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CONTRATO DE TRABALHO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
RETRIBUIÇÃO
Sumário
Provando-se que, durante 21 anos, a empregadora atribuiu à trabalhadora veículo automóvel que esta utilizava em deslocações profissionais e deslocações particulares, designadamente nas férias, fins de semana, feriados e após o horário de trabalho, suportando a empregadora as despesas com impostos, seguros, revisões e manutenções, pneus, lavagens, gasolina e portagens, à empregadora cabia ilidir a presunção de que tal prestação integrava a retribuição da trabalhadora. Não se mostrando ilidida tal presunção prevista no n.º 3 do art.º 258.º do Código do Trabalho, tem de concluir-se que a prestação em apreço integrava a retribuição da trabalhadora e estava tutelada pelas respectivas garantias, nos termos do seu n.º 4, pelo que não podia a empregadora retirar-lha, atento o princípio da irredutibilidade da retribuição consagrado no art.º 129.º, n.º 1, al. d) do mesmo diploma. (Elaborado pela relatora)
Texto Parcial
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa
1. Relatório
AAA intentou acção declarativa de condenação, com processo comum, contra BBB, pedindo:
I – Seja declarado que o direito da autora à atribuição de uma viatura automóvel para uso exclusivo, quer pessoal quer profissional, sem qualquer limite, suportando o empregador todos os encargos para o efeito, integra a sua retribuição e como tal tem natureza retributiva;
II – Seja declarado que o direito da autora à atribuição de uma viatura automóvel para uso exclusivo pessoal representava uma vantagem patrimonial no valor mensal de € 800,00 para a autora;
III – Seja declarado que a decisão unilateral da ré de retirar à autora a viatura automóvel que esta utilizava, em exclusivo, e para seu uso profissional e pessoal, sem qualquer limite, constitui uma violação do disposto no art.º 129.º, n.º 1, alínea d), do Código do Trabalho;
IV – Seja a ré condenada a atribuir uma viatura automóvel à autora, dentro da gama que lhe estava atribuída – de marca …, modelo …, para esta utilizar, em exclusivo, para seu uso profissional e pessoal, sem qualquer limite, suportando a ré todas as despesas;
V – Seja a ré condenada a disponibilizar um lugar de aparcamento para a viatura automóvel utilizada pela autora e para esta utilizar em exclusivo, para seu uso profissional e pessoal, sem qualquer limite, suportando a ré todas as despesas;
VI – Seja a ré condenada a pagar a quantia mensal de €800,00, desde 20 de Novembro de 2017 e, assim sucessivamente, até à data de atribuição efectiva da viatura a que a autora tem direito.
Caso se entenda que os autos não contêm todos os elementos que permitam a fixação de um valor relativo ao benefício pessoal usufruído pela autora com a disponibilização da viatura, haverá que ser proferida uma condenação ilíquida, remetendo o apuramento do quantum devido a esse título para liquidação de sentença, que desde já se requer;
VII – Quantias essas acrescidas dos juros de mora, à taxa legal vencidos e vincendos desde as respectivas datas de vencimento (30 de cada mês) e até integral pagamento;
VIII – Seja a ré condenada a pagar à autora o montante de €2.000,00, a título de danos não patrimoniais.
Alega, no essencial, que foi admitida para trabalhar sob a autoridade e direcção da sociedade Imoleasing, em 16 de Setembro de 1991, na delegação de Lisboa, para desempenhar as funções inerentes à categoria de Analista Financeira II, tendo em 1993 sido atribuída uma viatura para uso total, profissional e pessoal. Em 30.12.2004 verificou-se a fusão com incorporação global do património das sociedades …. e …. na …., com a transmissão da posição de empregadora da autora para esta, detendo actualmente a autora a categoria de Coordenadora de Zona, continuando aquela a assegurar a sua retribuição e complementos remuneratórios e tendo disponibilizado desde aquela data até 20.11.2017 várias viaturas que continuaram a ser usadas exclusivamente pela autora, tanto a nível profissional como pessoal, sendo os encargos suportados pela entidade patronal, incluindo o lugar de estacionamento pago. Mais alega a autora que a disponibilização do carro pela Imoleasing foi um complemento salarial e um elemento essencial para que a autora continuasse o contrato. Em Outubro de 2017, foi solicitada a entrega da viatura à autora, o que se concretizou em 20.11.2017.
A ré apresentou contestação, refutando que a atribuição da viatura à autora fosse para uso pessoal e sustentando que era apenas para uso profissional, dizendo que aquele acontecia por mera tolerância da empregadora.
Oportunamente, procedeu-se a julgamento, após o que foi proferida sentença, que concluiu com o seguinte dispositivo: «Nos termos e fundamentos expostos, julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência decido: 1 – Condenar a BBB a: a. Restituir à autora uma viatura automóvel equivalente a uma viatura da marca … modelo …; b. Pagar à autora o montante que se vier a apurar em posterior liquidação, até ao limite do peticionado desde 21.11.2017 até à entrega de nova viatura, acrescendo juros de juros de mora à taxa legal de 4% desde a data da citação. 2 - Absolver a BBB do demais peticionado. 3 - Custas a cargo da autora e ré na proporção de 10% e 90%, respectivamente (art.º 527º CPC).»
A ré interpôs recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:
(…)
A autora apresentou resposta ao recurso da ré, pugnando pela sua improcedência.
Admitido o recurso, e remetidos os autos a esta Relação, observou-se o disposto no art.º 87.º, n.º 3 do CPT, tendo o Ministério Público emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.
Cumprido o previsto no art.º 657.º do CPC, cabe decidir em conferência.
2. Questões a resolver
Tal como resulta das conclusões do recurso, que delimitam o seu objecto, a questão que se coloca a este Tribunal é a de saber se a autora tem direito a atribuição de viatura automóvel do segmento indicado, como componente da sua retribuição.
3. Fundamentação
3.1. Os factos considerados provados são os seguintes:
1 – A autora foi admitida para trabalhar sob a autoridade e direcção da sociedade …
2 – Em 16 de Setembro de 1991, para a delegação de Lisboa, por tempo indeterminado e para desempenhar as funções inerentes à categoria de Analista Financeiro II.
3 – Desde data não concretamente apurada mas pelo menos desde 1 de Novembro de 1996, foi atribuída uma viatura à autora.
4 – Que a autora sempre usou tanto nas deslocações profissionais como nas deslocações particulares, sendo a … que suportava despesas de impostos, seguros, revisões, manutenções e combustível inerentes à viatura.
5 – A autora usava a viatura nas férias, fins de semana e após o horário de trabalho e nas licenças de maternidade.
6 - Em 30 de Setembro de 2004, verificou-se a fusão com incorporação do património das sociedades …, … e … sendo todas integradas na …...
7 - E, como tal, a transmissão da posição de empregadora para a …), por efeito da referida fusão, operou-se naturalmente, assumindo esta os direitos e deveres inerentes à relação contratual com a autora.
8 - Pelo que a autora transitou para a referida sociedade, sem prejuízo da antiguidade reportada a 16 de Setembro de 1991 e demais retribuições pecuniárias, que lhe haviam sido atribuídas na …..
9 - A autora não celebrou qualquer contrato de trabalho novo ou renunciou a quaisquer direitos laborais.
10 - Tendo a … assumido a categoria, o horário, a retribuição e demais complementos auferidos pela autora, nomeadamente remuneração complementar, isenção de horário de trabalho e diuturnidades.
11 - Actualmente a autora detém a categoria de Coordenadora de Zona.
12 – Na sequência da fusão na …, a autora continuou a ter uma viatura atribuída, no caso uma viatura de marca …, de matrícula …
13 – Entre Dezembro de 2004 e até 20 de Novembro de 2017, foram disponibilizadas viaturas das seguintes marcas e modelos: …, com a matrícula …, …, com a matrícula … (2008), … com a matrícula … (2011) e …, com a matrícula ….
14 - Continuando a usá-la além de fins profissionais após o horário de trabalho, aos fins de semana, férias e feriados continuando os encargos a serem suportados pela entidade patronal.
15 - Nomeadamente, impostos, seguros, revisões e manutenções, pneus, lavagens, gasolina através de um cartão … e portagens através da atribuição de um identificador da via verde sem qualquer limite.
16 – Quer nos dias em que se encontrava ao trabalho, quer nos dias em que não estava.
17 - Quando a autora se encontrava privada da utilização das referidas viaturas por questões inerentes à manutenção das mesmas ou por qualquer outro motivo…
18 – … Era-lhe disponibilizada uma viatura de substituição.
19 - Correndo os encargos de manutenção ou reparação da viatura substituída por conta dos empregadores, inicialmente …e após ….
20 - No dia 27 de Outubro de 2017, pelas 11h15m, o Director de Recursos Humanos da … enviou um email à autora com o seguinte teor: «Bom dia, Como é do seu conhecimento, no âmbito da atual “Política Corporativa de Viaturas de Serviço”, vigente no Grupo … e vertida na Ordem de Serviço nº 27/2017 da … e na Ordem de Serviço n.º 06/2017 da …, foram definidas as regras no que respeita à aquisição, composição e gestão do parque de viaturas de serviço da … e das Empresas do Grupo do …, bem como à atribuição e cessação do respetivo uso, não estando previsto no ponto 4.3. dos normativos a disponibilização de viaturas de serviço a colaboradores com as categorias/funções não indicadas nos quatro escalões. Assim, deverá proceder ao cumprimento dos termos fixados nos normativos em vigor. Para o efeito, informamos que a viatura poderá ser entregue a partir do próximo dia 31, após o contacto prévio do … e …, para assegurar os procedimentos logísticos necessários à recolha da viatura.»
21 - No mesmo dia (27 de Outubro de 2017), pelas 17.08 horas, o Director de Recursos Humanos da … enviou um novo e-mail à autora com o seguinte teor: «No seguimento da comunicação hoje efectuada, quanto à devolução da viatura, informamos que a Via Verde e o Cartão Combustível …deverão ser entregues ao …, até ao próximo dia 31 de Outubro.»
22 - No dia 31 de Outubro de 2017, de acordo com as instruções recebidas, procedeu à entrega do cartão …, bem como o identificador da via verde.
23 - E, no dia 20 de Novembro de 2017, a autora, de acordo com as instruções recebidas, procedeu à entrega da viatura da marca …, modelo …, com a matrícula 6…
24 – As Comissões Executivas da ... e da … e o Conselho de Administração da … deliberaram nas respectivas reuniões aprovar o Regulamento de Viaturas de Afectação Pessoal, junto a fls. 120 e 121, e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
25 – A ré emitiu a Ordem de Serviço n.º 14/2009, junta a fls. 121 e 123 v.º e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
26 – A ré emitiu a Ordem de Serviço n.º 12/2010, junta a fls. 124 a 126 v.º e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
27 – A ré emitiu a Ordem de Serviço n.º 03/2011, junta a fls. 127 a 129 v.º e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
28 - A ré emitiu a Ordem de Serviço n.º 12/2017, junta a fls. 130 a 134 e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
29 - A ré emitiu a Ordem de Serviço n.º 6/2017, junta a fls. 134 a 138 e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
30 – A cessação da atribuição de viatura à autora decorreu da alteração da política de atribuição de viaturas, de acordo com a Ordem de Serviço n.º 12/2017, de 11.07.2017, referente à “Política Corporativa de Viaturas de Serviço”, enquadrando a vigência à … e às Empresas de Grupo ….
31 – Com origem na norma corporativa acima referida, O.S. n.º 12/2017 da …, foi publicada pela ..., em 21.09.2017, a Ordem de Serviço n.º 6/2017 sobre “Política Corporativa de Viaturas de Serviço”.
32 – A autora entregou a viatura no dia 20.11.2017.
33 – A ré disponibilizava um lugar de estacionamento nas suas próprias instalações para parqueamento das viaturas de serviço, sendo que apenas aos comerciais e directores era permitido usar estes lugares.
3.2. Os factos considerados não provados são os seguintes:
1 – Que o complemento salarial resultante da viatura foi um elemento essencial para que a autora continuasse o contrato de trabalho com a ….
2 – Que a atribuição da viatura consubstanciava um benefício económico de €800,00;
3 – Que €350,00 eram correspondentes à utilização nas horas em que a autora não estava ao serviço da ré, englobando dias úteis, fins de semana, feriados, férias e outros momentos;
4 – Que €250,00 eram de custos mensais de combustível inerente à utilização particular do veículo;
5 – Que €125,00 eram de custo mensal de portagens inerente à utilização particular do veículo;
6 – Que €50,00 eram de custo mensal de seguro inerente à utilização particular do veículo;
7 – Que €25,00 eram de custo mensal de parque de estacionamento inerente à utilização particular do veículo;
8 – Que a ré reembolsava despesas de parqueamento;
9 – Que, com a retirada da viatura, a autora viu a sua vida degradar-se;
10 – Que esta situação destabilizou a autora, provocando-lhe insatisfação, stress e intranquilidade permanentes;
11 – Que se encontra limitada a mobilidade e interacção com os seus filhos.
3.3. Cumpre, então, decidir se a autora tem direito a atribuição de viatura automóvel do segmento indicado, como componente da sua retribuição.
Conforme decorre da factualidade provada, a autora trabalha para a ré com antiguidade reportada a 16 de Setembro de 1991, data em que foi admitida para desempenhar as funções inerentes à categoria de Analista Financeiro II, sendo certo que, actualmente, detém a categoria de Coordenadora de Zona.
Mais se provou que desde, pelo menos, 1 de Novembro de 1996, e até 20 de Novembro de 2017, foi atribuída uma viatura à autora, que ultimamente era da marca …modelo …, que a autora sempre usou tanto nas deslocações profissionais como nas deslocações particulares, designadamente nas férias, fins de semana, feriados e após o horário de trabalho, o que fez também nas licenças de maternidade.
Provou-se, ainda, que era a empregadora que suportava todas as despesas, nomeadamente com impostos, seguros, revisões e manutenções, pneus, lavagens, gasolina através de um cartão … e portagens através da atribuição de um identificador da via verde sem qualquer limite, quer nos dias em que se encontrava ao trabalho, quer nos dias em que não estava.
Bem como, provou-se que, quando a autora se encontrava privada da utilização das referidas viaturas por questões inerentes à manutenção das mesmas ou por qualquer outro motivo, era-lhe disponibilizada uma viatura de substituição, correndo os encargos de manutenção ou reparação da viatura substituída por conta da empregadora.
Ora, estabelece o art.º 258.º do Código do Trabalho de 2009, de modo semelhante às normas legais que sucessivamente substituiu:
Princípios gerais sobre a retribuição
1 - Considera-se retribuição a prestação a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito em contrapartida do seu trabalho.
2 - A retribuição compreende a retribuição base e outras prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie.
3 - Presume-se constituir retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador.
4 - À prestação qualificada como retribuição é aplicável o correspondente regime de garantias previsto neste Código.
Ou seja, é de considerar retribuição a prestação a que o trabalhador tem direito em contrapartida do seu trabalho, compreendendo a retribuição base e outras prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie, presumindo-se, até prova em contrário, constituir retribuição toda e qualquer prestação do empregador ao trabalhador.
Deste modo, toda e qualquer prestação da entidade empregadora ao trabalhador deve ser considerada parte integrante da retribuição, independentemente da designação que lhe seja atribuída no contrato ou no recibo, excepto se se provar, de modo a ilidir a presunção:
- que tem uma causa específica e individualizável, diversa da contrapartida da prestação do trabalho com carácter obrigatório;
- ou que não reveste a característica de regularidade e periodicidade.
Ora, em 1.º lugar, a ré não logrou provar que a atribuição de viatura à autora, ininterruptamente, durante 21 anos, tinha uma causa específica e individualizável, diversa da contrapartida da prestação do trabalho com carácter obrigatório, no que excedia a sua utilização nas deslocações profissionais.
Com efeito, não ficou sequer concretizado em que se traduzia tal uso da viatura como instrumento de trabalho, ou, pelo menos, em que se traduziam as funções da autora, de modo a que, eventualmente, se pudesse inferir aquele, sendo certo que, pelo contrário, se logrou detalhar que a utilização nas deslocações particulares abarcava férias, fins de semana, feriados e o período fora do horário de trabalho, inclusive durante licenças de maternidade.
Ora, tal factualidade é compatível com uma utilização preponderante da viatura para fins particulares e ínfima ou insignificante para fins profissionais, ou seja, a ré não provou factos concretos que evidenciassem que o uso particular da viatura era marginal ou complementar, de modo a que, razoavelmente, este pudesse ser tido como de mera tolerância.
Aliás, decorre do facto provado sob o ponto 20 que, em Outubro de 2017, a ré entendeu que não se justificava a disponibilização de viaturas de serviço a “colaboradores” com a categoria/função da autora, apesar de não se ter provado que esta tivesse sido alvo de qualquer alteração de funções nessa altura, o que reforça a ideia de que a atribuição da viatura como instrumento de trabalho era meramente residual e era utilizada predominantemente para fins particulares.
Acresce que, estando atribuída viatura à autora desde, pelo menos, 1 de Novembro de 1996, é seguro que tal não teve por base o Regulamento de Viaturas de Afectação Pessoal a que se refere o ponto 24 da factualidade provada, que data apenas de meados de 2003, sendo certo que, de qualquer modo, dele não consta qualquer menção ao carácter ou âmbito de utilização particular das viaturas e no art.º 6.º se ressalva que “[s]ituações específicas serão objecto de tratamento casuístico.”
Assim, ao estipular-se nos instrumentos indicados nos pontos 24 a 27 da factualidade provada que a atribuição de viatura cessa “[s]empre que seja deliberado nesse sentido”, ou nos mencionados nos pontos 28 a 31 da factualidade provada que a utilização da viatura de serviço cessa “[s]empre que seja deliberado nesse sentido, nomeadamente no caso de cessação do exercício das funções que justificaram a sua atribuição” ou por “[a]lteração da Grelha de correspondência entre escalões e funções, que implique não inclusão da função”, naturalmente que ficam excluídas as situações com origem distinta e características ali não previstas, como é o caso da autora.
Não demonstrou a Apelante, pois, que a atribuição de viatura automóvel à autora sucedeu atendendo às funções de Chefe de Unidade de Negócios de Lisboa que a mesma iria desempenhar e sempre com a ressalva de que tal atribuição prevaleceria enquanto tal se justificasse, nem que a utilização que a autora possa ter feito na sua vida pessoal das viaturas de serviço que lhe foram disponibilizadas pela Recorrente resultou do enquadramento normativo a que se referem os pontos 24 a 31 da factualidade provada e, assim, tinha natureza precária e de mera tolerância ou liberalidade por parte da ré (conclusões 7.ª a 10.ª).
Em suma, não se apurou que a utilização pela autora da viatura que lhe estava afecta, em deslocações particulares, designadamente nas férias, fins de semana, feriados e após o horário de trabalho, suportando a empregadora as despesas com impostos, seguros, revisões e manutenções, pneus, lavagens, gasolina através de um cartão … e portagens através de via verde, lhe tivesse sido concedida por qualquer causa específica e individualizável, diversa da contrapartida da prestação do trabalho com carácter obrigatório, nomeadamente que tal tivesse sucedido de modo marginal ou complementar a uma utilização predominantemente profissional e em razão da função desempenhada, isto é, por mera tolerância ou liberalidade.
Em 2.º lugar, a ré não logrou provar igualmente que a prestação em apreço não revestia carácter regular e periódico, uma vez que, pelo contrário, se provou que foi atribuída ininterruptamente entre Novembro de 1996 e Novembro de 2017, incluindo em fins de semana, férias e licenças de maternidade, sendo evidente a estabilidade do benefício patrimonial auferido pela autora.
Em face do exposto, não se mostrando ilidida a presunção prevista no n.º 3 do citado art.º 258.º do Código do Trabalho, tem de concluir-se que a prestação em apreço integrava a retribuição da autora e estava tutelada pelas respectivas garantias, nos termos do seu n.º 4, pelo que não podia a ré retirar-lha, atento o princípio da irredutibilidade da retribuição consagrado no art.º 129.º, n.º 1, al. d) do mesmo diploma.
Neste sentido, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-03-2021, proferido no processo n.º 28857/17.9T8LSB.L1.S1[1], citado pelo Ministério Público no seu parecer, que tem o seguinte sumário: “I. A atribuição das viaturas aos autores, nos termos em que foi feita, com a utilização, por parte destes, nas suas deslocações pessoais em dias normais de trabalho, fora do horário de trabalho, fins-de-semana, feriados e férias, sem limite, e em que as rés suportavam todas as despesas com as mesmas, configura uma componente da retribuição dos autores, que lhes é devida com as inerentes consequências ao nível da irredutibilidade da retribuição, atento ao disposto no art.º 129.º n.º 1, al. d). do Código do Trabalho. II. Tratando-se de uma inequívoca prestação das rés aos autores, eram as rés quem tinham de ilidir o carácter retributivo desta prestação, nos termos gerais do art.º 350.º, n.º 2 do Código Civil, fazendo prova de que a prestação em causa não tinha carácter retributivo, o que não sucedeu, pelo que, sendo uma prestação em espécie, com carácter regular e periódico e com valor patrimonial, assume natureza de retribuição.”
No mesmo sentido, entre muitos outros, vejam-se os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30-04-2014, proferido no processo n.º 714/11.0TTPRT.P1.S1, de 25-06-2015, proferido no processo n.º 1256/13.4TTLSB.L1.S1, e de 13-02-2019, proferido no processo n.º 7847/17.7T8LSB.L1.S1, bem como o Acórdão da Relação de Lisboa de 15-12-2022, proferido no processo n.º 18910/19.0T8SNT.L1-4, e os Acórdãos da Relação do Porto de 08-06-2022, proferido no processo n.º 2887/20.1T8PRT.P1, e de 23-01-2023, proferido no processo n,º 1883/21.6T8MAI.P1[2].
Improcede, pois, o recurso.
4. Decisão
Nestes termos, acorda-se em julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Apelante.
Lisboa, 29 de Março de 2023
Alda Martins
Sérgio Almeida
Francisca Mendes
_______________________________________________________ [1] Disponível em www.dgsi.pt. [2] Todos disponíveis em www.dgsi.pt.