I - Apresentando a seguradora um projeto de contrato de seguro de grupo (convertido em contrato pela aceitação/adesão) no qual se cumulam cláusulas, prevendo uma a necessidade de verificação invalidez profissional e outra prevendo a necessidade de verificação de um grau de incapacidade geral igual ou superior a 60%, para a segurada poder acionar o seguro e exigir a indemnização, tem de se considerar esta como nula por contrária à boa-fé e por defraudar as expectativas dos aderentes.
II - Estando em causa um contrato relativo a um seguro de vida grupo com a Ordem dos Médicos Dentistas, o qual se rege pelas Condições Particulares Gerais e Especiais, por norma e embora se indiquem como cláusulas particulares elas são comuns a esse tipo de contratos, o que faz delas cláusulas gerais.
III - Pretendendo a seguradora/recorrente fazer prevalecer o seu entendimento de que o seguro só podia ser acionado se verificadas cumulativamente as duas condições (incapacidade profissional permanente e incapacidade absoluta de mais de 60%), deveria fazer prova de que tal resultou de negociação entre a autora e a ré.
IV - Um segurado perante uma cláusula que preveja a incapacidade para o exercício da profissão, certamente apreende que terá direito ao seguro no caso de ficar incapacitado de forma permanente para trabalhar na sua “arte”, independentemente do grau geral de incapacidade que lhe venha a ser determinado.
V - A cláusula que exige a incapacidade geral de 60% para se poder acionar o seguro de grupo, quando se verifica uma incapacidade total e definitiva para o exercício da profissão, é desproporcionada, favorecendo de forma excessiva, a posição contratual do predisponente e prejudicando inequitativa e danosamente a do aderente.
VI - Sendo uma cláusula abusiva, terá de ser declarada a sua nulidade, nos termos gerais do direito, subsistindo obviamente a obrigação de cumprimento por parte da seguradora.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 1ª Secção Cível.
AA, intenta a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AGEAS PORTUGAL, COMPANHIA DE SEGUROS DE VIDA,S.A., pedindo o pagamento, pela ré, da quantia de € 99.759,94 e juros, dos quais logo liquidou € 2.327,73, correspondente ao dobro do capital seguro na companhia ré, indemnização que lhe é devida por se ter visto acometida de síndrome do canal cárpico, integrante de doença profissional, e que a impede, definitivamente, do exercício da sua atividade de médica dentista, da qual deu baixa, encontrando-se reformada, tendo aderido a seguro de grupo celebrado pela Ordem dos Médicos Dentistas, que previa o pagamento, nessas circunstâncias, de tal quantitativo.
A Ré apresenta CONTESTAÇÃO, pugnando pela improcedência da ação, por falta de verificação das condições contratuais, alegando, em síntese:
- com a receção, pela ré, a 12.06.2018, do Relatório do Dr. BB que determina que “dada a profissão que desempenha, apresenta incapacidade para a atividade laboral habitual”, foi suspensa a cobertura de Incapacidade Total Temporária e proposto à autora que ativasse a cobertura de Invalidez Profissional, apresentando o documento de aposentação emitido por uma entidade oficial, bem como o Atestado Médico de Incapacidade Multiusos com desvalorização igual ou superior a 60%;
- trocada correspondência com o mandatário da autora, por ele era defendido que o pedido de apresentação de AMIM com desvalorização igual ou superior a 60% era descabido, face à situação em clinica em que a A. se encontrava;
- ora, de acordo com o previsto no art. 2º das Condições Especiais da Apólice, para a garantia complementar “Invalidez profissional”, a seguradora só se obriga a liquidar o capital seguro, caso a pessoa segura seja atingida por uma invalidez profissional e cumulativamente, por uma incapacidade funcional de grau igual ou superior a 60%;
- por outro lado, a autora fez 65 anos em 2018, pelo que deveria ter apresentado um Atestado Médico de Incapacidade Multiuso com desvalorização igual ou superior a 60%, que se reportasse a data anterior a 31.12.208, o que não fez.
“Julgo a presente ação procedente, pelo que condeno a ré, Ageas Portugal Companhia de Seguros de Vida SA, no pagamento, à autora, AA, da quantia de € 99.759,94 e juros, até integral pagamento, e dos quais estavam vencidos, à data da instauração da ação, € 2.327,73.”
Inconformada com esta decisão, a Ré interpôs recurso de apelação, sendo decidido pelo Tribunal da Relação, após deliberação:
“Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar improcedente a Apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas a suportar pela Apelante.”
“I.A decisão de folhas é injusta e violadora da lei substancial e, por conseguinte, de princípios elementares de justiça.
II. Por muito que o Tribunal a quo quisesse considerar que o que acha “mais justo” é condenar a Recorrente nunca pode olvidar que os princípios jurídicos que informam o processo dos autos (nomeadamente o princípio do pacta sunt servanda) devem ser escrupulosamente respeitados.
III. resultou como provado que o contrato de seguro em questão tinha, entre outras, as seguintes garantias:
4 – garantia complementar – invalidez total e definitiva (condição especial 6) Em caso de invalidez total e definitiva da pessoa segura, antes dos 65 anos, o capital seguro é igual a 100% do capital base seguro (número 1 do artigo 2º); e
6 – garantia complementar – invalidez profissional (condição especial 10) Em caso de invalidez profissional da pessoa segura, antes dos 65 anos, o capital seguro é igual a 200% do capital base seguro (número 1 do artigo 2º). A incapacidade funcional para reconhecimento do estado de invalidez prevista no número 1 do artigo 2º é fixada em 60%. Fixa convencionado que a amputação ou perda completa do uso de qualquer dedo da mão dominante em consequência de acidente é condição suficiente para que seja reconhecido ao médico dentista o estado de invalidez permanente professional.
IV. Ora, quem tinha o ónus da prova acerca da verificação das condições contratuais para possibilidade de accionamento das garantias de cobertura da apólice era a Recorrida (art.º 342.º do Código Civil).
V. O Tribunal a quo estriba a decisão respeitante à matéria de facto provada, entre outros elementos de prova, no relatório pericial dos autos.
VI. A Recorrida padece de um grau de incapacidade de 28% e não está impossibilitada de exercer outras actividades dentro dos seus conhecimentos técnicos, no que à sua profissão de médica dentista diz respeito.
VII. A Recorrida não preenche os requisitos necessários para que as garantias de cobertura da apólice possam ser accionadas.
VIII.Não tendo a Recorrida 60% de incapacidade e não estando impedida para o desenvolvimento da sua actividade profissional, as garantias de cobertura da apólice, contrariamente àquilo que é defendido na douta Sentença agora colocada em crise, não poderiam ser accionadas.
IX. Este foi o motivo pelo qual o Tribunal a quo e o Tribunal da Relação de Coimbra, sem que a Recorrida alguma vez o tenha alegado (art.ºs 3.º e 5.º do CPC), decidiu declarar nula uma cláusula constante das CONDIÇÕES PARTICULARES da apólice.
X. A Recorrida considerava que preenchia as condições da apólice e deu entrada da acção, para ver accionadas as respectivas garantias de cobertura, nesses precisos termos.
XI. A prova que se produziu conclui precisamente o contrário.
XII. Efectivamente, conforme se pode aferir pelo teor da apólice as cláusulas/estipulações vindas de referir encontram-se nas CONDIÇÕES PARTICULARES da apólice.
XIII. Foi assim que a Recorrida e a Recorrente contrataram, ou seja, as condições particulares foram acordadas entre as partes, não se podendo meter tudo “no mesmo saco” como se faz no douto Acórdão recorrido, equiparando condições particulares a condições especiais e a condições gerais!
XIV. Não se tratam, efectivamente, de CONDIÇÕES GERAIS.
XV. Não é, pois, possível excluir as referidas condições tendo por base o diploma que regula as CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS DL n.º 446/85, de 25.10).
XVI. Acresce referir que a douta decisão agora colocada em crise se limita a alegar que em face dos princípios da boa fé a cláusula/estipulação vinda de referir é nula, não remetendo para qualquer preceito jurídico concreto.
XVII. De todo o modo sempre será de referir que o escopo da cláusula em questão é assegurar a um qualquer segurado a possibilidade de ser indemnizado em determinadas circunstâncias, nomeadamente não poder mais desenvolver a sua actividade profissional (o que não sucede) e ter uma incapacidade que impossibilite o segurado de desenvolver outra qualquer actividade.
XVIII. A mesma não é, assim, abusiva ou ofensiva de quaisquer princípios de boa-fé.
XIX.A Recorrida, até pelo seu grau de formação profissional, bem sabia quais as concretas circunstâncias que pretendia assegurar e que estava a contratar.
XX. Se é um facto que as condições gerais não foram negociadas entre Recorrente e Recorrida (tratando-se de um seguro de grupo), as condições particulares da apólice têm que ser respeitadas na estrita medida em que se trata do acordo/contrato que ambas as partes pretenderam celebrar.
XXI. Retirar ao contrato de seguro aquilo que se encontra considerado nas condições particulares corresponde, no fundo, à substituição dos segurados por uma entidade terceira sendo o princípio da liberdade contratual gravemente afectado por tal interpretação.
XXII. Inexiste qualquer violação da boa-fé contratual quando se exige, cumulativamente, a incapacidade de exercício da profissão e um determinado grau de incapacidade.
XXIII. O seguro visa acautelar a perda de rendimento e essa tem que preencher determinados critérios, pelo que se exige um determinado grau de incapacidade.
XXIV. O facto de um segurado acabar por não ter perda de rendimento por, por exemplo, poder desenvolver outra actividade profissional seria, isso sim, verdadeiramente atentador da boa fé uma vez que não é esse o sentido e alcance desta apólice.
XXV. A decisão recorrida violou, assim, as normas constantes dos art.ºs art.ºs 405.º, 406.º, 422.º e 342.º do Código Civil, art.ºs 3.º e 5.º do CPC e o art.º 427.º do Código Comercial (em vigor à data da celebração do contrato de seguro).
Termos em que o douto Acórdão recorrido deverá ser revogado nos precisos termos agora defendidos, absolvendo-se a Recorrente do pedido por não estarem preenchidos os pressupostos contratuais que obriguem a mesma a indemnizar a Recorrida nos termos defendidos na douta Sentença.
Assim se fará, como sempre, inteira JUSTIÇA!”
A autora apresentou resposta ao recurso de revista, concluindo:
“1ª a 14ª- (respeitavam a matéria da admissibilidade do recurso de revista excecional).
15ª - Por mera cautela, sem conceder, realça-se que, ao contrário do que vem plasmado nas alegações da Recorrente, o douto Acórdão subjudice concretiza com total clareza os fundamentos da sua conclusão de que se está perante uma cláusula abusiva por violação do princípio da boa-fé e por isso nula
16ª - O Tribunal a quo fez uma correta apreciação e aplicação do Direito quando confirmou a douta decisão proferida em sede de 1ª Instância.
17ª– Assim, não foram violados quaisquer preceitos legais, designadamente o disposto nos artigos 405.º, 406.º e 342.º do Código Civil, artigos 3.º e 5.º do CPC e artigo 427.º do Código Comercial.
Nestes termos e no mais de direito, deve ser negado total provimento ao presente recurso, mantendo-se integralmente o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra que confirmou a douta decisão proferida em 1ª Instância.
Assim se fará SÃ, SERENA E OBJECTIVA JUSTIÇA.”
Cumpre apreciar e decidir.
“MATÉRIA DE FACTO
São os seguintes os factos dados como provados na decisão recorrida:
1. A ré é uma sociedade anónima que explora a atividade seguradora, tendo estabelecido um seguro de vida grupo com a Ordem dos Médicos Dentistas, o qual se rege pelas Condições Particulares Gerais e Especiais que, juntas ao presente, aqui se dão por integralmente reproduzidas.
2. A autora, médica dentista inscrita na Ordem dos Médicos Dentista com o nº ...98, subscreveu tal seguro de vida grupo desde 01/06/1993.
3. A autora exercia, em profissão liberal, a atividade de médica dentista desde 1984, na cidade ..., profissão que deixou de exercer, dando baixa de atividade em 30/07/2018.
4. A autora é dextra e o uso prolongado da mão direita no exercício da profissão, que implica movimentos repetitivos de flexão e de extensão do punho na execução de endodontia destartarizações e intervenções cirúrgicas/orais, foi-lhe causando lesões nessa mão, que se foram agravando ao longo dos anos, com diminuição de mobilidade e força de preensão e diminuição de sensibilidade por compressão bilateral do nervo mediano a nível cárpico (síndrome do túnel cárpico).
5. Por tais motivos foi operada, em 2013, ao túnel cárpico do lado direito.
6. Apesar dessa intervenção cirúrgica, com a continuação da atividade, a autora continuou a sofrer dores e apresentar parestesias na mão direita, o que a levou a submeter-se a uma consulta médica de ortopedia do Dr. CC, no Hospital ..., no dia 20/02/2017.
7. Pelo mesmo clínico foi considerado que a “doente de 64 anos (médica dentista) apresenta dores e parestesias da mão direita (10 meses de evolução) situação agravada com atividade laboral (a considerar doença profissional) Compressão do mediano bilateral no canal cárpico sensitivo-motor de gravidade avançada bilateralmente (mais à direita)
8. A situação clínica da autora foi-se agravando e no final do ano de 2017 já a autora não se sentia em condições de exercer a sua profissão pela incapacidade de movimentar a mão direita em alguns dos movimentos e atuações que a profissão de médica dentista lhe exigia.
9. Foi submetida a nova consulta médica no dia 19/12/2017, tendo-lhe sido dada baixa médica, com indicação de “doença profissional” pelo período de 12 dias.
10. Baixa médica essa que lhe veio a ser sucessivamente renovada até ao dia 28/07/2018.
11. A autora enviou à ré cópia das sucessivas baixas médicas, solicitando o pagamento da indemnização diária devida.
12. Indemnização essa que lhe foi sendo liquidada até que, por missiva de 26/02/2018, a ré entendeu submeter a autora a uma consulta médica no seu gabinete técnico, no ..., em 12/03/2018.
13. O clínico da ré entendeu que “a situação clínica não se encontra devidamente consolidada, pelo que será de aguardar mais sessenta dias e avaliar de novo a situação“.
14. Por missiva de 26/06/2018, a ré comunicou à autora que “é entendimento do nosso Gabinete Médico que, à data da consulta, não se encontra com uma incapacidade temporária, mas que a Incapacidade é de caracter definitivo”.
15. E, nesse entendimento, apenas iriam proceder ao pagamento das indemnizações diárias até à data da decisão técnica.
16. Lembrando que assistia à autora o direito de acionar a garantia de invalidez profissional, para o que se tornava necessário a apresentação do “documento da aposentação emitido por uma Entidade Oficial bem como o Atestado Médico de Incapacidade Multiuso > 60%”.
17. A autora continuou a beneficiar de baixa por incapacidade temporária.
19. Uma vez já cessada a atividade, a autora formulou à ré o pedido de lhe ser reconhecido o direito à indemnização por invalidez profissional.
20. E, para tanto, remeteu à seguradora aqui ré a Participação obrigatória/Parecer Clínico emitida por Entidade Oficial, e o Relatório de Incapacidade emitido pelo Médico Especialista em Ortopedia e Traumatologia, Dr. BB.
22. O parecer clínico refere “Défice de mobilidade e força de preensão do 1º dedo da mão, bilateral, por rizartrose avançada (confirmada por RX – 08/03/18). Concomitantemente, diminuição a sensibilidade por compressão bilateral do nervo mediano a nível cárpico, em estádio sensitivo-motor avançado, bilateralmente (pior à direita). Estas alterações condicionam atividade profissional de forma permanente, com incapacidade”.
23. O Dr. BB conclui: “A neuropatia periférica apresentada enquadra-se na categoria de doença profissional pela ergonomia da profissão (médica dentista) que implica movimentos de extensão prolongada de punho com consequente compressão de nervo mediano. Segundo o disposto, apresenta perda da função da mão para a atividade cirúrgica nomeadamente nos movimentos finos de preensão, quadro totalmente incapacitante para o exercício da profissão de médica dentista, pelo que deve ser reconhecido o estado de Invalidez Permanente Profissional”.
27. A 19/06/2019, a ré insiste em que lhe seja enviado “Atestado Médico de Incapacidade Multiuso > 60%” e “Relatório Médico, onde conste a causa, a natureza e as lesões que padece a pessoa segura”. – nomeadamente, nos movimentos finos e de preensão, quadro totalmente incapacitante para o exercício da profissão de médica dentista”.
34. O síndrome do canal cárpico constitui fator de risco na prática da medicina dentária.
37. A autora nasceu no dia .../.../1953, completando 65 anos em 2018, e o pedido de indemnização, acompanhado dos documentos contratualmente exigíveis, foi enviado por correio eletrónico a 26 de Novembro de 2018.
39.A autora liquidou todos os prémios de seguro que se venceram na vigência do contrato.
--- contestação ---
2. Este contrato foi aceite tendo por base as informações e declarações prestadas pela proponente na Proposta de Adesão e no questionário médico subscritos em 22.05.1993.
3. O contrato foi aceite sem quaisquer agravamentos e/ou exclusões.
6. O contrato de seguro em questão tinha, entre outras, as seguintes garantias:
“4 – garantia complementar – invalidez total e definitiva (condição especial 6) Em caso de invalidez total e definitiva da pessoa segura, antes dos 65 anos, o capital seguro é igual a 100% do capital base seguro (número 1 do artigo 2º)”. e
“6 – garantia complementar – invalidez profissional (condição especial 10) Em caso de invalidez profissional da pessoa segura, antes dos 65 anos, o capital seguro é igual a 200% do capital base seguro (número 1 do artigo 2º). A incapacidade funcional para reconhecimento do estado de invalidez prevista no número 1 do artigo 2º é fixada em 60%. Fixa convencionado que a amputação ou perda completa do uso de qualquer dedo da mão dominante em consequência de acidente é condição suficiente para que seja reconhecido ao médico dentista o estado de invalidez permanente profissional”.
9. A participação de sinistro por incapacidade total temporária para o trabalho da autora foi recebida nos serviços administrativos da ré a 21.12.2017.
12. De acordo com o art.º 2.º das condições especiais da apólice, “o segurador obriga-se a liquidar o capital seguro fixado nas condições particulares da adesão, em vigor à data do evento, para esta garantia, caso a pessoa segura seja atingida por uma invalidez profissional e, cumulativamente, por uma incapacidade funcional de grau igual ou superior ao estabelecido, mediante convenção expressa nas condições particulares”.
13. De acordo com as condições particulares da apólice, “em caso de invalidez profissional da pessoa segura, antes de 31 de Dezembro do ano em que a pessoa segura atinja os 65 anos de idade, o segurador garante o pagamento de 200% do capital seguro da garantia principal de morte (…) o grau de incapacidade funcional para o reconhecimento do estado de invalidez previsto (…) é fixado em 60%”.
17. A autora não apresentou à ré o atestado médico de incapacidade multiusos reportado a data anterior a 31.12.2018.”
São as questões suscitadas pelos recorrentes e constantes das respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 635º, nº 3 a 5 e 639º, nº 1, do C.P.C.
Questiona-se nestes autos:
- Saber se o contrato é inteiramente válido e deve ser cumprido na íntegra ou, saber se o mesmo contém, nas condições particulares, clausulas abusivas.
Ou, em concreto e como refere o acórdão da Formação, “Saber se uma condição especial de um contrato de seguro de vida, inserida e constante das condições particulares da apólice se pode subsumir a uma cláusula geral, nos termos do disposto no DL n.°446/85, de 25.10.”
No caso, a autora alega como causa de pedir que fundamenta o seu pedido de condenação da ré seguradora no pagamento do capital seguro, como supra se referiu no relatório, por “se ter visto acometida de síndrome do canal cárpico, integrante de doença profissional, e que a impede, definitivamente, do exercício da sua atividade de médica dentista.”
Contestando diz a ré seguradora que não se verificam as condições contratuais para o efeito.
Resulta provado nos factos 12º, 13º e 17º, que:
“12. De acordo com o art.º 2.º das condições especiais da apólice, “o segurador obriga-se a liquidar o capital seguro fixado nas condições particulares da adesão, em vigor à data do evento, para esta garantia, caso a pessoa segura seja atingida por uma invalidez profissional e, cumulativamente, por uma incapacidade funcional de grau igual ou superior ao estabelecido, mediante convenção expressa nas condições particulares”.
13. De acordo com as condições particulares da apólice, “em caso de invalidez profissional da pessoa segura, antes de 31 de Dezembro do ano em que a pessoa segura atinja os 65 anos de idade, o segurador garante o pagamento de 200% do capital seguro da garantia principal de morte (…) o grau de incapacidade funcional para o reconhecimento do estado de invalidez previsto (…) é fixado em 60%”.
17. A autora não apresentou à ré o atestado médico de incapacidade multiusos reportado a data anterior a 31.12.2018.”
Ou seja, na versão do contrato, a autora só poderia exigir a indemnização acionando o seguro, caso se verificasse cumulativamente a invalidez profissional acompanhada de determinado grau de incapacidade (60%) fixado contratualmente e constante das condições particulares da apólice.
Da matéria de facto resulta que a ré reconhece a invalidez profissional da autora, após cirurgias (ocorrendo a primeira cirurgia em 2013) e exames feitos, como consta dos pontos 3º e seguintes da matéria de facto, e em especial no ponto 14º, “14. Por missiva de 26/06/2018, a ré comunicou à autora que “é entendimento do nosso Gabinete Médico que, à data da consulta, não se encontra com uma incapacidade temporária, mas que a Incapacidade é de caracter definitivo”.”
Assim, a questão assenta na incapacidade fixada em percentagem inferior a 60%.
Não tendo qualquer razão a alegação da recorrente de que “18. Não tendo a Recorrida 60% de incapacidade e não estando impedida para o desenvolvimento da sua actividade profissional, as garantias de cobertura da apólice, contrariamente àquilo que é defendido na douta decisão agora colocada em crise, não poderiam ser accionadas. (sublinhado nosso)”, quando foi o seu Gabinete Médico que considerou que quando consultou a autora, a incapacidade para o exercício da profissão, de que esta sofria, era de caracter definitivo.
E as condições particulares da apólice reportam-se à situação de a pessoa segurada ficar inválida para o exercício da profissão, pois refere, “em caso de invalidez profissional da pessoa segura” e não a situação de “nomeadamente não poder mais desenvolver a sua actividade profissional (o que não sucede) e ter uma incapacidade que impossibilite o segurado de desenvolver outra qualquer actividade (o que, de igual modo, não sucede)”, como alega a recorrente.
Nem se compreende que quando uma médica dentista contrata um plano de seguro que abranja a sua atividade profissional e quando, por infortúnio, a segurada fica incapacitada em definitivo para exercício da sua profissão de médica dentista, a seguradora entenda que poderá exercer “outra qualquer”.
Qual?
Temos que uma médica dentista com incapacidade permanente para o exercício da sua profissão que exerceu durante largos anos (resulta da matéria de facto que o contrato foi celebrado em 22-05-1993), não estará apta para exercer “qualquer outra” profissão.
Por outro lado, apresentando a seguradora um projeto de contrato de seguro de grupo (convertido em contrato pela aceitação/adesão) no qual se cumulam clausulas, prevendo uma a necessidade de verificação invalidez profissional e outra prevendo a necessidade de verificação de um grau de incapacidade geral igual ou superior a 60%, para a segurada poder acionar o seguro e exigir a indemnização, tem de se considerar esta como nula por contrária à boa-fé e por defraudar as expectativas dos aderentes, por, através da estipulação de uma exigência de carácter eminentemente técnico e de compreensão não acessível à generalidade dos aderentes, implicar um desequilíbrio desproporcionado, favorecendo excessivamente a posição contratual do predisponente e prejudicando inequitativa e danosamente a do aderente.
Estando em causa um contrato relativo a um seguro de vida grupo com a Ordem dos Médicos Dentistas, o qual se rege pelas Condições Particulares Gerais e Especiais, por norma e embora se indiquem como clausulas particulares elas são comuns a esse tipo de contratos, o que faz delas clausulas gerais. Num contrato de seguro de vida grupo as clausulas contratuais são as mesmas para todos os aderentes.
Por isso concordamos com o expendido no acórdão recorrido de que “Pela sua própria definição, as cláusulas inseridas nas condições gerais e nas condições especiais de um contrato de seguro, sendo de aplicação generalizada a determinados contratos de seguro do mesmo tipo, assumem a natureza de clausulas contratuais gerais.”
Neste sentido o Ac. deste STJ de 10-07-2008, no Proc. nº 08..., “A interpretação das cláusulas do contrato de seguro deve observar o disposto nos arts. 236º a 238º do Cód. Civil e no tocante às cláusulas gerais e especiais – por terem a natureza de cláusulas contratuais gerais -, o disposto no Dec.-Lei nº 486/85 de 25/10.”
E mais expressivamente o Ac. deste STJ de 27-09-2016, no Proc. nº 240/11.7TBVRM.G1.S1, ao referir que, “As condições especiais de um contrato de seguro, pré-elaboradas e destinadas a ser adotadas por interessados indeterminados, não deixam de ser cláusulas contratuais gerais, e, como tal, estão submetidas aos ditames do DL nº 446/85.”
São cláusulas contratuais gerais, de acordo com a orientação aduzida no art. 1º do DL nº 446/85, aquelas que são elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respetivamente, a subscrever ou a aceitar, e aquelas que são inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar.
Refere o Ac. deste STJ de 10-05-2018, proferido no Proc. nº 261/15.0T8VIS.C1.S2 que, “o contrato de seguro de grupo apresenta-se com uma particular estruturação: num primeiro momento (fase estática), o contrato é celebrado entre a seguradora e o tomador do seguro, que estabelecem entre si as condições de inclusão no grupo e as condições de seguro para os aderentes, em que assumem especial relevo as coberturas dos riscos; num segundo momento (fase dinâmica), o tomador de seguro promove a adesão ao contrato junto dos membros do grupo.
Com a adesão, constitui-se uma relação trilateral entre a seguradora, o tomador do seguro e o aderente. O contrato deixa de regular exclusivamente os interesses do tomador e da seguradora e passa também a regular os interesses do segurado de acordo com as cláusulas apostas no modelo proposto.”
De acordo com o art. 187, nº 2, do RJCS, a pessoa segura, nos seguros de grupo, é o titular dos direitos e obrigações contratuais, designadamente do dever de pagar o prémio. Assim, a pessoa segura identifica-se com o segurado (conforme o art. 77, n.ºs 2 e 3, do RJCS, o segurado é o sujeito que paga o prémio no seguro de grupo contributivo).
A noção de “seguro de grupo” encontra-se no art. 1.º, al. g), do DL n.º 176/95, de 26 de julho, revogado pelo art. 6.º do RJCS “seguro de um conjunto de pessoas ligadas entre si e ao tomador do seguro por um vínculo ou interesse comum”, assim como no art. 76.º, n.º 1, do RJCS, atualmente em vigor, o “contrato de seguro de grupo cobre riscos de um conjunto de pessoas ligadas ao tomador do seguro por um vínculo que não seja o de segurar”.
O denominado seguro de grupo é aquele que cobre riscos de um conjunto de pessoas ligadas ao tomador do seguro por um vínculo que não seja o de segurar.
Nos termos dos arts. 175 e 183 da RJCS, atualmente em vigor, aprovada pelo DL n.º 72/2008, de 16 de abril, e conforme já decorria dos arts. 455 e ss. do Cód. Comercial em relação à vida, o contrato de seguro de pessoas compreende a cobertura de riscos relativos à vida, à saúde e à integridade física de uma pessoa ou de um grupo de pessoas nele identificadas.
Das leis existentes e reguladoras de qualquer contrato de seguro, resulta que o risco está presente, quer no momento da celebração, quer durante toda a vigência de um contrato de seguro. Num contrato como o dos autos, o risco decorre, necessariamente, do próprio conceito de contrato de seguro e de risco, sob pena de se celebrar um negócio nulo nos termos do art. 280 do Cód. Civil.
Um segurado perante uma clausula que preveja a incapacidade para o exercício da profissão, certamente apreende que terá direito ao seguro no caso de ficar incapacitado de forma permanente para trabalhar na sua “arte”, independentemente do grau geral de incapacidade que lhe venha a ser determinado.
A incapacidade para o exercício da profissão exercida quando da celebração do contrato de seguro, sendo a eventual ocorrência da incapacidade para o exercício dessa concreta profissão que determinou a segurada a contratualizar o seguro, a ocorrência efetiva dessa incapacidade determinará que se possa exigir que a seguradora cumpra a responsabilidade a que se vinculou.
Este o sentido da jurisprudência, nomeadamente no Ac. do STJ de 27-09-2016, no Proc. nº 240/11.7TBVRM.G1.S1, ao referir “É abusiva (por atentatória do vetor da boa-fé), proibida e nula a cláusula especial constante das condições de contrato de seguro de grupo destinado ao pagamento do saldo de um empréstimo por crédito à habitação em caso de invalidez absoluta e definitiva do aderente, que exige acrescidamente para a caracterização desse estado de invalidez que o aderente fique na obrigação de recorrer à assistência permanente de uma terceira pessoa para efetuar os atos ordinários da vida corrente.”
Clausular que a par da incapacidade para o exercício da profissão era necessário e cumulativamente que a segurada padecesse de uma incapacidade geral superior a 60%, traduzir-se-ia que em casos específicos, como o que está em analise, em que a profissão exige uso apurado das mãos pudesse ocorrer com frequência a incapacidade para o exercício da profissão sem que a incapacidade geral atingisse os 60%. Como se diz no acórdão que citamos, “Tal cláusula introduz um significativo desequilíbrio contratual entre as partes (na prática esvazia largamente a utilidade do seguro), na medida em que o fim precípuo do dito seguro é obrigar o segurador a pagar ao banco mutuante no caso do aderente ficar impossibilitado de o fazer por si, e esta finalidade satisfaz-se com a própria impossibilidade e sem necessidade do aderente ficar também dependente da referida assistência permanente.”
Conforme refere o Dl. nº 352/2007 de 23 de outubro que contém em anexo as tabelas de incapacidades, a perda de uma mão (amputação total) apenas abrange um grau de incapacidade entre 35 a 40 pontos.
E em caso de clausulas ambíguas prevalece o sentido mais favorável para o aderente.
E no caso é manifesto ser ambíguo o clausulado, ““6 – garantia complementar – invalidez profissional (condição especial 10) Em caso de invalidez profissional da pessoa segura, antes dos 65 anos, o capital seguro é igual a 200% do capital base seguro (número 1 do artigo 2º). A incapacidade funcional para reconhecimento do estado de invalidez prevista no número 1 do artigo 2º é fixada em 60%. Fixa convencionado que a amputação ou perda completa do uso de qualquer dedo da mão dominante em consequência de acidente é condição suficiente para que seja reconhecido ao médico dentista o estado de invalidez permanente profissional”.”
- A clausula reporta-se a invalidez profissional;
- Só com 60% ou mais de invalidez é que há reconhecimento do estado de invalidez para a profissão;
-Ou com perda de um dedo da mão dominante.
É manifesto, como suprarreferido, o desequilíbrio e atentatório da boa-fé contratual, o facto de a seguradora pretender que o estado de invalidez para a profissão só se atinja com um grau de incapacidade geral de 60%, o que levaria a que pudessem ocorrer muitos casos de incapacidade para a profissão e com baixa incapacidade geral.
Ou, a perda completa de um dedo da mão dominante era causa de invalidez permanente profissional, conforme clausula, mas já o não seria a perda completa da mão não dominante que só gera incapacidade máxima de 40%, segundo a tabela de incapacidade.
Sendo certo que as cláusulas de delimitação dos riscos assumidos (assim como as de exclusão de certos riscos) são, em princípio, válidas (constitui a liberdade contratual um dos princípios básicos do direito privado, como resulta do Cód. Civil e é expressamente referido no preâmbulo do Dl. n.º 446/85, de 25-10), também é certo que as mesmas estão sujeitas ao regime das cláusulas contratuais gerais (Dl n.º 446/85, de 25-10) e à Lei do Consumidor, de acordo com a qual “os fornecedores estão obrigados à não inclusão de cláusulas em contratos singulares que originem significativo desequilíbrio em detrimento do consumidor” (art. 9.º, n.º 2, b), da lei n.º 24/96, de 31-07).
Como expresso no art. 1º do Dl. 446/85, “2 - O presente diploma aplica-se igualmente às cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar.
3 - O ónus da prova de que uma cláusula contratual resultou de negociação prévia entre as partes recai sobre quem pretenda prevalecer-se do seu conteúdo.”
Pretendendo a seguradora/recorrente fazer prevalecer o seu entendimento de que o seguro só podia ser acionado se verificadas cumulativamente as duas condições (incapacidade profissional permanente e incapacidade absoluta de mais de 60%), deveria fazer prova de que tal resultou de negociação entre a autora e a ré.
E deve ter-se em conta o disposto no arts. 5º a 7º da Diretiva 93/13/CEE que por força do DL 220/95, se aplica ao regime legal das cláusulas contratuais gerais (DL nº 446/85), o qual determina que os Estados-membros devem legislar na respetiva ordem interna de modo que, imperativamente, as cláusulas abusivas não vinculem os consumidores, e é assim que deve ser interpretado o DL nº 446/85.
Destes preceitos resulta que, em caso de dúvida sobre o significado de uma cláusula, prevalecerá a interpretação mais favorável ao consumidor.
Os Estados-membros estipularão que, nas condições fixadas pelos respetivos direitos nacionais, as cláusulas abusivas constantes de um contrato celebrado com um consumidor por um profissional não vinculem o consumidor e que o contrato continue a vincular as partes nos mesmos termos, se puder subsistir sem as cláusulas abusivas.
Os Estados-membros providenciarão para que, no interesse dos consumidores e dos profissionais concorrentes, existam meios adequados e eficazes para pôr termo à utilização das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores por um profissional.
Este desiderato não seria alcançado se os consumidores se vissem sempre na obrigação de invocar eles mesmos o caráter abusivo das cláusulas. Por isso o Tribunal de Justiça da União Europeia tem reiteradamente decidido, em sede de reenvio prejudicial, que é dever dos tribunais nacionais suscitar oficiosamente a questão.
E o mesmo se diga de quaisquer questões relativas à qualificação jurídica dos factos, categoria em que se inclui a da interpretação do contrato em conformidade com o regime das cláusulas contratuais gerais bastando que esteja disponível a matéria de facto necessária a tal indagação e decisão como no presente caso está.
Como já referido, repete-se que é um princípio basilar de direito, a boa-fé.
E o art. 15º do do Dl. 446/85 estabelece como princípio geral que “São proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa fé”.
Conforme art. 227º do Cód. Civil, “quem negoceia com outro para a conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé”.
Refere o ac. deste STJ de 17-05-2012, no Proc. 2841/03.8TCSNT.L1.S1, “1. O conceito normativo de boa fé é utilizado pelo legislador em dois sentidos distintos: no sentido de boa fé objetiva, enquanto norma de conduta , ou seja, no plano dos princípios normativos, como base orientadora e fundamento de efetivas soluções reguladoras dos conflitos de interesses, alcançadas através da densificação, concretização e preenchimento pelos Tribunais desta cláusula geral ; e no sentido de boa fé subjetiva ou psicológica, isto é, como consciência ou convicção justificada de se adotar um comportamento conforme ao direito e respetivas exigências éticas”.
E continua: “Na verdade, como é notado pela doutrina e jurisprudência, a boa-fé objetiva tem uma relevância acrescida na disciplina do contrato de seguro, bem expressa na norma constante do art. 429 do C. Com.:
Da maior importância é a classificação do contrato de seguro como de boa fé: porque se baseia nas declarações prestadas pelo segurado, referindo-se alguns Autores a uma uberrimae bona fidei, máxima boa fé, considerando-a elemento peculiar do contrato de seguro; a caracterização do seguro como contrato de boa fé não pretende reforçar a ideia de que quem negoceia com outrem para conclusão e um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, mas sublinhar a necessidade absoluta de lealdade do segurado para manter a equidade na relação contratual, uma vez que a seguradora é normalmente obrigada a confiar nas suas declarações , sem poder verificá-las aquando da subscrição (José Vasques, Contrato de Seguro, 1999, pag. 110)”.
A clausula que exige a incapacidade geral de 60% para se poder acionar o seguro de grupo, quando se verifica uma incapacidade total e definitiva para o exercício da profissão é desproporcionada, favorecendo de forma excessiva ou desproporcionadamente a posição contratual do predisponente e prejudicando inequitativa e danosamente a do aderente, sendo, consequentemente, abusiva nos termos dos arts. 15º e 16º do DL 446/85, de 25 de outubro, ficando a cobertura do contrato de seguro, aquém daquilo que a autora (bem como os demais médicos dentistas) podia de boa-fé contar, tendo em consideração o objeto e a finalidade do contrato firmado.
E, sendo abusiva, terá de ser declarada a sua nulidade, nos termos gerais do direito, subsistindo obviamente a obrigação de cumprimento por parte da seguradora.
No caso está em causa a boa-fé da ré seguradora ao incluir no contrato a necessidade de verificação de uma incapacidade geral de 60% ou mais, para que haja responsabilidade civil por incapacidade para o exercício da profissão, quando demonstrado está que “Por missiva de 26/06/2018, a ré comunicou à autora que “é entendimento do nosso Gabinete Médico que, à data da consulta, não se encontra com uma incapacidade temporária, mas que a Incapacidade é de caracter definitivo”, apesar de a incapacidade geral ser de 28%.
Como já supra se referiu, os médicos dentistas aderentes a este seguro de grupo, apenas pretendiam acautelar casos de eventual ocorrência que os incapacitasse para o exercício da profissão.
Sendo aquela clausula que estamos a analisar nula, não pode a recorrente querer fazer-se prevalecer dela. O que é dizer, não pode tal clausula ser atendida (exigida) como elemento constitutivo do direito que a autora veio exercer contra a ré.
A ré ainda soube da incapacidade para o exercício da profissão, pela autora, antes desta.
Face ao exposto só podemos concluir pelo acerto das decisões das instâncias:
A 1ª Instância quando decidiu que “Nesta base, e a finalizar, afigura-se-me que, quando é indiscutível, está documentalmente comprovado, e a própria seguradora admite, que a aqui autora está total e definitivamente incapacitada para a sua profissão habitual, é uma cláusula nula, por ofensa aos princípios da boa-fé, exigir-lhe, para que lhe seja paga a contraprestação correspondente ao estatuto de “invalidez profissional“, a apresentação de um atestado multiuso que lhe atribua uma incapacidade permanente de 60%.”
E o Tribunal da Relação ao decidir que, “Quanto à exigência acrescida de uma determinada incapacidade funcional é uma condição que já nada tem a ver com o âmbito desta cobertura complementar, em que o que pretende compensar é a perda da capacidade de ganho acarretada pela impossibilidade de exercício da sua profissão de médico dentista (exigência que continuaria a não fazer sentido, ainda que tivesse sido adotado, e não foi, um conceito mais amplo de invalidez profissional, de modo a abranger qualquer outra atividade remunerada), e não como compensação para as dificuldades ou incómodos que tal doença lhe possa acarretar nas inúmeras tarefas do seu seu dia a dia, nomeadamente nas suas tarefas domésticas ou de lazer.
(…)
Num seguro de grupo celebrado pela Ordem dos Médicos Dentistas, no qual é subscrita, entre outras, e a par da morte e da invalidez total permanente (por acidente ou doença), a garantia da Invalidez Profissional, reportada à incapacidade para o exercício da profissão médico dentista, a exigência cumulativa de uma incapacidade funcional de 60%, deixaria de fora do âmbito da respetiva proteção inúmeras situações de invalidez que impedem de facto o segurado de trabalhar, ficando aquém daquela com que o tomador podia de boa-fé contar, tendo em consideração o objeto e a finalidade do contrato.”
Pelo que ficou dito resta concluir que o acórdão recorrido não violou qualquer disposição legal, inexistindo qualquer razão para anular e revogar o acórdão recorrido.
Antes, deve ser confirmado.
Assim, são julgadas improcedentes as conclusões do recurso, devendo ser negada a revista e mantido o acórdão da Relação.
I- Apresentando a seguradora um projeto de contrato de seguro de grupo (convertido em contrato pela aceitação/adesão) no qual se cumulam clausulas, prevendo uma a necessidade de verificação invalidez profissional e outra prevendo a necessidade de verificação de um grau de incapacidade geral igual ou superior a 60%, para a segurada poder acionar o seguro e exigir a indemnização, tem de se considerar esta como nula por contrária à boa-fé e por defraudar as expectativas dos aderentes.
II- Estando em causa um contrato relativo a um seguro de vida grupo com a Ordem dos Médicos Dentistas, o qual se rege pelas Condições Particulares Gerais e Especiais, por norma e embora se indiquem como clausulas particulares elas são comuns a esse tipo de contratos, o que faz delas clausulas gerais.
III- Pretendendo a seguradora/recorrente fazer prevalecer o seu entendimento de que o seguro só podia ser acionado se verificadas cumulativamente as duas condições (incapacidade profissional permanente e incapacidade absoluta de mais de 60%), deveria fazer prova de que tal resultou de negociação entre a autora e a ré.
IV- Um segurado perante uma clausula que preveja a incapacidade para o exercício da profissão, certamente apreende que terá direito ao seguro no caso de ficar incapacitado de forma permanente para trabalhar na sua “arte”, independentemente do grau geral de incapacidade que lhe venha a ser determinado.
V- A clausula que exige a incapacidade geral de 60% para se poder acionar o seguro de grupo, quando se verifica uma incapacidade total e definitiva para o exercício da profissão, é desproporcionada, favorecendo de forma excessiva, a posição contratual do predisponente e prejudicando inequitativa e danosamente a do aderente.
VI- Sendo uma clausula abusiva, terá de ser declarada a sua nulidade, nos termos gerais do direito, subsistindo obviamente a obrigação de cumprimento por parte da seguradora.
Pelos fundamentos expostos, julga-se improcedente a revista e, consequentemente, mantem-se o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 14-02-2023
Fernando Jorge Dias - Juiz Conselheiro relator
Jorge Arcanjo- Juiz Conselheiro 1º adjunto
Isaías Pádua - Juiz Conselheiro 2º adjunto