I - Num contrato de compra e venda com intervenção de mediadora imobiliária, relativamente a esta não está em causa a responsabilidade resultante do contrato de compra e venda defeituosa, pelo que não se lhe podem aplicar as regras de caducidade inerentes à mesma, mas antes as regras de prescrição da responsabilidade civil decorrentes da alegada violação dos seus deveres.
II - Trata-se de situação em que existem regras distintas sobre diversas modalidades de responsabilidade civil em sobreposição no que respeita ao respetivo âmbito de aplicação, as quais podem, consequentemente, concorrer – o cumprimento defeituoso, quando este inadimplemento cause prejuízos na pessoa do credor ou dos seus bens – com diferentes regimes designadamente no que concerne a caducidade e prescrição;
III - Radicando a responsabilidade dos Réus vendedores, por um lado, e da Ré mediadora e respetiva seguradora, por outro, em contratos diversos, a solidariedade mostra-se afastada pelo disposto no artigo 513º do Código Civil.
(Sumário elaborado pela Relatora)
I. Relatório
AA propôs a presente ação declarativa de condenação contra BB, CC e “S... – MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA.”, pedindo;
a. a condenação solidária dos Réus no pagamento da quantia de €40.000,00 (quarenta mil euros), a título de indemnização pela reparação do defeito oculto de que alega padecer o imóvel em causa nos autos, à luz do disposto nos artigos 910.º n.º 1, 913.º n.º 1 e 914.º todos do Código Civil;
b. a título subsidiário que o preço por si pago no âmbito do contrato de compra e venda do imóvel em causa seja reduzido no valor de € 66.391,30 (sessenta e seis mil trezentos e noventa e um euros e trinta cêntimos), nos termos e ao abrigo dos artigos 911.º n.º 1 e 913.º n.º 1 in fine do Código Civil sendo-lhe paga a diferença;
c. Que os Réus sejam condenados a pagar ao Autor as quantias mencionadas em a. e b., tudo num total de € 106.391,30 (cento e seis mil trezentos e noventa e um euros e trinta cêntimos) acrescido dos respetivos juros de mora, calculado à taxa legal de 4% desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, bem como a liquidação integral das custas, inclusive de parte.
Alegou para tanto e em suma, que que voltou a analisar toda a documentação relativa ao imóvel em questão, nomeadamente as telas finais do projeto aprovado pela Câmara Municipal de Sesimbra, o alvará de loteamento, a planta do lote, os relatórios técnicos e constatou que também a fachada tardoz do imóvel havia sido ilicitamente alterada pelos Réus vendedores com a inclusão de uma varanda /terraço e vãos exteriores com uma área de 30,20m2 ( artigos 33º e 80º da petição inicial).
Os Réus defenderam-se por exceção – invocando a litispendência relativamente ao Proc. n.º 8346/16.0T8STB do Juízo Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, e a caducidade do direito do Autor por falta de denúncia e de propositura atempada da ação – e por impugnação e pediram a condenação do Autor como litigante de má fé.
O Autor respondeu às exceções e ao pedido de condenação como litigante de má fé, pugnando pela respetiva improcedência.
Tendo a Ré S..., Lda. deduzido incidente de intervenção principal provocada com vista a fazer intervir a Victoria – Seguros, S.A., com quem celebrou um contrato de seguro de responsabilidade civil derivada da sua atividade de mediadora imobiliária que garante os danos emergentes da atuação no exercício da mediação imobiliária, por despacho de 29.01.2022 foi tal intervenção admitida e citada esta, veio a mesma contestar, pugnando pela improcedência da ação.
Teve lugar a audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido saneador-sentença com o seguinte dispositivo:
“Atentas as considerações expendidas, julga-se procedente a exceção perentória da caducidade do direito e, em consequência, decide-se absolver os réus dos pedidos.
Custas a cargo do Autor
Registe e Notifique-se.”
*
Inconformado com a decisão prolatada, o Autor dela interpôs recurso, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:
1.º Neste presente recurso, solicita-se a apreciação superior do Venerando Tribunal da Relação de Évora sobre o direito do A., ora Apelante, de ver apreciada em juízo a sua pretensão deduzida em referência aos RR., ora Apelados.
2.º Na presente ação judicial é pedida a condenação solidária dos Apelados, no pagamento da quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros), a título de indemnização pela reparação do defeito oculto que o imóvel id. a fls. padece, cfr. arts.º 910.º n.º 1, 913.º n.º 1 e 914.º todos do CC.
3.º De igual modo, o Apelante pede a título subsidiário que o preço que pagou no âmbito do contrato de compra e venda do imóvel em causa seja reduzido no valor de € 66.391,30 (sessenta e seis mil trezentos e noventa e um euros e trinta cêntimos), cfr. arts.º 911.º n.º 1 e 913.º n.º 1 in fine do CC.
4.º Reclama o Apelante dos Apelados um total de € 106.391,30 (cento e seis mil trezentos e noventa e um euros e trinta cêntimos), acrescido dos respetivos juros de mora, calculado à taxa legal de 4% desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, bem como a liquidação integral das custas, inclusive de parte.
5.º Saneado o processo a Mm.ª Juiz a quo julgou de forma negativa uma das exceções invocadas pelos Apelados, dando provimento à verificação da caducidade trazida a juízo pelos Apelados.
6.º O Apelante não concorda com a douta posição assumida pela Mm.ª Juiz a quo.
7.º Em análise nestes autos encontra-se o facto da fachada tardoz do imóvel id. a fls. ter sido ilicitamente alterada pelos Apelados vendedores com a inclusão de uma varanda/terraço e vãos exteriores com uma área não licenciada de 30,20m2.
8.º A Mm.ª Juiz a quo na sua douta apreciação das exceções defendidas pelos Apelados socorre-se da matéria factual considerada provada no âmbito do Proc. n.º 8346/16.0T8STB do Juízo Central Cível – Juiz 1 do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, no sentido em que definiu a situação jurídica das partes relativamente à pretensão ali deduzida e relativamente aos defeitos objetivamente ali invocados.
9.º A situação neste processo judicial é diferente da invocada na ação anterior embora relacionada também com áreas não licenciadas.
10.º A questão da varanda objeto do presente processo é assim um assunto novo e passível de ser julgada.
11.º No entanto, a Mm.ª Juiz a quo considerou válida a verificação da caducidade.
12.º Para justificar a sua douta decisão, a Mm.ª Juiz a quo invoca na sua essência um relatório elaborado pelo ISQ (Instituto de Soldadura e Qualidade), que se mostra junto a fls. dos autos.
13.º Tal documento foi elaborado e apresentado com o objetivo de apurar a discrepância das áreas construídas e licenciadas, com menção à alteração de fachada em relação ao projeto aprovado e inclusão de varanda/terraço e vão exterior não contemplados no projeto em causa.
14.º Esta observação pericial datada de 28/11/2017, visava identificar e analisar a área construída (existente) que não consta do Projeto de Arquitetura aprovado (pela Câmara Municipal e previamente pela Comissão de Apreciação do condomínio Quinta do Perú).
15.º Com base neste documento e noutro de fls. com origem na “BUREAU VERITAS”, considerou a Mm.ª Juiz a quo que o Apelante teve conhecimento da existência de um vão aberto para o exterior que não consta do projeto de arquitetura aprovado desde o ano de 2016/2017.
16.º Desta forma, não teria o Apelante efetuado tempestivamente a denúncia obrigatória do defeito no prazo de um ano, a contar do seu conhecimento, cfr. art.º 916.º do CC, tendo, no seu entender ocorrido a caducidade do direito de ação à data de entrada em juízo em 21/04/2021.
17.º Contudo, a Mm.ª Juiz a quo omite no teor da sua decisão aquela que foi a posição do Apelante na sua petição inicial de fls. (art.ºs 7.º; 33.º; 39.º; 40.º e 98.º) que é a questão do dolo praticado pelos Apelados.
18.º O Apelante alegou que em relação à alteração ilegal da fachada tardoz do imóvel os Apelados atuaram com dolo.
19.º Tal informação foi sempre omitida no âmbito da ação correspondente ao Proc. n.º 8346/16.0T8STB do Juízo Central Cível – Juiz 1 do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, onde estavam a obrigados a falar de todos os defeitos existentes no bem imóvel em causa.
20.º Apenas em sede de contestação nos presentes autos, os Apelados falaram sobre o assunto.
21.º Resulta, assim, que no âmbito do regime da venda de coisas defeituosas, cfr. art.ºs 913.º e ss. do CC, tendo os Apelados atuado com dolo, é aplicável quanto à denúncia do defeito a exceção prevista no n.º 1 do art.º 916.º do CC.
22.º Nessa circunstância não caberia a obrigatoriedade da denúncia do vício ou da falta de conformidade da coisa por parte do comprador, neste caso, o Apelante.
23.º Conforme resulta do art.º 253.º n.º 1 do CC, o dolo implica uma prévia “sugestão” ou “artifício” com o reverso necessário de induzir ou manter em erro a pessoa interessada na concretização do negócio.
24.º O dolo abrange igualmente a dissimulação do erro.
25.º O dolo a que se refere o art.º 916.º n.º1 do CC é aquele que tiver por objeto “o vício ou a falta de qualidade da coisa”.
26.º No caso em apreço, o Tribunal a quo desconsiderou, por completo, a invocação da existência de dolo por parte dos vendedores.
27.º Para efeitos de contabilização do prazo de caducidade, a Mm.ª Juiz a quo deveria ter aferido que factos invocados pelo Apelante poderiam configurar dolo por parte dos vendedores, de modo a situar temporalmente o conhecimento da não conformidade, tratando-se de uma circunstância que terá de ser apurada em sede de prova.
28.º No caso de o vendedor incorrer em dolo, o comprador não tem de denunciar o vício ou a falta de qualidade da coisa, não lhe sendo aplicável a exigência da propositura duma ação.
29.º Tais direitos podem ser exercidos extrajudicialmente; e, por este modo oportunamente exercidos, a sua posterior (em relação ao anterior exercício extrajudicial) invocação, em ação judicial, por via de ação, reconvenção ou exceção, já não estará sujeita a qualquer prazo de caducidade, ficando apenas sujeitos, a partir do seu exercício extrajudicial, ao prazo de prescrição geral.
30.º Cita-se Pedro Romano Martinez quando este autor salienta o facto do comprador não ter comunicado o defeito ao vendedor, “neste caso, a ação a intentar contra o vendedor tem o valor de uma denúncia, pois não é obrigatório que, antes da propositura da ação, tenha havido denúncia do defeito” - in “Direito das Obrigações” Parte Especial-Contratos, 2.ª Ed., Coimbra, Almedina, 2014, pág. 145.
31.º Na doutrina, destaca-se igualmente António Telles e João Carmona Dias, in “Garantia na alienação de empresas”, Coimbra Editora, pág. 72: “se ocorrer dolo do alienante o adquirente não estará sujeito ao dever de denunciar defeitos (art.º 916.º, n.º 1) e, para exercer direito á reparação, manterá o prazo geral da prescrição de vinte anos, por falta de outro estabelecido na lei”.
32.º Neste sentido, a denúncia dos defeitos é um ónus imposto ao comprador. A falta de cumprimento tempestivo desse ónus acarreta a caducidade de todas as pretensões que a lei lhe confere – Pedro Romano Martinez, pág. 331, João Calvão da Silva, pág. 73 e 74, Luís Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações”, Vol. III Contratos em Especial, 6.ª edição, Almedina, 2009, pág. 129, Ac. do STJ, Proc. n.º 07B4540, de 29 de janeiro de 2008 e Proc. n.º 08B1356, de 21 de maio de 2009,
33.º Mas onde existe consenso, tanto ao nível da doutrina como da jurisprudência, é quanto ao dever de denúncia a que por lei está obrigado o comprador, previamente ao exercício de qualquer dos direitos que a lei lhe confere, exceto se o vendedor tiver usado de dolo, cfr. art.º 916.º n.º 1 do CC.
34.º Ainda assim, temos a questão da exigência de licença de utilização imposta pelo art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 281/99 de 26 de julho.
35.º Não estamos perante uma mera formalidade para ser prevista a nível de um contrato ou de uma escritura de compra e venda de um imóvel, sendo a sua ausência impeditiva da celebração do ato público de transmissão, não podendo ser celebradas escrituras públicas ou contratos que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos ou de suas frações autónomas sem que se faça prova suficiente da inscrição na matriz predial, ou da respetiva participação para a inscrição, e da existência da correspondente licença de utilização, de cujo alvará, ou isenção de alvará, se faz sempre menção expressa contratual perante a entidade que celebrar a escritura ou autenticar o documento particular.
36.º É obrigação legal que tem por objetivo proteger interesses de ordem pública fundamentais, tutelados pelo direito do urbanismo, que protege a vida e a saúde, a par de outros direitos pessoais e coletivos, não só dos interessados diretos dos prédios urbanos, mas no seu fim último do território e da generalidade dos cidadãos.
37.º Esta norma tem duas exceções, não aplicáveis ao caso em concreto, cfr. art.º 883.º n.º 6 do CPC e a omissão para os prédios cuja construção é anterior à entrada em vigor do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38383, de 07 de agosto de 1951, (vigente em regra no território desde 13 de agosto de 1951).
38.º O imóvel em apreço tem licença de utilização validamente emitida pela entidade camarária competente, mas as obras subsequentes a tal emissão não estão licenciadas até ao momento.
39.º A licença de utilização visa garantir a aptidão da coisa para o fim ou função normal a que se destina e, assim, assegurar a sua plena fruição, pelo que, a sua falta pode ser considerada como uma limitação que onera anormalmente o imóvel.
40.º As normas legais contidas no Decreto – Lei n.º 555/99 de 16 de dezembro, que fixa o REGIME JURÍDICO DA URBANIZAÇÃO E EDIFICAÇÃO - RJUE são inabaláveis nesta questão de áreas imobiliárias construídas sem prévio licenciamento.
41.º As consequências da impossibilidade desse licenciamento, sendo que a consequência jurídica da violação das normas urbanísticas, designadamente, a infração das licenças, autorizações e comunicações prévias admitidas, como sucede no caso do imóvel objeto dos presentes autos, é obter o seu licenciamento, ou, face à impossibilidade de tal situação, a demolição total ou parcial da obras como determina o art.º 106º do RJUE.
42.º No fundo, a consequência é o impedimento da plena fruição do imóvel em causa pelo Apelante.
43.º Com relevância para a decisão a formular, a Mm.ª Juiz a quo violou pela sua indevida apreciação o teor dos arts.º 253.º n.º 1, 910.º n.º 1, 913.º n.º 1, 914.º, 916.º n.º 1 e 917.º todos do CC.
Terminou pedindo que a douta sentença seja revogada e substituída por acórdão que consagre a “posição articulada do Apelante”.
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Os Réus BB e CC responderam ao recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1ª Vem o presente recurso interposto da douta decisão que julgou totalmente improcedente a acção proposta pelo ora apelante e, em consequência, absolveu do pedido os ora apelados quando a todos os pedidos formulados.
2ª Caso o presente recurso venha a ser considerado como incluindo a matéria de facto (que se ignora qual seja tendo em conta o teor das alegações) deve ser rejeitado, por violação do disposto no artigo 640.º, n.º 1, al. a).
3ª O apelante tem conhecimento dos defeitos que ora invoca antes da data da aquisição do imóvel dos autos e, mesmo que assim não fosse, teve todas as oportunidades antes e depois da compra e venda para apurar as características e qualidades da coisa, tal como resultou provado nas várias sessões de julgamento realizadas na ação principal.
4ª O apelante não alegou quaisquer factos que possam configurar a existência de dolo da parte dos apelados.
5ª A desconformidade alegada pelo apelante era facilmente detetável, bastando a simples consulta dos documentos relativos ao imóvel, acrescendo o facto do apelante ter sido acompanhado por advogados e técnicos no momento da aquisição do imóvel.
6ª Assim, só há dolo relevante quando o declarante tenha caído em erro por efeito da conduta artificiosa de outrem, isto é, quando a vontade do declarante «tenha sido determinada por dolo», mas o motivo a que o erro reporta terá de ser causal, isto é, determinante do negócio.
7ª Improcede, assim, a tese do apelante quanto à existência de dolo.
8ª A tese do apelante quanto ao exercício dos seus direitos não estar sujeito ao prazo de caducidade aplicável à compra e vende de bens defeituosos improcede por completo.
9ª O prazo para o comprador exigir judicialmente do comprador a reparação de imóvel defeituoso é o mesmo prazo de caducidade disposto no artigo 917.º do CC relativamente ação de anulação por erro.
10ª Os prazos fixados nos artigos 916º e 917º do Código Civil para a caducidade das ações de anulação por simples erro na venda de coisas defeituosa são extensivos às ações em que se peça a reparação de defeitos da coisa vendida.
11ª Apesar de a letra da lei indicar apenas a caducidade da ação de anulação por simples erro, a teleologia da norma parece abranger igualmente o exercício dos direitos de reparação, substituição ou redução do preço.
12ª Assim, não tendo sido a ação proposta no prazo legal, o direito à efetivação do direito do apelante extinguiu-se por caducidade, nos termos do disposto no artigo 298.º, n.º 2 e 917º, ambos do Código Civil.
13ª O apelante litiga, em sede de Alegações de Recurso, com patente má-fé, continuando a fazer dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal e protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
14ª Na verdade, o apelante bem sabe que na acção principal foi produzida prova infindável de todas as características e qualidades do imóvel dos autos.
15ª O apelante bem sabe que escrutinou todo o imóvel, encenando defeitos e assim continua incessantemente.
16ª O apelante alega a existência de área que não consta das telas finais do projecto quando bem sabe que tal não corresponde à verdade!
17ª Deduzindo pretensão que sabe não ter qualquer fundamento.
18ª Esta conduta do apelante manifestamente dolosa e repugnante de iniciar e voltar a iniciar acções e recursos contra os ora apelados sem qualquer fundamento constitui manifesta litigância de má-fé, que tem de ser travada!
19ª Deve o pedido de litigância de má-fé ser julgado procedente por provado e o autor ser condenado no pagamento de indemnização aos apelados em quantia não inferior a €25.000,00 a título de despesas e prejuízos provocados pela sua conduta.
20ª Em face do exposto, a douta sentença recorrida não merece qualquer censura, e, como tal, deverá ser mantida na íntegra.
*
Também a Ré S... – MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, LDA. respondeu às alegações recursórias, pedindo a final, que este Tribunal:
a) Rejeite o presente recurso de apelação na parte referente à impugnação da matéria de facto, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 640.º n.º 1 alínea a) do CPC;
b) Julgue totalmente improcedente o presente recurso de apelação, confirmando-se integralmente o douto Despacho-Saneador Sentença de 21/06/2022;
c) Condene o Recorrente como parte litigante de má-fé, no pagamento de multa dignificadora, desencorajadora de novas temeridades, e no pagamento de uma indemnização à Recorrida nunca inferior a €30.000,00 (trinta mil euros), nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 542.º n.ºs 1 e 2 alíneas a), b) e d) e 543.º do CPC; e,
d) Aplique, nos termos do disposto no artigo 531.º do CPC, uma taxa sancionatória adequada ao elevado grau de culpa do Recorrente, com o que se fará, uma vez mais, a devida e costumada JUSTIÇA!
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II. Objecto do Recurso
Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (art.º 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º e 663.º, n.º 2 do CPC), não sendo o recurso meio para obter decisões novas, no caso, importa apreciar e decidir se deve ser julgada improcedente a exceção de caducidade ou se o conhecimento da mesma depende de factos que permanecem controvertidos, tendo sido prematuro o conhecimento em sede de despacho saneador.
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III. Fundamentação
III.1. O Tribunal Recorrido considerou assentes, com interesse para a boa decisão da causa, os seguintes factos:
1 - Na presente ação de processo comum instaurada pelo Autor AA contra os Réus BB, CC, S..., Mediação Imobiliária, Lda. e a interveniente Companhia de Seguros, formula, na procedência da ação, os seguintes pedidos.
a) a condenação dos RR. no pagamento da quantia de €40.000,00 (quarenta mil euros), a título de indemnização pela reparação do defeito oculto que o imóvel padece, à luz do disposto nos arts.º. 910º nº 1, 913º nº 1 e 914º todos do CC;
b) Subsidiariamente ao peticionado em a), que o preço pago pelo A. no âmbito do contrato de compra e venda do imóvel seja reduzido no valor de € 66.391,30 (sessenta e seis mil trezentos e noventa e um euros e trinta cêntimos), nos termos e ao abrigo dos artsº 911º nº 1 e 913º nº1 in fine do CC sendo-lhe paga a diferença;
c) Que os RR sejam condenados solidariamente a pagar ao A. as quantias mencionadas em a) e b), num total de €106.391,30 (cento e seis mil trezentos e noventa e um euros e trinta cêntimos), acrescida dos respetivos juros de mora, calculado à taxa legal de 4% desde a data da citação até efetivo e integral pagamento; e d) Que os RR sejam condenados ao pagamento integral das custas, inclusive de parte.
2 - Para fundamentar a sua pretensão, o Autor alega, para tanto e em síntese, que voltou a analisar toda a documentação relativa ao imóvel em questão, nomeadamente as telas finais do projeto aprovado pela C.M.Sesimbra, o alvará de loteamento, a planta do lote, os relatórios técnicos e constatou que também a fachada tardoz do imóvel havia sido ilicitamente alterada pelos Réus vendedores com a inclusão de uma varanda /terraço e vãos exteriores com uma área de 30,20m2 ( artigos 33º e 80º da petição inicial).
3 - Correu termos pela Instância Central Cível deste Tribunal da Comarca de Setúbal, a ação de processo comum nº. 8346/16.0T8STB, instaurada pelo Autor AA contra os Réus 1- BB (ora ré); 2- CC, (ora réu); 3- Mediação Imobiliária, Lda. (ora ré); 4- Sotheby´s International Reality Affiliates LLC; 5- Criarea Construções, Lda., 6- Victoria Seguros-Seguros de Vida, SA., 7- DD ; 8- EE, formulando, na procedência da ação, os seguintes pedidos:
i. Serem os 1.ª a 5.ª Réus solidariamente condenados a pagar ao Autor o montante de € 135.000,00 (cento e trinta e cinco mil euros), a título de encargos que o segundo teve com as reparações dos defeitos ocultos que o imóvel tinha, nos termos dos artigos 910.º, n.º 1, 913.º e 914.º do Código Civil (ex vi artigo 913.º in fine).; ou
ii. Subsidiariamente, ao pedido formulado em (i), o preço pago pelo Autor aos 1.ª a 5.ª Réus no âmbito do contrato de compra e venda do imóvel, deve ser reduzido no valor de € 135.000,00, (cento e trinta e cinco mil euros) respondendo os restantes Réus solidariamente por esta obrigação de restituição dos 1.ª e 2.º Réus 911.º, n.º1 e 913.º do Código Civil;
iii. Serem os 1.ª a 5.ª Réus solidariamente condenados ao pagamento de € 400.000,00 (quatrocentos mil euros), nos termos do artigo 911.º do Código Civil, a título de redução de preço em virtude 911.º, n.º 1, e 913.º do Código Civil;
iv. Serem os 1.ª a 5.ª Réus solidariamente condenados a pagar ao Autor o montante de € 1.600,00 (mil e seiscentos Euros) correspondente ao valor pago indevidamente pelo Autor a título de Imposto de Selo;
v. Serem os 1.ª a 5.ª Réus solidariamente condenados a pagar ao Autor o montante de € 12.000,00 (doze mil euros) correspondente ao valor pago indevidamente pelo Autor a título de Imposto sobre Transmissões Onerosas de Imóveis, calculado com base num preço do imóvel inadequado;
vi. Os 1.ª a 5.ª Réus devem ser solidariamente condenados a pagar ao A juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento, juros esses calculados sobre os montantes acima referidos de (i) e (vi);
vii. Deve a 6.ª Ré ser condenada a pagar ao Autor até ao montante de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil Euros) por conta do contrato de seguro celebrado com a Ré S... e na exacta medida da condenação da Ré S... até ao referido montante;
viii. Devem as cessões de quotas operadas na 5.ª Ré pelos 1.ª e 2.º Réus a favor dos 7.º e 8.º Réus constantes do documento nº 2 desta petição inicial serem reconhecidas como nulas, nos artigos 240.º e ss., 280.º, n.º 2, e 281.º do Código Civil e, se tal nulidade não vier a ser declarada, devem as mesmas ser impugnadas para efeitos do previsto dos artigos 610.º e ss. do Código Civil.
4 - Nesta ação nº.8346/16.0T8STB, o Autor alegou, além do mais, como fundamento da pretensão a existência de áreas não licenciadas, nomeadamente o escritório, biblioteca, suite no piso 1, sala de TV, sótão, ginásio do prédio urbano em questão.
5 - Na ação nº.8346/16.0T8STB foi proferida sentença que julgou, na parte que ora interessa considerar, totalmente improcedente a ação e, em consequência, absolvendo-se os RR. do pedido.
6 - Inconformados com essa decisão o ora Autor interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora, tendo este tribunal procedido a alteração da matéria de facto, mas confirmou a sentença da 1º. instância.
7 -Não se tendo conformando com tal acórdão, o Autor dele interpôs recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual, por acórdão proferido no dia 6/04/2022, já devidamente transitado em julgado, não admitiu o recurso.
8 – Na decisão proferida na ação nº.8346/16.0T8STB, consta do elenco dos factos dados como provados, além do mais, que:
“ 57- No dia 15 de Março de 2016, o Autor e os 1.ª e 2.º Réus celebraram o contrato de compra e venda do imóvel sito na Travessa ..., Quinta do Perú, Sesimbra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sesimbra, sob o número ...97, freguesia de Quinta do Conde e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo urbano ...29 da mesma freguesia;(…)
62 - No dia 18 de Março de 2016, o Autor começou a habitar o imóvel;
63- No dia 19 de Abril de 2016, o Autor enviou à Ré S... um relatório das deficiências por si verificadas na casa indicando que não tinha conhecimento dessas deficiências à data da celebração do contrato de compra e venda do imóvel.
64- Nomeadamente localizados na piscina, no quadro eléctrico, e, ainda, os relativos à domótica, águas quentes, aquecimento e infiltrações.
65- No dia 20 de Abril de 2016, o Autor teve uma reunião com o Senhor FF, o Director da Sotheby’s – Estoril, com a Senhora GG e o Senhor Dr. HH.
66- Durante a reunião com o 2.º Réu no dia 26 de Abril de 2016, o Autor perguntou novamente ao R. sobre as áreas não licenciadas;
67- Nesta reunião, que ocorreu no próprio imóvel, o 2.º Réu voltou a confirmar que a área realmente construída era superior à área licenciada para construção do mesmo.
68- O Autor na reunião estava acompanhado por II (empreiteiro) e por JJ.
69- Na reunião de 26 de Abril de 2016, o 2.º Réu voltou a indicar ao A. que havia feito obras no imóvel após a obtenção da licença de habitação, nomeadamente: (i) a construção do escritório; (ii) a Biblioteca (piso 1); (iii) uma suite (piso 1), (iv) e aproveitamento da Sala de TV (piso 0) e (v) do piso do sótão (piso 2);
70- O 2.º Réu afirmou novamente que tinha feito obras no imóvel após a obtenção da licença de habitação pelo facto de excederem o limite máximo de construção permitido pela Câmara Municipal de Sesimbra;
71- Quando questionado sobre a possibilidade de regularização da situação perante a Câmara Municipal de Sesimbra, o 2.º Ré referiu novamente que tal seria impossível;(…)
88- O Autor recebeu um documento – o anúncio de venda do imóvel –, que se encontrava disponível também no website e que lhe foi enviado pela Ré S....
89- O anúncio referia que o imóvel que o Autor veio a comprar como tendo: (i) 533 m2 de área construída e (ii) 1720 m2 de terreno.
90- O anúncio descrevia o imóvel nos seguintes termos: “Sesimbra, Quinta do Peru, Moradia 5 quartos: 5 quartos, 5 casas de banho, 3 garagens. Excelente moradia de arquitectura moderna composta por 4 suites, 3 das quais com closet, escritório, sala de estar, sala de jantar, sala de TV, sala de cinema, cozinha equipada Smeg com copa e lavandaria, zona de estendal, lavabo social, terraço com vista para o lago e uma excelente garagem para 3 carros. No exterior temos um bonito jardim com piscina com vista soberba para o lago e toda a natureza que a rodeia. Inserida num condomínio com segurança 24 horas, portaria, oferece ainda um campo de Golfe de 18buracos, Clubhouse/restaurante, campo de ténis e um ambiente perfeito de comunhão com a natureza, tranquilidade e conforto, implantado no meio de uma bela e rica floresta de pinheiros mansos e sobreiros. Localizada a 30 minutos de Lisboa, com fácil acesso às Pontes 25 de Abril e Vasco da Gama, junto à Serra da Arrábida e das belas praias de Sesimbra” .
91- As áreas do escritório, biblioteca e suite foram construídas depois da emissão de licença não existindo na planta da moradia num total de 80m2.
92- As áreas da sala de tv e do sótão já existiam na planta da moradia não tendo essa utilidade.
93- O Autor contratou a empresa “Bureau Veritas” para que esta fizesse um levantamento das deficiências existentes no imóvel e a verificação da desconformidade das áreas construídas e das áreas licenciadas.
94- No dia 16 de Maio de 2016, a empresa apresentou o relatório em que comparou a construção existente com as telas finais de arquitectura do imóvel.
95- A produção deste relatório implicou a visita ao imóvel por parte do Senhor Eng. KK e de um técnico de obra da “Bureau Veritas”.
96- O relatório confirmou a existência de áreas não constantes do projecto de arquitectura, mas construídas e alterações de paredes.
97- O 2.º Réu requereu junto da Câmara Municipal de Sesimbra a emissão de licença de utilização, a qual foi emitida, por alvará, no dia 28 de Setembro de 2009.
98- À data da emissão da licença de utilização, os 1.ª e 2.ª Réus não tinham construído as áreas não licenciadas do imóvel.(…)
102- As áreas não licenciadas não constam das telas finais.
104- Os 1.ª e 2.º Réu obtiveram uma licença de utilização que teve por base a construção em área licenciada e, só depois de obter esta licença, construíram as áreas não licenciadas.(…)
145- O espaço correspondente à Sala de TV, fazia parte da garagem que foi construída de acordo com o projecto licenciado e tendo sido apenas executada uma parede em pladur.
146- O espaço do sótão já fazia parte da construção original com janelas visíveis para o exterior, conforme aos desenhos de alçados aprovados pela Câmara Municipal de Sesimbra.
147- a área afecta a escritório só teve este uso depois do Autor proceder à realização de obras que lhe permitiram usá-lo como tal, até então apenas foi construído o pavimento desse espaço, o qual correspondia ao tecto da cozinha, que estava imediatamente por baixo;(…)
153- A primeira visita do A., com a comercial da ora R., à casa foi efectuada com a presença do proprietário, que percorreu com o A. todas as divisões da casa e também os espaços exteriores.
154- Pelo aspecto da casa, e pelo que foi conversado durante a visita, resultou que a mesma era habitada, em permanência, pelos donos e estava em condições de imediata utilização.
155- O A. viu, durante cerca de duas horas, todas as divisões da casa, pediu explicações e informações.
156- Quando se deslocaram ao sótão, logo aí, o proprietário referiu que aquela zona fora aproveitada para utilização, mas não constava, como tal, no projecto licenciado.
157- E que o licenciamento dessa área não era possível, por não ter a altura regulamentar suficiente, para ser uma divisão habitável, licenciada como tal.
158- Desde a primeira visita em 12/12/2015, o A., ficou a saber qual era a situação do sótão aproveitado para utilização pelos RR.,
159- Bem como se apercebeu, visitando-as, das divisões existentes e do estado das mesmas, designadamente, que parte das áreas construídas na mezanine, concretamente, na área do escritório, não estavam concluídas e havia, ainda, trabalhos para realizar nesse local.
160- O A. ficou, desde o início, a saber que o imóvel tinha áreas construídas e/ou aproveitadas para serem utilizadas, para além das que constavam do licenciamento inicial.
161- Após a primeira visita ao imóvel (12/12/2015), o A. fez outras visitas, sendo uma delas no dia da assinatura do CPCV (25/01/2016) e outras posteriormente.
162- Numa dessas visitas à moradia, o A., já conhecedor da situação das áreas aproveitadas para utilização (sótão, mezanine e garagem), pediu aos proprietários para construírem um closet num dos quartos, ao que estes acederam.
163- E na zona do escritório e biblioteca na mezanine, que se encontrava inacabado, o A. pediu aos proprietários para, no decurso dos acabamentos dessa área, instalarem um cofre na parede do fundo e, de seguida, colocarem uns armários por forma a disfarçar a existência do cofre no local.
164- Por esta altura, o A. sabia que as zonas aproveitadas do sótão, mezanine e de garagem não constavam do projecto aprovado, tendo sido objecto de obras de adaptação após a emissão da licença de utilização.
165- Sabia, igualmente, que tal circunstância não era impeditiva da transmissão da propriedade da moradia.
166- Tendo, inclusivamente, referido a esse propósito que tal se traduzia “num bónus” em relação ao negócio da compra da moradia, por ter mais áreas habitáveis do que as constantes da documentação.
167- Dos documentos referentes à moradia que o A. tinha disponíveis constava um número de divisões inferior (em cerca de metade) ao que, na realidade, existia e que o A pôde verificar nas várias visitas.
168- E sendo a moradia um imóvel com cerca de 6 anos de utilização pelos proprietários, não obstante, tinha áreas inacabadas (na mezanine), situação de que o A. se apercebeu logo na primeira visita e cuja origem lhe foi explicada pelos proprietários;
169- O A. soube desde sempre (antes da apresentação da proposta e da celebração do CPCV e do contrato definitivo) qual era a situação registral, matricial e o teor do licenciamento existente.
170- E que o mesmo não coincidia com a realidade construída e as divisões habitáveis licenciadas da moradia.
171- Mas sabendo disso, nunca até à celebração do contrato definitivo, tal circunstância o impediu de avançar com a concretização do negócio. (…)
174- em 29/02/2016, já o A. sabia que as áreas não abrangidas pelas plantas enviadas tinham resultado de obras posteriores à aprovação do projecto e que parte delas estava inacabada.
(…) 178- No anúncio da R. consta apenas anunciada a área da caderneta predial e da respectiva certidão.
179- Relativamente ao número de divisões, o A., logo na primeira visita, pôde verificar e foi informado de que havia mais divisões do que as mencionadas na caderneta as quais não constavam do projecto aprovado, pois a caderneta, certidão predial e licença de utilização referiam-se apenas à área construída de acordo com o projecto.
180- E em conversas havidas sobre o assunto, o A. foi esclarecido de que seria possível, como veio a acontecer, efectuar a transmissão de propriedade do imóvel e registá-lo em seu nome.
181- Tudo isto antes da celebração do contrato promessa compra e venda.
182- O A. decidiu avançar com o negócio e adquirir o imóvel, sabendo que existiam as referidas áreas e divisões não licenciadas.”
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III. 2. De Direito.
III.2.1 Dos pressupostos para conhecimento da exceção de caducidade no saneador.
Na decisão recorrida entendeu-se, no que ao presente recurso interessa, que o processo continha já todos os elementos para possibilitar o conhecimento da exceção perentória da caducidade do eventual direito do Autor em sede de despacho saneador.
É sabido que o artigo 595º, nº 1, al. b), do Código de Processo Civil estabelece os pressupostos para que no despacho saneador haja, desde logo, lugar ao conhecimento imediato do mérito da causa. Trata-se de uma possibilidade destinada a evitar o retardamento da decisão do mérito quando ela é, com segurança, já possível na fase de condensação.
Tal pode acontecer por inconcludência do pedido, procedência ou improcedência de exceção perentória, e procedência ou improcedência do pedido.
Este conhecimento só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não apenas tendo em vista a partilhada pelo juiz da causa.
É pois, pressuposto, que o estado do processo o permita, por não haver necessidade de mais provas do que as que estão já constituídas no processo, ou, dito por outro modo, que inexistem factos controvertidos com interesse para a decisão a proferir, sendo que, no caso contrário, a decisão da mesma é relegada para final (nº 4 do referido art.º 595º do Código de Processo Civil).
Na verdade, há causas que reúnem condições para a decisão final do processo poder ser proferida, sem necessidade de produção de mais provas, logo no despacho saneador. Assim acontece nas ações em que a matéria de facto relevante já se encontra definida ao findar a fase de apresentação de articulados, faltando apenas proceder ao enquadramento jurídico respetivo.
Sendo esse o caso, no saneador-sentença, o juiz deve declarar quais os factos que julga (plenamente) provados - admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão.
*
O Autor insurge-se contra a decisão recorrida por ter julgado procedente a exceção de caducidade do direito que pretendeu exercer através da presente ação, por entender que o conhecimento da mesma dependia do apuramento de factos que dependiam de prova a produzir.
Vejamos.
O pedido formulado pelo ora Apelante tem em vista a responsabilização solidária dos Réus vendedores a título de pagamento de uma indemnização ou de redução de preço, nos termos do disposto nos artigos 911º e 913º do Código Civil, pretensão que radica na alegação de que o prédio padece de vícios – a existência de uma área não licenciada ou licenciável, o que, em seu entender faz dele um imóvel ilegal.
Quanto à Ré S..., Lda., e consequentemente quanto à chamada “Victória Seguros, S.A.”, o Autor fundamentou na petição inicial a sua pretensão, ainda no incumprimento do dever previsto no artigo 17º, n.º 1 da Lei n.º15/2013, de 8 de Fevereiro, alegando que a Ré incumpriu todos os deveres ali previstos, omitindo uma conduta, omissão que considerou ilícita e culposa e com nexo de causalidade com o dano que veio a sofrer e cujo ressarcimento pretende.
Está concretamente em causa nestes autos, a alteração da fachada tardoz do imóvel por forma a contemplar uma varanda/terraço e vãos exteriores com uma área de 30,20m2, conforme resulta dos artigos 33º e 80º da petição inicial.
Acerca do prazo de caducidade em causa nos autos relativo aos Réus vendedores, considerou-se acertadamente na sentença recorrida que:
“Na presente ação o Autor está em causa o exercício de direitos fundados em venda defeituosa, ou seja, o Autor pretende responsabilizar os Réus pelo facto de lhe terem vendido um prédio urbano com vícios/defeitos, pois apresenta uma alteração ao nível da fachada tardoz do imóvel com a inclusão de uma varanda/terraço e vãos exteriores que não se mostra licenciada.(…)
No caso em apreço e relativamente ao enquadramento jurídico o litígio subsume-se a uma compra e venda de coisa defeituosa prevista no Código Civil, na medida em que não está em causa uma relação de consumo.
O art.º 913.º do Cód. Civil estatui:
“1. Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.
2. Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria”.
O vicio tanto pode resultar de uma imperfeição do trabalho como advir do facto de a prestação padecer de um defeito de direito, como ocorre quando não há coincidência entre a autorização de utilização e a realidade física existente no local.
Por seu lado, o artº. 916º. do Cód Civil com a epigrafe “denúncia do defeito”, estabelece que:
1. O comprador deve denunciar ao vendedor o vício ou a falta de qualidade da coisa, exceto se este houver usado de dolo.
2. A denúncia será feita até trinta dias depois de conhecido o defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa.
3 - Os prazos referidos no número anterior são, respetivamente, de um e de cinco anos, caso a coisa vendida seja um imóvel.
Por outro lado, resulta do artigo 917.º do Cód. Civil, na parte que interessa considerar que ocorre a caducidade da ação de anulação por simples erro findo qualquer dos prazos fixados no artigo anterior sem o comprador ter feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses.
O decurso do prazo de caducidade extingue o direito ipso iure.”
O regime a convocar para a resolução da questão enunciada é, efetivamente, o previsto para a compra e venda de coisas defeituosas (913.º e seguintes do Código Civil), uma vez que o contrato celebrado entre o Autor e os 1.ºs Réus é desse tipo (compra e venda) e são as alegadas desconformidades materiais do prédio objeto desse convénio que o Autor pretende ver reparadas, seja através da indemnização ou da redução do preço peticionadas.
Recorde-se que é defeituosa a coisa que sofra de um vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada ou que não apresente as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim.
Da articulação dos citados preceitos resulta o seguinte regime, quando estão em causa bens imóveis:
- o prazo para denúncia dos defeitos é de um ano após o conhecimento dos mesmos e até cinco anos após a entrega do imóvel ao comprador;
- o prazo para a propositura da ação de anulação em caso de simples erro, pressupondo a denúncia nos prazos já referidos, é de seis meses a contar dessa denúncia, salvo se o contrato ainda não estiver totalmente cumprido, hipótese em que a ação pode ser instaurada a todo o tempo;
- em igual prazo devem ser propostas as demais ações tendentes à efetivação dos restantes direitos conferidos por lei ao comprador, em caso de simples erro, seja a redução do preço, a reparação ou substituição da coisa, ou mesmo a indemnização, incluindo por incumprimento da obrigação de reparação – trata-se de uma questão de uniformização de tratamento de situações semelhantes, imposta pela unidade do sistema jurídico, que deve ser obtida por interpretação extensiva[1];
- havendo dolo do vendedor, o prazo de caducidade é o fixado genericamente no artigo 287º do Código Civil[2], sem necessidade de denúncia (cf. artigo 916º, n.º 1 do Código Civil), podendo o comprador intentar a ação de garantia (em qualquer dos remédios em que esta se concretize) dentro do ano subsequente à cessação do vício do consentimento, quer dizer, no prazo de um ano a contar do momento em que teve conhecimento do dolo (artigo 287° n°1);
Na verdade, tendo a denúncia por desígnio permitir ao vendedor o conhecimento da irregularidade, compreende-se que não haja qualquer ónus de denúncia quando o próprio vendedor “houver usado de dolo”, ocultando vícios ou faltas de qualidade da coisa entregue (artigo 916.º, n.º 1, in fine)
Em tal caso, o alienante tem conhecimento de que a coisa entregue não corresponde ao objeto contratual, pelo que a denúncia seria uma formalidade inócua e ociosa, não sendo o vendedor “merecedor da advertência de que a coisa não corresponde à esperada e devida”.
Não sendo exigível a formulação de qualquer denúncia, o comprador pode intentar a respetiva ação judicial — inclusive a destinada à redução do preço, à reparação ou substituição da coisa — no prazo de um ano a contar da data em que teve conhecimento do vício ou da falta de qualidade (artigo 287.º, n.º 1), pois que tal conhecimento determina a cessação do vício da vontade[3].
O prazo previsto no artigo 287º nº 1 do Código Civil é um prazo de caducidade, representando esta a extinção do direito pelo seu não exercício durante um determinado período de tempo e encontra o seu fundamento em razões de segurança e certeza jurídica.
O prazo de um ano, estabelecido no nº 1 do artigo 287º citado apenas não vale se o negócio não estiver cumprido, o que resulta da conjugação com o nº 2 do mesmo artigo, caso em que a anulabilidade pode ser arguida a todo o tempo enquanto o negócio não está cumprido.
No contrato de compra e venda, atento o disposto no artigo 879º do Código Civil, o negócio está cumprido se o preço foi pago e se a coisa foi entregue, o que - como resulta dos factos dados como provados, da prova documental junta a que se atendeu nos termos do disposto no artigo 607º do Código de Processo Civil, aplicável por via do disposto no 663º, n.º 2 do mesmo diploma, e não vem posto em crise - sucedeu no caso dos autos, concluindo-se dessa forma que o contrato se mostra cumprido, pelo que o prazo para a propositura da ação a considerar não pode deixar de ser o prazo de um ano previsto no artigo 287 nº 1, por não se verificarem os pressupostos do nº 2 de tal artigo.
*
Acerca da interpretação do termo inicial do prazo de um ano referido, tem-se discutido se o mesmo se inicia a partir do dia do efetivo conhecimento do defeito, ou se será suficiente a mera cognoscibilidade do mesmo.
Entendemos que a negligência do credor não o deve beneficiar, pelo que dever-se-á ter em conta a possibilidade de conhecimento e não o conhecimento efetivo[4].
Cremos “que impende sobre o comprador o dever de verificar a conformidade da prestação. Tal dever impõe-se mercê de um princípio de autorresponsabilidade no tráfego e de um padrão de diligência mínima que incide universalmente sobre todo o sujeito livre e consciente. Ademais, como se tem defendido entre nós, [o] comprador que, negligentemente, não se apercebeu do defeito aparente, caso pretendesse invocar um direito derivado do cumprimento defeituoso, estaria a violar o princípio da boa fé. O ónus de exame da coisa impende sobre qualquer adquirente, sendo o seu conteúdo determinado pela regra do bonus pater familias atentas as circunstâncias do caso concreto (art. 487.º, n.º 2)”[5].
Neste sentido, decidiu-se no Acórdão da Relação de Coimbra:
“(…)Apesar de apenas a propósito do contrato de empreitada a lei se referir aos defeitos ocultos e aos defeitos aparentes ou reconhecíveis, esta distinção deve valer também para a compra e venda, desde que se admita, como se deve – sob pena de se premiar a negligência do comprador - o dever deste de proceder, no momento da entrega da coisa, á verificação do defeito (artº 1218 do Código Civil).
No contexto da compra e venda, defeito oculto é, portanto, aquele que, sendo desconhecido do comprador pode ser legitimamente ignorado, pois não era detectável através de um exame diligente, i.e. não era reconhecível pelo bonus pater familias; defeito aparente é aquele que é detectável mediante um exame diligente, de que o comprador se poderia ter apercebido usando de normal diligência.
Maneira que o defeito da coisa prestada só faculta ao comprador os meios jurídicos enunciados se o desconhecer sem culpa. Por outras palavras: a responsabilidade emergente da prestação de coisas defeituosas só existe em caso de defeito oculto.(…)”[6]
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No caso em apreço, para além do mais, retira-se dos autos, desde logo da documentação junta, a que, como se referiu, se atendeu nos termos do disposto no artigo 607º do Código de Processo Civil, que o Autor contratou, na pendência de ação anterior intentada contra os aqui Réus, uma empresa da especialidade com vista a efetuar um levantamento da desconformidade das áreas construídas e não licenciadas.
A empresa “Bureau Veritas” procedeu à verificação de conformidade da construção existente em comparação com as telas finais do projeto de arquitetura do prédio em questão.
Nessa sequência, no dia 16 de Maio de 2016, a empresa “Bureau Veritas” elaborou um relatório que se mostra junto a fls. 1426 e segs. dos autos, dando conta de tais desconformidades.
Neste relatório, na parte introdutória, lê-se que o ora Autor recorreu aos serviços dessa entidade, “uma sociedade reconhecida internacionalmente como terceira parte independente, para uma missão de Auditoria/Peritagem de Verificação de Conformidade do Existente vs Telas Finais da sua habitação localizada na Travessa ... no Condomínio Quinta do Perú em Sesimbra. A solicitação desta peritagem surge da necessidade de se obter um parecer independente, sobre a correspondência das telas finais do projeto de arquitetura com o que foi executado.”
Tal relatório assinalou-se a existência de áreas não constantes do projeto de arquitetura, mas construídas e alterações de paredes.
Da página 11 e 12 do relatório da “Bureau Veritas” resulta o seguinte: “Resumindo as diferenças entre a situação existente e as telas finais nesta zona de Pormenor em estudo 2 seguem na figura seguinte (a verde o existente e a vermelho o que não existe).”
Mais do que isso, resulta dos autos que o Autor solicitou ainda um relatório ao ISQ Save -(Instituto de Soldadura e Qualidade)-, que se mostra junto a fls. 1432 e segs. dos autos, com o objetivo de apurar a discrepância das áreas construídas e licenciadas.
Neste relatório, elaborado no dia 28/11/2017 e que, como resulta do , consta que a inspeção técnica teve como objetivo a identificação e análise da área construída (existente) que não consta do Projeto de Arquitetura aprovado (pela Câmara Municipal e previamente pela Comissão de Apreciação do condomínio Quinta do Perú), no sentido de elaborar um parecer técnico que incluirá também, a verificação da conformidade segundo a regulamentação e a legislação em vigor.
Da página 8 do relatório do ISQ conta o seguinte: (…) alteração de fachada através de novo vão exterior com acesso a varanda introdução de vão janela traduz-se em alteração de fachada em relação ao projeto aprovado.”
Atentemos nos seguintes excertos do documento:
(…)
Ora, do teor destes documentos, em particular deste último, decorre com evidência que o Autor tem conhecimento da existência de um vão aberto para o exterior que não consta do projeto de arquitetura aprovado desde a data da produção destes documentos.
Lendo os relatórios em causa, não pode o Autor, invocar desconhecimento do respetivo conteúdo, pois foi com o propósito de conhecer as discrepâncias que solicitou a respetiva elaboração.
E não se diga que se trata de defeito oculto, pois a partir do momento em que o Autor teve acesso aos relatórios – do “Bureau Veritas” (ao qual se refere na petição inicial da ação n.º 8346/16.0T8STB, entrada em juízo em 02.12.2016) ou, na melhor das hipóteses, do ISQ, (documentos, estes juntos pelo Autor ao aludido processo por requerimento de 21.09.2018, veja-se, em particular a pg. 13 deste último documento) e do tempo decorrido desde que alega ter adquirido o imóvel e habitar no mesmo – necessariamente tomou conhecimento da desconformidade em que aqui baseia a sua pretensão, pois que a mesma ali se mostra patente.
Mesmo que o Autor alegue coisa diversa, importa referir que não pode desconhecer nem negar que se tivesse atuado como a normal diligência teria detetado o defeito que ali era sinalizado ao nível da alteração das paredes e, no relatório do ISQ expressamente assinalado uma alteração da fachada com inclusão de varanda/terraço e vão exterior não contemplado no projeto de arquitetura devidamente aprovado.
Tendo em conta as considerações expendidas verifica-se que esse conhecimento data pelo menos da data em que se demonstra nos autos que tinha tais relatórios na sua posse, ou seja desde 21.09.2018, data em que os juntou numerados ao processo n.º 8346/16.0T8STB, como resulta da documentação junta a estes autos em 31.05.2021.
Entendeu o Tribunal Recorrido que “o Autor não efetuou a denúncia do defeito no prazo de 1 ano, a contar do seu conhecimento - artigo 916º do Código Civil - e a presente ação apenas deu entrada em juízo no dia 21/04/2021, pelo que, ocorreu a caducidade do direito de ação.”
Ora, como supra se analisou, tendo o Autor invocado o dolo dos Réus, caso viessem a demonstrar-se os respetivos pressupostos, a denúncia não era necessária, o que levaria a que tivesse de considerar-se prematura a decisão da ação no saneador, pois que teria sempre de se dar ao Autor a possibilidade dos factos invocados para sustentar o dolo, para que pudesse demonstrar a irrelevância do decurso do aludido prazo de denúncia.
Isto, obviamente, apenas seria desta forma caso a exceção não procedesse sempre pela outra via – o decurso do prazo de propositura da ação.
Porém, é isto mesmo que se demonstra nos autos.
O Autor teria de ter proposto a ação no mesmo prazo de um ano contado da data em que tomou conhecimento do facto em que fundamenta a sua pretensão, pelo que não o tendo feito, deixou correr o prazo legal de um ano para pedir as consequências jurídicas de tal alegado vício, tendo caducado o seu direito à luz da norma mencionada, tal como considerou a sentença recorrida.
É que mesmo que se considerasse que a exceção de caducidade não foi expressamente apreciada nas duas vertentes citadas – prazo de denúncia/ prazo de propositura da ação - que não se considera, pois que na mesma se referem os preceitos aplicáveis a ambas as vertentes, sempre teria este Tribunal da Relação de conhecer da vertente que quedou prejudicada pela apreciação do Tribunal Recorrido da procedência da exceção de caducidade na vertente de decurso do prazo de denúncia, isto nos termos do disposto no artigo 608º, n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável aos recursos, por via do disposto no artigo 663º, n.º 2 do Código de Processo Civil, pois não pode considerar-se dispensado de a apreciar, mesmo oficiosamente, por desaparecer o motivo que justificou o não conhecimento pelo Tribunal Recorrido de uma questão de que lhe cabia conhecer, não fora considerá-la prejudicada[7]e constarem dos autos todos os elementos necessários[8].
Assim o impõe o artigo 665º, n.º 2 do Código de Processo Civil, sendo que a questão se mostra largamente debatida nos articulados e nas alegações de recurso, não carecendo de ulterior contraditório.
E dúvidas não se colocam que a exceção de caducidade foi invocada e também contestada na sobredita dupla vertente.
Refere o Autor que o Tribunal Recorrido, na apreciação das exceções arguidas socorreu-se da matéria factual considerada provada no âmbito do processo n.º 8346/16.0T8STB, no sentido em que definiu a situação jurídica das partes relativamente à pretensão ali deduzida, e relativamente ais defeitos objetivamente ali invocados e que a situação neste processo é diferente por ser diferente a área não licenciada aqui invocada.
Fê-lo certamente porque se lhe impunha o conhecimento da exceção de caso julgado invocada.
Porém, o Tribunal Recorrido atendeu aos documentos supra mencionados, como este Tribunal da Relação também o fez, tudo nos termos do já referido artigo 807º do Código de Processo Civil, para a análise da exceção de caducidade, porquanto o conhecimento pelo Autor do teor dos documentos a que aludimos se encontrava patente nos mesmos, e a que o Tribunal Recorrido faz referência, documentos que se encontra juntos a estes autos e que relevam para o conhecimento da exceção.
Tal é de resto consagrado no que aos meios de prova respeita, porque juntos no âmbito do processo n.º 8346/16.0T8STB, pelo disposto no artigo 421º do Código de Processo Civil, e foi a aplicação de tal regime requerida pelas Rés. Note-se que tal preceito não se refere a factos, mas antes a meios de prova.
Concluindo-se desta forma, e uma vez que o conhecimento se mostra demonstrado através de prova documental que o Autor não pode afastar, nenhuma prova haveria de ser produzida para o julgamento da exceção de caducidade no despacho saneador relativamente aos Réus Vendedores – a ação foi efetivamente proposta depois de decorrido o prazo de um ano desde que tomou conhecimento dovício em que aqui sustenta a sua pretensão.
E em face da caducidade do direito do Autor relativamente aos identificados Réus, ficou prejudicado o conhecimento das demais questões, pelo que bem andou o Tribunal Recorrido ao julgar, desde logo, a ação improcedente relativamente aos mesmos em sede de despacho saneador.
Uma palavra final no que respeita às irregularidades administrativas relativas ao licenciamento das alterações invocadas pelo Autor, para referir desde logo que o suprimento das mesmas não é objeto dos presentes autos, e que cabe ao proprietário do imóvel, uma vez caducado o direito de obter ressarcimento de danos decorrentes de tais irregularidades, diligenciar pela respetiva eliminação.
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Resta agora averiguar da procedência da exceção relativamente às demais Rés – Mediadora Imobiliária e Seguradora.
Como se referiu, a causa de pedir relativamente a estas Rés assenta no incumprimento dos deveres previstos no artigo 17º do Regime Jurídico da Atividade de Mediação Imobiliária aprovado pela Lei 15/2013, de 08.02., deveres esses destinados aos interessados no contrato que o cliente da empresa de mediação visa realizar, angariados pela empresa de mediação, ou que com ela tenham entrado em contacto com vista à realização do contrato mediado e cuja violação, para além de constituir contraordenação (cf. artigo 32º do mesmo diploma), quando causadora de danos, é suscetível de conduzir à responsabilização civil da empresa de mediação, nos termos do disposto no artigo 483º, n.º 1, 2ª parte, do Código Civil[9], ou do 798º do Código Civil, consoante esteja ou não em causa um contrato.
O caso torna patente uma das situações em que existem “regras distintas sobre diversas modalidades de responsabilidade civil em sobreposição no que respeita ao respetivo âmbito de aplicação, as quais podem, consequentemente, concorrer” – o cumprimento defeituoso, quando este inadimplemento cause prejuízos na pessoa do credor ou dos seus bens – com diferentes regimes designadamente no que concerne a caducidade e prescrição[10].
Relativamente a estas Rés, pois, não está em causa a responsabilidade resultante do contrato de compra e venda defeituosa, pelo que não se lhe podem aplicar as regras de caducidade inerentes à mesma, mas antes as regras de prescrição da responsabilidade civil decorrentes da alegada violação dos seus deveres[11].
E por consequência, a procedência da exceção de caducidade relativamente às mesmas não pode manter-se, pelo que encontrando-se controvertidos factos que se mostram carecidos de prova relativamente ao vício em causa nos autos e ao contrário do gizado na decisão recorrida, não é possível afirmar que, fosse qual fosse a sua prova, os mesmos conduziriam inelutavelmente à improcedência da ação relativamente às citadas Rés pessoas coletivas, pelo que, a decisão tomada, o foi, prematuramente.
Note-se que radicando a responsabilidade dos Réus vendedores, por um lado, e da Ré mediadora e seguradora, por outro, em contratos diversos, a solidariedade mostra-se afastada pelo disposto no artigo 513º do Código Civil[12].
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III.3. Do pedido de condenação do Autor como litigante de má fé.
Os Apelados requerem a condenação do Autor como litigante de má-fé.
A este respeito, referiu-se na decisão recorrida, o seguinte:
“Segundo o disposto no art.º 542º, nº1 do Cód. Proc. Civil, a parte que litigar de má-fé será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta o pedir.
Atento o nº2 deste mesmo artigo, será considerado como litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; tiver alterado a verdade dos factos ou omitidos factos relevantes para a decisão da causa; tiver praticado omissão grave do dever de cooperação ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Como é sabido nestas regras só cabe a postura processual dolosa ou com negligencia grave. Não basta, assim, a dedução de pretensão ou posição sem fundamento, ou a afirmação de factos não verificados ou verificados de forma distinta.
A questão da má fé não pode ser vista de forma linear, sob pena de se limitar o direito de defesa que é um dos princípios fundamentais do nosso direito processual civil, com garantia constitucional.
Assim, exige-se a demonstração, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a ação da justiça, litigando de modo desconforme ao respeito devido ao tribunal e às partes.
Afigura-se-nos que não resulta dos autos que a parte agiu de forma manifestamente reprovável e com atitude processual subsumida na previsão legal acima referida, não obstante a pretensão do Autor não ter merecido acolhimento, mas tal ocorreu por ter sido declarada procedente a exceção perentória da caducidade do eventual direito que o Autor pretendia fazer valer nesta ação.”
Subscreve-se inteiramente o juízo formulado pelo Tribunal Recorrido quanto à pretendida qualificação da litigância do Autor como “de má fé”, que se considera inteiramente aplicável ao recurso interposto, porquanto no mesmo o Autor manteve a versão dos factos alegada na petição inicial, não alterando os factos alegados e provados mesmo tendo em consideração a procedência da exceção de caducidade, adotando uma posição jurídica distinta da acolhida, mas que não pode, só por isso, ser qualificada como pretendido pelos Apelados..
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As custas serão suportadas, porque vencidos, pelo Apelante e pelas Apeladas S..., Mediação Imobiliária, S.A. e Victória Seguros, S.A. (n.ºs 1 e 2 do art.º 527.º do CPC).
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IV. Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se neste Tribunal da Relação de Évora em:
a. Julgar parcialmente procedente a apelação no que respeita S..., Mediação Imobiliária, S.A. e Victória Seguros, S.A. e, consequentemente, revogar, nessa parte a decisão recorrida, determinando quanto a tais Rés o prosseguimento dos autos, salvo se a tanto, outra questão obstar;
b. Negar, no mais, provimento à apelação, mantendo, embora por razões ligeiramente diversas a sentença apelada, no que respeita aos Réus BB e CC.
Custas pelo Apelante e pelas Apeladas S..., Mediação Imobiliária, S.A. e Victória Seguros, S.A. na proporção do decaimento, que se fixa em 50% para Autor e tais duas Rés respetivamente.
Registe.
Notifique.
Évora, 2023-03-02
Ana Pessoa
José António Moita
Maria da Graça Araújo
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[1] Recorde-se ainda o Assento de 4.12.1996 (Proc. n.º 085875) onde se fixou a seguinte jurisprudência: “a acção destinada a exigir a reparação de defeitos de coisa imóvel vendida, no regime anterior ao Decreto-Lei 267/94, de 25 Outubro, estava sujeita à caducidade nos termos previstos no artigo 917 do Código Civil de 1966”.
[2] Cf. Mafalda Miranda Barbosa, “O Futuro da Compra e Venda (de Coisas Defeituosas)”, Revista da Ordem dos Advogados, III-IV. 2019 pgs. 727 e 728.
[3] Cf. Acórdão do STJ de 12.12.2021, proferido no âmbito do processo n.º 12977/16.0T8SNT.L1.S2, acessível em www.dgsi.pt.
[4] Cf. Romano Martinez, “Cumprimento Defeituoso Em Especial, na Compra e Venda e na Empreitada”, Coimbra, Almedina, 1994, pg. 371.
[5] Cf. Daniel Bessa de Melo, “Da Denúncia dos Defeitos na Compra e Venda”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 82, Vol. III/IV – Jul./Dez. 2022, pg. 442.
[6] Proferido no processo n.º 2384/07.0TBCBR.C1; Cf. ainda toda a jurisprudência e a doutrina no mesmo citadas.
[7] Cf. Maria dos Prazeres Beleza, “A Harmonização dos Poderes do Juiz e das Partes nos Recursos Cíveis”, Jurismat, Portimão, 2022, n.º 15, pg. 228.
[8] Cf. AUJ n.º 11/15, publicado no Diário da República n.º 183/2015, Série I de 2015-09-18, páginas 8360 – 8375 e Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa em “Código de Processo Civil Anotado” 2018, Almedina, Coimbra, vol. I, pg. 803.
[9] Cf. Higina Orvalho Castelo, “Regime Jurídico da Atividade de Mediação Imobiliária Anotado”, 2020, Almedina, Coimbra, pg. 113
[10] Cf. António Barroso Rodrigues, “O Concurso de Responsabilidade Civil”, 2023, Almedina, Coimbra, pg. 25 e 27.
[11] Cf. o Acórdão desta Relação de 14-02-2019, proferido no processo 1970/17.5T8STR-A.E1, acessível em www.dgsi.pt.
[12] Cf. António Barroso Rodrigues, obra citada, pgs. 440 e 550.