I - Basta, para a aplicação da cláusula de contrato de seguro que exclua a responsabilidade da seguradora quando o segurado «abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade”, que o abandono se verifique com consciência por banda deste da necessidade de tal chamamento, pelo que é irrelevante que aconteça antes ou depois do mesmo.
II- Há necessidade de chamar as autoridades policiais quando um condutor tripulando um veículo automóvel, de marca topo de gama, cerca das 21 horas, a 31 de Dezembro de 2020, com tempo chuvoso, numa aldeia de Almeida, antes de uma curva da estrada, perde o controlo do veículo, entra na valeta, sai da estrada, embate num obstáculo, capota e volta a cair na via pública, impossibilitado de circular, com danos graves que impedem a sua reparação.
III- Há necessidade de chamar as autoridades policiais quando esse veículo estava equipado com um sistema de segurança e protecção que com o embate disparou, estabeleceu contacto entre a marca e o condutor, e o próprio sistema chamou por socorro – o 112 -, que apareceu (ambulância).
IV- Há necessidade de chamar as autoridades policiais quando os elementos do 112 chegam ao local e são informados no local que o condutor se retirou dali e se refugiou em casa.
A decisão da primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada nas situações previstas no artigo 662º do CPC, na redacção da Lei nº 41/2013, nomeadamente se do processo constarem todos os elementos probatórios em que se baseou a decisão recorrida quanto à matéria de facto em causa, ou se, tendo ocorrido, como ocorreu, gravação dos depoimentos prestados, tiver havido impugnação nos termos do artigo 640º da decisão com base neles proferida.
O uso dos poderes de modificabilidade da decisão de facto destina-se a reapreciar a prova sobre os concretos pontos impugnados, sem deixar de permitir que, no caso de formação de uma nova convicção, a Relação altere a decisão de facto. A Relação não “remenda” a decisão proferida sobre a matéria de facto, mas “integra” os novos pontos provados ou não provados.
Por outra banda, a modificação da decisão de facto impõe-se agora mais veemente ao Tribunal superior, mesmo que não objecto de impugnação pelas partes, consoante o disposto no artigo 662º, 1 e 2, a) e b) do CPC nos casos em que o tribunal recorrido tenha desrespeitado a força plena de certo meio de prova (artigos 371º, 1 e 376º, 1 do CC), quando tenha sido desatendida determinada declaração confessória constante de documento ou do processo (artigos 358º do CC e 484º, 1 e 463º do CPC), ou acordo estabelecido nos articulados sobre determinado facto (artigo 574º, 2 do CPC), optando por se atribuir prevalência à livre convicção formada sobre outros elementos probatórios. Ou quando tenha sido provado certo facto com base em meio de prova claramente insuficiente, situação em que a modificação da decisão da matéria de facto passa pela aplicação ao caso da regra do direito probatório material (artigo 364º, 1 do CC). São aplicáveis aos acórdãos, as regras sobre a elaboração da sentença onde estas possibilidades encontram esteio legal – artigos 607º, 4 e 5, 663º e 679º do CPC. Cfr. António Geraldes in Recursos no NPC, Almedina, 2013, pág. 115, 225 e 226.
1ª questão
O Apelante impugna a decisão da matéria de facto.
Cumpre os ónus do artigo 640º do CPC.
*
As pessoas ouvidas em audiência final elencam-se da seguinte forma:
- BB, maior, solteiro, trabalhador administrativo, reside na ....
Conhece o Autor. São amigos há muitos nos – cerca de 20 anos.
Nada tem a ver com a Ré.
No dia 31 de Dezembro de 2020 houve um acidente onde foi interveniente o Autor. O único veículo envolvido era o do Autor.
Esteve no local. O Autor ligou à testemunha após ter o acidente. Foi ao local com outro amigo. O Autor estava bastante nervoso, “chateado” com a situação. Aparentemente estava bastante nervoso. Tinha destruído um carro. O aparato era grande. Ele estava bem, pelo pé dele, ao pé do carro.
A testemunha disse-lhe: estás nervoso, vai para casa. Estou com um amigo. Eu trato disto.
O Autor foi para casa dele.
A testemunha continua: liguei para a assistência em viagem para o número que se encontra na vinheta do seguro. O sistema entrou em chamada automática. Dei a matrícula ou o nº da apólice. Não falei com ninguém. Apareceu a ambulância da Cruz Vermelha. Depois apareceu o reboque.
Não foi a testemunha que chamou a Cruz Vermelha.
Segundo percebi, o carro tem um sistema de segurança que quando existe um acidente e disparam os airbags…
Não foi a testemunha que chamou a Cruz Vermelha.
A ambulância da Cruz Vermelha esperou que a GNR chegasse ao local.
Disse às pessoas da ambulância que o Autor já tinha ido para casa, que foi a testemunha que lhe disse para ir para casa, por estar muito nervoso.
A GNR quando chegou ao local ... a testemunha foi ter com eles. Contou-lhe que o condutor tinha ido para casa. A GNR soube o nome do condutor da viatura sinistrada.
A ambulância saiu primeiro.
Quando a GNR chegou o carro já estava parcialmente carregado. A testemunha ficou a apanhar umas peças do carro que estavam caídas por ali.
Não foi contactado nem fez mais contactos.
Como não havia feridos, e a testemunha tinha chamado a assistência em viagem e porque chegou entretanto a ambulância que disse a GNR estava a chegar, não julgou conveniente chamar a GNR ao local.
A viatura sofreu um despiste, entrou na valeta. Capotou e ficou na via. Na via não houve danos.
Quando o Autor telefonou à testemunha, aquele disse-lhe que tinha tido um acidente ali próximo da casa da testemunha. Perguntou se podia lá ir ter com ele. Eram 7/8 horas da noite. Dia 31 de Dezembro de 2020.
Sabe que estes carros mais modernos têm esse sistema de segurança. O carro da testemunha também tem. A testemunha já andou no carro sinistrado do Autor e sabe que esse carro também tem esse sistema automático que liga às autoridades.
No caso não sabe se a vinda da GNR está relacionada com esse sistema.
- Depoimento relevante.
DD, divorciado, mediador de seguros, reside na Cidade ....
Conhece o Autor. Há mais de 15 anos. Fez o seguro do carro sinistrado.
Não tem conflitos com a Ré.
O Autor teve um acidente. O Autor ligou à testemunha a dizer. Foi a testemunha quem tratou da participação do acidente à seguradora – no dia seguinte. Não esteve no local. Não assistiu ao acidente.
Conhece o carro. Foi a testemunha que vendeu o carro ao Autor. Conhece as características do carro.
Com um acidente mais grave com estes carros, a marca detecta isso e comunica ao socorro.
O carro em causa é de 2013-2014. De origem esse carro não tem essa aplicação. Mas aquando do acidente o carro já tinha essa aplicação, pois a marca, a solicitação do proprietário, instala essa aplicação. O carro do sinistro tem essa aplicação.
Não sabe se o Autor sabia que o carro tinha essa aplicação.
- Depoimento relevante.
EE, Soldado da GNR do Posto de Miuzela.
Não conhece o Autor.
Foi um despiste. A testemunha e outro colega deslocaram-se ao local após comunicação da Cruz Vermelha – chamada telefónica para o Posto ... a informar que havia um despiste. Crê que é uma pessoa que comunica, e não uma máquina. Quando a GNR chegou ao local do acidente já estava a ambulância da Cruz Vermelha.
A testemunha ficou a tratar do trânsito. O colega participante é que tratou da ocorrência. Não tratou da participação.
A viatura estava danificada. Havia vidros, plásticos espalhados na via.
Confronta-se a testemunha com o auto de participação do acidente.
Perguntado sobre se houve ou não “fuga” ao teste do álcool disse não saber.
- Depoimento relevante.
FF, casado, perito de sinistros.
Peritou o veículo sinistrado.
- Irrelevante para a matéria objecto de impugnação.
GG, perito averiguador.
Foi solicitada à testemunha a averiguação do sinistro em causa.
15 dias depois do acidente foi ao local do acidente. Falou com os intervenientes.
No local ainda havia vestígios, tirou fotografias, plásticos, vidros, tudo nas bermas. Embate com alguma violência.
Falou com o condutor, com o rebocador, com a pessoa que estava a substituir o condutor – a testemunha BB.
Falou com o condutor – o condutor disse que na altura que teve o acidente o próprio sistema do carro, quando teve o acidente, é que accionou os serviços médicos. Daí ter aparecido a ambulância. Entretanto ligou para o amigo ( o que se encontrava no local ) e ele foi para casa e o amigo ficou.
Falou com o condutor do reboque – que disse que não foi accionado pela assistência em viagem mas por alguém que telefonou directamente para ele. Quando o reboque chegou ao local já lá não estava o condutor. Estava o amigo deste – a testemunha BB.
Falou com o amigo do condutor – testemunha BB que lhe disse que o condutor foi para casa porque estava dorido. Mas a ambulância estava a caminho… acrescenta a testemunha.
- Depoimento relevante.
HH, Soldado da GNR do Posto ....
Tomou conta do acidente. Deslocou-se ao local. Elaborou o auto de participação junta aos autos, cujo teor confirma.
No local estavam uma ambulância da Cruz Vermelha e o Reboque a carregar o veículo sinistrado- estava o veículo em cima da rampa.
O representante da Cruz Vermelha disse à testemunha que tinha sido chamada ao local e que aí chegados não estava lá ninguém. (tempo 3:05).
Não sabe pormenores do accionamento da Cruz Vermelha.
No local havia vestígios. O veículo deixou destroços porque capotou. A informação do senhor do reboque foi que o carro tinha sido deixado na faixa de rodagem.
Estava lá o Senhor BB, que a testemunha conhece pessoalmente.
O Senhor BB disse que o condutor estava bem, que tinha ido para casa.
Confronta-se a testemunha com o auto de participação do acidente.
Perguntado sobre se houve ou não “fuga” ao teste do álcool disse o condutor teve o acidente e saiu do local. A “fuga” é um termo técnico. Este termo está mais perto da realidade. O condutor efectivamente ausentou-se do local do sinistro.
A GNR foi accionada por chamada telefónica enviada para o Posto da GNR ... – indicaram o local – estrada. Não disseram que os meios de socorro já estavam no local (tempo 11:30). Não interveio na chamada. Foi entre as 20 e as 21 horas.
A mensagem enviada à patrulha pelo colega de serviço ao atendimento foi: A Cruz Vermelha encontra-se no local e precisa da presença da GNR. (Tempo 15:08)
A patrulha da GNR demorou 5 minutos a chegar ao local do sinistro, depois da recepção da chamada no Posto. (Tempo 16:16).
- Depoimento relevante.
II, profissional de seguros, trabalha para a Ré.
- Depoimento sem interesse para a matéria objecto de impugnação.
*
Certo que o ora Autor no dia 31 de Dezembro de 2020 (último dia do ano), cerca das 21 horas circulava ao volante da viatura automóvel ligeiro de passageiros, da marca ..., do ano de 2013, ..-NR-.., fotografado a fls. 128 verso, de sua propriedade, na Estrada Municipal nº ...80, ao km 0, em ..., ..., no sentido de ... – ..., com tempo de chuva, e, antes de fazer uma curva para a sua esquerda, atento o sentido de marcha, saiu da via, bateu numa pedra, capotou e voltou à via, apresentando danos de valor elevado e ficando impedido de circular.
O Autor alega ter entrado em pânico com a situação – cfr artigo 7º da petição inicial – mas pelo depoimento da testemunha BB, o Autor ficou numa situação de que descreveu como bastante nervoso.
O veículo estava equipado com um sistema de protecção que, face a um choque que faça disparar os airbags, liga à marca e esta acciona os serviços de socorro.
O carro estava equipado com este sistema – conforme depoimento da testemunha BB, que já viajou nesse veículo; depoimento da testemunha DD que foi quem vendeu o veículo ao Autor e sabe que o veículo estava equipado com esse sistema.
Após a ocorrência do acidente, e, cronologicamente, temos que o sistema de segurança comunicou a ocorrência à marca do carro.
É aí que o Autor, ainda no local do acidente, recebe uma comunicação da marca.
Este facto é provado pelos termos da participação do sinistro efectuada pelo Autor à Ré com a “declaração amigável de acidente automóvel”, assinada pelo Autor, datada de 4 de Janeiro e 2020 (mas que deve ser 2021) onde, conforme fls. 122, o Autor descreve o acidente assim:
“Ia numa curva e entrou em despiste. Foi para a valeta. Bateu numa pedra e voltou para a estrada e capotou. Viatura totalmente danificada. Há um registo na Mercedes Benz Portugal que ligou ao cliente. (…).
A testemunha CC, que averiguou o sinistro, disse que falou com o condutor, ora Autora, e que o condutor lhe disse que na altura em que teve o acidente o próprio sistema do carro, quando teve o acidente, é que accionou os serviços médicos.
E temos então que, após o acidente, a marca do carro ligou ao Autor, e o próprio sistema do carro chamou o socorro médico.
Não de sabe qual o teor da conversa entre o call-center da marca e o Autor, porque este não foi ouvido, nem ouvida foi qualquer pessoa da Mercedes Benz.
Temos assim a ambulância da Cruz Vermelha a caminho do local.
Não há dúvida de que quando o Autor abandona voluntariamente o local do sinistro, e se refugia em sua casa, já sabia por conhecimento pessoal que tinham sido accionadas as autoridades e que estava a caminho socorro médico.
Acontece que a ambulância chega ao local e não vê o Autor. Não vê ninguém. É aqui que cabe referir o depoimento da testemunha HH, Soldado da GNR, segundo o qual o representante da Cruz Vermelha disse à testemunha que tinha sido chamada ao local e que aí chegados não estava lá ninguém. Tempo 3:05.
Daí que a ambulância tenha contactado o posto da GNR e exigido a presença da autoridade no local, só abandonando o teatro do sinistro depois da GNR chegar.
O Autor, teve assim conhecimento que, com o acidente, o socorro médico ou paramédico estava activado.
Foi então que o Autor decidiu telefonar ao amigo BB. Este deslocou-se ao local, de carro, com outro amigo. Encontrou o Autor bastante nervoso, “chateado” com a situação.
Então este amigo, a testemunha BB, fez de médico, aconselhou o Autor a ir para casa, oferecendo-se para tratar das diligências subsequentes ao sinistro – chamar o pronto-socorro, contactos com as autoridades policiais, bombeiros, etc.
Este amigo, a testemunha BB, levou o Autor par casa deste – em vez de o aconselhar a ficar no local, por exemplo dentro do seu veículo, à espera que o socorro médico – via ambulância – chegasse e pudesse avaliar medicamente e prestar assistência ao Autor, nomeadamente à exaltação e nervosismo.
Este amigo, a testemunha BB voltou ao local do sinistro e foi quem chamou o pronto-socorro.
O pronto-socorro compareceu no local, efectivamente.
Mas quem é que de facto concretizou esse resultado?
Não se sabe ao certo.
A testemunha GG revela que o motorista do pronto-socorro disse não ser sido enviado via assistência em viagem, que foi chamado por pessoa que telefonou directamente para si.
A testemunha BB disse ter ligado para a assistência em viagem, mas que não chegou a falar com uma pessoa e que apenas conseguiu transmitir ou a matrícula do carro ou o nº da apólice para o sistema automático do atendimento.
O Autor escreveu na descrição do acidente que enviou à seguradora Ré que o Cliente ligou para a assistência em viagem. Ninguém atendeu.
Facto é que o pronto-socorro compareceu no local e tratou de retirar o veículo sinistrado da via.
O motorista não foi ouvido. Mas este facto tem a sua relevância. O que pediram concretamente que este motorista fizesse? Não se sabe.
Não foram os elementos da ambulância a ordenar a retirada do veículo da via, certamente.
Não foi a GNR a fazê-lo porque ainda não tinha chegado.
Quem dava ordens no teatro do sinistro antes da GNR chegar? Não se sabe, mas pelos elementos, certamente ou a testemunha BB, ou o Autor (à distância).
A GNR chega ao local. A ambulância volta para o quartel de bombeiros.
O carro sinistrado já estava praticamente carregado.
E a testemunha BB comunicou às autoridades que o Autor tinha ido para sua casa, a conselho seu, que estava bem, só dorido, e nervoso.
Certo é também que, ou dorido, ou doente, ou bem de saúde, quando a GNR elabora a participação do acidente – em 6 de Janeiro de 2021 -, já volvido o Fim-de-Ano e o Dia de Reis, ainda não tinha sido possível ouvir o Autor sobre o sinistro e suas circunstâncias, isso mesmo conta da participação policial, cujo participante confirmou em julgamento.
15 dias depois do acidente a testemunha CC foi ao local do mesmo. No local ainda havia vestígios, tirou fotografias, plásticos, vidros, tudo nas bermas.
Embate com alguma violência… Explicou tal testemunha como vimos.
Assim, conforme depoimento das testemunhas BB, DD e CC, bem como face aos termos da participação do sinistro efectuada pelo Autor à Ré com a “declaração amigável de acidente automóvel”, assinada pelo Autor, datada de 4 de Janeiro e 2020 (mas que deve ser 2021), conforme fls. 122, tudo conjugado com a demais prova documental e testemunhal, não há dúvida de que quando o Autor abandona voluntariamente o local do sinistro, e se refugia em sua casa, já sabia por conhecimento pessoal que tinham sido accionadas as autoridades e que estava a caminho socorro médico.
Trata-se de matéria objecto de prova e contra-prova em julgamento, amplamente debatida neste e em sede de alegações e contra-alegações de recurso.
*
Na Relação opera-se uma convicção algo diversa da alcançada no 1º grau.
Face ao conjunto da prova testemunhal e documental, que se esmiuçou supra, os números 3 a 11 da matéria de facto provada passam a ter a seguinte redacção:
3) Por contrato de seguro, válido e eficaz em 31-12-2020, celebrado entre A. e R., titulado pela apólice n.º ...73, junta na referência n.º 1834206 dos autos e cujo teor se dá aqui por inteiramente reproduzido, foi transferida para a R. a responsabilidade civil por danos próprios e provocados a terceiros, emergente da circulação do veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca ..., propriedade do Autor, com a matrícula ..-NR-.., com subscrição complementar facultativa de riscos e garantias, regulado pelas Condições Gerais, Especiais e Particulares juntas aos autos.
4) No dia 31-12-2020, o Autor, cerca das 21 horas circulava ao volante da viatura automóvel ..-NR-.., na Estrada Municipal nº ...80, ao km 0, em ..., ..., no sentido de ... – ..., com tempo de chuva, e, antes de fazer uma curva para a sua esquerda, atento o sentido de marcha, saiu da via, bateu numa pedra, capotou e voltou à via, sofrendo danos nas peças melhor descritas no Relatório Estimativa de Danos de fls. 125-126, e aqui se dá por integralmente reproduzido, e ficando impedido de circular.
5) O veículo estava equipado com um sistema de segurança e protecção pós- acidente mediante o qual face a um embate que faça disparar os airbags, o sistema liga à marca e esta acciona os serviços de socorro. O sistema funcionou. Após o sinistro a marca do carro entrou em contacto com o Autor, e o próprio sistema do carro chamou o socorro médico.
6) Após tal sinistro o Autor ficou bastante nervoso.
7) O Autor contactou depois o seu amigo BB para pedir auxílio e deslocou-se logo de seguida, voluntariamente, para casa, onde permaneceu na companhia daquele, tendo ficado mais calmo e não necessitando de cuidados médicos.
8) Após, BB voltou, desacompanhado do Autor, para junto do automóvel de marca ... com a matrícula ..-NR-.. e contactou os serviços de reboque.
9) A Cruz Vermelha compareceu no local com uma ambulância, chamada pelo sistema de segurança e protecção referido em 5), e não encontrou ninguém. Então a tripulação da ambulância telefonou para a GNR informando precisar da presença daquela força policial.
9) A GNR fez deslocar para o local uma patrulha de serviço. Os soldados da GNR, chegados ao local do sinistro, verificaram que o Autor não se encontrava no local, motivo pelo qual não foi submetido a teste de alcoolemia no sangue, e que o veículo sinistrado já estava sobre a rampa do reboque para ser retirado dali.
A ambulância da Cruz Vermelha retirou do local.
A GNR elaborou a participação do acidente em 6 de Janeiro de 2021 e até essa data ainda não tinha conseguido ouvir o Autor em declarações.
11) - Era do conhecimento do Autor a existência do sistema de segurança e protecção referido em 5) no veículo e, bem assim, que seria imediatamente accionado após a ocorrência do sinistro, sendo chamados ao local os serviços de socorro e as autoridades policiais.
3ª questão
Mérito da causa
Como se escreve na sentença recorrida, nesta acção, discute-se se a Ré é responsável pela obrigação de indemnizar o Autor pelos danos sofridos patrimoniais no veículo identificado nos autos, em consequência do seu despiste.
Decorre da factualidade provada que entre a Ré, na qualidade de seguradora, e o Autor, na qualidade de tomador, foi celebrado um contrato de responsabilidade civil automóvel, com subscrição complementar facultativa de determinados riscos e garantias, regulado pelas Condições Gerais, Especiais e Particulares juntas aos autos (cf. factos provados sob o n.º 3).
Por conseguinte, nos termos contratuais, a seguradora, para além de cobrir o risco de constituição no património do segurado de uma obrigação de indemnizar terceiros, em consequência de responsabilidade civil extracontratual, ficou também vinculada a indemnizar o próprio segurado, em relação às coberturas facultativas contratadas.
Todavia, muito embora tenha ficado provado que o veículo do Autor sofreu danos, em consequência do despiste (cf. facto 4)), cobertura facultativa incluída no contrato (cf., v.g., cláusula 39.ª das Condições Gerais), a Ré seguradora, invocando a exclusão prevista na cláusula 40.ª, nº 1, al. c), in fine, das Condições Gerais (cf. facto provado n.º 17), declinou a sua responsabilidade.
Não se discute que o referido contrato é válido, bem como aceitam as partes a eficácia do mesmo, abrangendo os riscos nele previstos, assim como é pacífica a ocorrência do sinistro e a existência dos relatados danos, residindo o dissídio entre as partes na forma de interpretar a cláusula 40.ª, n.º 1, al. c) das Cláusulas Gerais, conforme acima já referido.
Segundo a referida cláusula 40.ª, n.º 1:
«Para além das exclusões previstas na cláusula 5ª, o contrato também não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas, as seguintes situações:
(…)
c) “Sinistros resultantes de demência do condutor do veículo (…) bem como quando, voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade».
Na sentença recorrida suscitou-se a dúvida sobre se o abandono do condutor está cronologicamente amarrado ao chamamento das autoridades policiais, devendo ser posterior, ou se basta o abandono em si mesmo, independentemente das autoridades terem sido chamadas antes ou depois da saída do condutor do local.
Escreveu-se que a jurisprudência tem respondido predominantemente no sentido de que o abandono do local só terá relevância após o chamamento das autoridades policiais. E indicou vários arestos nesse sentido. Assim, os Acórdãos do STJ, de 18-03-2021, Proc. 1542/19.0T8LRA.C1.S1, do TRC, de 23-11-2021, Proc. 3310/20.7T8LRA.C1, de 18-01-2022, Proc. 52/20.7T8TND.C1, acessíveis no site da dgsi.net.
No mesmo sentido, indicou a sentença recorrida, poder ler-se no Acórdão do TRC, de 23-11-2021, Proc. 3310/20.7T8LRA.C1: «[c]onstando das condições gerais de um contrato de seguro facultativo de responsabilidade civil automóvel que o contrato também não garantirá a situação em que o condutor do veículo, voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade, essa exclusão de responsabilidade só ocorre se a autoridade policial já tiver sido chamada no momento do abandono». Neste último aresto ainda se precisa: «depreende-se do teor de tal cláusula que o abandono só é relevante em termos de exclusão da responsabilidade da seguradora, se a autoridade policial já tiver sido chamada. A autoridade policial tem que ser chamada e o abandono, injustificado, tem que ocorrer já depois de ter ocorrido tal chamamento, sendo este do conhecimento do condutor do veículo que se ausentou do local do acidente».
Na sentença recorrida adere-se à fundamentação destes doutos acórdãos. E, é certo – com outra factualidade – julga-se resultar da factualidade provada, que o condutor do veículo acidentado abandonou o local do sinistro antes de as autoridades policiais terem sido chamadas para a ocorrência, e daí se concluiu não se verificar a factualidade em que poderia assentar a exclusão da responsabilidade da ora Ré em indemnizar o Autor pelos danos sofridos em consequência do sinistro.
Por isso se julgou improcedente a excepção da exclusão do risco seguro.
*
Pode, porém entender-se de outra maneira, face aos termos da referida cláusula contratual de exclusão de responsabilidade da seguradora.
No Douto Acórdão do TRC de 13 de Fevereiro de 2022, prolatado no p. nº 2456/20.6T8LRA.C1, desta secção, em que foi Relator o Exmo. Desembargador Carlos Moreira, e em que o aqui relator foi adjunto, deu-se relevo na interpretação da cláusula 40.ª, nº 1, al. c), in fine, das Condições Gerais do seguro (facto 17), para lá do elemento literal, aos elementos lógico e teleológico de interpretação.
Escreveu-se, a propósito:
Tal como já diziam os antigos, por vezes, a letra da lei – aqui da clausula contratual – mata a justiça, mas o seu espírito e ratio, pode vivificá-la.
Ou seja, por vezes, só com apelo aqueles elementos não literais da interpretação jurídica, e sem obediência cega e acrítica à literalidade do quid interpretando, se pode almejar a consecução do fito último da actividade jurisdicional, qual seja, a prolação da decisão que reflicta e alcance não apenas a, por vezes a mais cómoda e fácil, justiça formal, mas antes atinja a verdade e, assim, realize a justiça material do caso concreto..
A assim ser tem de concluir-se que in casu, o cerne substantivo da aludida cláusula de exclusão prende-se com o facto de, para um acidente rodoviário, ser, ou não ser, necessário, ou até conveniente, chamar a autoridade policial.
Nos pequenos sinistros com consequências materiais nocivas minudentes – pequenos riscos ou amolgadelas – normalmente tal chamamento não se impõe, nem as autoridades policiais o aconselham, ficando a resolução dos mesmos entregue aos intervenientes, vg. com o preenchimento da chamada declaração amigável.
Nos acidentes com maiores e mais graves consequências, humanas e/ou materiais, tal chamamento impõe-se ou é aconselhável.
Nestes casos alguém terá de chamar a autoridade policial.
O caso vertente inclui-se nesta última hipótese.
O sinistro ocorreu à noite, com tempo chuvoso. Na via ficou o veículo sinistrado, parcialmente destruído, sem poder circular.
Espalhados na via e na berma ficaram destroços de vidro, plástico e peças, alguns ainda patentes no local quinze dias depois do sinistro.
O sinistro caracterizou-se pelo despiste de uma viatura que entrou na valeta, saiu da via, bateu numa pedra, capotou e voltou, já sem viabilidade de arranjo, à via por onde seguia.
Os danos foram extensos e gravosos no veículo.
Tudo igualmente com grande aparato junto a uma aldeia de ....
A via ficou, pelo menos parcialmente, interrompida.
Logo, a intervenção policial para tomar conta do caso, impunha-se ou era patentemente aconselhável, a horas do fim do ano de 2020.
Destarte, alguém teria mais cedo ou mais tarde de chamar a autoridade policial.
No caso também o veículo está equipado com um sistema de protecção que, disparando, como disparou, leva a que a marca seja alertada automaticamente. A marca foi alertada. Os serviços da marca entraram em contacto com o condutor sinistrado, e chamaram meios de socorro médico ou paramédico – no caso compareceu no local uma ambulância.
Ora, como se provou em 11) - Era do conhecimento do Autor a existência do sistema de segurança e protecção referido em 5) no veículo e, bem assim, que seria imediatamente accionado após a ocorrência do sinistro, sendo chamados ao local os serviços de socorro e as autoridades policiais.
A Ambulância chegou ao local e já o condutor sinistrado tinha abandonado as imediações e ido refugiar-se em casa, nervoso.
No local, um amigo do condutor, aí colocado para o efeito a pedido do condutor, foi quem chamou pela presença de um pronto-socorro, que apareceu.
Porém, os elementos da ambulância, sendo informados que o condutor não estava, exigiram telefonicamente a presença da autoridade policial, que, compareceu, pouco depois – cinco minutos depois segundo se disse em julgamento – já não encontrando o condutor, e ficando assim inviabilizada a realização do TAS a este.
Não pode agora vir o Autor socorrer-se do facto de ter sido a GNR chamada ao local pelos elementos de socorro da Cruz Vermelha (112), já depois de o Autor ter abandonado o teatro do sinistro, para com esse argumento interpretar o contrato de seguro e exigir ser indemnizado pela seguradora pela perda do veículo, quando foi o condutor que deu inteiramente azo ao sinistro, quando foi ele que abandonou o local e se foi refugiar em casa, já depois de saber que o serviço da marca do veículo havia chamado por socorro.
O que ao Autor era esperado que de boa fé contratual fizesse era esperar pelo socorro (ambulância) e solicitar a comparência das autoridades policiais, e colaborar com elas, uma vez que estamos perante um acidente grave, que poderia até ter tido muito maiores consequências.
Não está justificado o seu abandono do local do sinistro.
Não está justificada a sua actuação ao nível da sua pretensão em juízo, pois que foi o Autor quem, voluntariamente, se retirou do local, impedindo a realização do TAS e outros exames, em ordem ao esclarecimento da verdade e do liso e leal cumprimento contratual, sob pena de incorrer até em abuso de direito, excepção peremptória de conhecimento oficioso. (artigo 334º do CC)
*
Verificamos provada a excepção da cobertura do risco.
Procede a apelação, improcede a acção indo a Ré absolvida dos pedidos – artigo 576º, 3 do CPC.
V-DECISÃO:
Pelo que fica exposto, acorda-se neste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida que vai substituída por outra que julga improcedente a acção e absolve a Ré dos pedidos.
Custas pelo Apelado, ora Autor, nas duas instâncias.
Valor da causa: € 24.750,00.
Coimbra, 28 de Março de 2023.
(Rui António Correia Moura)
(Fonte Ramos)