NULIDADE DE ACÓRDÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
ERRO DE JULGAMENTO
Sumário


I. O direito adjetivo civil enuncia, imperativamente, no n.º 1, do art.º 615º, aplicável ex vi artºs. 666º, 679º e 685º, todos do Código de Processo Civil, as causas de nulidade do acórdão.
II. Os vícios da nulidade do acórdão correspondem aos casos de irregularidades que põem em causa, nomeadamente, a ininteligibilidade do discurso decisório, em razão do uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia).
III. A nulidade do aresto sustentada na ininteligibilidade do discurso decisório, na medida em que o Tribunal deixou de se pronunciar sobre questões que devia apreciar, está diretamente relacionada com o comando fixado na lei adjetiva civil, segundo o qual o Tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação (excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras) e aqueloutras que a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso, traduzindo-se no incumprimento do dever prescrito no art.º 608º, n.º 2, do Código Processo Civil, sendo um vício que encerra um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutiliza o julgado na parte afetada.

Texto Integral


Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça



I. RELATÓRIO

1. AA intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum (inicialmente no Julgado de Paz, mas remetido ao tribunal recorrido em 19.8.2020, na sequência de decisão de incompetência em razão do valor, tendo em conta a prova pericial realizada - decisão de 29.7.2020) contra, BB e outros, e bem ainda requereu a intervenção principal provocada de CC, para intervir na ação ao lado do Autor, concluindo com o seguinte pedido: “Nestes termos, e nos mais de direito, provada e procedente a acção, deve ser proferida sentença que declare e reconheça a aquisição do direito de propriedade do dito terreno, com a área de 703 m2 (…) a favor do A. e CC, mediante o pagamento do valor que for determinado, mas sempre reportado à data do início da construção. Mais requer (…) se digne declarar o cancelamento de qualquer registo ou ónus em nome dos RR”.

2. Regularmente citados, os Réus, BB, DD, EE, FF, GG, HH, II e JJ deduziram contestação, na qual concluíram pedindo o seguinte: “termos em que deve a presente a acção ser julgada improcedente, por não provada, e em consequência, serem os RR. absolvidos do pedido formulado, considerando-se os RR. como únicos donos e legítimos proprietários do imóvel id. nos autos, nos termos do art. 1340º CC a contrario sensu”.

3. Foi proferido despacho pelo Julgado de Paz (12.6.2018) a homologar a desistência e a declarar extinção da instância quanto ao réu KK, uma vez que, por divórcio, este deixou de ter a qualidade de cônjuge da ré JJ.

4. Admitida a intervenção principal provocada de CC, citada, a mesma não apresentou qualquer articulado.

5. Prosseguindo o processo ainda nos Julgados de Paz foi proferido em 17.12.2018 despacho a ordenar a realização de prova pericial em moldes singulares, prova pericial cuja realização foi remetida para o tribunal competente (despacho constante do acto mencionado em 18.3.2021).

6. Devolvidos os autos, após a realização da prova pericial, foi proferida a decisão já anteriormente referida, remetendo o processo para o Tribunal de 1ª Instância, por incompetência em razão do valor do Julgado de Paz.

7. Foi proferido despacho saneador, definido o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.

8. Após vicissitudes várias, foi convocada audiência prévia.

9. Foi proferida sentença, onde o Tribunal de 1ª Instância conclui com a seguinte decisão: “Pelo exposto, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas, decido:

a) Declarar que AA e CC adquiriram, por via de acessão industrial imobiliária, o direito de propriedade sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob n.º 1574/20020701 e na matriz predial urbana sob o artigo 4083.

b) Fixar como condição suspensiva do direito de propriedade mencionado em a), o pagamento à primeira ré BB e à herança aberta de LL, da quantia de €23.643,02, a actualizar segundo os índices de preços no consumidor entre o ano de 1995, inclusive, até ao momento do efectivo pagamento e a realizar no prazo máximo de 90 dias contados do trânsito em julgado da presente decisão (…).”

10. Inconformadas com o assim decidido, apelaram a interveniente, CC e a Ré, JJ.

11. A Relação, conhecendo dos interpostos recursos, proferiu acórdão em cujo dispositivo consignou: “Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o Recurso e, em consequência, decide-se revogar a decisão recorrida.”

12. É contra esta decisão que o Autor/AA se insurge, interpondo revista.

13. A Recorrida/JJ apresentou contra-alegações.

14. Prosseguindo com o conhecimento do interposto recurso de revista, este Tribunal ad quem concluiu no segmento decisório do respetivo acórdão:

“Pelo exposto, os Juízes que constituem este Tribunal, julgam procedente o recurso interposto pelo Recorrente/Autor/AA, concedendo a revista, revogando-se o acórdão recorrido e repristinando a sentença proferida em 1ª Instância.

Custas em todas as Instâncias pelos Recorridos/Ré/JJ e outros.”

15. Notificados do aludido acórdão, a Recorrida/Ré/JJ invocou a nulidade do mesmo, aduzindo a seguinte argumentação:

“1º A Recorrida invocou nas suas Contra-Alegações que:

“Salvo o devido respeito, o Recorrente não cumpre o ónus do art. 672º do C.P.C. Já que tem sido entendimento da Formação do STJ de que uma questão é relevante, se, para além de integrar um tema importante em termos da aplicação do direito, é também objecto de um debate doutrinal e jurisprudencial que aconselha a prolação reiterada de decisões judiciais em ordem a uma melhor aplicação da justiça. Por outro lado, o nº 2 do art.º 672º do C. P. Civil impõe ao recorrente o ónus de indicar as razões da relevância em causa. Ora, afigura-se-nos que a alegação dos recorrentes é completamente omissa a este respeito, sendo certo que, pelo que dissemos, não é suficiente considerar a simples relevância jurídica da questão. Pelo que a dita relevância jurídica não pode ser atendida. Razão pela qual deverá o pretendido recurso ser rejeitado”

2º Salvo o devido respeito, não se vislumbra a apreciação da questão da admissibilidade do Recurso.

3º O Recorrente não cumpriu o ónus do art. 671º ou 672º do CPC, sendo certo que o Ac. Não terá apreciado esta questão.

Termos em que deverá ser declarada a nulidade do douto Ac., nos termos do art. 685º do CPC.”

16. Foram dispensados os vistos.

17. Cumpre decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO


Conforme estatui o direito adjetivo civil quanto aos vícios e reforma do acórdão, sublinhamos que, uma vez proferido o aresto, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do Tribunal quanto à matéria da causa, sendo lícito ao Tribunal, porém, nomeadamente, suprir nulidades, nos termos prevenidos no direito adjetivo civil (art.º 613º, nºs. 1, e 2, ex vi. artºs. 666º, n.º 1, 679º e 685º, todos do Código de Processo Civil).

A Recorrida/Ré/JJ sustenta, com utilidade, que o Recorrente não cumpre o ónus do art.º 672º do Código de Processo Civil, daí que, impondo-se ao recorrente o ónus de indicar as razões da relevância em causa, afigura-se à Recorrida/Ré/JJ que a revista devia ser rejeitada, sendo que o Tribunal ad quem omitiu qualquer apreciação a propósito da questão da admissibilidade do Recurso.

Vejamos.

O direito adjetivo civil enuncia, imperativamente, no n.º 1, do art.º 615º, aplicável ex vi artºs. 666º, 679º e 685º, todos do Código de Processo Civil, as causas de nulidade do acórdão.

Os vícios da nulidade do acórdão correspondem aos casos de irregularidades que põem em causa a sua autenticidade (falta de assinatura do juiz), ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou ocorra alguma ambiguidade, permitindo duas ou mais interpretações (ambiguidade), ou quando não é possível saber com certeza, qual o pensamento exposto na sentença (obscuridade), quer pelo uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia).

Como já antecipamos, e no que ao caso em apreço interessa, o vício da nulidade do acórdão corresponde, aos casos de ininteligibilidade do discurso decisório quando o Tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.

A invocada nulidade do aresto, sustentada na ininteligibilidade do discurso decisório, na medida em que, conforme se sustenta, o Tribunal deixou de se pronunciar sobre questões que devia apreciar (alínea d) do n.º 1, do art.º 615º, do Código de Processo Civil), está diretamente relacionada com o comando fixado na lei adjetiva civil, segundo o qual o Tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação (excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras) e aqueloutras que a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso.

Tem pleno cabimento observar e enfatizar que neste particular de omissão de pronúncia, o vício a que se reporta aquela alínea d) do n.º 1, do art.º 615º, do Código de Processo Civil, traduz-se no incumprimento do dever prescrito no art.º 608º, n.º 2, do Código Processo Civil, qual seja, “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)”.

A consignada disposição adjetiva civil (alínea d) do n.º 1, do art.º 615º, do Código de Processo Civil), correspondendo ao preceito plasmado no direito adjetivo civil, anteriormente em vigor, qual seja, o art.º 688º alínea d), do Código de Processo Civil, o qual suscita, de há muito tempo a esta parte, o problema de saber qual o sentido exato da expressão “questões” ali empregue, o que é comummente resolvido através do recurso ao ensinamento clássico do Professor Alberto dos Reis, in, Código de Processo Civil Anotado, 5ª edição, que na página 54 escreve “assim como a acção se identifica pelos seus elementos essenciais (sujeitos, pedido e causa de pedir) (...) também as questões suscitadas pelas partes só podem ser devidamente individualizadas quando se souber não só quem põe a questão (sujeitos) qual o objecto dela (pedido), mas também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado (causa de pedir)”.

Na esteira desta perspetiva, Doutrina e Jurisprudência têm distinguido, por um lado, “questões” e, por outro, “razões” ou “argumentos”, concluindo que só a falta de apreciação das primeiras - das “questões” - integra a nulidade prevista no citado normativo, mas já não a mera falta de discussão das “razões” ou “argumentos” invocados para concluir sobre as questões.

É um vício que encerra um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutiliza o julgado na parte afetada.

Cotejado o acórdão proferido por este Tribunal ad quem cremos resultar do mesmo que a questão suscitada pela Recorrida/Ré/JJ não faz, salvo o devido respeito por opinião contrária, qualquer sentido, desde logo porque este Tribunal ad quem conheceu uma revista, interposta em termos gerais (A Relação, conhecendo dos interpostos recursos, proferiu acórdão em cujo dispositivo consignou: “Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o Recurso e, em consequência, decide-se revogar a decisão recorrida.), ou seja, não está em causa a conformidade de decisões das Instância que por regra obstaculiza o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, somente permitindo o terceiro grau de recurso em certas circunstâncias excecionais a invocar pelo recorrente, que não é o caso, como acabamos de discretear, dada a desconformidade das decisões das Instância, daí que seja incompreensível invocar-se o incumprimento do ónus adjetivo decorrente do art.º 672º do Código de Processo Civil, tanto mais que ao conhecer-se da revista em termos gerais ficaria, em tese, necessariamente prejudicada qualquer alusão ao mecanismo processual da excecionalidade da revista.


III. DECISÃO

Pelo exposto e decidindo em Conferência os Juízes que constituem este Tribunal:

1. Acordam em julgar improcedente a arguida nulidade do acórdão proferido, sendo as respetivas custas a cargo da Reclamante/Recorrida/Ré/JJ, fixando-se a taxa de justiça em 3Uc`s.

Notifique.

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 7 de março de 2023  

                                                         

Oliveira Abreu (Relator)

Nuno Pinto Oliveira

Ferreira Lopes