PROPRIEDADE INTELECTUAL
MEDICAMENTO
AUTORIZAÇÃO
PEDIDO
PUBLICIDADE
INTERESSE EM AGIR
Sumário


I. - Os titulares dos direitos de propriedade intelectual podem propor a ação especial prevista no art. 3.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, na redação do Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de setembro, em face da publicitação de um simples pedido de autorização de introdução no mercado.
II. - Não existindo publicação de pedido de autorização de introdução no mercado, ser a demandante titular de um composto um composto (e suas associações) protegido por um EP e no CCP não lhe confere interesse em agir.

Texto Integral



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



Relatório

MERCK SHARP & DOHME, CORP e MERCK SHARP & DOHME, LDA intentaram ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra AS GRINDEKS, pedindo que:

a) Seja a ré condenada a abster-se de, em território português, ou tendo em vista a comercialização nesse território, por si ou por terceiro importar, fabricar, armazenar, introduzir no comércio, vender ou oferecer os medicamentos que são objeto dos pedidos de AIM melhor identificados no artigo 140.º da petição inicial, enquanto a EP 1 412 357 e/ou o CCP 278 se encontrarem em vigor;

b) seja a ré condenada a abster-se de, em território português, ou tendo em vista a comercialização nesse território, por si ou por terceiro importar, fabricar, armazenar, introduzir no comércio, vender ou oferecer os medicamentos que são objeto dos pedidos de AIM melhor identificados no artigo 141.º da petição inicial, enquanto a EP 1 412 357 e/ou o CCP 278 e/ou o CCP 339 se encontrarem em vigor;

c) seja a Ré ser condenada a abster-se de, em território português, ou tendo em vista a comercialização nesse território, por si ou por terceiro, importar, fabricar, armazenar, introduzir no comércio, vender ou oferecer quaisquer medicamentos que compreendam a substância ativa Sitagliptina, isoladamente ou em associação com outras substâncias ativas, enquanto a EP 1 412 357 e/ou o CCP 278 se encontrarem em vigor;

d) seja a Ré ser condenada a abster-se de, em território português, ou tendo em vista a comercialização nesse território, por si ou por terceiro, importar, fabricar, armazenar, introduzir no comércio, vender ou oferecer quaisquer medicamentos que compreendam a associação de substâncias ativas Sitagliptina e Metformina, enquanto a EP1 412 357 e/ou o CCP 278 e/ou o CCP 339 se encontrarem em vigor.

Como fundamento das referidas pretensões, alegaram, que a 1ª Autora é titular da EP 1 412 357, sendo a 2ªAutora sua licenciada, e essa patente vigorará até 5 de julho de 2022, sendo as reivindicações da EP 1 412 357 as que constam do documento junto, resultando absolutamente manifesta a proteção da sitagliptina na EP 1 412 357 e, a proteção da associação de sitagliptina com metformina na EP 1 412 357, na medida em que a associação da sitagliptina, ou um seu sal farmaceuticamente aceitável, com metformina está aí especificamente protegida e reivindicada; a 1ª Autora é igualmente titular, sendo a 2ª Autora sua licenciada, do Certificado Complementar de Proteção n.º 278, que refere que o produto abrangido é “SITAGLIPTINA”, e indica a EP 1 412 357 como “patente base” e, que foi, entretanto, concedida às Autoras uma extensão pediátrica, sendo que o CCP 278, produzirá efeitos a partir do dia 6 de julho de 2022 e a sua vigência terminará em 23 de setembro de 2022; a 1ªAutora é ainda titular, sendo a 2ªAutora sua licenciada, do Certificado Complementar de Proteção n.º 339 (doravante designado apenas por “CCP 339”), que refere que o produto abrangido é SITAGLIPTINA/(CLORIDRATO DE) METFORMINA, o qual se encontra protegido na Patente Base n.º 1 412 357, cuja vigência terminará em 8 de abril de 2023, podendo ainda vir a ser concedida às Autoras uma extensão pediátrica; em Portugal, a MSD obteve autorizações de introdução no mercado (doravante designadas apenas por “AIMs”) para medicamentos contendo sitagliptina como única substância ativa e em associação com metformina, sendo que, de acordo com as listas publicitadas no dia 30 de dezembro de 2020, na página eletrónica oficial do INFARMED, a Ré requereu as AIMs identificadas na p.i para medicamentos compreendendo sitagliptina + metformina como substâncias ativas, sem que tenha obtido autorização para explorar,   por qualquer meio, as invenções protegidas pela Patente e pelos CCPs supra mencionados e, que o eventual lançamento prematuro no mercado português dos medicamentos genéricos em causa resultaria em elevadíssimos e incalculáveis prejuízos para as Autoras.

Concluem, alegando que, lançam mão da presente ação declarativa, de acordo com o art. 3º nº 1 da Lei nº 62/2011, para que o tribunal, reconhecendo que a exploração comercial pela Ré dos medicamentos que compreendam a substância ativa Sitagliptina, isoladamente ou em associação com a substância Metformina Ré viola os direitos de propriedade industrial das Autoras, condene a Ré a não praticar quaisquer atos suscetíveis de violar tais direitos até à respetiva data de caducidade, sustentando que, existe uma ameaça de violação dos direitos de propriedade industrial aqui invocados, que foi, de resto, expressamente reconhecida pelo nosso legislador, tendo as Autoras o direito de, a título preventivo e ao abrigo da Lei 62/2011, impedir a Ré de praticar qualquer ato proibido nos termos do artigo 102.º n.º 2 do CPI.

A Ré contestou excecionando a falta de interesse em agir e, impugnado as pretensões das Autoras, alegando que a mera obtenção de uma AIM para um medicamento genérico não se traduz na violação, ou sequer numa ameaça séria de violação, de qualquer patente ou CCP, que a MSD não alegou um único facto nem apresentou qualquer prova que demonstre ou indicie que a Grindeks se encontra a praticar ou que está na iminência de praticar um ato violador da sua patente e do seus CCPs.

Foi proferido Saneador-Sentença onde foi julgada procedente a exceção de falta de interesse processual em agir e, em consequência, foi a ré absolvida da instância.

… …

 A autora interpôs recurso de apelação dessa decisão que por decisão singular julgou procedente a revogou a sentença e determinou o prosseguimento da ação.

… …

A primeira instância, recebidos os autos, considerando que os mesmos continham todos os elementos necessários à prolação da decisão proferiu sentença que julgou a ação improcedente e absolveu a ré dos pedidos.

A ré interpôs recurso de apelação que veio a ser julgado improcedente tendo confirmado, com um voto de vencido, a sentença de absolvição da ré dos pedidos.

 … …

 Interpõe agora a autora recurso de revista concluindo que:

- O presente recurso vem interposto do Acórdão Recorrido que absolveu a Recorrida dos pedidos, por entender que a presente ação é improcedente, por não provada.

- A EP 357 e o CCP 278 caducaram na pendência da presente ação, requerendo-se a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide quanto aos pedidos formulados sob as alíneas a) e c) acima identificados e quanto aos pedidos formulados sob a alínea b) e d) na parte relativa à EP 357 e ao CCP 278, nos termos do artigo 277.º, alínea e), do CPC.

- As custas judiciais relativas aos pedidos formulados por referência à EP 357 e ao CCP 278 devem ser repartidas em partes iguais, nos termos do disposto no artigo 536.º, n.º 1, do CPC, uma vez que a demanda das Recorrentes no que respeita à EP 357 e ao CCP 278 era fundada no momento em que foi intentada a ação e apenas deixou de ser fundada por circunstâncias supervenientes não imputáveis a nenhuma das Partes (o decurso do tempo e a consequente caducidade da EP 357 e do CCP 278).

- O elenco previsto no artigo 536.º, n.º 2, do CPC é meramente exemplificativo e, em qualquer caso, a caducidade de direitos consubstancia uma situação análoga à consignada no n.º 2 do artigo 536.º, n.º 2, do CPC, o que impõe a repartição igualitária das custas judiciais entre as Partes.

- O Tribunal a quo decidiu manter a Segunda Sentença com os seguintes fundamentos:

(i) o TPI não se teria pronunciado sobre qualquer pressuposto processual, antes fazendo uma verdadeira subsunção dos factos ao direito, não havendo violação da decisão singular;

(ii) inexiste violação dos direitos de propriedade industrial de que as ora recorrentes são titulares; e

(iii) o artigo 102.º, n.º 1, do CPI conferiria a proteção necessária aos titulares de direitos de propriedade industrial, pelo que seria redundante conceder uma proteção abstrata.

- Quanto ao primeiro argumento, labora o Tribunal a quo em erro, uma vez que é frontalmente violado o caso julgado gerado pela Decisão Singular que reconheceu expressamente o interesse em agir dos titulares de direitos de propriedade industrial para iniciar uma ação ao abrigo da Lei 62/2011 com fundamento na mera publicitação de um pedido de AIM e a desnecessidade de verificação de violação dos direitos invocados.

O fundamento da Primeira Sentença para absolver a ora Recorrida da instância e o fundamento da Segunda Sentença e da Decisão Recorrida para absolver a ora Recorrida do pedido é exatamente o mesmo – a inexistência de violação dos direitos de propriedade industrial invocados.

- O argumentário utilizado em todos os arestos é exatamente o mesmo, ainda que a decisão final seja dissemelhante (ora de absolvição da instância, ora de absolvição do pedido; ora com fundamento em falta de interesse em agir, ora com fundamento em inexistência de litígio, ora com fundamento na mera circunstância de ter havido subsunção dos factos ao direito), em total violação da Decisão Singular.

- A tentativa destas decisões de escaparem à jurisprudência inequívoca dos Tribunais superiores, em concreto deste Supremo Tribunal de Justiça, é ainda mais gravosa, no presente caso, uma vez que se verifica a violação do dever de acatamento de uma decisão obrigatória, já transitada em julgado, proferida nestes mesmos autos (a Decisão Singular).

- O Tribunal a quo violou o artigo 4.º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário, que determina expressamente “o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores”, proferindo a Decisão Recorrida em violação do caso julgado emanado da Decisão Singular, e das disposições legais constantes dos artigos 613.º, 620.º e 628.º todos do CPC.

- Quanto ao segundo requisito, é inegável que a nossa ordem jurídica permite de forma enfática e repetida as ações de condenação preventivas, isto é, aquelas que se destinam a evitar a violação de um direito e que, evidentemente, devem ser propostas antes de o mesmo direito ser violado, como é a ação que está consagrada na Lei 62/2011.

- Este mesmo Supremo Tribunal de Justiça já entendeu que é a própria Lei 62/2011 que arvora o pedido de AIM de um medicamento genérico abrangido pela proteção patentária como (único) facto motivador e legitimador da iniciativa propositiva da ação.

- Seria incabível a assunção de que existe interesse em agir para iniciar a presente ação – pressuposto irremível no persente caso atento ao trânsito em julgado da Decisão Singular –, para que depois se concluísse que a subsunção dos factos ao direito conduzia à absolvição da Ré dos pedidos formulados, com base na inexistência de violação dos direitos de propriedade industrial.

- Quanto ao terceiro argumento: relativamente à alegada circunstância de não ser útil a presente decisão condenatória, porquanto o artigo 102.º, n.º 1, do CPI já protegeria os direitos de propriedade industrial, resultando essa decisão numa redundância, é evidente que os direitos que, em geral, emergem do CCP 339 não são suscetíveis de ser exercidos diretamente pelo titular da patente porque ele não pode, por suas próprias mãos, impedir terceiros de praticarem os atos proibidos.

- O facto de um direito estar previsto na lei substantiva é precisamente a premissa básica e necessária para que o seu titular possa intentar uma ação judicial, como aconteceu no presente caso, com vista a que o mesmo seja reconhecido e protegido através de uma decisão judicial.

- Assim, uma mera disposição legal, geral e abstrata, não é suscetível de proteger os direitos que uma patente ou um CCP conferem e, em caso de violação efetiva ou iminente de tais direitos, o lesado ainda ter de espoletar um processo judicial (ainda que cautelar), no qual ainda teria de demonstrar a titularidade e escopo de proteção dos seus direitos.

- Os factos dados como provados no Acórdão Recorrido permitem a condenação da Recorrida, no segundo pedido formulado na Petição Inicial, já que decorre de tudo quanto se expôs que os medicamentos genéricos abrangidos pelas AIMs que espoletaram os presentes autos (identificadas no artigo 141.º da Petição Inicial), uma vez que contêm a associação de substâncias ativas Sitagliptina e Metformina, caem no escopo de proteção do CCP 339.

- Por sua vez, esses mesmos factos permitem a condenação da Recorrida no quarto  pedido formulado na Petição Inicial, uma vez que decorre, novamente, de tudo quanto se expôs que quaisquer medicamentos genéricos que contenham a associação de substâncias ativas sitagliptina e metformina, caem no escopo de proteção do CCP 339.

- Ao ter absolvido a Recorrida do pedido com os fundamentos escrutinados, o Acórdão Recorrido violou o disposto nos artigos 2 e 3.º, n.º 1 da Lei 62/2011 e ainda o disposto no artigo 102.º do CPI, no artigo 203.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, no artigo 4.º, n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto e no artigo 8.º, n.º 2, do Código Civil.

- Nestes termos, e nos melhores de direito que V. Ex.as doutamente suprirão, deve o presente recurso de revista ser julgado procedente e, em consequência, deve ser:

(i) ordenada a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide quanto aos pedidos formulados sob as alíneas a) e c) da petição inicial e quanto aos pedidos formulados sob a alínea b) e d) da petição inicial na parte relativa à EP ‘357 e ao CCP 278 e a consequente repartição das custas judiciais em partes iguais;

(ii) revogado o Acórdão Recorrido e substituído por outro que condene a Recorrida nos pedidos formulados nas alíneas b) e d) da Petição Inicial, limitados ao CCP 339.


Não houve contra alegações

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

       … …

Fundamentação

Está provada a seguinte matéria de facto:

a) A Primeira Autora é titular da EP 1 412 357, com a epígrafe "BETA-AMI NOTETRA-HIDROIMIDAZO (1,2-A) PIRAZINAS E BETA-AMINOTETRAHIDRO RIA ZOLO (4,3-A) PIRAZINAS COMO INIBIDORES DA DIPEPTIDILPEPTIDASE PARA O TRATAMENTO OU PREVENÇÃO DE DIABETES", sendo a Segunda Autora sua licenciada;

b) A EP 1 412 357 foi pedida ao Instituto Europeu de Patentes em 05.07.2002, tendo sido publicada a menção da sua concessão no Boletim da Patente Europeia n.º 2006/12 (...) e protege, além do mais a SITAGLIPTINA;

c) A Primeira Autora é igualmente titular, sendo a Segunda Autora sua licenciada, do Certificado Complementar de Proteção n.º 278 que abrange a SITAGLIPTINA;

d) Foi publicado no dia 16-12-2020 ter a Ré apresentado à INFARMED - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P. em 13.11.2020 «pedido(s) de autorização, ou registo, de introdução no mercado de medicamento(s) contendo a substância activa “Sitagliptina”»;

e) Consta dos registos mantidos no Instituto Nacional da Propriedade Industrial relativamente ao «processo de Certificado Complementar de Proteção n.º 339» respeitante ao «produto (…) VELMETIA - SITAGLIPTINA / CLORIDRATO DE METFORMINA, JANUMET - SITAGLIPTINA / CLORIDRATO DE METFORMINA E EFFICIB - SITAGLIPTINA / CLORIDRATO DE METFORMINA», ser «Requerente / Titular atual» MERCK SHARP & DOHME CORP, encontrando-se, sob a menção «Sub Licença de Exploração não Exclusiva», «MERCK SHARP & DOHME LDA».

f) Foi publicado no dia 16-12-2020 ter a Ré apresentado à INFARMED - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P. em 20.11.2020 «pedido(s) de autorização, ou registo, de introdução no mercado de medicamento(s) contendo a substância activa “Metformina, (...); Sitagliptina»

… …

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das Recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido nos arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

O conhecimento das questões a resolver na presente Revista consiste em saber se a ação deve ser julgada procedente (na consideração de estarem certificados e demonstrados todos os requisitos necessários a essa procedência) ou se deve manter-se a improcedência (na consideração de não estar demonstrada a violação de qualquer direito da autora).

… …

Como questão prévia a autora/recorrente nas suas conclusões de revista alega que a EP 357 e o CCP 278 caducaram na pendência da presente ação, respetivamente, no dia 5 de julho de 2022 e no dia 23 de setembro de 2022. E uma vez que o CCP 339 é o único direito de propriedade industrial ainda em vigor, os pedidos inicialmente formulados na petição inicial deverão manter-se na parte que lhe dizem respeito, tornando-se os demais supervenientemente inúteis o que deve ser declarado.

Com base nesta invocação e no alegado pela autora na petição inicial verifica-se a caducidade da EP 357 e do CCP 278 e que os direitos de propriedade industrial deles emergentes e invocados nos presentes autos invocados, tornando inútil nessa parte a ação.

Nesta conformidade e atento o disposto no art. 277 al. e) do CPC decide-se julgar extinta a instância quanto aos pedidos formulados sob a alíneas a) e c) e, bem assim, quanto aos pedidos formulados sob a alínea b) e d) na parte relativa à EP 357 e ao CCP 278 prosseguindo a ação quanto ao mais.

As custas desta extinção da instância serão fixadas no final em conjugação necessária com as do presente recurso.

… …

Conhecendo agora do objeto remanescente do recurso - das alíneas b) e d) do pedido relativamente à EP 1 412 357 e CCP 339 - devemos ter presente o histórico dos autos, nomeadamente quando uma primeira decisão singular em recurso de apelação decide pela existência de interesse em agir por parte da autora, contra o que havia sido decidido em primeira instância e, em vez de conhecer do mérito da causa, determina o prosseguimento dos autos.

O art. 655 nº2 do CPC dispõe que “Se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.”

No cometário a este preceito Abrantes Geraldes entende que abarcando as nulidades da sentença “ o mesmo ocorre quando nos casos em que, apesar de não se verificar uma situação de nulidade da sentença o tribunal a quo tenha deixado de apreciar determinadas questões considera prejudicada pela solução dada a outra. Neste caso, se existirem elementos para conhecer das questões que ficaram excluídas da primeira decisão, a Relação apreciá-las-á também sem necessidade sequer de expressa iniciativa da parte” – in Recursos em Processo Civil, 6ª ed. p. 381/382 .

E enunciando alguns exemplos sublinha entre eles o do conhecimento de exceções dilatórias em que sobreveio uma absolvição da instância, caso em que a Relação deverá conhecer do mérito da causa se entender que não existe a referida exceção obstativa do conhecimento do mérito se o processo contiver todos os elementos necessários.

No caso em decisão foi o que ocorreu. A decisão singular na apelação revogou o julgamento da primeira instância quanto à exceção dilatória de falta de interesse em agir, mas determinou o prosseguimento dos autos quando os autos tinham todos os elementos necessários a que se tivesse conhecido do mérito (o que já ocorreu em inúmeros casos semelhantes em que se discutia esta mesma matéria) e até porque, como se constata, os argumentos para julgar improcedente a exceção de falta de interesse em agir são os mesmos que levam (mas não levaram) a que a ação fosse julgada procedente.

A decisão recorrida para confirmar a da primeira instância que julgou improcedente a ação fundou-se essencialmente no argumento que é o de ser diferente e diverso o conhecimento de uma exceção dilatória que conduz à absolvição da instância e o do conhecimento do mérito da causa que conduz à absolvição (ou condenação) no pedido. E se a decisão singular na apelação recusando uma avaliação de mérito, ao determinar o prosseguimento da ação tal assentou na consideração de o tribunal de recurso não possuir todos os elementos relevantes para sustentar uma decisão de mérito e, também, e que o tribunal de primeira instância tinha poderes para se debruçar sobre tal mérito podendo e devendo julgar a ação como procedente ou improcedente de acordo com a prova cristalizada.

Tem de reconhecer-se que o Tribunal da Relação, na decisão singular que proferiu, ao não conhecer (como entendemos que devia) do mérito da causa, deferiu esse conhecimento para o tribunal de primeira instância e este, obviamente, mais não poderia fazer que no acatamento do decidido conhecer do mérito como lhe tinha sido ordenado por decisão transitada em julgado. Assim, o que está em causa neste momento e neste recurso é, apenas, apreciar essa decisão de mérito confirmada pela decisão recorrida, o que a própria recorrente reconhece concluindo que a ação deva ser julgada procedente.

Posto isto e na análise do objeto do recurso deve advertir-se que a apreciação da falta de interesse em agir, não se confundindo com o conhecimento de mérito, forma com ele  as duas faces indissociáveis da mesma questão.

 Como já o decidimos em acórdão em que o ora recorrente era também recorrente - ac. STJ de de 22 de abril de2022 no proc. 40/20.3YHLSB.L1.S1 - quando se aprecia e decide o interesse em agir como pressuposto (ainda que não conste do CPC é admitido e reconhecido pela jurisprudência  - cfr. ac. 8-4-2021 no proc. 219/19.0YHLSB.L1.S1 e de 9 de dezembro de 2021 no proc. 225/20.2YHLSB-A.S1, in dgsi.pt. – está a exigir-se uma necessidade razoável, justificada, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a ação, a reconhecer-se que o demandante só terá interesse processual desde que alegue a violação do seu direito. E explica-se nesta evidencia que o tribunal de primeira instância, decidindo primeiro que não tinha o autor interesse em agir por não alegar ter visto violado qualquer direito tenha depois, obrigado a conhecer do mérito que é precisamente por considerar que o autor não alegou a violação de um direito que a ação tem de ser julgada improcedente, completando-se o equívoco lógico  que é o de, por ter sido julgado que não era necessário alegar mais para que tivesse interesse em agir e ser considerado violado o seu direito em termos de pressuposto processual, venha de imediato a decidir-se que, afinal, não há alegação de violação do direito o que , afinal, teria determinado desde logo a ausência de interesse em agir.

Como se disse no acórdão de que foi relator o ora relator, a exigência da violação de um direito imporia, no caso, que as autoras não tivessem interesse processual em propor a presente ação por não ser o pedido de autorização de introdução do mercado de um medicamento genérico, por si só, uma violação dos direitos de propriedade intelectual do titular da patente do medicamento de referência.

O titular de uma patente tem o direito à sua exploração económica exclusiva, isto é, um verdadeiro monopólio de exploração - art. 101.º, n.º 1, do CPI -, podendo fazer valer os seus direitos contra terceiros que, de algum modo, pretendam invadir esse monopólio, enquanto aquela não caducar. E não obstante a entrada no mercado de medicamentos genéricos implicar, necessariamente, que as patentes respeitantes aos medicamentos de referência tenham expirado (arts. 99.º e 101.º do CPI), o processo administrativo de concessão de autorização de introdução no mercado (AIM) e de fixação de preço pode ser iniciado antes dessa caducidade, por razões económicas e de ordem pública que se prendem com a morosidade de tais processos. Pelo que, podia a demandada ter requerido a concessão da AIM e podia o INFARMED tê-la concedido, como concedeu em alguns dos medicamente genéricos aqui em causa, sem que com isso esteja a ser violado o direito de propriedade industrial decorrente da patente do medicamento de referência – vd. ac. do STJ de 20-5-2015 no proc.  747/13 .1YRLS B.S1, que por sua vez é acolhido no ac. do STJ de 8-4-2021.

Como se afirmou já - no ac. STJ de 8-4-2021 no proc. 219/19.0YHLSB.L1.S1 de que o aqui relator foi subscritor e cujo entendimento foi replicado no ac. STJ de 9 de Dezembro de 2021 no proc. 225/20.2YHLSB-A.S1, de que o aqui relator foi ali relator - estando em causa uma ação de condenação, como a proposta pelas autoras contra as rés, a questão que se coloca em alternativa é a de saber se “ a apresentação de um requerimento de autorização de introdução no mercado de um medicamento genérico é suficiente para que os titulares de direitos de propriedade intelectual (p. ex., de patentes) sobre a substância ativa do medicamento tenham interesse em agir, pedindo que o requerente da autorização seja condenado a abster-se do fabrico, da comercialização, do armazenamento ou da exportação de medicamentos”  ou se “a  apresentação de um requerimento de autorização de introdução no mercado de um medicamento genérico não é suficiente para que os titulares de direitos de propriedade intelectual sobre a substância ativa do medicamento tenham interesse em agir, tonando-se necessário que o requerente tenha iniciado ou esteja na iminência de iniciar o fabrico, a comercialização, o armazenamento ou a exportação de medicamentos.”

O importante é averiguar se o critério geral de violação do direito - para efeitos de apreciação do interesse em agir e coincidentemente do mérito da  causa é derrogado pelo art. 3.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro na redação do Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de setembro que estabelece:

“1- No prazo de 30 dias a contar da publicitação na página eletrónica do INFARMED - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P. (INFARMED, I. P.), de todos os pedidos de autorização, ou registo, de introdução no mercado de medicamentos genéricos, o interessado que pretenda invocar o seu direito de propriedade industrial nos termos do artigo anterior deve fazê-lo junto do Tribunal da Propriedade Intelectual ou, em caso de acordo entre as partes junto do tribunal arbitral institucionalizado ou efetuar pedido de submissão do litígio a arbitragem não institucionalizada.

2 - A não dedução de contestação, no prazo de 30 dias após citação na ação intentada no Tribunal da Propriedade Intelectual ou da notificação para o efeito pelo tribunal arbitral, implica que o requerente de autorização, ou registo, de introdução no mercado do medicamento genérico não pode iniciar a sua exploração industrial ou comercial na vigência dos direitos de propriedade industrial invocados nos termos do número anterior.”

Neste particular, enuncia-se no ac. do STJ de 8-4-2021 que acompanhamos  “[O ]texto do art. 3.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, na redação do Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de Setembro, é compatível com duas interpretações: a primeira no sentido de que impede os titulares de invocarem os seus direitos de propriedade intelectual depois do decurso do prazo de 30 dias a contar da publicitação na página eletrónica do INFARMED do pedido de autorização de introdução no mercado de um medicamento genérico; a segunda no sentido de que não impede ou, em todo o caso, não impede em absoluto os titulares de invocarem os seus direitos depois do decurso do prazo de 30 dias.

A preferência pela primeira interpretação determinaria uma de duas coisas - ou que se dispensasse o interesse processual ou, ainda que não se dispensasse o interesse processual, que o pedido de uma autorização de introdução no mercado tivesse como efeito automático, imediato e necessário a “necessidade razoável, justificada, fundada, de lançar mão do processo”.

Em todo o caso, a primeira interpretação, nos termos absolutos, rígidos, em que é enunciada, causaria dificuldades insuperáveis ou quase insuperáveis - como concluíram, p. ex., o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 123/2015, de 7 de julho de 2015[11], o acórdão do STJ de 7 de Dezembro de 2016, proferido no processo n.º 554/15.7YRLSB.L1.S1 ou os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 187/2018, de 10 de Abril de 2018, e n.º 496/2018, de 10 de Outubro de 2018”.

Concretizando: no ac. do TC 123/2015 julgou-se inconstitucional a dimensão normativa resultante do artigo 3.º, n.º 1, conjugado com o artigo 2.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, segundo a qual o titular de direito de propriedade industrial não pode demandar o titular de Autorização de Introdução no Mercado ou o requerente de pedido de AIM para além do prazo de trinta dias, a contar da publicação pelo INFARMED referida no artigo 9.º, n.º 3, da mesma Lei, por violação do artigo 20.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa;

no ac. STJ de 7 de Dezembro de 2016 decidiu-se que “os meios de defesa não se esgotam na ação arbitral (necessária), nem essa foi sequer a intenção do legislador, pois a declaração de nulidade ou de anulação de direitos de propriedade industrial só pode resultar de decisão judicial, como decorre dos termos do art. 35.º, n.º 1, do Código da Propriedade Industrial” e que, “para além da ação arbitral, o interessado pode ainda servir-se, sempre, da ação de nulidade ou anulação, o que reforça a salvaguarda da sua tutela jurisdicional efetiva, em termos que se podem considerar como adequados”;

e no ac. do TC 496/2018, foi decidido “não julgar inconstitucional a interpretação normativa dos artigos 2.º e 3.º, nº 1, da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, segundo a qual o titular do direito de propriedade industrial não pode demandar o titular de Autorização de Introdução no Mercado ou o requerente de pedido de AIM, nos termos e para os efeitos previstos na mesma Lei, para além do prazo de trinta dias, a contar da publicação, através da página eletrónica do Infarmed, a que se refere o artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de agosto, na redação conferida pela Lei n.º 62/2011” - explicando-se a diferença em relação ao acórdão do Tribunal Constitucional n.º 123/2015, de 7 de Julho de 2015, com o argumento de que, no acórdão recorrido (o acórdão do STJ de 7 de Dezembro de 2016) se tinha afastado o “efeito preclusivo de utilização dos meios comuns de tutela da propriedade industrial pela não suscitação da arbitragem necessária”.

Por outro lado, a preferência pela segunda interpretação, a que não impede ou não impede em absoluto os titulares de invocarem os seus direitos depois do decurso do prazo de 30 dias “é compatível com duas soluções: a primeira no sentido de que a ação especial prevista no art. 3.º da Lei n.º 62/2011 pode ser proposta desde que seja publicitado na página eletrónica do INFARMED um pedido de autorização de introdução do mercado de um medicamento genérico – defendido Evaristo Mendes, “Patentes de medicamentos. Arbitragem necessária. Comentário de jurisprudência. Súmula da Lei nº 62/2011”, in: Propriedades Intelectuais, n.º 4-2015, págs. 26-40; “O fim da arbitragem necessária em matéria de patentes farmacêuticas. Velhos e novos problemas”, in: Revista de direito comercial, ano 3.º (2019), págs. 75-120; ou “O fim da arbitragem necessária em matéria de patentes farmacêuticas. Velhos e novos problemas”, in: Revista da Ordem dos Advogados, ano 78.º (2018), págs. 627-682;

a segunda no sentido de que a ação especial prevista no art. 3.º da Lei n.º 62/2011 só pode ser proposta desde que haja algo mais que um pedido de autorização para a introdução no mercado, ou seja - uma violação ou uma ameaça de violação dos direitos de propriedade intelectual dos titulares das patentes dos medicamentos de referência - como defende Dario Moura Vicente, in “O regime especial de resolução de conflitos em matéria de patentes (Lei n.º 62/2011)”, cit., pág. 980; e, na jurisprudência, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22 de Abril de 2017 no proc. 1757-16.2YRLSB-6 in dgsi.pt.

Ainda em coincidência com o acórdão que vimos transcrevendo, em favor do primeiro termo da alternativa, alega-se que, em derrogação das regras gerais, os titulares dos direitos de propriedade intelectual não precisam de justificar o recurso à ação com base numa infração, atual ou iminente, ou de demonstrar um interesse em agir. Seria suficiente a publicitação, na página eletrónica do Infarmed, de um pedido de autorização de introdução no mercado (ou registo) para medicamento genérico para que os titulares das patentes dos medicamentos de referência pudessem propor a ação, porque o objetivo é, havendo direitos de propriedade intelectual em vigor, clarificar os exatos termos do exclusivo, de modo que, uma vez findo este, o medicamento para que é requerida a autorização possa, sem delongas, ser lançado no mercado. Está em causa, não um mero interesse particular dos titulares de patentes ou de certificados complementares de proteção, mas um interesse de índole geral - o que expressamente é sustentado por Evaristo Mendes, in “O fim da arbitragem necessária em matéria de patentes farmacêuticas. Velhos e novos problemas”, Revista de direito comercial, cit., pág. 103; ou Evaristo Mendes, in “O fim da arbitragem necessária em matéria de patentes farmacêuticas. Velhos e novos problemas”, Revista da Ordem dos Advogados, cit., pág. 656.

Em favor do segundo termo da alternativa, alega-se que, os titulares dos direitos de propriedade intelectual precisam — continuam a precisar - de justificar o recurso à ação com base numa infração, atual ou iminente, e de demonstrar um interesse em agir. O pressuposto do interesse em agir não poderia ter-se como preenchido pela alegação pelo demandante de que existe, por parte do demandado, a intenção de introduzir no mercado os medicamentos para que pediu autorizações de introdução no mercado, sobretudo, “quando o tribunal for confrontado com a afirmação perentória do demandado, que não haja contestado o direito do demandante nem haja sido acusado de o ter violado, de que não pretende comercializar o genérico em causa antes da caducidade ou invalidação da patente.

Seria sempre necessária a violação, ou a ameaça de violação, dos direitos de propriedade intelectual do demandante porque a inexistência da obrigação legal de instauração de ação arbitral - sempre que é publicitado o pedido de Autorização de Introdução no Mercado para um medicamento genérico e porque a mera formulação de tal pedido não gera, por si só, qualquer violação ou ameaça de violação da patente relativa a composto farmacêutico utilizado na produção de medicamentos - determinaria não existir interesse em agir do titular dessa patente em ação em que fosse peticionada a abstenção de violação dos direitos emergentes da mesma e a interdição de alienação a terceiros das AIM, à míngua de outras circunstâncias que apontem para a verosimilhança da previsão da violação de um direito” – termo de alternativa que é defendido por Dario Moura Vicente, in “O regime especial de resolução de conflitos em matéria de patentes (Lei n.º 62/2011)”, cit., pág. 980.

Exposta a questão nos seus termos argumentativos e consequências, acolhemos como já o fizemos no acórdão transcrito e no de 9 de Dezembro de 2021 - no proc. 225/20.2YHLSB-A.S1 de que o aqui relator foi ali relator - que o art. 3.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, depõe essencialmente a favor de os titulares dos direitos de propriedade intelectual não precisarem de justificar o recurso à ação com base numa infração, atual ou iminente ou de demonstrar um interesse em agir, sendo suficiente a publicitação, na página eletrónica do Infarmed, de um pedido de autorização de introdução no mercado (ou registo) para medicamento genérico. Não se exige que o interessado que pretenda invocar o seu direito de propriedade industrial nos termos do artigo anterior deva fazê-lo junto do Tribunal da Propriedade Intelectual, podendo fazê-lo aí (no Tribunal da Propriedade Intelectual) mas também junto de tribunal arbitral institucionalizado ou junto de tribunal arbitral não institucionalizado.

Em resumo, o processo previsto no art. 3.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro configura processo especial de acertamento de direitos que sendo suscetível de ser desencadeado em face da publicitação de um simples pedido de autorização de introdução no mercado (altura em que não haverá́, em princípio, qualquer infração ou ameaça iminente de infração de direitos de propriedade industrial), permite aos titulares dos direitos poderem instaurá-lo ou não, consoante o interesse que vejam nele. E pode tal procedimento ser instaurado dentro do prazo de um mês a contar dessa publicitação, porque tal se enquadra na lógica de um processo rápido, destinado a ter fim, idealmente, antes de haver uma decisão Infarmed sobre o pedido de autorização de introdução no mercado – neste sentido Evaristo Mendes, in “Patentes de medicamentos. Arbitragem necessária. Comentário de jurisprudência. Súmula da Lei nº 62/2011”, in: Propriedades Intelectuais, n.º 4, 2015, pp. 26-40.

São estas as razões que militando a favor do reconhecimento do interesse agir são igualmente as que fornecem sustento ao conhecimento do mérito que no processo 40 se dizem que o pressuposto processual e o mérito fica reconhecido a partir do momento da publicitação do pedido de autorização de introdução no mercado, mas só com essa publicação,

O critério geral de apreciação do interesse processual, dependente da concreta alegação de violação do seu direito invocado, é derrogado pelo art. 3º da Lei n.º 62/2011(na redação do Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de setembro) o qual acolhe a possibilidade excecional de os titulares dos direitos de propriedade intelectual não carecerem justificar o recurso à ação com base numa infração, atual ou iminente, sendo suficiente a publicitação, na página eletrónica do Infarmed, de um pedido de autorização de introdução no mercado (ou registo) para medicamento genérico. Todavia este entendimento, em desvio da aludida regra geral, é admitido porque, não existindo qualquer violação concreta do direito dos autores a existência/publicação do pedido de AIM compreende, na economia interpretativa dos preceitos observados, razões objetivas relevantes para, ainda nesse caso, se conceder tutela de interesse à pretensão dos autores. Mesmo que não exista violação do direito invocado, existe um pedido de publicação AIM e é esta existência e o que ela significa que determina a configuração do interesse em agir.

Por outro lado, para lá desse círculo de interesses com respaldo na publicação do AIM, não pode extrapolar-se a decisão que concede ao demandante interesse agir para estender esse mesmo interesse quando não se esteja em presença de quaisquer solicitações e publicações de AIM e exista apenas um composto (e suas associações) protegido por um EP e no CCP. E não pode sustentar-se que inexiste sentido ou razão normativa processual para que só em face de um pedido de AIM publicado e/ou concedido pelo INFARMED se proponha uma ação quando a substância ativa em causa é a mesma.

Em verdade, como deixámos dito, a razão determinante do interesse em agir é, por regra, a delimitação desse interesse a um quadro de violação efetiva dos direitos invocados visando a sua reparação ou aos casos destinados a prevenir a violação consistentes em ameaça séria, real e atual, traduzida na alegação e prova de indícios suficientes. E se no caso em presença a lei permite uma interpretação que configura como objetivamente verificável (o pedido de AIM) para sustentar (com atualidade) o interesse em agir/ procedência da ação, cremos que tal já não se configura quando não exista pedido de AIM solicitado e publicado. Não estão em causa razões de economia processual ou de unidade do sistema, mas sim de certeza e segurança jurídicas.

Em cenário de ilustração de raciocínio convocamos a hipotética situação de uma demandante pedir que uma demandada, que não tivesse requerido qualquer AIM, fosse condenada a abster-se de importar, fabricar, armazenar, introduzir no comércio, vender ou oferecer quaisquer medicamentos que contivessem uma determinada substância ativa cuja EP e/ou CCP fossem da titularidade da peticionante e se encontrassem, em vigor. Neste caso, sem que a demandada tivesse requerido e tivesse sido publicada uma AIM, a questão que se imporia seria a de saber como configurar um interesse em agir/procedência da ação se nenhum facto de violação ou ameaça do direito existisse e tampouco um pedido/publicação anterior de AIM, tivesse sido requerido pela demandada. Nenhum sentido teria demandar alguém se nenhuma AIM pedida e publicada estivesse em questão.

Por outro lado, se quer argumentar-se - como parece estar implícito mas não é evidente nem se encontra alegado - que, afinal, só nos casos em que tivesse já sido pedida/publicada uma AIM se poderia/deveria estender a condenação da ré nessa abstenção de importar, fabricar, armazenar, introduzir no comércio, vender ou oferecer quaisquer medicamentos que contivessem a substância ativa protegida fora do âmbito da AIMs pedidas ou de quaisquer outras ainda não pedidas, teremos de concluir pelo indeferimento dessa possibilidade.  Permitir que a invocação de AIMs publicadas para obter a abstenção mencionada quanto a elas mas também, extensivamente e de forma universal para obter a mesma proibição fora do âmbito de qualquer AIM, seria criar, mais que uma presunção - arts. 349 e 351 do CCivil - que as regras de experiência comum não admitem, uma verdadeira petição de princípio legal. Estar-se-ia a configurar, quanto à substância ativa em causa, a publicitação de uma AIM como um elemento objetivo de interesse em agir/procedência da ação para evitar a atualidade dessa AIM, mas ao mesmo tempo a utilizar esse facto (a publicação) como prognose certa e segura para declarar perigo real, sério e atual de violação do direito da demandante relativamente a algo que é de todo improvável e sem qualquer fundamento de consistência: que o requerente da AIM, contrariado pela ação do demandante julgada procedente, venha a requerer outras AIMs iguais quanto à mesma substância ativa. Um tal raciocínio, em nosso entender, estaria inquinado de ilogismo, incerteza e insegurança. Não encontramos nenhum nexo de lógica normativa ou naturalística para que a publicitação da AIM possa, por si só, fundar qualquer interesse por parte do demandante para obter uma condenação de abstenção fora do âmbito das AIMs publicadas

A pretender prevenir-se que com a procedência da ação, depois de obtida a inibição de um ou vários AIMs e em face dessa decisão judicial, não venha o demandado a repetir novos pedidos com a mesma finalidade, então contrapõe-se que a exigência de publicitação do AIM continua a ser o (único) elemento central para aferir tal interesse, isto é, na falta de alegação e prova de quaisquer factos de onde se colham indícios suficientes, seguros e sérios da ameaça de violação do direito.

Em qualquer caso, na situação em presença, com os factos que servem a decisão entende-se que, se por um lado deve proceder a ação quanto ser a ré condenada a abster-se de, em território português, ou tendo em vista a comercialização nesse território, por si ou por terceiro importar, fabricar, armazenar, introduzir no comércio, vender ou oferecer os medicamentos que são objeto dos pedidos de AIM o CCP 339 se encontrar em vigor; por outro lado não pode a ação proceder quanto a ser a ré condenada a abster-se de, em território português, ou tendo em vista a comercialização nesse território, por si ou por terceiro, importar, fabricar, armazenar, introduzir no comércio, vender ou oferecer quaisquer medicamentos que compreendam a associação de substâncias ativas Sitagliptina e Metformina, enquanto o CCP 339 se encontrar em vigor. E esta improcedência resulta de, sem pedido de AIM e fora do quadro da publicitação desse pedido não poderem as recorrentes obter a abstenção das recorridas de importar, fabricar, armazenar, introduzir no comércio, vender ou oferecer quaisquer medicamentos que contenham a substância ativa em causa.

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 Síntese conclusiva

Os titulares dos direitos de propriedade intelectual podem propor a ação especial prevista no art. 3.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, na redação do Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de setembro, em face da publicitação de um simples pedido de autorização de introdução no mercado.

Não existindo publicação de pedido de autorização de introdução no mercado, ser a demandante titular de um composto um composto (e suas associações) protegido por um EP e no CCP não lhe confere interesse em agir.

… …

 Decisão

Pelo exposto , acordam os juízes que compõem este Tribunal em julgar:

a) a extinção da instância por inutilidade superveniente quanto aos pedidos formulados na petição inicial sob as alíneas a) e c) e, bem assim, quanto aos pedidos formulados sob a alínea b) e d) na parte relativa à EP 357 e ao CCP 278.

b) Parcialmente procedente a revista e em consequência, condena-se a ré abster-se de, de, em território português, ou tendo em vista a comercialização nesse território, por si ou por terceiro importar, fabricar, armazenar, introduzir no comércio, vender ou oferecer os medicamentos que são objeto dos pedidos de AIM identificados no artigo 141 da petição inicial, enquanto a EP 1 412 357 e/ou o CCP 339 se encontrarem em vigor,

c) Parcialmente improcedente a revista quanto a ser a ré condenada a abster-se de, em território português, ou tendo em vista a comercialização nesse território, por si ou por terceiro, importar, fabricar, armazenar, introduzir no comércio, vender ou oferecer quaisquer medicamentos que compreendam a associação de substâncias ativas Sitagliptina e Metformina, enquanto a EP1 412 357 e o CCP 339 se encontrarem em vigor, absolvendo-se nesta parte a ré.

As custas referentes à extinção da instância serão suportadas por autoras e ré em partes iguais (art. 536 nº1 do CPC) e as custas da revista serão suportadas igualmente entre recorrentes e recorrida na proporção do seu respetivo decaimento que se fixa em metade.


Lisboa , 7 de março de 2023


Relator: Cons. Manuel Capelo

1º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro Tibério Nunes da Silva

2º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro Nuno Ataíde das Neves