CRIME DE DESOBEDIÊNCIA POR RECUSA A EXAMES
CONSUMAÇÃO
CONCEITO DE CONDUTOR
ERRO SOBRE A TIPICIDADE
Sumário

I - Tratando-se o crime de desobediência, p. e p. pelos artigo 348º, nº 1, al. a) do CP e 152º, nº 1 al. a) e nº 3 do CE, de um crime de direito penal clássico, cuja existência e respetivos elementos integradores se presumem conhecidos da normalidade dos cidadãos, a consciência da ilicitude decorre da própria representação e vontade de praticar os factos que preenchem objetivamente o tipo penal, encontrando-se pois associada ao dolo.
II - O sentido da previsão legal de condutor que releva para efeitos penais decorre do facto de ter existido condução, sendo certo que o que legitima a ordem de submissão ao teste de pesquisa de álcool no sangue é a circunstância de tal condução ter sido presenciada pelos agentes de autoridade no momento da abordagem ou em momento imediatamente anterior.
III - Tendo existido condução efetiva, encontra-se legitimada a investigação da prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, revelando-se absolutamente irrelevante que, no momento em que lhe é dada a ordem para realizar o teste de alcoolemia, o condutor ainda esteja dentro do veículo e seja mandado parar ou que tenha parado de sua iniciativa e estacionado o veículo imediatamente a seguir à condução presenciada pelo agente de autoridade. Em ambas as situações o artigo 152º, nº 1 al. a) e nº 3 do CE prevê que os condutores que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool são punidos pelo crime de desobediência que se encontra p. e p. pelo artigo 348º, nº 1, al. a) do CP.
IV - O crime de desobediência p. e p. pelos artigo 348º, nº 1, al. a) do CP. e 152º, nº 1 al. a) e nº 3 do CE, consuma-se com a recusa do arguido em realizar o teste de pesquisa de álcool no sangue após ter recebido ordem legítima para o efeito, não interferindo em tal consumação o facto de aquele, algum tempo depois, se dispor a fazer o teste que num primeiro momento recusara realizar

Texto Integral

Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Nos presentes autos de processo sumário que correm termos no Juízo Local Criminal de … - Juiz …, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º 242/22.8PFSTB, foi o arguido AA, casado (separado de facto), empresário na área da construção civil e do imobiliário, filho de BB e de CC, nascido em …1975, natural da freguesia de …, concelho da …, nacional de Portugal, NIF - …, BI – … e residente na Rua …, …, condenado pela prática, em autoria material, de um crime desobediência p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al, a), do Código Penal, por referência ao artigo 152.º, n.ºs 1, al. b) e 3 do Código da Estrada, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de 7,50 € (sete euros e cinquenta cêntimos), perfazendo o total de 525,00 € (quinhentos e vinte e cinco euros) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria por um período de 5 (cinco) meses, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, al. c), do Código Penal.

*

Inconformado com tal decisão, veio o arguido interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

“1.ª No que à matéria de facto diz respeito, encontram-se incorretamente julgados os pontos 1) in fine, 5) in fine, 6), 7), 9), 10) in fine e 11) dos factos dados como provados pelo tribunal a quo;

2.ª Quanto julgamento do facto provado 1), deve ser revogado na parte em que apenas refere o agente DD, devendo ainda ser acrescentada a presença do agente EE;

3.ª Uma vez que resulta inequivocamente do auto de notícia de Fls., do depoimento da testemunha DD e das declarações de arguido que, durante toda a acção de fiscalização que culminou na detenção do arguido, o agente DD esteve sempre acompanhado pelo colega agente EE, pese embora este último tenha sido postergado pelo Ministério Público;

4.ª Provada que está a sua presença e participação no sucedido, então conclui-se pela incompletude da redacção do facto provado 1) pelo tribunal a quo, impondo-se a sua alteração, no sentido de ser dado como provado o seguinte: “No dia 25 de outubro de 2022, pelas 22h40m, na Rua …, em …, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula …, quando, imediatamente após o ter parqueado, foi abordado pelo agentes da P. S. P. DD e EE, que lhe solicitaram os documentos da viatura.”;

5.ª No que respeita ao facto provado 5) in fine, este encontra-se igualmente incorretamente julgado, já que o tribunal a quo valorou apenas o depoimento da testemunha DD, quando não o podia fazer, pelo menos na extensão em que o fez;

6.ª Ora, a testemunha DD explicou, nos excertos supra transcritos, que foi acompanhado por EE e ainda que este, a dada altura, teve contacto com o arguido;

7.ª Pois que, quando a testemunha afirmou que o arguido nunca tinha solicitado a realização do teste, este apenas pode falar por si e das conversas que estabeleceu directamente com o arguido;

8.ª Em contrapartida, não pode DD falar pelo seu colega não ouvido, nem tais declarações podem ser utilizadas para se provar o teor das conversas estabelecidas entre EE e o arguido, porquanto, nessa parte consubstanciam depoimento indireto, que não pode ser valorado nos termos do disposto no artigo 129.º do Código de Processo Penal, visto que a fonte foi deixada de fora do processo pelo próprio Ministério Público;

9.ª Assim, é manifestamente excessivo e contrário à lei que o tribunal a quo tenha dado como provado que o arguido se tenha recusado sempre a realizar o teste, apenas com base no depoimento do agente DD, desconsiderando totalmente as declarações do arguido, que nem sequer se mostram incompatíveis com a demais prova junta aos autos;

10.ª Na versão dos factos apresentada pelo arguido, primeiro contestação e depois, nas suas declarações em audiência, este explicou, de forma credível, que, quando o agente DD se encontrava ao telefone, o agente EE levou-o para a parte traseira da viatura policial, altura em estabeleceram diálogo durante o qual o arguido acabou por aceder à realização do teste, ao que o agente EE terá respondido que já tinha perdido a oportunidade;

11.ª Sendo certo que, o arguido estava perfeitamente em tempo de ainda realizar o teste, já que entre a sua abordagem inicial e este momento, teriam passado não mais de 5 minutos, pelo que não estava em causa qualquer recusa por já ter passado muito tempo e eventual teor de álcool já se ter dissipado do sangue;

12.ª Tais declarações do arguido revelaram-se sérias e credíveis, corroboradas parcialmente pela testemunha DD, a qual declarou que o seu colega efetivamente chegou a falar com o arguido e ainda, pelo teor do auto do noticia a Fls., o qual refere expressamente a presença do agente EE;

13.ª Não tendo EE sido chamado a depor, nem pelo tribunal a quo, nem pela própria acusação, então deve conferir-se credibilidade às declarações do arguido e em consequência, julgar provada a solicitação do arguido para se submeter ao teste, alterando a redação do facto 9) no sentido de: “Após ter sido algemado e conduzido para a lateral do veículo policial, o arguido solicitou ao agente EE para fazer o exame de sopro, tendo-lhe sido negada essa possibilidade pelo mesmo, respondendo que “A sua oportunidade já passou”;

14.ª Caso se entenda não ser de julgar provado o facto supra enunciado, o que não se concede e apenas por mera cautela de patrocínio se admite, em face da versão apresentada pelo arguido, dos demais elementos de prova e da (estranha e ilegal) omissão da intervenção do agente EE por parte do Ministério Público, entende-se que logrou o arguido, pelo menos, criar dúvida razoável sobre a persistência da sua recusa, constante do facto provado 9);

15.ª Tal questão apenas não foi esclarecida, pois o Ministério Público, violando o dever de objectividade e da natureza inquisitória do processo penal, omitiu diligência probatória fundamental para a descoberta da verdade, pela qual não pode o arguido ser penalizado;

16.ª Assim, havendo dúvida razoável não clarificada, devido à atitude da acusação em omitir o depoimento do EE, ao abrigo do princípio in dubio pro reo, tal dúvida deve funcionar em benefício do arguido e, como tal, a persistência da sua recusa ser dada como não provada;

17.ª Em suma, caso não se entenda julgar provada a solicitação do arguido ao agente EE para realizar o teste e alterar a redação do facto 9) conforme proposta acima, deve o facto provado 9) na sua redacção actual ser dado como não provado;

18.ª Por fim, o arguido impugna ainda os factos provados 6), 7), 9), 10) e 11), na parte em que estes referem que o arguido tinha consciência que a sua conduta era proibida por lei, bem como quando referem que o arguido sabia que a ordem era legítima ou que a recusa era ilegítima;

19.ª A este propósito, o arguido bem explicou em audiência de julgamento estar convicto da ilegalidade da ordem que lhe foi dada, já que, tendo o carro parqueado à porta de casa e não se preparando para conduzir, não estava legalmente obrigado a submeter-se ao teste – Cf. excertos das declarações do arguido supra transcritos;

20.ª Tendo ainda esclarecido que o único motivo que o levou a solicitar a realização do teste ao agente EE foi para “ficar tudo bem” e terminar a humilhação perante os seus vizinhos e não uma súbita consciência que efetivamente tinha que fazer o teste;

21.ª De facto, mesmo após ter sido detido, após ter sido presente a autoridade judiciária e já em audiência de julgamento, o arguido continuou sempre a demonstrar essa inconsciência da ilicitude da sua recusa, sempre tendo afirmado que não fez o teste porque acho que não tinha de o fazer;

22.ª A dado passo, vendo o “circo” que a polícia montou à sua porta, de modo puramente utilitarista, preferiu fazer o teste, debalde por recusa de quem minutos antes o havia ordenado…;

23.ª Desta forma, não podia o tribunal a quo ter dado como provado que o arguido “ficou ciente (…) do dever de se submeter ao exame”, que este “sabia que se encontrava obrigado a submeter-se ao referido exame”, que “sabia ainda o arguido que não se submetendo ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado, como, efetivamente, não fez, incorreria na prática de um crime de desobediência”, que o arguido sabia que a ordem “era legítima e que lhe devia obediência” e ainda que, “o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta, acima descrita era proibida por lei” – Cf. pontos 6), 7), 9), 10), e 11) dos factos provados, que se impugnam;

24.ª E não podia porque a interpretação e aplicação da norma constante do artigo 152.º, n.º 1 do Código da Estrada está longe de ser líquida;

25.ª Sendo certo que, sendo a sua aplicabilidade questionada do ponto de vista do intérprete do Direito, então é perfeitamente razoável que um homem médio colocado nas concretas situações do arguido, sem qualquer formação jurídica, considere não ter que se submeter a teste de álcool pelo simples motivo de ter carro estacionado à porta de casa e não se preparar para conduzir;

26.ª Motivo pelo qual, deverão os pontos 6), 7), 9), 10) e 11) dos factos provados ser revogados, sendo dado como não provado que:

a. No ponto 6) in fine deve ser dado como não provado que o arguido ficou ciente do dever de se submeter ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado;

b. O ponto 7) deve ser dado como na íntegra não provado;

c. No ponto 9) deve ser dado como não provado que o arguido sabia que não se submetendo ao exame de pesquisa de álcool, incorria num crime de desobediência;

d. O ponto 10) deve ser dado como não provado na íntegra; e

e. No ponto 11) deve ser dado como não provado que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punível por lei.

27.ª A falta de consciência da ilicitude por parte do arguido, deve ser enquadrada no âmbito do disposto no artigo 16.º, n.º 1 do Código Penal;

28.ª Que é uma causa de exclusão do dolo e consequentemente, afasta o preenchimento do tipo objectivo e, como tal, sempre levará à absolvição.

29.ª Em segundo lugar, provada a presença do agente EE e a sua interacção com o arguido, no âmbito da qual aquele solicitou a submissão ao teste, tal consubstancia juridicamente uma situação de desistência, prevista no artigo 24.º do Código Penal;

30.ª Ao dispor o referido artigo 24.º que a tentativa não é punível se o agente desistir da prática do facto típico, conclui-se pela existência de causa de exclusão da punibilidade in casu, já que ficou provado que o arguido, a dado momento, efectivamente desistiu de se opor ao cumprimento da ordem e assentiu na realização do teste, que lhe foi negada sem motivo aparente;

30.ª Last but not least: importa ainda interpretar a norma constante do artigo 152.º do Código da Estrada e assim, verificar se a ordem dos agentes da P. S. P. foi efetivamente legítima e se o cidadão devia ou não ter obedecido;

31.ª O artigo 152.º, n.º 1 do Código da Estrada estabelece que ficam obrigatoriamente sujeitos à realização do teste do álcool os condutores, os peões intervenientes em acidente e os que se propuserem iniciar a condução;

32.ª) Nos termos do Regulamento CEE 561/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de Março de 2006 Relativo à harmonização de determinadas disposições em matéria social no domínio dos transportes rodoviários, é considerado condutor “qualquer pessoa que conduza o veículo, mesmo durante um curto período, ou que, no contexto da atividade que exerce, esteja a bordo de um veículo para poder eventualmente conduzir”;

33.ª A este respeito, consta do facto provado 1) que o arguido foi abordado pelos agentes imediatamente após ter parqueado o veículo, não por tal lhe ter sido ordenado pelos agentes de autoridade, mas porque ia para casa, sendo que, os agentes de autoridade, vendo o arguido já parqueado, aproveitaram para o abordar;

34.ª) Logo, no momento da abordagem e na aceção do Regulamento Comunitário, o arguido já não era condutor, pois não se encontrava a exercer a condução;

35.ª Igualmente não se preparava para conduzir; tinha acabado de conduzir, estacionou o carro e dirigiu-se para casa;

36.ª Note-se que, no âmbito dos ilícitos rodoviários, o que está em causa é uma situação de criação de perigo concreto, o que significa que o legislador pretendeu punir tão-só para prevenir que o risco criado pela condução sob o efeito do álcool para os demais utentes da via;

37.ª Por esse motivo é que entendeu, no artigo 152.º, apenas ser de incluir aqueles que estão a conduzir ou que se preparam para o fazer, pois os que acabaram de conduzir já não representam qualquer perigo concreto;

38.ª No momento em que foi interceptado, o arguido era peão, sendo que, não tendo estado envolvido em nenhum acidente, não cabe em nenhuma das previsões do artigo 152.º do Código de Estrada;

39.ª De onde se conclui que a ordem de realização do teste fora do âmbito do artigo 152.º foi ilegal e ilegítima, representando uma ingerência grave e injustificada por parte dos agentes de autoridade;

40.ª Sendo a legitimidade da ordem um elemento do tipo objectivo previsto no artigo 348.º do Código Penal e tal não se verificando in casu, tem-se o elemento objectivo do tipo incriminatório por não preenchido, sendo certo que, a conduta do arguido é plenamente enquadrável no disposto no artigo 21.º da Constituição da República Portuguesa, o que necessariamente determina a sua absolvição.

Termina pedindo a sua absolvição.

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O recurso foi admitido.

Na 1.ª instância, o Ministério Público pugnou pela improcedência do recurso e pela consequente manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“I. A douta sentença impugnada não merece qualquer reparo ou censura, porquanto o seu percurso decisório é lógico e adequado, ancorando-se na prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e naquela carreada para os autos, contemplando todas as circunstâncias relevantes para a boa decisão da causa e culminando numa resolução irrepreensível.

II. Mirando a sentença proferida pelo Tribunal a quo, o Arguido/Recorrido AA insurge-se contra a mesma, em dois aspetos:

i)Impugnação da matéria de facto, assente no erro de julgamento, na incorreta apreciação das provas produzidas em sede de audiência de discussão e julgamento, traduzida na impugnação alargada da matéria de facto dada como provada, concretamente os Pontos 1), 5), 6), 7), 9), 10) e 11, por violação do princípio da livre apreciação e do artigo 355.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, devendo incluir-se na matéria de facto provada a presença da testemunha agente da PSP EE, o qual deveria ter sido ouvido em audiência de discussão de julgamento, para além do agente autuante da PSP DD e, em consequência, deveria ter sido como provado que o Arguido/Recorrente solicitou ao agente EE a realização do teste de alcoolemia, não tendo persistido a sua recusa;

ii) impugnação da matéria de direito, não tendo sido dado por provado os factos suprarreferidos, não se mostra preenchida a consciência da ilicitude da conduta do Arguido, não havendo dolo por parte deste, porque estaria convencido que a ordem que lhe foi dada em submeter-se ao teste de alcoolemia era ilegal por já ter estacionado o seu veículo automóvel e já não seria considerado “condutor”; por isso, a recusa do Arguido/ Recorrente foi legítima, enquadrável no disposto no artigo 16.º, n.º 1 do Código Penal; tendo o Arguido solicitado fazer o teste em momento posterior, não se mostra juridicamente preenchido o crime de desobediência, configurando a atitude do Recorrente uma situação de desistência, nos termos do artigo 24.º do Código Penal; por último, a noção de “condutor” não abrange o condutor estacionado que saiu do seu veículo automóvel, ao abrigo do Código da Estrada e da Legislação da União Europeia.

III. Porém, e com o devido respeito, somos do entendimento que não lhe assiste qualquer razão.

IV. No que diz respeito à impugnação alargada da matéria de facto, o Arguido/Recorrente AA alega que deveria constar dos factos da acusação pública menção à presença do agente da PSP EE, para além do agente DD; salvo o devido respeito, o disposto no artigo 283.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal, não estatui a obrigação, sob pena de nulidade, de mencionar no corpo da narração dos factos todos os indivíduos/testemunhas presentes no momento, nem a forma de processo sumário se coaduna com esta alegação do Arguido/Recorrente, nos termos previstos pelo artigo 381.º do Cód. Proc. Penal.

V. Neste sentido, uma vez que o único agente da PSP que procedeu à detenção do Arguido/Recorrente e elaborou o auto de notícia, foi o agente DD, indicado como testemunha principal da acusação, não se vislumbra a necessidade, perante a forma de processo sumário e o flagrante delito, da indicação de testemunhas secundárias.

VI. O Arguido/Recorrente referiu, quando prestou declarações em audiência de discussão em julgamento, que terá solicitado que faria o teste de alcoolemia ao agente EE, após ao momento da detenção e elaboração do auto, ou seja, após ter consumado o crime de desobediência, apesar de devidamente advertido das consequências legais da sua recusa, várias vezes, por parte do agente autuante DD.

VII. Quando inquirido, na qualidade de testemunha, o agente da PSP DD, confirmou de forma perentória, clara e sem manifestar qualquer hesitação, que nunca o Arguido/Recorrente AA solicitou submeter-se ao teste do álcool, nem à própria testemunha, nem a qualquer dos agentes da PSP presentes no local.

VIII. Por isso, os factos 1), 5), 6), 7), 9), 10) e 11) dados como provados pelo Tribunal a quo não merecem qualquer reparo e os fundamentos aduzidos pelo Arguido/Recorrente se mostra parca para abalar a convicção formada em 1.ª instância, assente no princípio da livre apreciação da prova, (cfr. artigo 127.º, do Código de Processo Penal).

IX. Relativamente à impugnação da matéria de direito, o Arguido/Recorrente pugna que já não deveria ser considerado como «condutor» porque tinha acabado de estacionar a viatura automóvel na artéria da sua residência, que conduzia, na via pública, contudo foi dado como provado, conforme relatado pelo agente autuante DD que: “o depoente que circulava em veículo policial em patrulhamento, (…)avistou um veículo [… cinzento e matrícula terminada em .." (sic)] a circular na Avenida … (…)viria localizar o referido veículo ainda em circulação na Rua … até o mesmo ali estacionar, verificando ser o arguido quem efetuava a condução da viatura e ato continuo abordou-o”.

X. Deste modo, o Arguido/Recorrente foi visto a conduzir o veículo automóvel em questão, minutos antes de estacionar, tendo sido alcançado e visualizado pelo agente da PSP a conduzir e parquear o mesmo, preenchendo, assim a noção de «condutor» esplanada no Código Penal, no Código da Estrada e no nosso ordenamento jurídico.

XI. Tal é o entendimento do conceito de «condutor» explanado na jurisprudência, nomeadamente no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 06-05-2020, Relatora Helena Bolieiro, disponível em www.dgsi.pt:, e no Acórdão do Tribunal da Évora, de 10-01-2017, relator Sérgio Corvacho, disponível em www.dgsi.pt.

XII. Desta forma, nenhum reparo temos a tecer ao ter sido dado como provado os factos n.º 6, 7, 9, 11 pelo Tribunal a quo, designadamente a ilicitude e consciência mesma por parte do Arguido/Recorrente.

XIII. Tendo o Arguido/Recorrente consciência da ilicitude da sua conduta e tendo agido como agiu, não se mostra preenchido o disposto no artigo 16.º, n.º 1 do Código Penal, sob a epígrafe “Erro sobre as circunstâncias de facto”: “1 - O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo”, porquanto, o arguido tinha conhecimento da ilicitude do facto, agindo com dolo.

XIV. Não assiste razão ao Arguido/Recorrente ao alegar que não se consumou o crime de desobediência, porque em momento posterior terá solicitado para fazer o teste de alcoolemia, uma vez que o crime de desobediência se consumou em momento anterior, com a recusa em submeter-se ao teste de alcoolemia, não revelando para o efeito a conduta posterior à prática do crime em referência.

XV. A propósito da (ir)relevância da conduta posterior do Arguido após o momento em que se consumiu o crime de desobediência, cita-se o nomeadamente o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 08-03-2016, Relator Fernando Ribeiro Cardoso, disponível em www.dgsi.pt; e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14-06-2011, Relator João Gomes Sousa, disponível em www.dgsi.pt.

XVI. Consequentemente, o pedido posterior do Arguido/Recorrente, tendo recusado submeter-se ao teste de alcoolemia, não configura uma desistência nos termos previstos pelo artigo 24.º do Código Penal, porquanto o crime já foi cometido em momento anterior.

XVII. Ademais, nunca resultou provado, nem confirmado por parte da testemunha agente da PSP DD, que o Arguido/Recorrente solicitou ao agente autuante submeter-se ao teste de alcoolemia, nestas circunstâncias de tempo e lugar, nem ao agente da PSP EE.

XVIII. Reportando-nos a noção de condutor invocado pelo Arguido/ Recorrente, do Regulamento CEE 561/2006 do Parlamento Europeu de 14 de março de 2006, relativo à harmonização de determinadas disposições em matéria social no domínio dos transportes rodoviários, esta legislação da U.E. não é suscetível de se aplicar aos presentes autos porque o referido Regulamento tem por objetivo regulamentar/ harmonizar ao nível europeu o transporte de passageiros, mercadorias, o tempo de repouso dos motoristas de transporte, no seio do espaço comunitário, não sendo relevante para efeitos de criminalidade rodoviária e ao abrigo do Código Penal.

XIX. Assim, conclui-se que o Arguido/Recorrente não tinha motivos válidos, nem justificação plausível para recusar-se submeter-se ao teste de alcoolemia, nos termos previstos pelo artigo 21.º da CRP, perante a ordem legal, legítima, por parte da força de autoridade, em exercício de funções para o efeito, tendo-lhe sido feita a expressa advertência de que incorreria na prática do crime de desobediência, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 152.º, n.º 1, alíneas a) e n.º3 do Código da Estrada e 348.º, n.º 1, alínea a) e 69.º, n.º 1, alínea c) ambos do Código Penal.”

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O Exmº. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo manifestado a sua concordância com os termos das alegações de recurso apresentadas pelo Ministério Público na primeira instância.

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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

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II – Fundamentação.

II.I Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95 de 19.10.95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir, a saber:

A) Determinar se existiu erro de julgamento da matéria de facto por errada valoração da prova produzida nos autos, nos termos previsto no artigo 412º do CPP;

B) Determinar se existiu erro de julgamento da matéria de direito relativamente à não valoração dos seguintes fatores:

a) Erro sobre as circunstâncias de facto previsto no artigo 16º do CP;

b) Falta de legitimidade da ordem de submissão ao teste de pesquisa de álcool no sangue e consequente legitimidade da recusa do seu cumprimento por parte do arguido em virtude de o mesmo não ser condutor.

c) Desistência relevante, nos termos previstos no artigo 24º do CP;

* II.II - A decisão recorrida.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença deu como provados os seguintes factos:

“Factos Provados:

Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos: Extraídos da acusação (após discussão da causa)

1) No dia 25 de outubro de 2022, pelas 22h40m, na Rua …, em …, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula …, quando, imediatamente após ter parqueado o veículo, foi abordado pelo agente da P.S.P. DD que lhe solicitou os documentos da viatura.

2) No decurso de tal abordagem policial, por suspeitar que aquele estaria sob o efeito de álcool, o mencionado agente da P.S.P. ordenou ao arguido que se submetesse ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado para detetar eventual álcool no sangue.

3) (…) Não obstante o arguido recusou-se a efetuar o mencionado exame.

4) O agente da P.S.P. advertiu-o, por diversas vezes, que, no caso de se recusar a submeter-se ao aludido exame de pesquisa de álcool, incorria na prática de um crime de desobediência.

5) Contudo, o arguido recusou-se sempre a efetuar o sobredito exame, apesar de poder e dever fazê-lo.

6) Na ocasião, o arguido ficou ciente do teor das advertências que lhe foram feitas, bem como do dever de se submeter ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado, para detetar eventual álcool no sangue.

7) O arguido sabia que se encontrava obrigado a submeter-se ao referido exame, e, não obstante se encontrar em condições de o fazer, não o fez.

8) Mais sabia o arguido que a ordem que lhe foi dada foi emanada por autoridade competente e que a mesma lhe foi regularmente comunicada.

9) Sabia ainda o arguido que não se submetendo ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado, como, efetivamente, não fez, incorreria na prática de um crime de desobediência, conforme fora expressamente advertido, e, não obstante, não se absteve de assim proceder.

10) O arguido agiu conforme supra relatado com o propósito, concretizado, de não obedecer à ordem que lhe foi dada, bem sabendo que a mesma era legítima e que lhe devia obediência.

11) O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta, acima descrita, era proibida e punível por lei.

Das condições socioeconómicas e passado criminal do arguido

12) O arguido é empresário na área da construção civil e da promoção imobiliária, auferindo, por via de tais atividades, um rendimento mensal que ronda os € 3.000.

13) (…) Vive atualmente sozinho em casa alugada pela qual paga € 900 de renda mensal.

14) Tem duas filhas de 21 e 14 anos de idade, a mais nova em regime de residência alternada com a respetiva progenitora.

15) Para além da referida renda e das normais despesas domésticas o arguido tem encargos mensais fixos no valor de € 1.000 decorrentes de planos prestacionais por dívidas ao Fisco e à Segurança Social.

16) (…) Pese embora tenha frequência do ensino universitário (1.º ano do curso de Gestão de Sistema de Informação) como habilitações literárias possui o 12.º ano de escolaridade.

Do passado criminal do arguido

17) No CRC do arguido constam averbados os seguintes antecedentes criminais:

i) por crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º e 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, por factos ocorridos em 07/02/2015, foi condenado, mediante sentença datada de 20/09/2016, transitada em julgado em 20/10/2016, na pena de 40 dias de multa, à taxa diária de € 6, perfazendo o quantitativo global de € 240 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses e 15 dias, ambas já declaradas extintas pelo cumprimento (Proc.º Comum Singular n.º … deste Juízo Local Criminal de … – Juiz …);

ii) por crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 105.º, n.º 1, do RGIT e 30.º do Código Penal, por factos ocorridos em 16/11/2011, foi condenado, mediante sentença datada de 28/09/2017, transitada em julgado em 30/10/2017, na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de € 5, perfazendo o quantitativo global de € 900, declarada extinta pelo cumprimento em 31/01/2019 (Proc.º Comum Singular n.º … do Juízo Local Criminal de … – Juiz…);

iii) por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.ºs 1, 2, 4, 5 e 7 do RGIT, por factos ocorridos em 09/2013, foi condenado, mediante sentença datada de 28/02/2018, transitada em julgado em 09/04/2018, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, declarada extinta em 09/06/2020 (Proc.º Comum Singular n.º … deste Juízo Local Criminal de … – Juiz …); e

iv) por crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelo artigo 107.º do RGIT, por factos ocorridos em 30/03/2016, foi condenado, mediante sentença datada de 02/09/2021, transitada em julgado em 04/10/2021, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período (Proc.º Comum Singular n.º … deste Juízo Local Criminal de … – Juiz …).

*

2.2 – Factos não provados:

Nada ficou por provar de relevante para a descoberta da verdade material dos factos e para a boa decisão da causa.

***

Inexistem outros factos provados ou não provados, tendo-se desconsiderado qualquer matéria de Direito, conclusiva ou totalmente irrelevante para a boa decisão da causa.”

Para sustentar a sua convicção probatória, consignou o tribunal recorrida na sentença a seguinte motivação:

“Motivação de facto:

Antes de mais, esclarece-se que, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal, o Tribunal deve indicar os “motivos, de facto e de direito, que fundamentam a sua decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção (…)”.

Ou seja, o Tribunal fundamenta a análise dos factos na íntima convicção que formou a partir do exame e ponderação das provas produzidas.

Posto isto, a convicção do Tribunal quanto à factualidade provada resultou da decomposição crítica e ponderada de todos os elementos probatórios produzidos e analisados em audiência de discussão e julgamento, designadamente:

Documentais:

- Auto de notícia por detenção de fls. 1 a 3; e - CRC do arguido de fls. 12 a 15;

Declaracionais:

- Declarações do arguido; e

- Prova testemunhal produzida.

Elementos probatórios que, conjugados e complementados com as regras do bom senso e da experiência comum, segundo juízos lógico-dedutivos, foram interpretados, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova (cfr. artigo 127.º do Código de Processo Penal).

Considera o Tribunal que a circunstância de a prova produzida em audiência de julgamento ter ficado gravada dispensa que aqui se recorde em detalhe as declarações nela prestadas, o que se consigna. Não obstante, concretizando o modo como se formou a convicção do julgador diremos o seguinte:

Declarações do arguido

Tendo prescindido ao exercício do direito legal de silêncio que lhe assiste quis o arguido AA prestar declarações em julgamento tendo, no essencial, confirmado as circunstâncias espácio-temporais descritas na acusação e admitido ter conduzido o veículo automóvel ali descrito pelo menos desde a Avenida … até às proximidades da sua residência sita na Rua …, explicitando que uma vez que só foi abordado pelo agente da PSP após ter estacionado a viatura, e já no exterior da mesma, estava plenamente convencido de que não tinha a obrigação de se submeter ao teste do álcool que lhe foi solicitado por aquele membro da autoridade. Mais admitiu que apesar de ter sido devidamente elucidado das consequências da sua recusa manteve-a, não por ter ingerido bebidas alcoólicas, mas por achar que tinha razão, tendo-lhe sido, nessa sequência, dada voz de detenção e sendo, inclusive, algemado e conduzido às instalações policiais, situação que, segundo afirmou, lhe provocou vergonha e humilhação por ter ocorrido junto à sua residência e perante olhares de terceiros (vizinhos e conhecidos). Mais referiu que, pese embora continuar a achar que a sua recusa era legítima, viria posteriormente a solicitar a realização do referido teste de alcoolemia sendo que tal já não lhe foi permitido.

Nesta sede, cumpre destacar a evidente falta de convicção do arguido aquando do relato que fez dos factos, não se denotando da linguagem verbal ou corporal qualquer tipo de indignação quanto ao sucedido, o que seria inevitável, caso estivesse a relatar uma situação efetivamente ocorrida, o que se teve por demonstrativo de que nada mais apresentou o arguido senão uma mera versão desculpabilizante dos factos, dirigida a enjeitar a sua responsabilidade.

Mais elucidou quanto ao seu atual contexto vivencial.

Considerando a versão exposta pelo arguido caberia à prova acusatória elucidar o Tribunal quanto à verificação dos factos não admitidos por aquele.

Prova testemunhal

No domínio declaracional acusatório contou o tribunal com o depoimento da testemunha DD, agente da P.S.P., o qual depôs de forma espontânea, assertiva e coerente, revelando conhecimento direto dos factos em questão, declarando que tomou conta da ocorrência que deu azo aos presentes autos e descrevendo a mesma e os factos em moldes coincidentes com aqueles que foram apresentados pelo Ministério Público, tendo prestado um depoimento que se teve por sério, objetivo e sobejamente descritivo e elucidativo, logrando descrever toda a dinâmica dos acontecimentos e, bem assim, almejando oferecer respostas sem qualquer tipo de hesitação às questões que lhe foram sendo colocadas. Assim, referiu o depoente que circulava em veículo policial em patrulhamento de rotina, fazendo-se acompanhar por outro colega de profissão, quando, avistou um veículo [… cinzento e matrícula terminada em …” (sic)] a circular na Avenida … com acelerações e elevado ruído de escape tendo decidido proceder à sua interceção. Mais esclareceu que após ter percorrido algumas das vias de trânsito daquela zona ribeirinha da cidade viria a localizar o referido veículo ainda em circulação na Rua … até o mesmo ali estacionar, verificando ser o arguido quem efetuava a condução da viatura e ato contínuo abordou-o solicitando-lhe, num primeiro momento, a habitual exibição de documentos (o que não foi voluntariamente satisfeito pelo arguido) e, em seguida, após denotar que o mesmo exalava forte odor a álcool e encontrava-se muito agitado ordenou-lhe a realização do teste de alcoolemia ao que este se recusou por mais do que uma vez mesmo depois de advertido das consequências penais da recusa, o que o arguido compreendeu, vindo, nessa sequência, a ser detido e conduzido às instalações da Esquadra de Intervenção e Fiscalização Policial de …, sem que alguma vez tenha acedido a realizar o mencionado teste ou solicitado, posteriormente à detenção, a sua realização.

Pela segurança e objetividade com que foi prestado mereceu tal depoimento inteira credibilidade por parte do julgador.

Já do depoimento da testemunha FF (amigo do arguido) pouco ou nada se serviu o julgador, uma vez que aquele não demonstrou qualquer conhecimento direto dos factos em apreço.

Por fim a testemunha GG (igualmente amigo do arguido) depôs em termos abonatórios da personalidade do arguido.

Contributos declaracionais que foram conjugados com a análise ao teor do auto de notícia de fls. 2 e 3 (no tocante às circunstâncias de tempo e lugar confirmadas pela testemunha DD, agente autuante, e pelas declarações do próprio arguido) e ao conteúdo do certificado de registo criminal do arguido que consta de fls. 12 a 15 dos autos.

Elementos que, conjugados entre si, serviram a prova positiva dos factos acima elencados [factos provados 1) a 8)] e, consequentemente, demonstram com suficiência a atitude ilícita por parte do arguido, consubstanciada na recusa de submissão ao teste de alcoolemia legalmente previsto e regularmente solicitado por autoridade policial competente para o efeito.

Por sua vez, resulta do circunstancialismo apurado e lido à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida que o arguido evidenciou perfeita consciência e vontade de praticar os factos supra descritos, tendo previsto e querido não acatar a ordem de submissão ao teste de pesquisa de álcool no sangue, que era legal, que provinha da autoridade competente, que lhe fora regularmente comunicada e devia acatar, com perfeito conhecimento de que recusando-se incorria na prática de um crime e bem sabendo ainda da censurabilidade e punibilidade da sua conduta, tendo a liberdade necessária para se conformar com essa atuação, razão pela qual se tem por demonstrada a matéria de facto contida nos pontos 9) a 11).

Quanto às condições socioeconómicas do arguido o Tribunal ateve-se às declarações que o próprio prestou em sede de audiência e julgamento, das quais não vislumbrou razões para duvidar [factos provados 12) a 16)].

Mais se teve em consideração, quanto aos antecedentes criminais do ora arguido, o teor do seu certificado de registo criminal junto aos autos [facto provado 17)].

Nos termos expostos, ponderando todos os elementos de prova referidos, analisados de forma crítica e ponderada, segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção do julgador, dúvidas não teve o Tribunal em considerar provados os factos nos termos consignados.”

* II.III - Apreciação do mérito do recurso.

B) Do erro de julgamento da matéria de facto, nos termos previsto no artigo 412º do CPP.

Os poderes de cognição dos Tribunais da Relação encontram-se expressamente consignados no artigo 428.º do CPP, dispondo o mesmo que “As Relações conhecem de facto e de direito”. Conforme decorre do disposto no artigo 412.º, nº 3.º do CPP, o erro de julgamento ocorre quando o tribunal considera provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova bastante, pelo que deveria ter sido considerado não provado; ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

O recorrente manifesta a sua discordância relativamente aos factos julgados provados na sentença recorrida, entendendo que deverão ser julgados não provados alguns deles (concretamente os constantes dos pontos 7., 10. e 11.) e que deverá alterar-se a redação de outros (concretamente os constantes dos pontos 1., 5., 6. e 9.). Contrariamente ao que parece estar pressuposto no modo como se encontra estruturada a impugnação da decisão de facto, importa ter presente que ao tribunal de recurso não cabe julgar novamente, devendo respeitar-se a liberdade de apreciação da prova que o legislador concedeu ao “juiz a quo”. Ou seja, o recurso não visa obter, na segunda instância, a repetição do julgamento, destinando-se antes a reparar erros de procedimento ou de julgamento da questão de facto, consubstanciando o que a que a doutrina e a jurisprudência vêm de designando de “remédio jurídico”.

Analisando a abordagem que o recorrente faz à matéria de facto, constatamos que o que o mesmo verdadeiramente questiona é o modo como o juiz de julgamento formou a sua convicção, entendendo que as provas que se referenciam na sentença como sustentadoras dessa convicção se revelam insuficientes para a sustentar, sendo certo que, para além das declarações do arguido, nenhuma prova indica, que tenha sido produzida nos autos, que imponha decisão diversa da que foi tomada pelo tribunal a quo. Estriba-se o recorrente na circunstância de não terem sido indicadas na acusação como testemunhas, nem terem sido oficiosamente convocadas para serem ouvidas em julgamento todas as pessoas que presenciaram a detenção, concretamente um outro agente da PSP, EE e outra pessoa, cujo nome o arguido afirmou desconhecer.

Constatamos, pois, que o recorrente, pese embora tenha identificado os factos que considera terem sido erradamente julgados, limitou-se depois a indicar, para sustentar a sua versão dos mesmos, as declarações do arguido e a falta de produção de outra prova, como se esta, não tendo sido requerida por qualquer um dos intervenientes processuais, inclusive pelo arguido, devesse obrigatoriamente ter sido produzida. Tal linha argumentativa apresenta-se, a nosso ver, e ressalvado o devido respeito, absolutamente equívoca.

Vejamos.

O que resulta da análise do processado é que em 25.10.2022, foi elaborado o auto de notícia que deu origem aos presentes autos, no qual o agente de autoridade autuante identificou o arguido, não tendo indicado qualquer testemunha. Em 26.10.2022 foi deduzida acusação, sob a forma de processo especial sumário, na qual foi indicada como testemunha o agente autuante.

Ora, contrariamente ao que afirma o arguido no recurso, sobre os agentes de autoridade não recai o dever de identificar e indicar no auto de notícia todas as pessoas que presenciaram os factos de que o auto pretende dar notícia. Nem vemos, aliás, como poderá o recorrente retirar tal obrigação das previsões dos artigos 53º e 55º do CPP que convoca para sustentar o seu argumentário e que estabelecem nos seguintes termos:

“Artigo 53.º

Posição e atribuições do Ministério Público no processo

1 - Compete ao Ministério Público, no processo penal, colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito, obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objetividade.

2 - Compete em especial ao Ministério Público:

a) Receber as denúncias, as queixas e as participações e apreciar o seguimento a dar-lhes;

b) Dirigir o inquérito;

c) Deduzir acusação e sustentá-la efectivamente na instrução e no julgamento;

d) Interpor recursos, ainda que no exclusivo interesse da defesa;

e) Promover a execução das penas e das medidas de segurança.

*

Artigo 55.º

Competência dos órgãos de polícia criminal

1 - Compete aos órgãos de polícia criminal coadjuvar as autoridades judiciárias com vista à realização das finalidades do processo.

2 - Compete em especial aos órgãos de polícia criminal, mesmo por iniciativa própria, colher notícia dos crimes e impedir quanto possível as suas consequências, descobrir os seus agentes e levar a cabo os actos necessários e urgentes destinados a assegurar os meios de prova.”

Trata-se de normas que regulam as atribuições do Ministério Público no processo e as competências dos órgãos de polícia criminal, nada impondo relativamente à identificação, delimitação ou amplitude das provas relevantes, quer no auto de notícia, quer na acusação. Do mesmo modo, o artigo 283.ºdo Código de Processo Penal não estatui a obrigação de se identificarem como testemunhas todos os indivíduos que presenciaram os factos narrados na peça acusatória.

Quanto à prova produzida, como sabemos, as divergências entre as declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas são naturais e comuns e a sua apreciação pelo tribunal a quo beneficia da imediação, que se não encontra ao alcance do tribunal de recurso, sendo que aquele valorou tais divergências e, bem assim, o circunstancialismo em que as mesmas ocorreram, nos termos que deixou vertidos na motivação da decisão de facto. Efetivamente, o tribunal a quo justificou o seu convencimento relativamente ao quadro factológico que julgou provado, indicando não só concretamente as provas nas quais se arrimou, como também as razões que justificaram esse seu convencimento. Não se tratou, pois, de uma apreciação arbitrária, discricionária ou baseada em meras impressões geradas no espírito do julgador, tendo antes assentado em critérios valorativos baseados na lógica e nas regras da experiência supostas pela ordem jurídica. Como assinala Figueiredo Dias (1), a convicção do juiz há-de ser uma convicção pessoal – até porque nela desempenha um papel de relevo não só a atividade meramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova), e mesmo puramente emocionais – mas, em todo o caso, também ela uma convicção objetivável e motivável, capaz de se impor aos outros, o que in casu, se verificou.

E a verdade é que o recorrente não indica qualquer prova constante dos autos que possa consistentemente contrariar aquelas em que o tribunal a quo firmou a sua convicção, nem alegou quaisquer incorreções, vícios, discrepâncias ou contradições que pudessem pôr em causa as operações de valoração das provas ou os raciocínios lógicos expostos na motivação respetiva. Não alegou igualmente o recorrente ter o tribunal considerado qualquer prova proibida, tendo-se limitado, de outra sorte, a manifestar no recurso sua própria convicção que pretende fazer sobrepor à convicção formada pelo tribunal recorrido. Porém, não basta sustentar que a análise e valoração não é a mais adequada. Para que procedesse a impugnação da matéria de facto, seria antes necessário demonstrar que a análise das provas, efetuada à luz das regras da experiência comum, não consentia a decisão do tribunal recorrido quanto à fixação do acervo factológico constante da sentença. E, como vimos já, tal não sucede na situação dos autos. Comungamos, pois, da convicção exposta na sentença no sentido de entender que a prova documental e testemunhal produzida nos autos se revelou idónea e suficiente para sustentar a convicção probatória relativamente a todos os factos tidos por provados, restando concluir que as circunstâncias reveladas pela prova existente no processo e enunciadas na sentença recorrida permitem concluir que o arguido foi o autor da atuação ilícita ali descrita, improcedendo a tese propugnada no recurso quanto à impugnação da matéria de facto.

Deverão, pois, manter-se nos factos provados, com a redação que deles consta, os factos impugnados pelo recorrente, nenhuma censura nos merecendo o juízo probatório realizado pelo tribunal “a quo” e improcedendo totalmente este fundamento do recurso.

* B) Do erro de julgamento em matéria de direito

Quanto às questões de direito, descortinamos no recurso três pontos de discordância sustentadores do erro de julgamento invocado pelo recorrente, a saber: a) Erro sobre as circunstâncias de facto previsto no artigo 16º do CP; b) Falta de legitimidade da ordem de submissão ao teste de pesquisa de álcool no sangue e consequente legitimidade da recusa do seu cumprimento por parte do arguido em virtude de o mesmo não ser condutor. c) Desistência relevante, nos termos previstos no artigo 24º do CP;

Porém, a nosso ver, não lhe assiste razão relativamente a nenhum dos identificados pontos. Vejamos porquê. Importa antes de mais ter em conta que o recorrente faz assentar a sua discordância relativamente ao decidido quanto à matéria de direito na impugnação da matéria de facto (2), que como vimos, não mereceu procedência. Daqui decorre, pois, que o argumentário constante do recurso relativamente às questões de natureza jurídica que acima enunciámos, tendo-se mantido inalterado o elenco dos factos provados (concretamente os pontos 5. a 11.), perderá necessariamente sustentação, pelo menos no que tange aos dois primeiros pontos – erro sobre as circunstâncias de facto previsto no artigo 16º do CP e desistência relevante, nos termos previstos no artigo 24º do CP. De todo o modo, sempre se dirá relativamente à linha argumentativa do recorrente, que a mesma não merece nem mereceria procedência.

a)Do alegado erro sobre as circunstâncias de facto previsto no artigo 16º do CP. Defende o recorrente a este propósito que: “(…)B1) Do não preenchimento do elemento subjetivo do crime de desobediência por falta de consciência da ilicitude: 79. Alterados que sejam os pontos 6), 7), 9), 10) e 11) da matéria de facto provada, verifica-se que o arguido agiu sem ter consciência da ilicitude da sua conduta. 80.A este propósito, dispõe o artigo 16.º, n.º 1 do Código Penal: “O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo.” 81.Ou seja, caso se considere a ordem emanada pela autoridade policial foi efetivamente legítima – o que não se concede – então a verdade é que o arguido, estando convicto que, por estar estacionado e se dirigir para casa, não estava obrigado a realizar o teste, encontrava-se, de facto, em erro sobre os elementos de direito do tipo incriminador. 82.Ao estar em erro na aceção do artigo 16.º, n.º 1 do Código Penal, tal exclui o dolo. 83.Por conseguinte, excluído o dolo, conclui-se que não se encontra preenchido o tipo de crime subjetivo, na estrita medida em que a ordem emanada era, para o arguido, ilegítima. 84.Julgando ser ilegítima, o arguido fez o que manda a Constituição da República Portuguesa no seu artigo 21.º. 85.Ou seja, resistiu. 86.Não podendo, por isso, ser punido. 87.Devendo a falta de preenchimento do tipo subjetivo ser relevada e em consequência, ser o arguido absolvido da prática do crime pelo qual foi condenado. (…)” Reiteramos que, pelas razões acima expostas e ao contrário do que pressupõe o arguido nesta parte do recurso, não se alteraram os factos constantes dos pontos 6), 7), 9), 10) e 11) da matéria de facto provada. De todo o modo, porque a exposição do recorrente que acabámos de transcrever convoca a falta de consciência da ilicitude decorrente do erro sobre as circunstâncias de facto previsto no artigo 16º do CP, impõe-se precisar os respetivos conceitos jurídicos para se explicar por que razão a situação dos autos se não subsume a tal norma legal.

Acompanhando a jurisprudência nacional largamente maioritária (3), entendemos que nas situações reportadas ao direito penal clássico, a consciência da ilicitude resulta implicitamente dos elementos subjetivos do tipo. E a tal solução se chega, de forma simples e linear, pela interpretação das normas penais que, incluídas no Capítulo dos “Pressupostos da punição”, se reportam aos elementos subjetivos do tipo e à falta de consciência da ilicitude – artigos 13º a 15º e 17º do CP. De tais normas legais, analisadas à luz da conceção tripartida do crime (facto típico, ilícito e culposo) acolhida no nosso Código Penal, decorre que:

- São apenas dois os elementos que compõem o dolo (sendo este o elemento subjetivo do tipo que “in casu” releva), uma vez que o artigo 14º do CP o define como correspondendo ao conhecimento e vontade de realização do facto que preenche os elementos típicos objetivos do crime, descortinando-se em tal definição apenas o elemento cognitivo e o elemento volitivo.

- A consciência da ilicitude não encontra qualquer referência no artigo 14º do CP, precisamente porque a mesma se reporta à culpa e não ao dolo (4), encontrando-se, pois, prevista autonomamente como causa de exclusão da culpa no artigo 17º nº1 do CP. (5)

- A consciência da ilicitude assume autonomia apenas nos casos em que se discuta a sua falta, ou seja, sempre que, atendendo à natureza do crime – não se incluindo este nos crimes de direito penal clássico nos quais a referida consciência está implícita no preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo, em especial do dolo – se encontre controvertida a verificação de tal elemento enquanto causa de exclusão da culpa, nos termos estabelecidos pelo 17º do C.P.

Na verdade, nos chamados crimes de direito penal clássico (6), ou seja, nos crimes cuja existência se presume conhecida da normalidade dos cidadãos – como sucede no crime de desobediência pelo qual o arguido recorrente foi condenado nos presentes autos – e aos quais se reporta o artigo 17º do CP, a consciência da ilicitude decorre da própria representação e vontade de praticar os factos que preenchem objetivamente o tipo penal. Nesses casos, como

bem se compreende, inexiste necessidade de autonomamente se provar em julgamento que o arguido estava consciente da ilicitude da sua conduta.

Tal necessidade surgirá apenas nos crimes relativamente aos quais – quer por lhes não estar associada grande relevância axiológica, quer por consubstanciarem incriminações recentes ainda não enraizadas na consciência comunitária e nas práticas sociais – seja aceitável o desconhecimento da sua previsão legal. Quanto a estes, porém – nos quais, seguramente, se não inclui o crime da condenação dos presentes autos – o erro sobre a proibição encontra-se previsto no artigo 16º nº1, 2ª parte do CP e aí é tratado não como uma falta da consciência da ilicitude, mas antes como uma questão de “erro sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da licitude do facto”. Ou seja, nos crimes em que a consciência da ilicitude se não pode presumir por associada ao dolo, o legislador previu o erro sobre a proibição como se se tratasse de um erro sobre os elementos de facto, pelo que a sua verificação exclui o dolo e não a ilicitude. Esta a razão pela qual, em tais situações – diferentemente do que sucede com a consciência da ilicitude – se exige a sua prova autónoma em julgamento, juntamente com os demais factos que integram o dolo do tipo, pois que, tal como se refere no acórdão desta Relação de 06.02.2018, relatado pelo Desembargador António Latas, acima referenciado (7), só assim o dolo “ficará completo enquanto pressuposto da consciência da ilicitude (…) ou seja, (…) nestes casos só a alegação e prova de que o arguido conhecia a proibição violada (pressuposto da consciência da ilicitude, mas que não se confunde com ela) permite afirmar que o arguido agiu dolosamente.(…)”

Ora, no caso dos autos, tratando-se o crime de desobediência, pelo qual o arguido foi condenado, de um crime de direito penal clássico, cuja existência e respetivos elementos integradores se presumem conhecidos da normalidade dos cidadãos e, portanto, também do arguido, a consciência da ilicitude decorre da própria representação e vontade de praticar os factos que preenchem objetivamente o tipo penal, encontrando-se pois associada ao dolo. E nem se diga, como afirma o recorrente, que o mesmo agiu sempre convencido de que não se encontrava obrigado a realizar o teste de pesquisa de álcool no sangue porquanto já não se encontrava a conduzir no momento em que foi intercetado, pelo que estaria em erro sobre a proibição cujo conhecimento seria indispensável para que pudesse tomar consciência da licitude do facto, nos termos previstos no artigo 16º, nº 1, 2ª parte do CP. Conforme analisaremos no ponto subsequente, nenhuma razoabilidade assume tal alegação.

b) Da falta de legitimidade da ordem de submissão ao teste de pesquisa de álcool no sangue e consequente legitimidade da recusa do seu cumprimento por parte do arguido em virtude de o mesmo não ser condutor.

Estriba o recorrente a sua defesa quanto a este ponto na tese de que estaria convicto da ilegalidade da ordem que lhe fora dada pelos agentes da PSP para se submeter ao teste de fiscalização de alcoolemia uma vez que, quando foi interpelado, tinha acabado de estacionar o seu veículo automóvel à porta da sua residência, pelo que, não se encontrando a conduzir no momento em que a ordem lhe foi transmitida, não deveria considerar-se abrangido pela noção legal de “condutor”. Não lhe assiste, todavia, razão, falecendo absolutamente a prova do invocado erro.

Conforme resulta da factualidade provada, concretamente dos pontos 1. e 2., o arguido foi visto a conduzir o seu veículo automóvel imediatamente antes de o ter estacionado e de ter sido abordado pelo agente da P.S.P. DD que, para além de lhe ter solicitado os documentos da viatura, lhe ordenou que se submetesse ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado para detetar eventual álcool no sangue. (8) Dúvidas não restam, pois, a nosso ver, de que, nas circunstâncias tidas por provadas, o arguido se incluía na noção do condutor subjacente à previsão do artigo 152º do CE (9), assumindo, a sua conduta relevância criminal com subsunção ao tipo legal da desobediência p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al, a), do CP, atendendo à legitimidade da ordem que se recusou a cumprir. Outra interpretação, que passasse por associar o conceito de condutor ao exercício da condução no preciso momento da abordagem policial, conforme propugna o arguido no recurso, abriria caminho a incompreensíveis situações de impunidade, designadamente nos casos em que, sabendo que haviam sido vistos a conduzir pelos agentes de autoridade, os condutores, visando fugir à justiça, encetassem uma fuga e viessem a ser intercetados após perseguição policial, quando já se encontrassem fora do veículo.

Não é seguramente esse o sentido da previsão legal de condutor que releva para efeitos penais, mas sim o que decorre do facto de ter existido condução, sendo certo que o que legitima a ordem de submissão ao teste de pesquisa de álcool no sangue é a circunstância de tal condução ter sido presenciada pelos agentes de autoridade no momento da abordagem ou em momento imediatamente anterior. É esta a noção de condutor, para efeitos de crimes rodoviários, que tem vindo a ser defendida pela jurisprudência e que seguimos convictamente. (10) Uma breve referência à convocação no recurso do Regulamento CEE 561/2006 do Parlamento Europeu de 14 de março de 2006 para do mesmo se extrair a noção de condutor relevante para efeitos penais, apenas para dizer que subscrevemos inteiramente, a este propósito, a posição defendida pelo Ministério Público na resposta ao recurso, nos termos da qual tal normativo da União Europeia tem por objetivo regulamentar e harmonizar ao nível europeu o transporte de passageiros, de mercadorias e, bem assim, o tempo de repouso dos motoristas de transporte no seio do espaço comunitário, não assumindo relevância para efeitos de definição de conceitos no âmbito da criminalidade rodoviária prevista no Código Penal (11).

Alega-se ainda no recurso, para sustentar a não integração do arguido no conceito de condutor, que:

“(…) Note-se que o artigo [152º do CE] apenas se refere aos “condutores” e “aqueles que se prepuserem a iniciar a condução”

123. Em contrapartida, deixa de fora os que, não sendo condutores, acabaram de conduzir.

124. Tal justifica-se pelo facto de, no âmbito dos ilícitos rodoviários, estar em causa uma situação de criação de perigo concreto.

125. Ou seja, o legislador entende que o que está em causa é a prevenção de condutas aptas a produzir determinado risco.

126. Por isso é que sujeita os condutores e os que se preparam para conduzir à obrigação de se submeter ao teste, por entender que quem se encontra, naquele momento, a conduzir e quem ainda vai conduzir deve ser inspeccionado, para, numa lógica preventiva, evitar o risco causado pela condução sob efeito do álcool.

127. Por seu turno, aquele que acabou de conduzir já não representa qualquer perigo rodoviário, uma vez que, já não vai circular na estrada.

128. Nesse caso, não existe a criação de nenhum perigo que a lei pretenda prevenir.

129. Motivo pelo qual o artigo 152.º, n.º 1 do Código da Estrada interpretado à contrario, não obriga à submissão ao teste de álcool daquele que acabou de conduzir.(…)”

Nada de mais falacioso!

Ao contrário do que afirma o recorrente, a previsão do artigo 152º, nº 1 do CE não deixa de fora os que acabaram de conduzir, antes inclui os que acabaram de conduzir no conceito de condutores previsto na alínea a).

Absolutamente destituída de razoabilidade se nos afigura ser também a alegação do recorrente no sentido de que, estando em causa no âmbito dos ilícitos rodoviários, “uma situação de criação de perigo concreto”, o legislador pretendeu apenas incluir na previsão do artigo 152º, nº 1 do CE, as condutas aptas a produzir determinado risco, sendo que aquele que acabou de conduzir já não representa qualquer perigo rodoviário, uma vez que já não vai circular na estrada, pelo que se encontrará excluído de tal previsão.

Olvida o recorrente que o teste de pesquisa de álcool no sangue que os condutores se encontram obrigados a realizar constitui o meio de prova adequado da prática de eventual crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. no artigo 292º do CP, através do qual – para além de se visar eliminar o risco imediato de perigo rodoviário decorrente da verificação de uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, prevendo a lei que, em tal situação, o agente ficará imediatamente impedido de conduzir – se pretende punir os condutores que, tendo conduzido sob efeito do álcool, criaram situações de perigo.

Assim, tendo existido condução efetiva – o que no caso dos autos, para além de ter sido constatado pelo agente de autoridade, foi também admitido pelo arguido – encontra-se legitimada a investigação da prática do aludido crime de condução de veículo em estado de embriaguez, revelando-se absolutamente irrelevante que o condutor ainda esteja dentro do veículo e seja mandado parar ou que tenha parado de sua iniciativa e estacionado o veículo imediatamente a seguir à condução presenciada pelo agente de autoridade. Sendo incontornável que o agente conduziu, importa apurar se o fez sob o estado de influenciado pelo álcool. Vale tanto por dizer que em ambas as situações acima referenciadas o artigo 152º, nº 1 al. a) e nº 3 do CE prevê que os condutores que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool são punidos por crime de desobediência. Tal crime encontra-se previsto e punido pelo artigo 348º, nº 1, al. a) do CP, no mesmo se protegendo, à semelhança dos demais crimes contra a autoridade pública, a autonomia intencional do Estado (12) e nenhuma dúvida existindo de que o arguido incorreu na sua prática.

* c) Da desistência relevante, nos termos previstos no artigo 24º do CP

No que concerne ao último ponto de discordância do recorrente relativamente ao decidido na sentença em matéria de direito, ou seja, quanto à invocada desistência relevante, novamente lhe não assiste razão.

Alega o recorrente que o pedido para ser submetido ao teste de pesquisa de álcool no sangue que, após ter sido algemado e detido pela prática do crime de desobediência, afirma ter efetuado ao agente da PSP EE - o que, como vimos já, não resultou provado - configuraria uma desistência relevante, nos termos previstos no artigo 24.º do Código Penal, concluindo assim pela não punibilidade da sua conduta.

Contrariamente a tal alegação, e conforme bem faz notar o Ministério Público na sua resposta ao recurso, ainda que tal factualidade tivesse sido dada como provada, o que não sucedeu, a mesma não poria em causa a prática pelo arguido do crime de desobediência pelo qual foi condenado, pois que o mencionado pedido de realização do teste de pesquisa de álcool no sangue, a ter existido, teria ocorrido em momento posterior ao da consumação do aludido crime. Tal como expressamente consta do elenco dos factos provados, não obstante ter sido advertido, por diversas vezes, pelo agente de autoridade que o fiscalizava que, no caso de se recusar a submeter-se ao aludido exame de pesquisa de álcool, incorreria na prática de um crime de desobediência, o arguido recusou-se reiteradamente a efetuar o sobredito exame, tendo-se consumado com tal recusa a prática do crime de desobediência e revelando-se irrelevante se algum tempo depois, conforme pelo mesmo alegado, o arguido se dispôs a fazer o teste que num primeiro momento recusara realizar. Foi, aliás, a consumação de tal crime que motivou a detenção do arguido, sendo certo que a alegada manifestação de vontade por parte daquele para se submeter ao deste de alcoolemia, teria ocorrido, na versão apresentada no recurso, após a detenção e algemagem.

Ante o exposto, é manifesta a não subsunção da situação dos autos ao disposto no artigo 24º, nº 1 do CP (13), no qual se prevê que a tentativa deixa de ser punível quando o agente voluntariamente desistir de prosseguir na execução do crime, ou impedir a consumação (14).

No que diz respeito ao momento da consumação do crime de desobediência, a larga maioria da jurisprudência dos nossos tribunais superiores tem vindo a decidir no sentido em que agora decidimos. Citamos a este propósito, pela sua assertividade e clareza, o acórdão desta Relação de 08.03.2016, relatado pelo Desembargador Fernando Ribeiro Cardoso, em cujo sumário podemos ler:

“I – O exame de pesquisa de álcool no sangue deve ser efetuado pelos condutores a quem as autoridades policiais o solicitem e quando estas o solicitem, e não quando os condutores entendam submeter-se a tal exame.

II - Consumada a recusa em submeter-se ao teste quantitativo para determinação da TAS no sangue, que levou à detenção do arguido, e elaborado o respetivo auto, a sua ulterior manifestação de vontade no sentido de aceitar a realização do teste, é extemporânea e, por isso, não podia deixar de ser recusada.” (15)

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Deixamos finamente uma última nota relativamente à convocação pelo arguido do direito de resistência com assento constitucional do artigo 21º da CRP, apenas para referir que a mesma se revela totalmente desadequada, pois que, considerando o contexto situacional em que os factos ocorreram e, bem assim, a referida previsão constitucional (16), nem o agente de autoridade deu ao arguido qualquer ordem que ofendesse os seus direitos, liberdades e garantias nem o agrediu de qualquer modo, tendo-se limitado a mandá-lo realizar o teste de pesquisa de álcool no sangue, no âmbito de uma fiscalização de trânsito, em virtude de o ter visto conduzir.

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Estas as razões pelas quais falece totalmente a argumentação do recorrente, quer no que diz respeito à impugnação da matéria de facto, quer no que tange às questões de natureza jurídica apresentadas em conexão com a mencionada impugnação, pelo que o recurso improcederá.

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III- Dispositivo.

Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, em confirmar integralmente a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais).

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelas signatárias)

Évora, 28 de março de 2023

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

Maria Margarida Bacelar

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1 Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 204 e ss.

2 O que inequivocamente decorre do alegado nos seguintes pontos da motivação de recurso: “Perante os já apontados erros na apreciação da matéria de facto por parte do tribunal a quo, necessariamente decorre que a subsunção dos mesmos às normas jurídicas aplicáveis encontra-se igualmente errada.

74.Em primeiro lugar, desde logo, porque não foram corretamente apreciadas, do ponto de vista jurídico, circunstâncias factuais que excluem a responsabilidade criminal do arguido.

75.Designadamente a existência de causa de exclusão do dolo decorrente da falta de consciência da ilicitude.

76.Assim como a existência de causa de exclusão da punibilidade, traduzida na desistência da sua recusa em praticar o ato alegadamente ilícito.

77.Sendo certo que, ainda que, quanto à desistência esta seja dada como não provada, sempre haverá que apreciar a aplicação do princípio in dubio pro reo.”

3 Neste sentido – a propósito da desnecessidade de se incluir expressamente a consciência da ilicitude na acusação – se pronunciaram, entre outros os seguintes acórdãos desta Relação: acórdãos de 10.01.2017 e de 26.06.2018, ambos relatados pelo Desembargador Sérgio Corvacho; acórdão de 19.12.2018, relatado pelo Desembargador Renato Barroso; acórdão de 12.03.2019, relatado pelo Desembargador António João Latas; acórdão de 26.10.2021, relatado pela Desembargadora Beatriz Marques Borges (subscrito pela signatária como adjunta); acórdão de 24.05.2022, relatado pela Desembargadora Maria Margarida Bacelar; acórdão de 11.10.2022, relatado pelo Desembargador João Carrola e acórdão de 10.01.2023, relatado pelo Desembargador Moreira das Neves (subscrito pela signatária como adjunta). No mesmo sentido decidiram também, entre outros, os acórdãos da Relação do Porto, de 12.07.2017, relatado pela Desembargadora Maria Dolores da Silva e Sousa e de 26.05.2022, relatado pelo Desembargador José Carreto, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

4 Diferentemente, a exclusão do dolo opera nas situações em que o agente se encontra em erro sobre as circunstâncias de facto, nos termos previstos no artigo 16º do CP.

5 Contrariamente ao defendido na doutrina do causalismo clássico, que colocava a consciência da ilicitude no dolo (dolo do tipo) e que, atendendo à opção legislativa acima explicitada, não é compatível com o direito penal português atual.

6 Também chamados de “crimes naturais” ou “crimes em si”.

7 Acórdão que contém uma ampla e clara exposição da matéria que agora nos ocupa e cujo posicionamento sufragamos integralmente.

8 “1) No dia 25 de outubro de 2022, pelas 22h40m, na Rua …, em …, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula …, quando, imediatamente após ter parqueado o veículo, foi abordado pelo agente da P.S.P. DD que lhe solicitou os documentos da viatura.

2) No decurso de tal abordagem policial, por suspeitar que aquele estaria sob o efeito de álcool, o mencionado agente da P.S.P. ordenou ao arguido que se submetesse ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado para detetar eventual álcool no sangue.”

9 Norma que dispõe da seguinte forma: “1 - Devem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas:

a) Os condutores;

b) Os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito;

c) As pessoas que se propuserem iniciar a condução.”

10 Neste sentido, se pronunciaram, entre outros, o acórdão desta Relação, de 10.01.2017, relatado pelo Desembargador Sérgio Corvacho e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 06.05.2020, relatado pela Desembargadora Relatora Helena Bolieiro, ambos citados também pelo Ministério Público na resposta ao recurso e disponíveis em www.dgsi.pt.

11 Podemos ler na referenciada resposta ao recurso: “(…) 67. Alegou o Arguido/Recorrente que um condutor que acaba de estacionar e sair do seu veículo automóvel à porta da sua residência já não é condutor, nos termos previstos pelo artigo 152.º do Código da Estrada e nos termos do Regulamento CEE 561/2006 do Parlamento Europeu de 14 de março de 2006 e, por isso, o arguido não sendo condutor, já não estaria obrigado a submeter-se ao teste de alcoolemia, sendo a ordem dos agentes da PSP, ilegítima e a recusa do arguido enquadrável nos termos do disposto no artigo 21.º da Constituição da República;

68. Reportando-nos a noção de condutor invocado pelo Regulamento CEE 561/2006 do Parlamento Europeu de 14 de março de 2006, relativo à harmonização de determinadas disposições em matéria social no domínio dos transportes rodoviários, este normativo da União Europeia não é suscetível de se aplicar aos presentes autos, uma vez que o referido Regulamento tem por objetivo regulamentar e harmonizar ao nível europeu o transporte de passageiros, mercadorias, o tempo de repouso dos motoristas de transporte, no seio do espaço comunitário, não sendo relevante para efeitos de criminalidade rodoviária e ao abrigo do Código Penal.(…)”.

12 Vide Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora 2001, página 350.

13 É a seguinte a redação do preceito em causa:

“Artigo 24.º

Desistência

1 - A tentativa deixa de ser punível quando o agente voluntariamente desistir de prosseguir na execução do crime, ou impedir a consumação, ou, não obstante a consumação, impedir a verificação do resultado não compreendido no tipo de crime.

2 - Quando a consumação ou a verificação do resultado forem impedidas por facto independente da conduta do desistente, a tentativa não é punível se este se esforçar seriamente por evitar uma ou outra.”

14 Sendo certo que a última preposição do nº 1 do artigo 24º do CP nunca teria aplicação à situação vertente, pois que, ainda que o arguido se tivesse disponibilizado para realizar o teste em momento subsequente à consumação, tal conduta não teria impedido a verificação de qualquer resultado não compreendido no tipo de crime.

15 E também os acórdãos desta Relação, de 14.06.2011, relatado pelo Desembargador João Gomes Sousa (citado pelo Ministério Público na sua resposta ao recurso) e de 25.10.2022, relatado pelo Desembargador Edgar Valente e acórdão da Relação do Porto de 26.10.2016, relatado pelo Desembargador João Pedro Nunes Maldonado, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

16 “Artigo 21.º (Direito de resistência) Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.”