a impossibilidade de aplicação de uma dilação tenha violado os princípios constitucionais da tutela jurisdicional efetiva, da confiança, da boa fé ou da segurança jurídica.

Quanto à efectividade, ou seja, ao efectivo acesso à impugnação das decisões («judiciais», no caso apreciado pelo Tribunal Constitucional) tem importância, também, o enunciado por esse Tribunal no Acórdão 172/2021 (na senda de vários outros), que recordou, citando o Acórdão n.º 110/2012, que «as diferenças existentes entre a ilicitude de natureza criminal e o ilícito de mera ordenação social obstam a que se proceda a uma simples transposição, sem mais, dos princípios constitucionais aplicáveis em matéria de definição de penas criminais para o espaço sancionatório do ilícito de mera ordenação social».

Com muito interesse e relevo, o acórdão do Tribunal Constitucional com o n.º 378/2021, acima indicado, alinhou como «exemplos da admissibilidade constitucional da diferenciação de regimes no que respeita a prazos processuais (...): (i)- o Acórdão n.º 1229/1996, na parte em que não julgou inconstitucional a norma constante do artigo 74.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, enquanto estabelece o prazo de cinco dias para ser interposto recurso da decisão do juiz de 1.ª instância para o Tribunal da Relação em processo de contraordenação; (ii)- o Acórdão n.º 473/2001, que não julgou inconstitucional o disposto nos artigos 59.º n.º 3 e 60.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, na interpretação de que, terminando em férias judiciais o prazo para a interposição do recurso neles previsto, o mesmo não se transfere para o primeiro dia útil após o termo destas; (iii)- o Acórdão n.º 395/2002, que não julgou inconstitucional norma extraída dos artigos 59.º, n.º 3, e 60.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, na redação que lhes foi dada pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de setembro, na interpretação de que o prazo para a interposição do recurso neles previsto não se suspende durante as férias judiciais; (iv)- o Acórdão n.º 293/2006, que não julgou inconstitucional a norma que se extrai da conjugação dos artigos 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações e Coimas, 107.º, n.º 5, do Código de Processo Penal e 145.º, n.ºs 5 e 6, do Código de Processo Civil, segundo a qual não se considera aplicável o disposto o artigo 145.º, n.ºs 5 e 6, do Código de Processo Civil ao prazo para interposição do recurso de impugnação de contraordenação; e (v)- os Acórdãos n.ºs 487/2009 e 386/2014, que não julgaram inconstitucional a norma do artigo 74.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, com a redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de setembro, na interpretação segundo a qual o recurso deve ser interposto no prazo de 10 dias a partir da sentença ou do despacho, ou da sua notificação ao arguido caso a decisão tenha sido proferida sem a presença deste, estabelecendo um prazo mais curto para o recorrente motivar o recurso do que aquele que decorre do artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, com a redação conferida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto».

Resulta do enunciado ser manifesto não assistir razão à Arguida/Recorrente, também a este nível.

Não se localiza erro na contagem do prazo de recurso, sendo adequada a conclusão pela sua intempestividade.

Só pode, consequentemente, ser negativa a resposta a dar a esta derradeira questão analisada.

III.–DECISÃO

Pelo exposto, julgamos improcedente o recurso, negamos-lhe provimento e confirmamos a decisão impugnada.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCS.
*


Lisboa, 10.03.2023



Carlos M. G. de Melo Marinho- (Relator)
Eleonora Maria Pereira de Almeida Viegas- (1.ª Adjunta)
Ana Mónica Carrasqueiro Mendonça Pavão- (2.ª Adjunta)