NEGÓCIO JURÍDICO
INVALIDADE
COMPRA E VENDA
DIREITO DE PROPRIEDADE
REGISTO PREDIAL
TERCEIRO
BOA -FÉ
EFEITOS
CONTRATOS SUCESSIVOS
TUTELA
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Sumário


I. Sendo o registo da aquisição do direito de propriedade obrigatório, a tutela da confiança em relação à situação jurídica dos prédios inerente ao instituto do registo predial – que é indispensável à segurança do comércio jurídico – faz com que não possa produzir efeitos contra terceiro, posterior adquirente de boa-fé, a aquisição anterior não registada do direito de propriedade sobre o mesmo bem imóvel.
II. Para efeito do disposto no artigo 5.º n.º 1 do Código de Registo Predial são terceiros entre si os sucessivos adquirentes do direito de propriedade sobre o mesmo imóvel em duas vendas judiciais sucessivamente realizadas no âmbito de diferentes acções executivas.

Texto Integral

EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


֎


RELATÓRIO

Parte I – Introdução

1. ORCAMA – Têxteis e Imóveis, S A instaurou a presente acção declarativa com processo comum contra INTERCAUSAS – Unipessoal, Ld.ª, AA, BB e Banco Comercial Português, S A, tendo formulado os seguintes pedidos:

a) Seja declarada a nulidade da venda judicial efetuada a favor da primeira Ré a respeito da fração do imóvel sito na freguesia ... – ... designada pelas letras “CP” que melhor identifica na petição inicial;

b) Seja declarada a nulidade do contrato de compra e venda da referida fração celebrado entre a primeira Ré e os segundos Réus;

c) Seja declarada a nulidade da hipoteca constituída sobre a fração a favor do Banco terceiro Réu;

d) Seja cancelado o registo da aquisição da fracção a favor da primeira Ré;

e) Seja cancelado o registo de aquisição da fracção a favor dos segundos Réus;

f) Sejam cancelados os registos de hipoteca a favor do terceiro em 15 de julho de 2015;

g) Sejam os segundos Réus condenados a entregar o imóvel, livre de pessoas e bens, por inexistência de qualquer título que legitime a sua ocupação.

Alega, para tanto, e em síntese, o seguinte:

Que adquiriu no dia 27 de maio de 1997, em venda judicial realizada no âmbito da acção executiva ..32/1992 da ... Secção da ... Vara Cível do ..., a fracção autónoma do imóvel designada pela letra “CP”, correspondente a um apartamento sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., tendo promovido o registo da mencionada aquisição em 13 de dezembro de 2007;

Que o registo da aquisição foi lavrado provisoriamente por dúvidas derivadas do facto de a aquisição do direito de propriedade da referida fracção se encontrar já registada a favor da primeira ré desde 23 de novembro de 2007;

 Que a mencionada fracção foi, de facto, novamente penhorada na acção executiva 2984/04...., do ... Juízo Cível do Tribunal ..., vindo a ter ali lugar, em 6 de novembro de 2007, a venda judicial da fracção em causa, tendo sido aceite a proposta em carta fechada apresentada pela primeira ré, a quem foi adjudicada após o pagamento integral do preço.

Que posteriormente, em 15 de julho de 2008, a primeira ré vendeu aos segundos réus AA e BB a fracção do imóvel em causa, através de escritura pública de compra e venda, tendo sido concomitantemente celebrado entre eles e o terceiro réu um contrato de mútuo cujo reembolso foi garantido pela constituição de duas hipotecas sobre a fracção do imóvel.

Mais alega a autora que quando tiveram lugar as transmissões do direito de propriedade sobre a fração do imóvel a favor da primeira e dos segundos réus os transmitentes não dispunham de legitimidade para tanto e, não tendo os sucessivos negócios de compra e venda tido origem no mesmo e verdadeiro proprietário, não estão protegidos os adquirentes, enquanto terceiros, pela previsão do artigo 291.º do Código Civil.

A autora instaurou uma acção (acção comum 1118/09.... que correu termos na Instância Local Cível ...) visando a declaração de nulidade da aquisição do direito de propriedade e posterior registo por parte da primeira ré, a qual fez registar dentro do prazo de 3 anos previsto no artigo 291.º n.º 2 do Código Civil.


2. Foram pessoalmente citados para a acção os segundos e terceiro réus, sendo a ré Intercausas – Unipessoal Ld.ª citada editalmente.

Os segundos e terceiro réu contestaram a acção, sustentando que a aquisição do direito de propriedade a favor da primeira ré prevalece sobre a aquisição da autora por o titular do direito de propriedade transmitente ser comum a ambos e ter sido registada em primeiro lugar, devendo ser tutelada a aparência do direito derivada do registo.

A segunda ré pediu em reconvenção que lhe fosse reconhecido o direito de propriedade com base na usucapião, que invocou.

Por sua vez o segundo réu arguiu não lhe ser oponível a sentença que, na acção interposta pela autora, reconheceu o seu invocado direito de propriedade e bem assim a inoponibilidade da aquisição realizada pela autora face ao disposto nos artigos 291.º do Código Civil e 5.º, 7.º e 17.º do Código de Registo Predial.

Formulou igualmente pedido reconvencional secundando os termos em que a segunda ré o tinha feito.


3. Findos os articulados, dispensada que foi a realização da audiência prévia, foi proferida sentença cujo dispositivo é do seguinte teor no que tange à decisão do mérito da causa:

“i) Julga-se a presente ação improcedente e, em consequência, absolve-se os Réus Intercausas – Unipessoal, Ld.ª, BB e AA e Banco Comercial Português, S.A., dos pedidos contra eles formulados;

ii) Julga-se as reconvenções improcedentes, e, em consequência, absolve-se a Autora Orcama – Têxteis e Imóveis, S.A., dos pedidos reconvencionais contra ela formulados”


4.  Inconformada a autora interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães.

Por acórdão proferido a 30 de junho de 2022 o Tribunal da Relação de Guimarães julgou a apelação improcedente e confirmou integralmente a sentença impugnada com o mesmo núcleo fundamental de argumentação assente na tutela dos terceiros de boa-fé derivada do registo e sem qualquer declaração de voto divergente.


5. Ainda inconformada a autora interpôs recurso de revista para ser admitido a título excepcional, invocando a relevância jurídica e social da questão que se discute nos autos, consistente em última análise em saber se em duas vendas executivas do mesmo bem imóvel os respetivos adquirentes podem ser considerados terceiros entre si para efeitos do disposto no artigo 5.º, n.º 4, do Código de Registo Predial.

Reconhecida que foi pelo Juiz Conselheiro relator a dupla conforme impeditiva da admissão do recurso de revista pela via “ordinária”, o recurso de revista viria a ser admitido pela Formação de Juízes Conselheiros a que alude o artigo 672.º n.º 3 do Código de Processo Civil por seu acórdão de 21 de dezembro de 2022.


6. São do seguinte teor as conclusões apresentadas nas alegações de revista interposta pela autora:

“I. – Há quem considere que o conceito de terceiro, definido no artigo 5º, n.º 4, do Cód. de Registo Predial, deve ser interpretado de forma restritíssima, aplicando-se apenas em situações de venda voluntária.

II. – De acordo com tal tese, em duas vendas executivas do mesmo bem imóvel, os respetivos adquirentes não podem ser considerados terceiros entre si, para efeito de registo.

III. – Mas há também doutrina e jurisprudência, designadamente a citada no acórdão revidendo, no sentido de que o conceito de terceiro para efeitos de registo não deve excluir os casos de venda executiva.

IV. – A primeira venda judicial deve prevalecer e a nulidade decretada na aludida Acção nº 1118/09.... pode legitimamente, com todas as consequências legais, ser oposta ao subadquirente na segunda venda judicial, que, noutra cadeia de transmissões, alguns dias antes, registou a sua aquisição.

V. – Esta vexata quaestio, decidida pelo Tribunal recorrido, no sentido em que o fez, ou seja, dando prevalência ao direito adquirido na segunda venda judicial, põe em causa a eficácia da venda executiva pois fará duvidar da sua credibilidade, quando é um órgão do Estado – que a generalidade dos cidadãos tem por pessoa honrada – a efetuar duas ou mais vendas sucessivas do mesmo bem, bem sabendo que já o vendeu anteriormente, noutro(s) processo(s).

VI. – Em face da factualidade provada na aludida ação n.º 1118/09...., a nulidade nesta decretada deverá ser oposta aos réus subadquirentes, INTERCAUSAS - UNIPESSOAL, L.da, AA e esposa BB e BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S.A., dado que, in casu, não podem ser considerados terceiros para efeitos de registo, não beneficiando assim da proteção conferida pelo artigo 5º do Código do Registo Predial.

V. – O acórdão revidendo violou o disposto no artigo 5º do Código do Registo Predial.”


7. O Ministério Público, em representação da 1.ª Ré, e os Réus AA e Banco Comercial Português, S A apresentaram resposta às alegações do recurso de revista da autora em que, defendendo o bem fundado da decisão impugnada, pedem a improcedência da revista.



֎            ֎



8. Admitida a revista e colhidos que foram os Vistos dos Senhores Juízes Conselheiros que intervêm no julgamento, cumpre apreciar e decidir, ao que nada obsta.

Atendendo às conclusões das alegações do recurso de revista apresentadas pela autora recorrente e tendo em conta o teor do acórdão da Formação de Juízes Conselheiros a que alude o artigo 672.º n.º 3 do Código de Processo Civil, a única questão a resolver reconduz-se à de saber se os adquirentes de um mesmo imóvel em duas vendas judiciais sucessivas em diferentes acções executivas são terceiros entre si  para efeitos do disposto no artigo 5.º, n.º 4, do Código de Registo Predial, sendo oponível ao anterior adquirente, que não registou a aquisição do direito de propriedade, a posterior aquisição de tal direito registada pela ora primeira ré.

Deverá prevalecer a transmissão do direito de propriedade efectuada em primeiro lugar, ainda que a aquisição dela derivada não tenha sido levada ao registo – como defende a autora – na medida em que a venda efectuada em segundo lugar é, na realidade, uma venda de coisa alheia?

Ou deverá prevalecer o acto de transmissão do direito de propriedade efectuado através da segunda venda judicial, sendo oponível ao primeiro adquirente porque registado em primeiro lugar?

Como mais adiante se verá a questão assim genericamente colocada suscitou respostas diferentes na doutrina e na jurisprudência.



֎                 ֎



FUNDAMENTAÇÃO

Parte I – Os Factos Provados

1. Recapitulemos, antes de mais, o elenco dos factos que as instâncias fixaram definitivamente.

Os factos provados são os seguintes:

1) No âmbito da execução ordinária movida por Companhia Geral de Crédito Predial Português, S.A., contra CC e DD, que correu termos sob o n.º ..32/1992, na ... Secção da ... Vara Cível do Tribunal Judicial da Comarca ..., foi penhorada, vendida e adjudicada à autora, em 27 de maio de 1997, a fração autónoma designada pelas letras “CP”, correspondente a um apartamento sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...86... e inscrita na matriz predial sob o artigo ...29... (cfr. título de transmissão de fls. 9/verso).

2) A autora promoveu o registo da referida aquisição em 13 de dezembro de 2007 (cfr. inscrição G-4 constante de fls. 37/verso, da certidão da descrição predial relativa à fração “CP”).

3) Tal registo foi lavrado, provisoriamente, por dúvidas, tendo caducado (cfr. Inscrições G-4 constante de fls. 37/verso, da certidão da descrição predial relativa à fração “CP”).

4) Por douta sentença proferida no âmbito do processo nº 1118/09...., que correu termos no J..., Secção Cível, Instância Local ..., Tribunal da Comarca ..., foi decidido o seguinte:

“Nos termos do exposto, julgo a ação procedente, por provada e, em consequência:

a) condeno os réus a reconhecer o direito de propriedade pleno da Autora sobre a fração autónoma “CP”, melhor identificada nos autos;

b) declaro nulo o contrato de compra e venda da sobredita fração, celebrado entre os primeiros réus e a segunda ré.

c) determino o cancelamento do registo da aquisição a favor da segunda ré, designadamente a inscrição G-2 AP. ...07” (cfr. cópia da sentença de fls. 132 a 136).

5) No âmbito do processo executivo movido por P..., Ld.ª contra CC, DD e R..., Ld.ª, que correu termos sob o nº 2984/04...., pelo ... Juízo Cível do Tribunal Judicial ... foi penhorada a fração “CP” em data posterior à venda a que se alude em 1) (cfr. inscrição F-3 constante de fls. 37, da descrição predial relativa à fração “CP”).

6) Penhora essa que foi registada através da inscrição F-3 Ap. ...05 (cfr. Inscrição F-3 constante de fls. 37, da descrição predial relativa à fração “CP”).

7) No processo executivo identificado em 5), em 6 de novembro de 2007, teve lugar a venda judicial da fração penhorada, mediante propostas em carta fechada, tendo sido aceite a proposta apresentada pela primeira ré Intercausas – Unipessoal, Ld.ª, no valor de € 32.500,00 (cfr. título de transmissão e auto de abertura de propostas em carta fechada de fls. 242 e 242/verso a 243, respetivamente).

8) Por conseguinte, foi-lhe adjudicado o aludido imóvel, após o pagamento integral do preço (cfr. título de transmissão e auto de abertura de propostas em carta fechada de fls. 242 e 242/verso a 243, respetivamente).

9) A aquisição da propriedade da referida fração foi registada pela primeira ré Intercausas – Unipessoal, Ld.ª, constando da inscrição G-3, AP. ...07 (cfr. inscrição G-3 constante de fls. 37/verso, da certidão da descrição predial relativa à fração “CP”).

10) Posteriormente, por escritura pública celebrada a 15 de julho de 2008, a primeira ré Intercausas – Unipessoal, Ld.ª declarou vender aos segundos réus, que, por sua vez, declararam comprar, a aludida fração, pelo preço de € 60.000,00 (cfr. certidão da escritura de fls. 248/verso a 251).

11) Tal aquisição foi registada, constando da Ap. ...7 de 2008/07/15 (cfr. inscrição G-5 constante de fls. 37/verso, da descrição predial relativa à fração “CP”).

12) O preço da compra e venda referida em 10) foi financiado pelo ..., através de acordo de mútuo, cujo reembolso foi garantido, entre o mais, através da constituição de duas hipotecas sobre o imóvel registadas sob as Aps. ...8 e ...9, ambas de 2008/07/15 (cfr. escrituras de mútuo com constituição de hipoteca de fls. 248/verso a 258 e inscrições C-4 e C-5 constantes de fls. 37/verso e 38, da descrição predial relativa à fração “CP”).

13) A ação que correu termos sob o nº 1118/09...., no J..., Secção Cível, Instância Local ..., Tribunal da Comarca ..., foi inscrita no registo predial através da .... de 2593 de 2012/07/31 (cfr. AP. ...93 constante de fls. 24/verso, da descrição predial relativa à fração “CP”).

14) Na ação referida em 13):

a) Foi apresentada petição inicial, na qual a ali autora (a sociedade ORCAMA) pediu a condenação dos ali réus 1) CC e DD, 2) C..., L.DA (doravante C...) e 3) INTERCAUSAS:

“A) A reconhecer o direito de propriedade pleno da Autora sobre a fração autónoma “CP”;

B) Ser declarada a nulidade da venda judicial da mesma fracção efectuada a favor da terceira Ré.

C) Ser declarada a nulidade do contrato compra e venda da sobredita fração, celebrado entre os primeiros réus e a segunda ré;

D) Proceder-se ao cancelamento do registo da aquisição a favor da segunda Ré, designadamente, a inscrição G-2 AP. ...07;

E) Proceder-se ao cancelamento do registo da aquisição a favor da Terceira Ré, designadamente, a inscrição G-3 AP. ...07” (cfr. certidão de fls. 156 a 163; vd. maxime fls. 156/verso a 161)”

b) Foi proferido despacho a 24.07.2012, no qual indeferiram os pedidos formulados nas als. A) e B), da petição inicial, “face à impossibilidade do seu conhecimento” (cfr. certidão de fls. 156 a 163; vd. maxime fls. 161/verso a 163);

c) No despacho aludido em b), consignou-se que os pedidos a conhecer nessa ação eram os seguintes:

“A) As rés sejam condenadas e reconhecer o direito de propriedade pleno da A. sobre a fração autónoma “CP”;

C) Ser declarada a nulidade do contrato de compra e venda da sobredita fração, celebrado entre os 1º RR e a 2ª R;

D) Proceder-se ao cancelamento do registo da aquisição a favor da 2ª R., designadamente, a inscrição G-2 AP. ...07” (cfr. certidão de fls. 156 a 163; cfr. maxime fls. 162/verso).”

d) No despacho referido em c), determinou-se o registo da ação (cfr. certidão de fls. 156 a 163; vd. maxime fls. 163).

e) Foi proferido despacho a 26 de junho de 2013, a admitir o incidente de intervenção principal provocada de BB e AA (cfr. cópia dos despachos que consta de fls. 127 a 128), tendo estes sido citados em data anterior a 02 de agosto de 2013 (cfr. cópia dos AR’s de fls. 121 e 121, os quais, sendo ilegíveis quanto à data da sua assinatura, deles consta o registo de entrada na Secretaria do Tribunal a 02.08.2013).

15) A primeira ré e os segundos réus desconheciam que a autora tivesse adquirido a fração em 1997 (facto admitido por acordo).



֎



Parte II – O Direito

A questão que se discute no presente recurso de revista, admitido a título excepcional pela Formação de Juízes Conselheiros a que alude o artigo 672.º n.º 3 do Código de Processo Civil, centra-se, como já foi mencionado, em saber se os adquirentes do mesmo imóvel em sucessivas vendas judiciais são terceiros entre si para efeito do disposto no artigo 5.º do Código de Registo Predial, sendo oponível ao primeiro adquirente, que não registou a aquisição do direito de propriedade, a aquisição posterior do direito de propriedade devidamente registada.

Isto também porque, nos termos do artigo 291.º do Código Civil, a declaração de nulidade de negócio jurídico respeitante a bens imóveis não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens a título oneroso por terceiro de boa-fé se o registo da aquisição for, como é o caso, anterior ao registo da acção de nulidade.


1. Como se salienta no acórdão que admitiu o recurso de revista a título excepcional, “a matéria atinente ao conceito de terceiros para efeitos de registo motivou e continua a motivar um amplo tratamento doutrinário e jurisprudencial, tendo tal questão dado origem aos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de fixação de jurisprudência nºs 15/97, de 20.05.1997, e 3/99, de 18.05.1999 e motivado a alteração do artigo 5.º do Código de Registo Predial (cfr. DL 533/99, de 11.12).”

Atentemos então, ainda que brevemente, nos termos em que a questão se tem colocado e resolvido.


2. Dispõe o artigo 5.º n.º 1 do Código de Registo Predial que “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo”.

Esta regra visa tutelar, como é pacífico, a finalidade primordial do instituto do registo predial: dar publicidade à situação jurídica dos prédios em ordem a tornar seguro o seu comércio jurídico, protegendo os interesses de terceiros.

Sendo obrigatoriamente sujeitos a registo determinados factos com reflexo sobre a situação jurídica dos prédios, “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define” (artigo 7.º do Código de Registo Predial).

Por sua vez o n.º 4 do citado artigo 5.º – na redação dada pelo Decreto Lei 533/99 de 11 de dezembro – esclarece que “terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.”


3. Como salienta Rita Sofia Duarte Nobre na sua tese de mestrado forense intitulada “Resenha jurisprudencial sobre o conceito de “Terceiros” para efeito de Registo – o Artigo 5.º do Código de Registo Predial” apresentada sob a orientação do Professor Doutor Henrique Sousa Antunes (Faculdade de Direito – Escola de Lisboa da Universidade Católica Portuguesa disponível para consulta em www.repositorio.ucp.pt), mesmo perante a actual redação do citado artigo 5.º n.º 4 do Código de Registo Predial, introduzida na sequência da publicação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para Uniformização de Jurisprudência n.º 3/99, continuam a descortinar-se duas grandes linhas interpretativas do conceito de terceiro para efeito de registo:

- uma concepção restrita ou tradicional, adoptada por largo sector da doutrina e da jurisprudência;

- uma concepção ampla.


4. De acordo com a primeira, “terceiros para efeitos de registo predial são as pessoas que do mesmo autor ou transmitente adquiram direitos incompatíveis (total ou parcialmente) sobre o mesmo prédio” – assim Manuel de Andrade – Teoria Geral da Relação Jurídica Volume II – Almedina 1972 a página 19.

Tal concepção é justificada com o modo como se encontra organizado o instituto do registo predial e com as suas funções, mais concretamente, com a circunstância de o registo não poder assegurar a efectiva existência do direito na titularidade da pessoa a favor de quem se encontra registado, mas apenas que, a ter existido, ele ainda se conserva inscrito como tal [1].

Associada inicialmente a esta concepção está a ideia de que a dupla transmissão do direito por parte do mesmo transmitente a diferentes e sucessivos adquirentes tenha tido lugar de forma voluntária.


5. De acordo com a concepção ampla, alegadamente mais apta a satisfazer as exigências da segurança do comércio jurídico, terceiros são aqueles que adquirem do mesmo transmitente direitos incompatíveis sobre a mesma coisa, independentemente de a transmissão ter sido efectuada de forma voluntária ou não, abrangendo, portanto, “aqueles cujos direitos, adquiridos ao abrigo da lei, tenham esse alienante como sujeito passivo, ainda que ele não haja intervindo nos atos jurídicos (penhora, arresto, hipoteca judicial, etc.) de que tais direitos resultam” [2].


6. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para Uniformização de Jurisprudência 15/97 de 20 de maio, viria a pronunciar-se sobre a contradição de julgados a propósito do conceito de terceiros para efeito de registo predial. E, ainda que apenas por maioria, fixou jurisprudência de forma a tutelar direitos de diferente natureza, independentemente do modo de transmissão  [3], tendo adoptado uma concepção de terceiro para efeito de registo predial mais ampla do que a concepção tradicional.

E fixou jurisprudência nos seguintes termos: “Terceiros, para efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente”.


7. O Supremo Tribunal de Justiça proferiu, no entanto, menos de dois anos depois, novo Acórdão para Uniformização de Jurisprudência versando sobre o conceito de terceiro para efeitos de registo predial. Fê-lo no Acórdão para Uniformização de Jurisprudência 3/99 de 18 de maio, uniformizando jurisprudência nos seguintes termos: “Terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5.º do Código do Registo Predial, são os adquirentes de boa-fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa”.

O segmento uniformizador adoptado, inserindo-se aparentemente na linha da concepção restrita e tradicional, introduz a exigência da boa-fé do terceiro adquirente e esclarece na sua fundamentação que não releva em termos absolutos a diferença entre a forma como o direito foi transmitido – se por acto voluntário se por outro acto apto a transferir o direito registado – assumindo aquilo a que alguma doutrina apelida de concepção intermédia de terceiro para efeitos de registo predial.


8. Na sequência da publicação do Acórdão para Uniformização de Jurisprudência 3/99 o legislador, assumindo claramente posição na questão e a adesão à lição do Professor Manuel de Andrade, assumiu o conceito legal de terceiro para efeitos de registo predial no artigo 5.º n.º 4 do Código de Registo Predial, na redação dada pelo Decreto-Lei 533/99 de 11 de dezembro: “terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.”

A utilização do termo “autor” na definição legal do conceito de terceiro parece exprimir mais claramente a intenção do legislador de se referir ao autor do acto gerador do conflito – nesse sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de outubro de 2007, de que foi relator o Conselheiro Silva Salazar.

O Tribunal Constitucional também já se pronunciou sobre a constitucionalidade da adopção pelo legislador do conceito restrito de terceiro para efeito de registo, concluindo pela sua conformidade com a Constituição da República Portuguesa [4].


9. Ainda que não tenham ficado definitivamente resolvidas com a discussão de que se deu conta todas as questões que andam associadas às diversas situações que convoquem a aplicação do artigo 5.º n.º 1 e 4 do Código de Registo Predial, tal como expresso no texto do Acórdão para Uniformização de Jurisprudência 3/99 de 18 de maio, nenhuma dúvida relevante se levanta quando os direitos em confronto têm a mesma natureza e chegam á titularidade dos adquirentes pela mesma forma, provenientes do mesmo titular: seja por via negocial directa entre o anterior titular e o adquirente seja por via de transmissão legalmente operada, nomeadamente por via de adjudicação em venda judicial.

Nessas situações são inequivocamente terceiros entre si para efeito de registo predial aquele a quem o direito foi transmitido em primeiro lugar, mas que não registou a aquisição derivada do direito e aquele a quem o direito foi transmitido em segundo lugar, mas promoveu diligentemente tal aquisição [5].


10. A partir da entrada em vigor do Decreto-Lei 116/2008, de 4 de julho e da actual redação do artigo 2.º n.º 1 a) e do artigo 8.º-A n.º 1 a) do Código de Registo Predial, os factos que determinem a constituição ou modificação do direito de propriedade sobre imóveis estão obrigatoriamente sujeitos a registo.


11. Nos presentes autos está assente de que foi adjudicado à autora no âmbito de uma venda judicial realizada em 1997 o direito de propriedade sobre uma fracção de um imóvel.

Mais está provado que a autora só promoveu o registo da transmissão a seu favor do mencionado direito de propriedade sobre o imóvel em dezembro de 2007 e que tal registo provisório caducou dada a existência de um registo anterior de aquisição do direito de propriedade pela primeira ré, a quem tinha sido igualmente adjudicado em venda judicial concretizada em novembro de 2007.

Os direitos de propriedade sucessivamente adquiridos pela autora e pela primeira ré são naturalmente incompatíveis e a primeira ré e os segundos réus estão de boa-fé porque desconheciam ter sido anteriormente adjudicado à autora o mesmo direito.


12. Dado o disposto no artigo 5.º n.º 1 do Código de Registo Predial a aquisição derivada do direito de propriedade sobre o imóvel só produz efeitos contra terceiros a partir da data do respectivo registo.

Daí que, apesar do seu carácter erga omnes, o direito de propriedade de que a autora era titular não registada aquando da realização da venda judicial em que o mesmo direito de propriedade foi adjudicado à primeira ré, não produza qualquer efeito em relação a ela e aqueles a quem esta os transmitiu.

Como se escreve no acórdão recorrido “caso o adquirente e titular do direito, não registe a sua aquisição, não pode opor o seu direito contra terceiros, ou seja, não pode invocar perante terceiros a eficácia erga omnes do seu direito.”


13. Tendo a primeira ré, desconhecedora da anterior transmissão do direito de propriedade sobre a fracção a favor da autora, registado a aquisição derivada do direito de propriedade que lhe foi adjudicado em posterior venda judicial, a tutela da confiança decorrente da publicidade do registo acerca da situação jurídica dos prédios impõe que a autora – primeira adquirente que não registou a aquisição – e relativamente a quem a primeira ré é terceira, não possa opor-lhe o seu direito de propriedade, porque tal facto só produziria efeitos depois da data do registo.

Nessas circunstâncias, conclui-se, a aquisição do direito de propriedade, devidamente registada por parte da primeira ré prevalece sobre a anterior aquisição não registada do direito de propriedade por parte da autora.


14. Resta dizer, com o acórdão recorrido, que o reconhecimento da ineficácia da transmissão não registada do direito de propriedade a favor da autora em relação à primeira ré se repercute na esfera jurídica dos segundos réus em termos tais que, sendo válida em relação a ela a oposição à produção de efeitos da aquisição não registada pela autora também a posterior venda aos segundos réus se deve considerar válida e operante, “não lhe podendo ser opostos vícios baseados na falta de direito do transmitente que não valem contra o próprio transmitente.”


15. Em conclusão, carecem de fundamento as conclusões das alegações de revista apresentadas pela autora.

Sendo o registo da aquisição do direito de propriedade obrigatório, a tutela da confiança em relação à situação jurídica dos prédios inerente ao instituto do registo predial – que é indispensável à segurança do comércio jurídico – faz com que não possa produzir efeitos contra terceiro adquirente de boa fé a aquisição anterior do direito de propriedade sobre o mesmo bem imóvel não registada.

Para efeito do disposto no artigo 5.º n.º 1 do Código de Registo Predial são terceiros entre si os sucessivos adquirentes do direito de propriedade sobre o mesmo imóvel em duas vendas judiciais sucessivamente realizadas no âmbito de diferentes acções executivas.


16. Tendo a autora ficado vencida suportará as custas relativas ao recurso de revista.



֎                ֎




DECISÃO

Termos em que, julgam improcedente o recurso de revista e confirmam integralmente o acórdão recorrido.

As custas da revista ficam a cargo da autora / recorrente.


Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 28 de março de 2023


Manuel José Aguiar Pereira (Relator)

Jorge Manuel Leitão Leal

Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor


_______________________________________________________

[1] Assim, Manuel de Andrade, obra citada a página 20.
[2] Assim os Professores Antunes Varela e Henriques Mesquita in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 127 a página 20. 
[3] Estava em causa a oponibilidade entre a aquisição do direito de propriedade não registada e a constituição de um direito de garantia sobre o mesmo imóvel promovida por um credor do mesmo transmitente.

[4] Acórdão 345/2009, de 8 de julho
[5] Em sentido oposto, porém, o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 30 de setembro de 2014 na revista 3959/05.8TBSXL.L1.S1, em que estavam em causa duas vendas em execução sucessivas, fazendo prevalecer a ideia de que com a primeira venda se extinguiram os direitos de garantia de que viria a resultar a segunda venda.