EMBARGOS DE EXECUTADO
LIVRANÇA
MORTE
AVALISTA
RESPONSABILIDADE
HERDEIRO
Sumário

O facto de o vencimento duma livrança ter ocorrido, muito posteriormente à morte do respectivo avalista, de quem os embargantes são herdeiros, não os desresponsabiliza da obrigação cambiária por aquele, validamente, contraída.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1 – B.........., C.........., D.......... e E.......... (todos F..........), G.......... e H.......... (ambas I..........) deduziram, em 16.09.03, embargos de executado à execução ordinária nº ..../03, contra si instaurada, no Tribunal Cível do Porto (com distribuição ao .. Juízo/.. Secção), por “Banco X.........., S.A.”, pedindo que, na procedência dos embargos, seja declarada extinta a execução.
Fundamentando a respectiva pretensão, alegaram, em resumo e essência, que:
- A quantia peticionada não é devida pelo falecido J.........., uma vez que o embargado, ao excluir da reclamação que apresentou no âmbito do inventário que corre termos pela .. Secção da .. Vara Cível do Porto, sob o nº ..../99, o montante cujo pagamento pede através da presente execução, reconheceu a inexistência da mencionada dívida;
- O avalista faleceu, em 02.04.99, numa altura em que, de acordo com o título dado à execução, não se tinha ainda vencido qualquer dívida ao embargado;
- Tendo a livrança sido preenchida após a morte do seu avalista, o respectivo preenchimento é nulo e de nenhum efeito; e
- O falecido J.......... não era pessoalmente devedor da quantia peticionada pelo embargado.
Na respectiva contestação, alegou a embargada, em resumo e essência, que a dívida foi contraída em vida de J.......... e que este avalizou a livrança, razão pela qual responde solidariamente pelo seu pagamento.
Foi, de seguida, proferido douto despacho saneador – sentença que julgou improcedentes os embargos, com o inerente prosseguimento da execução.
Inconformados, apelaram os embargantes, visando a revogação da decisão recorrida e inerente procedência dos embargos, conforme alegações culminadas com a formulação das seguintes conclusões:

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1ª - Existem factos, para além daqueles que serviram de suporte à decisão do M.mo Juiz “a quo”, que resultam provados nos autos e que são relevantes para a boa decisão da causa (Cfr. arts. 10º e 14º da petição de embargos);
2ª - Ao desconsiderar semelhante factualidade, o M.mo Juiz “a quo” violou o disposto nos arts. 264º, 508º-A, nº1, al. e), 508º-B, nº2, 510º e 511º, todos do CPC;
3ª - Acresce, por outro lado, que o M.mo Juiz “a quo”, não obstante ter dado como reproduzidos todos os documentos juntos pelos recorrentes (Cfr. al. D) dos factos assentes), não tomou em consideração importantes factos que os mesmos comprovam, com o que violou o disposto nos mesmos supra referidos arts.;
4ª - O Tribunal “a quo” desconsiderou também um facto controvertido da maior importância, por entender, erradamente e sem base legal e/ou factual, que “da leitura dos documentos juntos pelos embargantes resulta que o embargado excluiu a aludida dívida da reclamação de créditos porque a mesma está a ser discutida nestes autos (...)”;
5ª - Tal matéria deveria, antes, ter sido levada à base instrutória. Ao não o fazer, decidindo, desde logo, do mérito da causa, o M.mo Juiz “a quo” violou o disposto nos arts. mencionados na conclusão 2ª (supra) e no art. 265º, nº3 do mesmo CPC; Sem prescindir, e quanto à questão de direito:
6ª - O avalista responde na hipótese de o credor o exigir, “sem poder invocar os meios de defesa do avalizado, excepto o cumprimento e os vícios de forma do respectivo título” – Cfr. art. 32º da L.U.L.L.;
7ª - Os recorrentes não aceitam a extrapolação que o M.mo Juiz “a quo” faz a partir desta premissa, considerando que os embargantes apenas poderiam invocar em sua defesa “o vício de forma e o cumprimento da obrigação”;
8ª - Com efeito, os meios de defesa referidos no art. 32º da L.U.L.L. como estando ao alcance do avalista têm que ser entendidos com referência apenas aos meios de defesa que o avalizado tem também ao seu dispor. Isto é, o princípio geral em matéria de aval é o de que o avalista não se pode prevalecer dos meios de defesa do avalizado, excepto nas duas situações referidas no nº2 do art. 32º da L.U.L.L.;
9ª - Ao julgar improcedentes as excepções invocadas, o M.mo Juiz “a quo” violou, pois, o art. 32º da L.U.L.L.;
10ª - Também não se diga, “à sobreposse”, como refere a douta decisão recorrida, que os recorrentes não invocam na sua petição factos concretos que impeçam, modifiquem ou extingam o direito do recorrido (Cfr. antecedentes conclusões e, bem assim, os arts. 1º a 6º, 13º, 14º e 15º da petição de embargos);
11ª - E, ainda que assim não fosse, o que não se concede, sempre deveria o M.mo Juiz “a quo” ter usado do poder-dever que lhe é conferido pelo art. 508º, nº3, do CPC, o que não fez;
12ª - Os recorrentes entendem que não é admissível o renascimento da responsabilidade pessoal do falecido J.......... pelas dívidas da sociedade de que era sócio e administrador quando, após o dia 02.04.99, data da sua morte, os saldos das contas bancárias da sociedade “L.........., S.A.” chegaram a ser positivos ou iguais a zero! Ou seja, e a determinada altura após 02.04.99, a própria sociedade chegou a ser credora do recorrido!
13ª - Tendo, portanto, a “L.........., S. A.” continuado o seu giro comercial após a morte do avalista, e não tendo o banco embargado exigido novas garantias, não pode, depois, sob pena de abuso de direito, fazer uso de documentos subscritos em vida pelo avalista para o responsabilizar por dívidas que se venceram e surgiram depois do seu falecimento.
Contra-alegando, defende a apelada a manutenção do julgado.
Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.
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2 – Na decisão apelada, tiveram-se por assentes os seguintes factos:
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a) – A exequente é portadora de uma livrança, subscrita, no seu verso, por J.........., na qualidade de avalista, a qual titula o montante de € 4.963,60 (Esc. 995.133$00), com a data de emissão de 90.09.19 e com vencimento em 2002.12.30 (A);
b) – J.......... faleceu, em 1999.04.02, e deixou como herdeiros os executados (B);
c) – Os executados não pagaram o valor titulado pela livrança, na data do seu vencimento, nem posteriormente (C);
d) – Tido por reproduzido o teor dos documentos juntos pelos embargantes.
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3 – Como é sabido, são as conclusões das alegações formuladas pelo recorrente que, com excepção das meras razões de direito e das questões de oficioso conhecimento, delimitam o âmbito e objecto do respectivo recurso (arts. 660º, nº2, 664º, 684º, nº3 e 690º, nº1, todos do CPC – como os que, sem menção da respectiva origem, vierem a ser citados).
Assim, são as seguintes as questões suscitadas pelos apelantes e que demandam apreciação e decisão por parte deste Tribunal de recurso:
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I – Se, para além da matéria de facto tida por assente, na decisão apelada, deveria ter sido reputada relevante para a decisão de mérito a remanescente factualidade alegada pelos embargantes, devendo, correspondentemente e com tal fito, ter sido organizada a pertinente base instrutória;
II – Se desresponsabiliza, cambiariamente, os embargantes o facto de o vencimento da livrança dada à execução ocorrer, posteriormente à data do decesso do respectivo avalista, de quem aqueles são herdeiros;
III – Se, com a instauração da execução embargada, a exequente incorreu em exercício abusivo do respectivo direito.
Vejamos.
4 – I - Como decorre do art. 17º (aplicável por força do art. 77º, ambos da L.U.L.L.), em princípio, só no âmbito das denominadas relações imediatas – as existentes entre os obrigados cambiários que se encontram ligados pela relação subjacente (Cfr. Pedro de Vasconcelos – “Direito Comercial, Títulos de Crédito”, págs. 37) é possível discutir a relação fundamental, lançando-se mão de toda e qualquer defesa, tudo se passando, então, como no regime comum das obrigações, ou seja, como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta (Cfr. Prof. Ferrer Correia, in “Letra de Câmbio”, págs. 87).
Não sendo o avalista sujeito da relação subjacente à emissão da livrança, não pode o mesmo deduzir defesa ou oposição à respectiva execução, com base na relação fundamental, a que é alheio.
É certo que o aval, como os outros actos cambiários, tem uma relação subjacente, a qual, todavia, é constituída pela relação jurídica que funda a prestação do aval e só pode ser invocada, obviamente, nas relações entre o avalista e o avalizado (Pedro de Vasconcelos, Ob. citada, págs. 128). Daí que, como sustenta Paulo Sendim (“Letra de Câmbio”, Vol. II, págs. 842), “o adquirente da letra, mesmo como portador imediato, em relação à operação avalizada, está sempre em situação de portador mediato, face ao seu aval, que o garante com um valor patrimonial correspondente, mas independente, livre das excepções que, porventura, se formem na operação garantida”.
Não pode, pois, o avalista (e, por extensão, os embargantes-herdeiros, seus “representantes”) deduzir oposição à execução, invocando defesa que só poderia ser oposta, no domínio das relações imediatas existentes entre a exequente – portadora da livrança em causa e a respectiva subscritora (“L.........., S.A.”), precisamente por não ser sujeito da relação material respectiva (“res inter alios acta”), não havendo, assim, a exigida ligação imediata entre ele e a portadora da livrança, necessária à justificação dessa atitude. É que, como sustenta o Prof. Ferrer Correia (Ob. citada, págs. 207), além de não ser subsidiária, a obrigação do avalista não é senão imperfeitamente uma obrigação acessória relativamente à do avalizado. Trata-se de uma obrigação materialmente autónoma, embora dependente da última quanto ao lado formal, uma vez que se mantém ainda que a obrigação garantida seja nula, salvo “por vício de forma” (art. 32º da L.U.L.L.). E em idêntico sentido opina Pedro de Vasconcelos (Ob. citada, págs. 127), para quem a obrigação do avalista é autónoma, pois, embora se defina pela do avalizado, “vive e subsiste, independentemente desta”.
Aliás, as considerações da natureza jurídica do aval apontam decididamente no sentido de – fora a invocação da excepção do pagamento – não lhe ser aplicável o regime do art. 637º, nº2, do CC, o qual permite ao fiador opor ao credor os meios de defesa que competem ao devedor, já que tal regime se mostra incompatível com o carácter autónomo e abstracto daquele acto cambiário, sendo que só são aplicáveis ao aval os princípios da fiança que, a despeito das afinidades existentes entre ambas as figuras, não contradigam o carácter cambiário daquele – Cfr. Ac. do STJ, de 23.01.86 (Bol. 353º/482) e Prof. Ferrer Correia (Ob. citada, págs. 198).
Tudo, pois, razões para, em complemento das aduzidas na douta decisão apelada, ter de concluir-se (sem prejuízo do que, de seguida, se expenderá) pela total irrelevância da remanescente factualidade aludida em I de 3 supra para uma conscienciosa decisão do mérito dos deduzidos embargos.
Assim improcedendo as correspondentes conclusões formuladas pelos apelantes.
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II – A questão suscitada pelos apelantes e mencionada em II de 3 supra não tem, sem quebra do respeito devido, qualquer sustentáculo legal.
Com efeito, o facto de o vencimento da livrança haver ocorrido, posteriormente ao decesso do respectivo avalista (que a havia subscrito, em tal qualidade, quase nove anos antes da respectiva morte), não pode ter o condão de operar a desresponsabilização cambiária dos herdeiros daquele (os embargantes, no caso dos autos).
Na realidade, como expende o saudoso Cons. Abel Pereira Delgado, na sua conhecida obra “L.U.L.L.”, 3ª Ed. (1976), págs. 62,...“a obrigação cambiária surge logo no momento da emissão”, aí se acrescentando que “A letra, mesmo antes de preenchida, circula (, pois,) como título cambiário, estando sujeita ao regime cambiário”.
Aliás, a mesma posição é defendida pelo não menos saudoso Prof. Ferrer Correia (Ob. citada, págs. 90), quando ensina:...”a doutrina preferível é a da «emissão». A entrega do título não é apenas uma «conditio juris» da eficácia da obrigação cambiária, já perfeita com a subscrição da declaração cartular. Ela é, diferentemente, elemento essencial à própria validade da obrigação. Pelo que esta não surge se não se verificar a emissão da letra pelo seu possuidor (...)...a simples declaração cartular é insusceptível, só por si, de realmente obrigar o subscritor; para que ele fique vinculado, é sempre necessário o concurso desse outro requisito: a emissão do título”.
Assim, considerando que o exposto regime jurídico da constituição e existência da obrigação cambiária é de reputar extensivo às livranças, por via do preceituado no já mencionado art. 77º, tem de considerar-se que, atenta a factualidade provada e o preceituado no art. 2024º, do CC, o facto de o vencimento da livrança ter ocorrido, muito posteriormente à morte do respectivo avalista, de quem os embargantes são herdeiros, não desresponsabiliza estes da obrigação cambiária por aquele, validamente, contraída, nos termos que ficaram expostos. É que tal obrigação integrava, já à data da respectiva morte, a globalidade das relações jurídicas patrimoniais de que o mesmo avalista era, então, titular.
Com o que, igualmente, improcedem as correspondentes conclusões tiradas pelos apelantes.
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III – Quanto à última das questões suscitadas pelos apelantes e a que, acima, foi feita alusão, não vislumbramos como é que a conduta processual da embargada, ao instaurar a execução, pode consubstanciar exercício abusivo do respectivo direito.
Na realidade, e sem necessidade de outras considerações e desenvolvimentos que semelhante temática poderia propiciar, não sofre qualquer dúvida que a embargada, com a sobredita conduta, não transpôs (e, muito menos, manifesta ou clamorosamente) qualquer dos limites configurados no art. 334º do CC para o exercício do respectivo e correspondente direito. Bem ao contrário e nos termos que ficaram expostos, não pode suscitar-se qualquer dúvida quanto à existência da obrigação exequenda e exigência do respectivo cumprimento – ainda que coercivo – por parte dos embargantes.
Assim improcedendo, pois, o diferentemente concluído ou sustentado pelos apelantes.
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5 – Em face do exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se, em consequência e na parte impugnada, a douta decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
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Porto, 4 de Abril de 2005
José Augusto Fernandes do Vale
António Manuel Martins Lopes
Rui de Sousa Pinto Ferreira