USUCAPIÃO
BENS DO DOMÍNIO PÚBLICO
DOMÍNIO PRIVADO DA AUTARQUIA
Sumário

I - A área que os AA. pretendem ver adquirida por usucapião está na titularidade do Município.
II – No caso, a parcela em questão destina-se a uso público e o facto de se ter tornado inacessível, em virtude da actuação do antecessor dos AA., não implica a sua desafectação do domínio público, pois esta pressupõe ou uma declaração expressa do titular ou pelo menos que esta desafectação se possa retirar da conduta do titular, mas para a qual não se basta uma mera inércia; é necessário um abandono intencional por parte deste, o que os AA. não lograram demonstrar.
III - Não logrando os AA. demonstrar os pressupostos da desafetação tácita, não se pode considerar que a “rua particular” tenha ingressado no domínio privado da autarquia e desta forma, resulta que por força do art.º 19º do DL n.º 280/2007 a parcela em causa é insusceptível de aquisição por usucapião por parte dos AA.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Parcial

Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
A; B e intentaram a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra M; D e mulher E; F e mulher G; H e I, pedindo:
“a) Serem os réus condenados a reconhecer que os autores são donos e legítimos proprietários do logradouro, com área de 21,2132 m2, contiguo a poente ao seu imóvel sito na Rua…, descrito na Conservatória do Registo Predial de Agualva-Cacém sob o n.º … inscrito na matriz predial urbana da União de Freguesias do …
b) serem os 4.ºs réus condenados a retirar o portão existente no muro que divide a norte a propriedade dos autores da propriedade daqueles, repondo a integral construção do muro, sob pena de ficarem a pagar indemnização, num valor diário de € 7,50 (sete euros e cinquenta cêntimos) desde a citação até à reposição integral do muro, com o valor global as ser determinado em execução de sentença.”
Para tanto, alegaram, em síntese, que são os únicos herdeiros de X, que era proprietário e possuidor do prédio urbano sito na Rua…, onde residiu, com os ora Autores, desde 1979 até à data do seu falecimento, inclusive durante o período em que tal imóvel foi propriedade de Y e cônjuge, a ora Ré H. O referido imóvel confronta a nascente com a Rua …, a poente com Rua Particular, a norte com os 4.º Réus, os herdeiros de Y, e a sul com os 2.º réus, D, e mulher E e os prédios n.º 8, 10 e 12 da Rua … confrontam a poente com Rua Particular, a qual confronta, ainda, a Nascente e a Norte com prédio sito na Rua P…, e a Sul com a Rua A….
Mais alegaram que, desde que há memória, aquela rua particular foi utilizada pelos proprietários daqueles prédios para acederem às “traseiras” das suas casas e, por volta do ano de 1983, o falecido X construiu um muro, no limite sul do seu prédio, em sentido nascente até à propriedade dos 4.ºs Réus, tendo tal muro restringido a área de 21,2132 m2, correspondente à rua particular, contígua, a poente, ao prédio n.º 8, passando a mesma a ser utilizada como seu logradouro e que tal utilização daquele espaço ocorreu desde então, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente, sem qualquer oposição, incluindo dos Réus.
Alegaram ainda que, por força da amizade existente entre o falecido X e o já falecido Y, foi colocado um portão de acesso entre aquela área e o logradouro do prédio da propriedade deste último, mas tal portão foi colocado com uma finalidade específica, tendo, entretanto, deixado de ter qualquer uso e/ou utilidade.
Concluem que adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade sobre aquela área da rua particular e que a tal não obsta o facto de se tratar de uma “rua”, uma vez que integra o domínio privado, sendo, por isso, alienável e susceptível de ser adquirida por usucapião, motivo pelo qual pretendem que seja reconhecida aquela aquisição e que o supra referido portão seja retirado e reposta a construção do muro.
*
O Réu M apresentou contestação, na qual, em suma, se defendeu por impugnação, alegando ainda que, em 1988, o falecido X apresentou um projecto de legalização de um muro com interior de divisão, mas sem juntar qualquer elemento que permitisse a sua localização, tendo tal pedido sido indeferido.
Mais alegou que, em 1989, o falecido X apresentou um novo projecto de alterações introduzidas em obra e ampliação a realizar no imóvel de que era proprietário, mas tal projecto não mencionava o muro e o Requerente foi intimado para proceder à demolição das obras.
Alegou ainda que os Autores não dispõem de qualquer título para proceder à utilização do espaço em causa, sendo essa utilização de má fé, impugnando ainda que essa utilização tivesse sido ininterrupta.
Mais alegou que a parcela em causa consta do cadastro público como sendo do domínio público, o que impede a sua aquisição por via da usucapião, face ao previsto no Decreto-Lei n.º 280/2007 de 07.08. e n.º 2 do artigo 202.º do Código Civil, concluindo, assim, pela total improcedência da acção.
*
Contestou o Réu I, impugnando os factos invocados pelos AA., embora reconhecendo que viu o falecido X e os Autores a residirem no prédio sito na R….
Alegou ainda que o portão da moradia onde sempre habitou com os seus pais sempre esteve na parte que confina com a rua particular aberto, muito antes dos Autores ocuparem essa rua com objectos seus como se fosse uma arrecadação, que vieram mais tarde a fechar com um portão.
Mais alegou que o Réu e seus pais utilizaram sempre o portão das traseiras da sua moradia e só deixaram de utilizar tal portão porque não tinham a chave do outro portão que o falecido X colocou, na parte que ocupou da rua particular.
Conclui que tal rua particular não é um mero caminho ou atravessadouro, mas é do domínio público e, por conseguinte, não pode ser objecto de apropriação, por usucapião.
*
Os demais Réus, citados, não apresentaram contestação.
*
Por decisão de 4/5/2021, proferida no apenso A, declararam-se habilitados GG e FF para intervir nos autos principais em substituição dos Réus G e F, os quais foram citados e não apresentaram contestação.
*
Dispensou-se a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, dispensou-se a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova e realizou-se audiência de discussão e julgamento, tendo a final sido proferida Sentença a julgar improcedente a presente acção, por não provada e, em consequência os RR. forma absolvidos dos pedidos.
*
Inconformados com a Sentença proferida dela recorreram os AA., formulando as seguintes Conclusões:
“1. Andou mal o Tribunal a quo, salvo o devido respeito, em julgar a ação totalmente improcedente, dando como provados e não provados os factos descritos na sentença.
2. Bem como ao extrair as conclusões de direito, nomeadamente no que diz respeito à desafetação tácita e à aplicação do prazo da usucapião.
3. Os Recorrentes não aceitam, salvo o devido respeito e melhor opinião, os factos dados como não provados nos pontos II), III), V), VI), VII), VIII) IX) e X).
4. Conforme resulta da prova testemunhal, nomeadamente das declarações prestadas pela testemunha HS, que viveu desde 1972 na Rua …, aquela Rua Particular, como é vulgarmente designada, servia apenas e só os moradores das casas da referida Rua ….
5. Resultando inequívoco que aquele local era usado exclusivamente pelos moradores.
6. Pese embora não estivesse vedado o acesso a terceiros porque é um local aberto, não deixa, só por esse motivo de ser propriedade privada. Veja-se a este propósito as declarações da Testemunha HS, gravação n.º 20220303104209_4254158_2871304, minuto de 02:50 até minuto 06:22:
[…]
Veja-se a este propósito as declarações da Testemunha HS, gravação n.º 20220303104209_4254158_2871304, minuto de 08:41 até minuto 09:53:
[…]
10. Vem o doutor tribunal a quo dar o facto descrito o ponto II) como não provado em virtude do depoimento das testemunhas AA e CF, em detrimento do depoimento da testemunha HS.
11. É verdade que a testemunha CF declarou poder estacionar, naquele local, em frente ao imóvel número 10.
12. No entanto, faz o Douto Tribunal a quo tábua rasa da sua justificação: apenas o fazia quando ia para a casa dos Autores.
13. Tinha essa permissão apenas e só quando era visita da casa daqueles!
14. A testemunha AA referiu também no seu depoimento, credível e isento, que querendo podia ali estacionar.
15. Mas, mais uma vez veio o Tribunal a quo, salvo o devido respeito, descontextualizar essas mesmas declarações.
16. Pois que, tal como a testemunha CF, AA referiu poder ali estacionar quando ia visitar o seu amigo José Pereira, pai e marido dos autores, e proprietário do imóvel sito na Rua ….
17. Por outro lado, não existia nenhuma sinalização que fosse proibido estacionar.
18. Mas, não pode o tribunal a quo, salvo melhor entendimento, fazer tábua rasa da existência de um portão naquele local,
19. E consequentemente da proibição de estacionamento prevista no Código da Estrada, sem necessidade de qualquer sinalização adicional.
20. Por todos os factos invocados, não pode, salvo o devido respeito, colher o entendimento do douto Tribunal a quo no sentido de afirmar que aquela rua não servia apenas os moradores daqueles imóveis, número 8, 10 e 12, porquanto não estava vedado o acesso ao mesmo e porque não era generalizado que não pudesse aquele local ser usado.
21. Ficou demais evidente, pela prova produzida, que apenas usava aquele local os moradores daqueles imóveis e as pessoas por si autorizadas!
Veja-se a este propósito as declarações da Testemunha AA, gravação n.º 20220303113540_4254158_2871304, minuto de 02:43 até minuto 05:05:
[…]
22. Pelo que, salvo o devido respeito, andou mal o Tribunal a quo ao dar como não provado o ponto V) dos factos não provados da douta sentença.
23. Resulta também dos autos, nomeadamente da prova testemunhal, mas que o douto Tribunal a quo não valorou, que já muito antes da construção do muro/portão aquela área era usada exclusivamente pelo falecido X, e seus familiares, Autores, aqui Recorrentes.
24. O que significa, que andou mal o Tribunal a quo, salvo o devido respeito, ao dar como não provado que os Autores usam aquela área interruptamente desde 1983. (Ponto VI dos factos não provados)
25. Veja-se que estamos perante uma utilização à vista de todos, inclusive do M, nestes autos 1.º Réu.
26. Não resta qualquer dúvida que o M era conhecedor da utilização feita pelos Autores daquele local.
27. Prova essa carreada para os autos pelas testemunhas ouvidas, nomeadamente a testemunha HS, tendo este afirmado que o M se deslocou àquele beco, em virtude de um entupimento das caixas de esgoto.
28. Ademais, resulta do depoimento da Engenheira CM, que foram os próprios Autores, a dar entrada junto daquele Réu de um requerimento de legalização daquele muro.
29. Requerimento que viria a ser deferidos, após embargo e consequente legalização!
30. Ora, o M, nestes autos 1.º Réu, não pode, salvo melhor opinião, desconhecer a realidade em causa.
Veja-se a este propósito as declarações da Testemunha HS, gravação n.º 20220303104209_4254158_2871304, minuto de 07:59 até minuto 08:40: […]
31. Assim, sempre se dirá que o uso daquele local sempre decorreu à vista do Município, sem que este nada dissesse, quando o poderia ter feito.
32. Posição que não assumiu por reconhecer expressamente que aquele beco, Rua Particular como vulgarmente é denominada, não tinha qualquer utilidade pública.
33. Pelo que sempre se dirá que deve ser dado provado o ponto VII dos factos não provados.
34. Os autores, fizeram daquele local o seu jardim, por sempre o terem visto como seu!
35. Tendo ficado demonstrado que o pequeno portão foi colocado, após o portão grande que delimitou o espaço, e apenas para servir de entrega ao Y de caixas de fruta para os seus animais.
36. Não tendo existido qualquer prova, quer documental quer testemunhal em contrário.
Veja-se a este propósito as declarações da Testemunha HS, gravação n.º 20220303104209_4254158_2871304, minuto de 11:45 até minuto 13:09: […]
37. Pelo que dúvidas não restam que o facto descrito no ponto IX dos factos não provados, tem necessária de ser dado como provado, porquanto não foi feita qualquer prova cabal da utilização por parte de Y e sua família daquele portão!
38. Face a todo o exposto, e tendo em consideração toda a prova produzida, que documental quer testemunhal, e após a sua conjugação, dúvidas não resta que andou mal o Tribunal a quo ao dar como não provados os pontos II), III), V), VI), VII), VIII), IX) e X), devendo essa decisão ser alterada e os mesmos serem dados como provados.
39. Sem prejuízo da apreciação dos factos provados e não provados, e mesmo considerando que a decisão sobre aqueles não merece qualquer alteração, a verdade é que andou mal o tribunal a quo na aplicabilidade do direito ao caso dos autos.
40. A Rua Particular, como é vulgarmente denominada, é, salvo melhor entendimento, da titularidade privada do estado.
41. Encontrando-se preenchidos, ao contrário da posição assumida pelo Tribunal a quo, todos os pressupostos da desafetação tácita.
42. Resulta do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, datado de 26/06/2014, processo n.º 1174/12, só ocorre a cessação da dominialidade quando o bem público em causa deixe de servir o fim de utilidade pública, passando a ser utilizado e/ou usufruído pelos particulares, e assim integrar o domínio privado.
43. In casu, dúvidas não restam que aquele local, pelo menos desde 1972, data em que a testemunha HS passou ali a viver, não teve qualquer utilidade publica, porquanto, era um local usado apenas por aqueles particulares e não outros!
44. Resultou claro e inequívoco que não logravam lá entrar terceiros não convidados!
45. Nunca tendo existido qualquer oposição fosse de quem fosse.
46. Ora, não restam dúvidas, que estamos perante um total abandono do local em causa por parte da administração pública.
47. É o próprio M, aqui recorrido, quem pelo menos desde 1972, abandonou propositadamente aquele local.
48. Sabia e reconhecia que aquele local não tinha, nem tem qualquer utilidade pública, integrando o domínio privado do estado.
49. Tendo existido, salvo melhor opinião, uma clara intenção de abandono por parte da administração pública, in caso 1.º Réu, aqui Recorrido M.
50. O 1.º Réu, M, não deixou apenas de cuidar do local em causa e de o manter como se de domínio publico se tratasse,
51. Recusou-se inclusivamente a realizar quaisquer obras de manutenção, alegado ser propriedade privada!
Veja-se a este propósito as declarações do autor B, gravação n.º 20220406154826_4254158_2871304, minuto 07:51 a minuto 09:26: […]
52. Ora, a atuação do 1.º Réu, aqui Recorrido, M mais não é do que uma atuação inequívoca de abandono daquele local.
53. Verificando-se preenchido o pressuposto da desafetação tácita – o claro abandono daquele local enquanto utilidade pública.
54. Não se aceitando, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo tenha feito tábua rasa do comportamento assumido pelo Município.
55. O Tribunal a quo andou mal quando não valoriza o depoimento do Autor B,
56. Em prol do depoimento do Réu I, invocando a tenra idade daquele,
57. Quando na verdade, à data da recusa do Município em entrar naquele local por ser propriedade privada o Autor tinha 16 anos!
58. Não será o comportamento do 1.º Réu, Município, um ato direto e inequívoco de abandono?
59. Não é esta atuação suficiente para concluir que este quis intencionalmente abandonar o local? Estamos em crer que sim.
60. Pelo que estão preenchidos todos os pressupostos da desafetação tácita, devendo a decisão do tribunal a quo ser substituída por outra que considere aquele local denominado Rua Particular como de domínio privado, e consequentemente suscetível de aquisição por usucapião.
61. Os Autores, aqui Recorrentes usam aquele espaço desde pelo menos 1989.
62. Posse essa, nos termos e para os efeitos previstos no número 2 do artigo 1260.º do Código Civil, não titulada e presumivelmente de má fé.
63. A referida presunção pode ser afastada sempre que se demonstre que os Autores atuaram sem consciência de estarem a lesar o direito de outrem.
64. Resulta do disposto no número 1 do artigo 1260.º do Código Civil que “A posse diz-se de boa fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem.”
65. In casu, os Autores aqui Recorrentes, desde que passaram a viver naquele imóvel, sito na rua …, número 8, sempre usaram aquele espaço como se de verdadeiros proprietários se tratassem, tal como já vinha ocorrendo com os restantes proprietários dos números 10 e 12.
66. Conclusões que podem ser retiradas das declarações da testemunha HS que ali viveu desde 1972, no número 12, e que também ele sempre usou o espaço correspondente à sua propriedade, como sendo seu.
67. O que, tal como já ficou amplamente demonstrado, também era posição assumida por todos os outros proprietários, incluindo o falecido X.
68. Pese embora se presume que a posse dos Autores é de má fé, por não titulada, a verdade é que da conjugação da prova produzida não restam dúvidas que que os Autores ilidiram a presunção.
69. Não existia, nem tinha como existir, atendo os factos demonstrados, qualquer consciência dos autores de lesarem o direito de outrem.
70. Os Autores, aqui recorrentes, tomaram a posse do referido local por considerarem fazer parte do seu imóvel.
71. E por nunca ter existido oposição de nenhum terceiro, quer seja particular quer seja o próprio município, ao seu uso e à sua posse.
72. O uso daquele espaço sempre decorreu à vista de todos.
73. Tendo o próprio M afirmado ser “propriedade privada”.
74. Pelo que a posse dos Recorrentes é de boa fé, porquanto não tinham como conhecer que lesavam o direito de outrem.
75. Encontrando-se assim ilidida a presunção prevista no número 2 do artigo 1260.º do Código Civil.
76. O que quer dizer que nos termos do disposto no artigo 1269.º do Código Civil, a usucapião dá-se pelo decurso do prazo de 15 anos.
77. Por outro lado, tratando-se de um bem de domínio privado do estado, como acima já ficou demonstrado, o prazo da usucapião corresponde ao prazo aplicável ao caso, acrescido de metade.
78. Que no caso dos autos significa 15 anos de usucapião, por ser uma posse de boa fé (artigo 1296.º do Código Civil) acrescido de 7 anos e meio (metade daquele prazo), ou seja, 22 anos e seis meses.
79. Ora, prazo esse que se encontra cumprido!
80. Passaram pelo menos 31 anos desde a posse do mesmo pelos Autores.
81. Veja-se a este propósito o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 12708/17.7T8PRT.P1, datado de 24/09/2019, do qual resulta que “A lei n.º 54 de 16.7.1913, mantém-se em vigor, não tendo sido revogada pelo art.º 3.º da Lei preambular do Código Civil (Decreto-Lei n. 57344, de 25.11.1966), por se tratar de uma lei administrativa e estar a sua vigência admitida na parte final do artigo 1304.º do referido Código, sendo assim, usucapíveis as coisas que se encontrem na titularidade privada do Estado, desde que, para além dos restantes pressupostos, tenha decorrido o respetivo prazo de usucapião acrescido de metade.” (sublinhado nosso)
82. Caso se entenda, que os Autores não lograram ilidir a presunção da posse de má fé, sempre se dirá que o prazo da usucapião acrescido de metade está cumprido.
83. Resulta do artigo 1296.º do Código Civil que o prazo de usucapião é de 20 anos no caso de posse de má fé, acrescido de metade, conforme resulta da Lei n.º 54 de 16.7.1913, o que significa que para ser usucapível terá de ter decorrido pelo menos 30 dias (20 anos acrescido de 10, metade), o que in casu se verificou.
84. À data da propositura da ação decorreram pelo menos 31 anos desde que os Autores iniciaram a sua atuação.
85. Não resulta de qualquer preceito legal, nem o mesmo está invocado na sentença ora recorrida, que a usucapião só se verifica decorrido o dobro do prazo máximo da usucapião.
86. Não existe qualquer base legal para esta exigência.
87. Não tendo o douto Tribunal a quo invocado qual a base legal que aplicou para sustentar tal decisão!
88. E fez, salvo o devido respeito, erradamente, tábua rasa do disposto na Lei n.º 54 de 16.7.1913, ainda em vigor!
89. No entanto, e aceitando, por mero dever de patrocínio, que a aquisição do direito apenas pode ocorrer decorrido o dobro do prazo máximo da usucapião, a verdade é que sendo a posse de boa fé, como aliás ficou demonstrado, os Autores, aqui Recorrentes, cumpriram o do dobre desse prazo, 15 anos elevado ao dobre, ou seja 30 aos!
90. Pelo que não se aceita nem se concebe a interpretação assumida pelo tribunal a quo.
91. Face a todo o exposto, dúvidas não restam que se encontram cumpridos os pressupostos na desafetação tácita, e consequentemente que aquele local melhor identificado nos autos, é objeto de usucapião aplicando-se o prazo previsto no Código Civil acrescido de metade.
92. Prazo esse que se encontra amplamente verificado quer se dê como provado que a posse é de boa fé quer se dê como não ilidida a presunção do número 2 do artigo 1260.º do Código Civil, e a posse se considere de má fé.
93. Assim, deverá a decisão proferida na douta sentença ser substituída por outra que dê como provada a desafetação tácita daquele local denominado Rua particular, e consequentemente dê como cumpridos todos os requisitos da usucapião, incluindo a verificação do prazo exigido.
94. E Declarar-se os autores proprietários daquele local, e consequentemente dar-se como procedente o segundo pedido dos Autores, aqui Recorrentes, dando a ação totalmente procedente.”
*
Contra-alegou o R. M, concluindo como se segue:
“1. Na sentença recorrida não foi cometido nenhum erro na apreciação da matéria de facto e aplicação da matéria de direito que impusesse uma solução diversa à decidida na aludida sentença, competindo, assim, a este tribunal “ad quem” usar dos seus poderes/deveres (funcionais) de confirmação.
2. Um dos princípios basilares, senão mesmo o fundamental, quanto à prova, é o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 607.º n.º 5 do Código de Processo Civil, nos termos do qual, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, não equivalendo tal princípio, todavia, a prova arbitrária, razão pela qual, a fundamentação da sentença deve conter uma exposição dos factos que o Juiz julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, tomando ainda o Juiz em consideração os factos que foram admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras da experiência.
3. O princípio da livre apreciação da prova, embora constitua um limite à discricionariedade do Juiz, não impede que a decisão do tribunal acabe sempre por ser uma convicção pessoal do Julgador, na medida em que, além dos elementos cognitivos, na sentença também intervêm elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais, pelo que, se a decisão do Juiz, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência comum, tal decisão deverá ser considerada inatacável, uma vez que, a mesma foi proferida segundo um critério legal, isto é, o julgamento segundo a sua livre convicção.
4. O Tribunal ad quem, para alterar a decisão da matéria de facto feita pelo Tribunal de primeira instância segundo os princípios da oralidade e da imediação, tem que ter uma razão muito ponderosa, não podendo basear-se apenas no ponto de vista da sua livre apreciação.
5. Não se verificou qualquer violação do princípio da livre apreciação da prova, tendo o Tribunal proferido uma decisão devidamente fundamentada, optando pela solução mais plausível segundo as regras da experiência comum e a própria lógica.
6. Só poderá falar-se em erro na apreciação da prova quando existe uma desconformidade entre a decisão e a prova produzida ou entre aquela e as regras da experiência, isto é, quando o Tribunal decide contra o que se provou ou não se provou, ou quando deu como provado o que não pode ter acontecido, exigindo-se, no entanto, que tal erro seja de tal ordem patente que não escape à observação do homem de formação média, o que deve ser demonstrado a partir do texto da decisão recorrida por si ou conjugada com as regras da experiência comum, o que não ocorreu no caso concreto.
7. O Tribunal a quo andou bem em julgar não provada a matéria constante da alínea ii), pois, além de o depoimento da testemunha HS se ter circunscrito ao período temporal compreendido entre 1979 e 1997, altura em que deixou de residir no n.º 12 da Rua… (00:02:56.9 a 00:02:59.7) e, por isso, não ser possível, com base em tal depoimento, dar como provada a matéria constante da alínea ii) dos factos não provados, a verdade é que, a testemunha CF deixou claro que não havia qualquer impedimento de acesso àquela via, esclarecendo que qualquer pessoa podia utilizá-la (00:04:41.8 a 00:05:04.1, 00:09:36.8 a 00:10:26.3, 00:10:30.4 a 00:11:52.1, 00:20:43.7 a 00:21:39.9), o que foi confirmado pela testemunha AA (00:16:40.0 a 00:17:10.0), pelo que, deve manter-se inalterado o ponto ii) dos factos não provados.
8. Apesar de nas suas alegações e conclusões de recurso ter referido que o Tribunal a quo andou mal ao julgar não provada a matéria constante do ponto iii), o certo é que, lidas e relidas, quer as alegações, quer as conclusões, constatou a Recorrida que, além de não ter indicado os meios probatórios que impunham decisão diversa, os Recorrentes também não indicaram as passagens da gravação em que se funda o recurso, pelo que, não tendo sido observado o disposto no artigo 652.º do Código de Processo Civil, impõe-se a rejeição do recurso nesta parte.
9. O tribunal a quo andou igualmente bem ao considerar não provado que “Antes da construção do muro, apesar de não estar delimitada, a área referida em 26 apenas era utilizada pelo falecido X e pela sua família” – alínea v), pois, embora os recorrentes defendam que o depoimento da testemunha HS impunha solução diversa, o certo é que, conforme é de mediana compreensão, a menção feita pela referida testemunha à circunstância de a rua particular ser alegadamente utilizada pelos moradores dos n.ºs 8, 10 e 12 da R… é absolutamente irrelevante para a decisão deste ponto da matéria de facto, na medida em que, o que aqui está em causa é a matéria referente à utilização da área mencionada no ponto 26 dos factos provados, concretamente se a mesma era utilizada apenas pelo falecido X e sua família, sendo certo que, a referencia feita pela testemunha quanto à utilização do beco em nada abona a favor da alteração pretendida pelos Recorrentes, porquanto, se efetivamente a denominada rua particular era utilizada por todos os moradores dos n.ºs 8, 10 e 12 da Rua …, tendo em conta que antes da construção do muro a área descrita em 26 dos factos provados não estava delimitada, é impossível concluir-se que a aludida área só era utilizada pelo X e sua família.
10. Diversamente do que os Recorrentes invocam com o intuito de criar a convicção de que existiam áreas delimitadas, a testemunha HS, em momento algum do seu depoimento, mencionou que cada dos moradores dos n.ºs 8, 10 e 12 da Rua … cuidava do seu bocadinho (até porque não haviam vários “bocadinhos”, mas apenas uma rua comum), tendo apenas referido que a aludida rua particular era tratada pelas três famílias (00:04:45.2 a 00:05:07.0), pelo que, dúvidas não existem de que andou bem o Tribunal a quo ao dar como não provada a materialidade vertida na alínea v).
11. Não merece censura a decisão do Tribunal a quo de dar como não provada a matéria vertida na alínea vi) dos factos não provados, sendo certo que, pelo facto de neste ponto do seu recurso os Recorrentes não indicaram os concretos meios de prova que impunham decisão diferente, impõe-se a imediata rejeição desta parte do recurso.
12. O Tribunal a quo andou igualmente bem ao julgar não provada a matéria constante da alínea vii), pois, embora os Recorrentes invoquem que as declarações do AA. (sem indicarem as passagens da gravação em que fundam o seu recurso, o que impede que as mesmas sejam tidas em conta) e os depoimentos das testemunhas HS e CM impunham decisão diversa, o certo é que, atenta a decisão da matéria de facto respeitante às alíneas v) e vii), que pelos motivos já expostos, que aqui damos por reproduzidos, não merece qualquer censura, dúvidas não existem de que não poderia o Tribunal a quo, consequentemente, ter julgado provada a matéria constante da alínea agora em apreciação.
13. Mesmo que tivesse ficado provado que os AA. usam a área referida em 26 dos factos provados desde 1983, o certo é que, o depoimento das testemunhas HS e CM não permitiam que a materialidade vertida na alínea viii) dos factos não provados fosse considerada demonstrada, porquanto, a Testemunha HS (00:09:30.8 a 00:09:40.2) limitou-se a referir, de forma absolutamente vaga, e sem qualquer referência a datas, que o falecido X solicitou a intervenção da Câmara Municipal de Sintra por causa de um problema com os esgotos, ficando sem se perceber qual era o problema, e onde se localizava o problema, o que impede que se retire qualquer conclusão desse relato; e a testemunha CM, como aliás foi dado como provado no ponto 28 e 29, referiu que o requerimento que o falecido X apresentou junto do M com vista à legalização do muro, não se encontrava instruído com quaisquer desenhos técnicos que permitissem aferir da localização ou perímetro do mesmo, razão pela qual o mesmo veio a ser indeferido, conforme resulta do documento de folhas 52 e 52 verso dos autos, pelo que, deve a alínea vii) manter-se inalterada!
14. o Tribunal a quo considerou, e bem, que a matéria constante das alíneas viii) e ix) não ficou provada, sendo certo que, tendo em conta que os Recorrentes alegam que através do depoimento das testemunhas ficou demonstrado que o portão referido em 35 foi aberto para o falecido X entregar ao falecido Y fruta, nem sequer se compreende como é que podem os Apelantes defender que a matéria constante da alínea viii) fosse julgada provada, pois, as testemunhas ouvidas quanto a essa matéria, em momento algum, disseram que o portão pequeno foi aberto para o falecido X e família acederem pela área mencionada em 26 ao prédio descrito em 3 para ali colherem fruta das diversas áreas existentes.
15. O A. B, além de ter trazido aos autos uma versão diferente da alegada na petição inicial, confirmou que o portão pequeno era utilizado para o falecido X entregar fruta ao falecido Y, referindo inclusivamente que este último acedia ao portão para ir buscar fruta (00:11:35.6 a 00:11:38.7), pelo que, impõe-se concluir que o Tribunal a quo andou bem em julgar não provada a matéria constante das alíneas viii) e ix), devendo, por isso, manter-se inalterado tal segmento da sentença.
16. Por estarem cientes da falta de razão que lhes assiste, embora tenham pugnado pela alteração da alínea x), defendendo que a factualidade nela inserta deveria ser considerada provada, os Recorrentes limitaram-se a fazer juízos de mera discordância quanto à decisão do Tribunal a quo, não indicando sequer quais são as provas que impõe decisão diversa, pelo que, deve o recurso ser rejeitado nesta parte.
17. Analisado o segmento do recurso dedicado à matéria de direito, constata-se que os Recorrentes não conseguem sustentar uma alteração desta decisão, sem alterarem a decisão relativa à matéria de facto, pois, começam por alegar que a denominada Rua Particular, pelo menos desde 1972, não tem qualquer utilidade pública, sendo usada apenas por particulares, e de seguida invocam que houve um abandono daquele local por parte do Estado, referindo que, além de ter deixado de cuidar do local, o próprio M se recusou a nele intervir por constituir propriedade privada, o que NÃO FICOU PROVADO.
18. Diversamente do que alegam os Recorrentes, não poderia o Tribunal a quo ter decidido de forma distinta daquela que consta da sentença, pois, resulta dos autos que estamos perante um imóvel que pertence ao domínio público do Estado, na medida em que, não ficou provado, por um lado, que o mesmo passou a ser utilizado por particulares, e, por outro, que tal tenha sucedido por abandono do Estado, pelo que, consequentemente é manifesto que o mesmo não poderia ser adquirido por usucapião, por força do disposto no artigo 19.º do Decreto-lei n.º 280/2007, de 7 de Agosto.
19. Mesmo que resultasse dos autos que a rua particular apenas era utilizada por particulares e que o Estado procedeu ao seu abandono intencional – o que, repete-se, não se verifica – o certo é que, ainda assim se impunha concluir pela improcedência da ação, na medida em que, os Recorrentes não ilidiram a presunção de posse de má-fé a que alude o artigo 1260.º n.º 2 do Código Civil, porquanto, além de não terem alegado que atuaram sem consciência de estarem a lesar direitos de outrem, o certo é que, do próprio depoimento da testemunha HS e das declarações do A. B (transcritos nas alegações de recurso), conclui-se em sentido absolutamente oposto, pois, se efetivamente atuassem com a consciência de que eram verdadeiros proprietários, quando ocorreu a inundação a que fizeram menção, os AA. não teria solicitado que o M aqui R. atuasse com vista à resolução do problema.
20. O não afastamento da presunção faz com que o prazo de usucapião a ter em conta seja de 20 anos.
21. Além disso, conforme resulta do acórdão a que se faz alusão na sentença, a desafetação tácita do bem do domínio público tem de derivar de uma conduta inequívoca de abandono da coisa pela administração, sendo que entre o momento da ocorrência de tal conduta inequívoca de abandono da coisa pela administração deve decorrer um período de tempo correspondente a, pelo menos, o dobro do prazo máximo da usucapião, pelo que, sempre se impunha concluir que não teria decorrido o período de tempo correspondente – 40 anos!
22. A sentença recorrida não merece qualquer censura, devendo, por isso, manter-se inalterada.
23. A sentença recorrida não violou o artigo 17.º e 19.º do decreto-lei n.º 280/2007, de 7 de agosto, nem os artigos 1260.º e 1296.º ambos do Código Civil.
Nestes termos, e nos melhores de direito que V. Exas. douta e superiormente suprirão, deve:
a) Ser imediatamente rejeitado o recurso na parte referente à impugnação dos pontos iii), vi) e x) da matéria de facto;
b) Ser julgado improcedente o recurso, mantendo-se inalterada a sentença recorrida, como é de direito e justiça.”
*
Os restantes RR. não contra-alegaram.
*
Admitido o Recurso e colhidos os vistos cumpre decidir.
*
II. Questões a Decidir:
Como resulta do disposto pelos artigos 5º; 635º, n.º 3 e 639º, n.º 1 e n.º 3, todos do Código de Processo Civil, e é jurisprudência consolidada nos Tribunais Superiores, para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que no caso concreto as questões a apreciar consistem em:
- Da reapreciação da matéria de facto;
- Saber se resulta verificar-se no caso “sub judice” assentes os factos que permitam concluir pela peticionada aquisição por usucapião da parcela em causa.
*
III. Fundamentação:
Foi a seguinte a decisão da primeira instância quanto à matéria de facto:
A. Factos Provados:
1. Por escritura pública outorgada em 16 de Novembro de 1979, no Nono Cartório Notarial de Lisboa, JLC, por si e em representação da sua mulher, …, declarou vender a X, então já casado com A sob o regime da comunhão de adquiridos, “(…) o prédio urbano situado na Rua …”.
2. O prédio urbano mencionado em 1. foi construído em 1956.
3. Na Conservatória do Registo Predial de Agualva-Cacém, desde 29 de Dezembro de 1986, mostra-se descrito sob o n.º 1764 da freguesia de Agualva-Cacém, o prédio urbano denominado “…”, sito na Rua P…, n.ºs 22 e 22-A, composto por casa de rés-do-chão com sete divisões e despensa, com a área de 93,75m2, dependência para garagem com 24,50m2 e logradouro com 423,25m2, …
4. Pela apresentação n.º 3 de 6 de Abril de 1987, mostra-se inscrita a aquisição, a favor de Y, casado com H sob o regime da comunhão geral de bens, do prédio urbano aludido em 3., por compra a…, divorciado.
5. Na Conservatória do Registo Predial de Agualva-Cacém, desde 11 de Dezembro de 1987, mostra-se descrito sob…, o prédio urbano sito na Rua P …, n.º 12, composto por moradia de rés-do-chão com cinco divisões e logradouro total de 179,35m2, a área coberta de 55,40m2 e a área descoberta de 123,95m2, …
6. Pela apresentação n.º 34 de 11 de Dezembro de 1987, mostrava-se inscrita a aquisição, a favor de F, casado com G sob o regime da comunhão geral de bens, do prédio urbano aludido em 5., por sucessão testamentária.
7. Por escritura pública outorgada em 18 de Maio de 1989, no Segundo Cartório Notarial de Cascais, ELC, casado sob o regime da separação de bens e…, viúva, declararam vender a X, então já casado com A sob o regime da comunhão de adquiridos, “(…) um prédio urbano sito na Rua …(…).”.
8. Por escritura pública outorgada em 27 de Abril de 1995, no Cartório Notarial de Rio Maior, X e A, casados sob o regime da comunhão de adquiridos, declararam vender a Y, casado com H sob o regime da comunhão geral de bens, os seguintes bens:
“NÚMERO UM: (…) o prédio urbano, sito na Rua (…);
NÚMERO DOIS: (…) o prédio urbano, sito na Rua (…);”.
9. Por escritura pública outorgada em 6 de Outubro de 1995, no Décimo Oitavo Cartório Notarial de Sintra, Y e H, casados sob o regime da comunhão geral de bens, declararam vender a D, casado sob o regime da comunhão geral de bens com E, “(…) o prédio urbano, destinado exclusivamente à habitação, sito na Rua (…)”.
10. Na Conservatória do Registo Predial de Agualva-Cacém, desde 28 de Junho de 1989, mostra-se descrito sob o n.º 2496 da freguesia de Agualva-Cacém, o prédio urbano denominado “…”.
11. Pela apresentação n.º 20 de 12 de Outubro de 1995, mostra-se inscrita a aquisição, a favor de D, casado com E sob o regime da comunhão geral de bens, do prédio urbano aludido em 10., por compra a Y e H, casados sob o regime da comunhão geral de bens.
12. Por escritura pública outorgada em 26 de Março de 2002, no Primeiro Cartório Notarial de Sintra, Y e H, casados sob o regime da comunhão geral de bens, declararam vender a X, casado sob o regime da comunhão de adquiridos com A , “(…) prédio urbano (…)”.
13. Na Conservatória do Registo Predial de Agualva Cacém, desde 17 de Maio de 2002, mostra-se descrito sob o n.º 13 da freguesia do Cacém, o prédio urbano sito na Rua….
14. Pela apresentação n.º 16 de 17 de Maio de 2002, mostra-se inscrita a aquisição, a favor de X, casado com A no regime da comunhão de adquiridos, do prédio urbano aludido em 13., por compra a Y casado com H no regime da comunhão geral de bens.
15. No dia 17 de Novembro de 2018, faleceu Y, tendo deixado, como herdeiros, o cônjuge H e o filho, I.
16. No dia 29 de Abril de 2019, faleceu X, tendo deixado, como herdeiros, o cônjuge A e os filhos, B e C.
17. Desde Novembro de 1979, X e a sua família (inicialmente a mulher e o primeiro filho, mais tarde também o segundo filho) estabeleceram a sua residência na habitação mencionada em 1.
18. A utilização mencionada em 17. ocorreu ininterruptamente até ao falecimento de X.
19. X e a sua família comportavam-se como proprietários da habitação mencionada em 1., à vista de toda a gente e sem qualquer oposição.
20. O prédio sito na Rua…, n.º 8, confronta:
- a Nascente com a Rua …;
- a Poente com “Rua Particular”;
- a Norte com o prédio sito na Rua…, n.º 6 e com o prédio sito na Rua Professor A…, n.ºs 22 e 22-A, supra mencionado em 3.;
- a Sul com o prédio sito na Rua…, n.º 10, supra mencionado em 10.
21. Os prédios n.º 8, 10 e 12 da Rua ...confrontam a Poente com Rua Particular.
22. A referida rua particular confronta a Nascente e a Norte com o prédio sito na Rua P…, n.º 22 e 22-A, supra mencionado em 3. e a Sul com a Rua P….
23. A referida rua particular não tem saída para qualquer via pública pelo lado Norte, terminando no prédio supra mencionado em 3..
24. Desde data não concretamente apurada, a referida rua particular serve os moradores dos números 8, 10 e 12 da Rua ..., de forma aos seus proprietários acederem às “traseiras” dos respectivos imóveis.
25. Em data não concretamente apurada, mas pelo menos desde 1988, X procedeu à construção de um muro, no limite sul do prédio mencionado em 1., em sentido nascente até ao limite do prédio mencionado em 3..
26. O muro referido em 25. restringiu área não concretamente apurada, correspondente à rua particular, contígua, a poente, ao prédio n.º 8.
27. Passando a área referida em 26. a ser ocupada pelo falecido X e a sua família com mesas de esplanada, cadeiras e guarda sóis, cães, estendais.
28. Em 9 de Março de 1988, X apresentou junto do M, um requerimento nos termos do qual: “(…) pretende legalizar um muro com interior de divisão no prédio na Rua ...N.º 8 – Cacém, requer a V.ª Ex.ª na qualidade de proprietário se digne a conceder-lhe a respectiva licença. (…).”
29. O requerimento mencionado em 29. foi tramitado com a referência OB/2526/1988, não tendo sido instruído com quaisquer desenhos técnicos que permitissem aferir da localização ou perímetro do mesmo, culminando no seu indeferimento.
30. Em data não concretamente apurada, o falecido X substituiu o muro por um portão em “chapa” e pavimentou a área com mosaico próprio para logradouros.
31. O falecido X e a sua família, ora Autores, utilizaram a área mencionada em 26. como se fossem seus donos e com essa convicção.
32. O que vem ocorrendo, sem interrupção, desde, pelo menos, 1988.
33. Tal actuação decorreu à vista dos Réus D e E, dos anteriores proprietários do prédio sito na Rua ...n.º 12, e dos Réus I e H, e sem que estes se opusessem.
34. Sem que para tal o falecido X tivesse recorrido à violência.
35. Decorrente da amizade que existia entre o falecido X e o falecido Y, estes decidiram colocar um portão de acesso entre a área mencionada em 26., a poente do prédio n.º 8 e o prédio urbano mencionado em 3.
36. O portão referido em 35., quando é aberto, abre no sentido da propriedade dos Autores.
37. Decorrente do envelhecimento dos amigos, o portão foi deixando de ser sucessivamente utilizado.
38. Da secção cadastral F da extinta freguesia de Agualva-Cacém, actual freguesia de Cacém e São Marcos, do concelho de Sintra, em regime de cadastro geométrico da propriedade rústica desde 1 de Outubro de 1959, a rua particular mencionada em 20. surge representada como área social de folha.
39. Pela apresentação n.º 3953 de 27 de Janeiro de 2020, mostra-se inscrita a aquisição, a favor de GG e HH, do prédio urbano aludido em 5.
**
B. Factos não provados:
i) A rua particular supra mencionada tem a largura de cerca de três metros e o comprimento de cerca de 25 metros.
ii) A referida rua particular apenas serve os moradores dos números 8, 10 e 12 da Rua ....
iii) O muro mencionado em 25. foi construído em 1983.
iv) O muro mencionado em 25. restringiu uma área de 21,2132m2 da rua particular.
v) Antes da construção do muro, apesar de não estar delimitada, a área referida em 26. apenas era utilizada pelo falecido X e pela sua família.
vi) A utilização da área mencionada em 26. pelos Autores, na forma descrita em 27. a 31, vem ocorrendo sem interrupção desde 1983.
vii) Tal actuação decorreu à vista do Réu M e sem que este se opusesse.
viii) O portão referido em 35. foi colocado apenas e só com o objectivo do falecido X ou a sua família acederem pela área mencionada em 26., quando entendessem, ao logradouro do prédio mencionado em 3., para ali colherem a fruta das diversas árvores existentes.
ix) Nem o falecido Y, nem a sua família (os Réus H e I) deram qualquer utilidade ao portão.
x) Os Autores desconhecem a origem da rua particular e quem seja o seu proprietário.
***
IV. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Dispõe o art.º 640.º do Código de Processo Civil (Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto):
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”
Invoca o Recorrido Município que desde logo deve ser rejeitada a reapreciação das alíneas iii); vi) e x) uma vez que relativamente a estas não observaram os Recorrentes os requisitos impostos pela norma que se acaba de citar.
Ora, efectivamente, quanto à alínea iii) dos Factos Não Provados não alegam os Recorrentes quais os concretos meios de prova relativamente aos quais se poderia fundamentar a decisão diversa. O mesmo ocorre quanto aos Pontos vi) e x) em que os Recorrentes se limitam a referir de forma genérica toda a prova testemunhal produzida e a tecer considerações relativamente á motivação que, no seu entender, deveria levar a que a matéria dessas alíneas fosse julgada provada, sem no entanto concretizar, como impõe o n.º 2, a) do art.º 640º do Código de Processo Civil.
Nestes termos, rejeita-se a reapreciação da matéria de facto relativamente a estas alíneas.
No restante, tendo os Recorrentes dado cumprimento ao preceituado pela norma em causa, impõe-se conhecer da requerida reapreciação da matéria de facto.
*
(…)
*
Desta forma, improcede integralmente a requerida reapreciação da matéria de facto.
*
***
V. Do Direito.
Dispõe o artigo 1316º do Código Civil que “o direito de propriedade se adquire por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei”, estando em causa nos autos a invocada aquisição do direito de propriedade pelos AA. por usucapião de uma parcela com a área de 21,2132m2, contígua a poente ao seu imóvel sito na Rua ..., n.º 8 Cacém,
Nos termos do art.º 1287º do Código Civil, a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação.
Nisto consiste a usucapião, cuja ocorrência, assim, depende de dois elementos essenciais: a posse, por um lado, e o decurso de certo lapso de tempo, por outro, o qual varia conforme a coisa seja móvel ou imóvel.
A posse boa para usucapião é somente a que for pública e pacífica, ou seja, a exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados e adquirida sem coacção física ou moral, nos termos do art.º 255º - cfr. art.ºs 1261º, 1262º e 1297º do Código Civil. Os restantes caracteres da posse - o ser de boa ou má fé, titulada ou não e registada ou não - influem no prazo necessário para a aquisição por usucapião, mas não na aquisição propriamente dita.
A noção de posse é dada, no nosso sistema jurídico, pelo artigo 1251º do Código Civil, que a define como o “poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”.
São conhecidas as concepções objectivista e subjectivista, em relação aos elementos integradores da posse. Para a primeira, a posse conforma-se com um elemento material, “o corpus”, que se identifica com os actos materiais praticados sobre a coisa, ou seja, com o exercício de certos poderes sobre a coisa. Para a segunda, exige-se, além do “corpus”, um elemento psicológico – “animus” – que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados.
A nossa lei acolheu a concepção subjectivista, como claramente resulta dos artigos 1251º e 1253º do Código Civil. Para haver posse, é necessário, além da situação material de exercício de um poder de facto sobre a coisa, a vontade de se comportar como titular do direito correspondente aos actos que se praticam. Se falta o “animus” estamos perante uma mera detenção ou posse precária.
Assim, possuidor é apenas aquele que, actuando por si ou por intermédio de outrem (artigo 1252º, n.º 1 do Código Civil), além do “corpus” possessório, tenha também o “animus possidendi”, ou seja, a intenção de exercer sobre a coisa um direito real próprio.
Donde, por força do disposto no artigo 1253º, deve qualificar-se como simples detenção (e não como posse) todo o poder de facto que se exerça sobre as coisas sem o “animus possidendi”.
O facto de a lei exigir o “corpus” e o “animus” para efeito de haver posse implica que o possuidor tenha de provar a existência dos dois elementos para poder adquirir por usucapião.
Porém, sendo necessário o “corpus” e “animus”, o exercício daquele faz presumir a existência deste (artigo 1252º, n.º 2 Código Civil); conclui-se assim que o animus é inferível e exprime-se pelo poder de facto; a intenção de domínio não tem de explicitar-se e muito menos por palavras. O que importa é que se infira do próprio modo de actuação ou de utilização, doutrina da qual o STJ, em acórdão de Uniformização de Jurisprudência, de 14/05/96, publicado no DR, II, de 24/06/96, fez aplicação, ao extrair a seguinte conclusão: “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”.
O artigo 1258º do Código Civil menciona quais os caracteres da posse, merecendo estes desenvolvimentos nos normativos subsequentes, sendo estas diversas características relevantes para vários efeitos.
Assim, pode, em primeiro lugar, ser titulada ou não titulada, destrinça que tem importância para efeitos de usucapião. Na verdade, a usucapião obedece a prazos diversos, consoante a posse que a fundamenta é titulada ou não titulada.
O artigo 1259º, n.º 1, estatui que a posse só é titulada quando assente num acto susceptível de, em abstracto, constituir ou transferir o direito real que lhe corresponde, enquanto o n.º 2 do artigo 1260º, por seu turno, consagra uma presunção juris tantum, preceituando que “a posse titulada se presume de boa fé e a não titulada, de má fé”.
Infere-se do artigo 1259º Código Civil que a posse titulada é a que se funda num modo legítimo de adquirir, ou seja, funda-se num modo que segundo o seu tipo geral é idóneo para provocar uma aquisição, independentemente de, no caso concreto, o transmitente ter ou não o direito a transmitir e independentemente da validade substancial do negócio jurídico.
Quer dizer, um negócio, que, por seu tipo geral, é idóneo para transmitir um direito, titula a posse, mesmo que haja um motivo substancial de invalidade. Mas se faltar no título, no negócio realizado, um requisito formal de validade, a posse é não titulada.
O artigo 1261º do Código Civil fala de posse pacífica, ou seja, aquela que foi adquirida sem violência, a que se contrapõe a posse violenta, enquanto o artigo 1262º do Código Civil fala de uma posse pública, ou seja, aquela que se exerce de modo a ser conhecida pelos interessados, contrapondo-se a esta posse pública uma posse clandestina ou oculta.
Outra distinção é a que se faz entre posse de boa fé e posse de má fé. “A posse diz-se de boa fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem”, donde se infere, a contrario sensu, a noção de má fé.
Feitas estas considerações, importa analisar o caso concreto.
Ora, resultou provado que a área que os AA. pretendem ver adquirida por usucapião está na titularidade do Município – desde logo consta nas confrontações dos prédios 8, 10 e 12 da Rua ...que estes confrontam a Poente com Rua Particular e da secção cadastral F da extinta freguesia de Agualva-Cacém, actual freguesia de Cacém e São Marcos, do concelho de Sintra, em regime de cadastro geométrico da propriedade rústica desde 1 de Outubro de 1959, a Rua Particular em causa surge representada como área social de folha.
Nos termos da alínea c) do n.º 1 do art.º 1.º do Regulamento do Cadastro Predial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 172/95 de 18 de Julho, “área social” é “toda a área existente no interior de um prédio destinada a utilização pelo público e que dele não faz parte”.
Afigura-se assim ocorrer a titularidade do Município, que os AA. aliás não contestam, sendo contra este que pretendem, para além dos restantes RR. demandados, ver reconhecida a sua aquisição por usucapião, pelo que há que ter em consideração o preceituado pelo DL n.º 280/2007, de 7 de Agosto, que instituiu o Regime Jurídico do Património Imobiliário Público, na redacção da Lei n.º 82-B/2014, de 31/12, nomeadamente o art.º 14º que dispõe “Os imóveis do domínio público são os classificados pela Constituição ou por lei, individualmente ou mediante a identificação por tipos”, podendo ser da titularidade do Estado, das Regiões Autónomas ou das autarquias locais e abrange poderes de uso, administração, tutela, defesa e disposição nos termos do DL n.º 280/2007 e demais legislação aplicável conf. art.º 15º.
Os Recorrentes invocam que a Rua Particular é da titularidade privada do Estado por se encontrarem “… preenchidos, ao contrário da posição assumida pelo Tribunal a quo, todos os pressupostos da desafetação tácita” porquanto deixou de “…servir o fim de utilidade pública, passando a ser utilizado e/ou usufruído pelos particulares, e assim integrar o domínio privado.(…) In casu, dúvidas não restam que aquele local, pelo menos desde 1972, data em que a testemunha HS passou ali a viver, não teve qualquer utilidade publica, porquanto, era um local usado apenas por aqueles particulares e não outros.”
Ora, como nota o Recorrido, estes factos não resultaram provados.
Mais pretendem os Recorrentes que o prazo a considerar é de 15 anos de usucapião, por ser uma posse de boa fé (artigo 1296.º do Código Civil) acrescido de 7 anos e meio (metade daquele prazo), ou seja 22 anos e seis meses; se assim não se entender, no caso de posse de má fé o prazo é de 20 anos, acrescido de metade, conforme resulta da Lei n.º 54 de 16.7.1913, o que significa que para ser usucapível terá de ter decorrido pelo menos 30 anos (20 anos acrescido de 10, metade), o que in casu se verificou.
No presente caso, não alegaram nem provaram os AA. dispor de título nem de registo, pelo que, de acordo com o art.º 1296º do Código Civil e considerando que a posse em causa se considera não titulada, logo presumivelmente de má fé – art.º 1260º, n.º 2 do Código Civil - e inexistindo factos que permitam afastar tal presunção, a usucapião de imóveis, nos termos da lei civil, apenas pode dar-se decorridos que sejam vinte anos – isto sem curar agora de considerar o acréscimo imposto pela Lei n.º 54 de 16.7.1913.
Acresce que não resultou provado que fosse do conhecimento do Município a actuação dos RR. – efectivamente apenas resultou provado o que vem descrito em 25. a 34. e não provado o que consta em vii).
O art.º 16º do DL n.º 280/2007 regula a Afectação destes imóveis e o art.º 17º a Desafectação, nos seguintes termos: “Quando sejam desafectados das utilidades que justificam a sujeição ao regime da dominialidade, os imóveis deixam de integrar o domínio público, ingressando no domínio privado do Estado, das Regiões Autónomas ou das autarquias locais.”
Mais dispõe o art.º 18º a Inalienabilidade: “Os imóveis do domínio público estão fora do comércio jurídico, não podendo ser objecto de direitos privados ou de transmissão por instrumentos de direito privado”; o art.º 19º a Imprescritibilidade: “Os imóveis do domínio público não são susceptíveis de aquisição por usucapião.”
Segundo Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, 2º vol., 9ª edição, p. 881: “as coisas públicas são as coisas submetidas por lei ao domínio de uma pessoa colectiva de direito público e subtraídas ao comércio jurídico privado em razão da sua primacial utilidade colectiva”.
Mais ensina que a afectação do bem à utilidade pública consiste na aptidão para satisfazer necessidades colectivas, ou se existe uma utilidade pública inerente ou natural e que a atribuição do carácter dominial depende de um, ou vários, dos seguintes requisitos:
a) existência de preceito legal que inclua toda uma classe de coisas na categoria de domínio público;
b) declaração de que certa e determinada coisa pertence a essa classe;
c) afectação dessa coisa à utilidade pública.
Não é necessário que concorram os três requisitos, bastando um só.
E continua: “A enumeração legal compreende bens cuja utilidade pública se conhece através de vários índices; o indicie evidente cuja existência logo denota publicidade é o uso directo e imediato do público. Só quando exista este índice evidente é que a lei permite que o intérprete considere públicas coisas não enumeradas categoricamente como tais por disposição legal (…) Há uso directo quando cada indivíduo pode tirar proveito pessoal de tal coisa pública e o uso imediato faz-se quando os indivíduos se aproveitam dos bens sem ser por intermédio dos agentes de um serviço público”.
No caso, a parcela em questão destina-se, como vimos, a uso público.
E o facto de se ter tornado inacessível, em virtude da actuação do antecessor dos AA., não implica a sua desafectação do domínio público, pois esta pressupõe ou uma declaração expressa do titular ou pelo menos que esta desafectação se possa retirar da conduta do titular, mas para a qual não se basta uma mera inércia; é necessário um abandono intencional por parte deste, o que os AA. não lograram demonstrar.
A propósito da desafectação do bem, socorramo-nos, tal como fez a Sentença de primeira instância, do que se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7/6/2018, Proc. n.º 2592/16.3T8SNT.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt:
A extinção do estatuto da dominialidade pode ocorrer através das seguintes formas: desclassificação legal, desclassificação administrativa, desafectação e degradação (cfr. Ana Raquel Gonçalves Moniz, “Direito do Domínio Público”, in Tratado de Direito Administrativo Especial, Vol. V, Almedina, Coimbra, 2011, págs. 154 e segs.). Relativamente à forma que aqui estamos a considerar – a desafectação –, afirma a mesma autora:
“Através do acto administrativo de desafectação, a entidade administrativa, por imperativos de interesse público, desvincula o bem do destino a que o mesmo se encontrava adstrito por força da afectação. Neste caso, a coisa deixa, por decisão da Administração, de desempenhar a função que justificou a sua qualificação legal como pública, o que tem como consequência deixar de se aplicar a disciplina jurídica própria das coisas públicas. A desafectação haverá sempre de se assumir como uma forma de «desdominialização», i.e., como actuação cujo efeito jurídico prevalente redunda na retirada da coisa da função pública que desempenhava (Auβerdienstellung, na terminologia de alguma doutrina alemã), na extinção da dominialidade da coisa (e, consequentemente, no fim da aplicação do regime específico das coisas públicas), logicamente acompanhada da integração do bem no domínio privado do respectivo titular.” (cit., págs. 156-157).
A figura da desafectação tácita (ou desafectação implícita, na terminologia da autora que vimos citando), enunciada por Marcello Caetano (Manual de Direito Administrativo, Vol. II, Almedina, Coimbra, 1980, págs. 957 e segs.), continua a ser aceite na doutrina mais recente, apesar de o Decreto-Lei nº 280/1979, de 7 de Agosto (que, pela primeira vez, aprovou o Regime Jurídico do Património Imobiliário Público) a ela não se referir. (…)
Na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, cfr. os acórdãos de 08/09/2011 (proc. nº 0267/11) e de 26/06/2014 (proc. nº 01174/12), consultáveis em www.dgsi.pt.
A respeito da caracterização da desafectação tácita e dos respectivos pressupostos, assume especial relevância o teor da fundamentação do último aresto indicado:
“LX. Por outro lado, também não se descortina que do circunstancialismo factual apurado nos autos tenha ocorrido desafetação tácita da aludida parcela de terreno, já que a mesma, enquanto forma de cessação da dominialidade, só ocorre quando a coisa pública deixe de servir ao fim de utilidade pública e passe a ser utilizada/usufruída pelos particulares por abandono intencional do recorrido.
LXI. De notar que, na sequência do que supra se avançou, a desafetação tácita não poderá derivar ou resultar de ato ou de atuação praticada por um particular, nomeadamente, da A./recorrente, porquanto se assim fosse as coisas públicas perderiam os seus caracteres da inalienabilidade e da imprescritibilidade e seriam suscetíveis de posse, o que, como vimos, não é admissível.
LXII.   Será apenas na atitude da Administração, sua ação ou omissão, que importa encontrar o traço que vinque claramente o abandono intencional da coisa, sendo que tal abandono há-de resultar inequivocamente de atos praticados pela mesma.
LXIII. Para tal não bastará a simples constatação duma ausência, ainda que longa, da construção por parte da edilidade dum jardim ou doutro tipo de arranjo urbanístico destinando o espaço a «zona verde», já que se exige mais do que uma simples e mera inércia por parte da edilidade e se desconhecem inteiramente motivações ou razões que estiveram na sua origem.” (negritos nossos)
A aceitação da possibilidade de extinção do estatuto de dominialidade através da desafectação tácita – com a consequente transição do bem do domínio público para o domínio privado da entidade pública, deixando de estar sujeito aos princípios da inalienabilidade, da imprescritibilidade e da impenhorabilidade, próprios dos bens do domínio público – exige deste modo que tenha ocorrido o abandono da função pública do bem, aferido por comportamentos inequívocos da administração.
Para que se verifique a desafectação tácita não basta, porém, a prova de tal conduta inequívoca da administração; é ainda necessário o decurso de um período de tempo significativo.
O que deva entender-se por período de tempo significativamente longo tem sido ponderado pela doutrina em conexão com a admissibilidade da prescrição aquisitiva de um bem que outrora pertencera ao domínio público.
Nas palavras de Ana Raquel Moniz:
“Apesar de, em princípio, a desafectação dever constituir um acto expresso, poder-se-á sempre admitir uma desafectação implícita nos casos em que, estando a coisa a exercer uma função pública a que se encontrava adstrita, a Administração adopte comportamentos inequívocos (positivos) no sentido de que pretende dar outro destino ao bem, desde logo, como salienta Alessi, comportamentos absolutamente incompatíveis com a intenção de conservar o bem na sua destinação. Pense-se, v.g., na hipótese de o bem [que] não ter sido objecto de aproveitamento compatível com a função de utilidade pública determinante da dominialidade pública durante um largo período de tempo, sem que para isso houvesse emergido um qualquer obstáculo de facto ou de direito. Avançando uma solução que releva do imperativo de rentabilização do domínio público e do carácter especial do respectivo regime jurídico, basta que, por motivos imputáveis ao titular do bem dominial, o bem deixe de desempenhar, por um largo período de tempo (cuja duração se encontra claramente inspirada nos prazos máximos da usucapião), a função pública que justificou a sua submissão ao estatuto da dominialidade, para perder a qualidade de bem dominial.” (cit., págs. 157-158) [negritos nossos]
Da mesma autora, em obra distinta:
“… erigir a imprescritibilidade como princípio do regime jurídico das coisas públicas não significará adoptar uma posição absoluta, alheia à consideração de outros valores. Pretendemos, pois, equacionar um apelo neste momento à figura do imemorial (vetustas), como forma de legitimação de uma situação de facto, in casu da ocupação (não titulada) do particular: perante um litígio concreto, presumir-se-ia que um particular deteria a propriedade da coisa, se se provasse que, desde tempos imemoriais, os particulares (designadamente os antepassados do primeiro) se comportavam relativamente ao bem, sem qualquer contestação, como titulares de direitos reais (privados), maxime como proprietários sobre ele. O imemorial importaria, pois, efeitos em duas vertentes de verificação simultânea, consubstanciando, nessa medida, um duplo efeito: presunção da cessação do carácter dominial da coisa e presunção da aquisição da mesma pelo particular. Ponderar esta ideia não se nos afigura contrariar o que considerámos anteriormente, mas não deixa de atender à necessidade de tutelar a certeza jurídica perante certas situações de facto. Por outro lado, a esta solução não se poderia assacar que colidiria com o princípio da extracomercialidade privada de bens dominiais, uma vez que, além do carácter de excepcionalidade e de simples presunção que reveste, atento o lapso temporal durante o qual se prolongou, se pode legitimamente concluir que o bem não interessará ao desempenho de qualquer função pública (…). Por outro lado (…), a Administração teve amplas possibilidades de reacção contra a situação abusiva do particular.” (O Domínio Público – O critério e o Regime Jurídico da Dominialidade, Almedina, Coimbra, 2005, págs. 434 e seg.). [negritos nossos]
Deste modo, o decurso de um período de tempo significativamente longo funcionaria, numa primeira fase, como “presunção da cessação do carácter dominial da coisa” (consolidação da desafectação tácita) e, numa fase imediatamente subsequente, como “presunção da aquisição da mesma pelo particular” (usucapião). Em qualquer caso, concretizando-se através da figura do imemorial ou do decurso do dobro do prazo máximo de usucapião (ver, neste sentido, Vaz Serra, Prescrição extintiva e caducidade, Separata do BMJ, Lisboa, 1961, págs. 85 e segs.).
Concluindo este escurso, temos que, para efeitos de resolução da questão dos autos, a desafectação tácita do bem do domínio público, e subsequente aquisição pelos particulares: (i) Não pode resultar de acto de particulares, antes tem de derivar de conduta inequívoca de abandono da coisa pela administração; (ii) Entre o momento da ocorrência de tal conduta inequívoca de abandono da coisa e o momento relevante para efeitos da prescrição aquisitiva, deve decorrer um período de tempo correspondente a, pelo menos, o dobro do prazo máximo de usucapião.”
Aplicando a doutrina e jurisprudência referidas ao caso concreto, resulta não poder concluir-se pela verificação de factos que permitam concluir pelo abandono intencional da parcela em causa pelo Município.
Veja-se que nem resultou provado, como invocavam os AA., que o Município se tenha recusado proceder à reparação de uma inundação porquanto considerou a parcela como propriedade privada do antecessor dos AA. (nos autos nem sequer se provou que tal inundação tenha origem na área dessa parcela…).
Desta forma, resulta que por força do art.º 19º do DL n.º 280/2007 a parcela em causa é insusceptível de aquisição por usucapião por parte dos AA.
A decisão proferida mostra-se assim acertada, devendo manter-se e o Recurso julgado improcedente.
*
VI. Das custas do recurso.
Nos termos do art.º 527º, n.º 1 do Código de Processo Civil as custas do Recurso ficam a cargo dos Recorrentes.
*
DECISÃO:
Por todo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o Recurso, mantendo-se a Sentença proferida.
*
Custas pelos Recorrentes.
Registe e notifique.

Lisboa, 23/3/2023
Vera Antunes
Jorge Almeida Esteves
Teresa Soares