LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PRESUNÇÕES
Sumário

O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode subverter ou aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não pode servir para subverter o princípio da livre apreciação da prova que está deferido ao tribunal da primeira instância, sendo que na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também factores não materializados, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.
Daí que o recurso da decisão da primeira instância em matéria de facto não sirva para suprir ou substituir o juízo que aquele tribunal formulou, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade de declarantes e testemunhas. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprimido pelo tribunal da segunda instância. Este não é chamado a fazer um novo julgamento - como parece entender o recorrente - mas a remediar erros que não têm a ver com o juízo de maior ou menor credibilidade ou fiabilidade dos intervenientes no julgamento. Esses erros ocorrerão quando, por exemplo, o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário.
É legítimo o recurso às referidas presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125º do CPP), e o artigo 349º do Código Civil prescreve que as presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (artigo 351º deste mesmo diploma legal).
As presunções simples ou naturais são meios lógicos de apreciação das provas, meios de convicção, sendo o produto das regras da experiência. O juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto.

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora
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I- Relatório

AA foi condenado nos seguintes termos:

- pela prática de um crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelo art. 131º e 22º, nºs 1 e 2 als. a) e b) do CP, contra BB, na pena de 3 anos e 10 meses de prisão;

- pela prática de um crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelo art. 131º e 22º, nºs 1 e 2 als. a) e b) do CP, contra CC, na pena de 4 anos e 1 mês de prisão;

- e, em cúmulo jurídico, na pena única de 5 anos e 4 meses de prisão.

Inconformado recorre o mesmo suscitando, em síntese, as seguintes questões:

- impugnação da matéria de facto (erro notório na apreciação de prova).

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O MP respondeu ao recurso, pugnando pela respectiva improcedência.

Nesta Relação, o Exº PGA emitiu parecer no mesmo sentido.

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II- Fundamentação

Factos provados

“1- No dia 31 de julho de 2021, pelas 01H20m, o arguido encontrava-se na sua residência sita em Rua …, …, quando presenciou da varanda uma discussão entre o seu vizinho e proprietário do estabelecimento comercial de café denominado de “…”, sito no rés-do-chão do mesmo prédio, DD, com uns cidadãos de nacionalidade brasileira, entre os quais, os ofendidos BB e CC.

2- Porque estimava o seu vizinho e vendo-o rodeado pelos aludidos cidadãos, em inferioridade numérica e a ser agredido em circunstâncias não concretamente apuradas, muniu-se de uma faca de características igualmente não apuradas e desceu à rua, dirigindo-se para o local do confronto, nas proximidades do estabelecimento de café.

3- Ao se aperceber da faca na mão do arguido, já próxima de si, BB virou costas e iniciou fuga, após o que tropeçou e caiu.

4- Ato contínuo, o arguido visando o tronco de BB, desferiu várias facadas, que das mesmas se defendeu com os pés e esquivando o corpo, tendo para o efeito se virado de barriga para cima assim que caiu ao chão.

5- Não obstante os esforços de BB para evitar ser atingido, no decurso da factualidade descrita em 4, o arguido logrou atingir o ofendido no ombro esquerdo e face lateral do hemotórax esquerdo.

6- Ao ver BB no chão, sem se aperceber que o arguido detinha uma faca, CC, abeirou-se daquele e posicionou-se para o levantar, altura em que o arguido, encontrando-se nas suas costas, lhe desferiu 6 facadas na região posterior do tórax, axila e região lombar à esquerda e uma facada no tórax posterior à direita.

7- Na sequência da conduta do arguido, BB sofreu as seguintes lesões que lhe provocaram dores e 15 dias de doença, sendo 10 com incapacidade de trabalho geral:

a) Lesão incisa no braço esquerdo

b) enfisema subcutâneo envolvendo toda a parede ântero-superior esquerda e a topografia posterior esquerda sensivelmente ao nível da articulação gleno-humeral, atingindo a parede torácica anterior, pleura e pulmão.

8- Na sequência da conduta do arguido, CC, sofreu as seguintes lesões que lhe provocaram dores e 12 dias de doença, sendo 11 com incapacidade para o trabalho geral:

a) 6 (seis) feridas incisas na região posterior do tórax, axila e região lombar esquerda.

b) 1 (uma) ferida incisa no tórax posterior à direita mais profunda e que condiciona um hematoma subcutâneo que fica contido pela sutura, com

c) lesão pleuropulmonar bilateral associada, sendo mais grave à direita.

9- O arguido agiu da forma descrita no intuito de atingir os arguidos na zona do tronco onde se encontram órgãos vitais e, consequentemente, lhes provocar a morte.

10- O arguido sabia que o instrumento corto-perfurante que utilizou era apto a provocar a morte dos ofendidos através das perfurações que concretizou.

11- O que só não ocorreu, atenta a localização e gravidade das lesões traumáticas, por circunstâncias alheias à vontade do arguido, concretamente devido à intervenção médica a que oportunamente foram sujeitos os ofendidos.

12- O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei e tinha capacidade para se determinar de acordo com essa avaliação, controlando o impulso agressor a partir do momento em que BB e CC viraram costas deixando de constituir uma ameaça para DD e para si, conforme descrito em 3 e 4;

13- Ainda assim, não se absteve de praticar as condutas descritas.

Mais se provou

14- O arguido só parou quando ouviu BB gritar o seu nome, altura em que abandonou o local.

15- AA cresceu no Bairro da … (em …), junto dos progenitores e de três irmãos mais novos.

16- Iniciou desde os 15 anos a atividade a tempo inteiro de venda ambulante.

17- Aos 17 anos, casou-se com a atual mulher, e autonomizou-se do agregado familiar, mantendo a atividade até aos dias de hoje de vendedor ambulante.

18- À data em que foi constituído arguido dedicava-se à venda ambulante de acessórios, vulgo, óculos de sol, que conciliava com pequenos trabalhos na área de mecânica automóvel.

19- Residia com a mulher e quatro filhos com idades compreendidas entre os 15 anos e os 20 meses de idade.

Antecedentes criminais

20- Por factos praticados nos dias 29 de setembro de 2008 e 29 de abril de 2010, foi o arguido condenado por sentenças já transitadas em julgado, pela prática de dois crimes de condução sem habilitação legal em penas de multa.

21- Por factos praticados no dia 04 de setembro de 2015, foi o arguido condenado no processo … por sentença proferida no dia 27 de novembro de 2017, transitada em julgado no dia 09 de janeiro de 2018, pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada na forma tentada, na pena de 8 meses de prisão substituída por 240 dias de multa”.

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Factos não provados

“a) Que o arguido tenha encetado fuga após os factos.

b) Que tenha sido o canivete examinado a fls. 279 a 282, o objeto perfurante utilizado pelo arguido na prática dos factos”.

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Motivação da matéria de facto

“O tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente nas declarações do arguido e nos depoimento das testemunhas, mormente do ofendido BB e, circunstancialmente de EE, FF, GG, DD, HH e II, bem assim na prova pericial e documental junta aos autos, designadamente a seguinte:

a) Relatório de exame pericial de avaliação de dano corporal a fls. 279 a 282;

b) Relatórios da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal a fls. 816 a 817 verso, 839 a 844 e 846 a 847;

c) Auto de diligências iniciais com reportagem fotográfica – fls. 25 a 28;

d) Reportagem fotográfica a fls. 42 a 43 e 46 a 51;

e) Elementos clínicos a fls. 394 a 469, parcialmente repetidos a fls. 695 a 714;

f) Certificado de registo criminal a fls. 792.

No geral, com exceção ao depoimento do ofendido pelos motivos que adiante se esmiuçarão, o depoimento das testemunhas afigurou-se tendencioso. Os factos redundam numa contenda física, sendo que as testemunhas ou estiveram envolvidas nessa contenda conforme ocorreu com DD e, em menor grau com GG, ou são amigos e/ou familiares dos intervenientes, pelo que se denotou uma intenção de justificar a conduta ou beneficiar a situação processual do interveniente próximo à testemunha. Tal tendência foi mais notória relativamente às testemunhas DD e GG que sendo amigos e vizinhos do arguido, terão genuinamente percecionado que o arguido agiu em defesa de DD, tomando a iniciativa de entrar numa contenda que não era sua e que já se encontrava em curso.

O depoimento do ofendido BB afigurou-se o mais credível na medida em que não deixou de afirmar o que efetivamente ocorreu, independentemente da factualidade relatada ser-lhe ou não desfavorável. Veja-se a título de exemplo, o facto de ter assumido que quando vai em auxílio do seu amigo e ofendido CC, estavam todos à “porrada” rodeando DD que se encontrava em desvantagem numérica, sendo nesta parte o seu depoimento coincidente com o do arguido, DD e GG. Para além disso, a versão que relatou é credível, porque compatível com os ferimentos que efetivamente sofreu, sendo ainda condizente com regras de experiência comum e normalidade da vida, considerando o conceito de comum homem médio. Veja-se uma vez mais a título de exemplo, o relato convicto, espontâneo e pormenorizado no sentido de que mal viu a faca nas mãos do arguido, virou costas para fugir e que com a atrapalhação caiu, tendo-se virado de barriga para cima e se defendido com os pés dos golpes que o “AA” de pé e de frente para si, perpetrava, só se tendo apercebido depois que foi fortemente atingido uma vez. Bem assim como o facto de ter percecionado que o CC se abeirou de si para o ajudar a levantar virando as costas ao AA que posicionado por trás lhe desferiu as facadas. É a versão espontânea que de forma clara explica a origem das facadas, quer a sofrida por si, quer as sofridas por CC. Pelo contrário, a versão apresentada pelo arguido não faz qualquer sentido, pois coloca-se no chão, pondo as vítimas em pé, rodeando-o enquanto o agrediam e que nesse contexto terá retirado do bolso a navalha que se encontra examinada nos autos, aberto a navalha e desferido de forma aleatória vários golpes, acertando não sabe em quem nem em que zonas corporais. Esta versão para além de desmentida pela perícia que atesta não poder ter sido aquela navalha em concreto o objeto utilizado por total ausência de vestígios hemáticos, encontra um obstáculo intransponível, pois esbarra com a impossibilidade de, em tal cenário, CC ter sofrido facadas nas costas nos locais em que se situam os pensos fotografados a fls. 25 verso. Não é difícil concluir, mesmo sem qualquer juízo pericial, que de joelhos no chão, não é possível atingir nas costas quem o agride de pé e posicionado de frente. Acresce que de acordo com os gestos que o arguido exemplificou em audiência de julgamento ter feito, os seus supostos agressores teriam sofrido cortes e não perfurações profundas como efetivamente sofreram. Conclui-se assim que o arguido mentiu quanto ao objeto utilizado e quanto ao contexto dessa mesma utilização. Falsidade que terá sido corroborada pelas testemunhas GG e DD, mas sem credibilidade porque, como se disse, sentir-se-ão compreensivelmente gratos para com o arguido que interveio inicialmente em seu auxílio e estarão desagradados com os ofendidos pelos factos que despoletaram toda a situação e que foram nesta parte, naquilo que é essencial, consensuais e pormenorizadamente descritos. Contudo, naquilo que verdadeiramente releva, designadamente o momento em que foram produzidas as lesões aos ofendidos e tudo o que se lhe seguiu, os depoimentos de DD e GG foram genéricos e evasivos, logo incapazes de infirmar a prova produzida pelo depoimento do ofendido BB. Por contraponto as testemunhas com vínculo familiar ou afetivo aos ofendidos, pese embora tenham demonstrado uma intenção de justificar a conduta destes designadamente no início dos factos e que terá dado origem à altercação com DD, não demonstraram qualquer desejo ou apetência para prejudicar a situação processual do arguido, confessando não se terem apercebido imediatamente de que os ofendidos foram esfaqueados, o que se afigura credível, atenta a dinâmica dos factos.

Concretizando:

A factualidade descrita em 1 é consensual.

O tribunal formou a convicção na prova da factualidade descrita 2, com base na conjugação das declarações do arguido com regras de experiência comum. Não duvida o Coletivo que não fosse a altercação dos ofendidos com DD e o arguido não teria saído à rua ao seu encontro, tal como afirmou o próprio que nesta parte não terá faltado à verdade. Necessariamente faltou à verdade quanto ao objeto utilizado. Afirma ter utilizado um objeto que, nos termos de exame pericial junto aos autos não poderá ter sido. Terá usado outro, que nunca apareceu, mas que pelas lesões que provocou apenas é compatível com uma lâmina, razão pela qual, conjugando com o depoimento credível do ofendido que afirmou ter visto uma faca, se concluiu nesse sentido. Não sendo possível ao ofendido descrever pormenorizadamente quer o feitio, quer a dimensão de tal faca, necessariamente se plasmou não terem sido apuradas as concretas características daquele objeto.

O tribunal formou a convicção na prova da factualidade descrita nos pontos 3 a 8, com base no depoimento do ofendido que o afirmou, credível pelos motivos já apontados, devidamente conjugados com as perícias de avaliação de dano corporal, elementos clínicos onde são descritas as lesões sofridas, designadamente o seu número, com as fotografias dos ofendidos no hospital após tratamento, vislumbrando-se os pensos apostos nos corpos dos ofendidos compatíveis com o número e local dessas lesões.

O tribunal formou a convicção na prova da factualidade descrita nos pontos 9 e 10 com base na dinâmica da factualidade provada nos pontos anteriores, devidamente conjugada com regras de experiência comum. Vejamos. Se o arguido mentiu quanto ao objeto utilizado e o mesmo não apareceu, é porque o arguido o ocultou, tendo-o feito por temer consequências nefastas na sua esfera jurídica. Ao afirmar ter praticado os factos com uma navalha com menos de 10 cm de lâmina que traria no bolso por motivo não relacionado com os factos, associou a utilização como arma de agressão de um objeto lícito a um acontecimento fortuito e não previsto. Coisa diferente ocorreu, pois que se provando não ter sido aquele o objeto utilizado, terá o arguido utilizado outro que não traria consigo por motivos alheios aos factos. Regras de experiência comum e normalidade da vida obrigam concluir que utilizou objeto de que previamente se muniu exclusivamente por causa dos factos. Dirigiu-se a uma contenda para intervir do lado de quem estava em inferioridade numérica, pelo que levou objeto que lhe desse superioridade que não só atenuasse, mas superasse essa desvantagem. Presunção lógica e forçosa nos termos dos artigos 127.º do Código de Processo Penal, 349.º e 351.º do Código Civil. Por outro lado, quando perante a fuga de BB decide espetar a faca no corpo deste e, posteriormente, no corpo de CC, só poderia ter desejado a morte de ambos, porque é esse o resultado que se espera, ou que se prevê, quando se enterra uma faca no tronco de um ser humano, seja na parte da frente, seja pelas costas. Isto porque sem necessidade de especiais conhecimentos médicos e recorrendo a meros juízo de experiência comum, sabendo que nessa zona se encontram alojados órgãos vitais, envolvidos na cavidade torácica e pélvica pela membrana que constitui o peritoneu, é possível concluir que uma perfuração profunda nesta zona corporal poderá causar a morte se não for recebida atempada assistência médica. Neste contexto, percetível por qualquer comum homem médio que não sofra de especial défice cognitivo, é elementar que quem espeta uma faca em qualquer parte do tronco de um ser humano, preveja e deseje naquele momento a sua morte. Não padecendo o arguido de défice cognitivo, necessariamente quis naquele momento provocar a morte dos ofendidos. De salientar que pese embora o golpe sofrido por BB esteja posicionado no braço esquerdo, junto ao ombro, provou-se que o arguido visou o tronco que não atingiu em virtude dos movimentos defensivos que o ofendido levou a cabo, esquivando o corpo no chão e desviando as sucessivas facadas com os pés. Por outro lado, a violência do golpe, suficiente para, a partir do braço, perfurar a cavidade torácica e atingir o pulmão, levam a temer consequências mais gravosas caso tivesse acertado diretamente no tronco que visou. Tal violência traduzida na força de penetração empregue, conjugada com o conhecimento do objeto utilizado, reforça a conclusão de que a intenção do arguido não pode ter sido outra, que não a de causar a morte do ofendido.

O tribunal formou a convicção na prova da factualidade descrita em 11 com base nos relatórios de exames periciais levados a cabo pelo Instituto Nacional de Medicina Legal que foram lapidares. Quanto a BB pode ler-se a fls. 847 verso “(…) No entanto do ponto de vista médico são consideradas graves e só não puseram em concreto a vida do ofendido devido à atempada assistência médica de urgência. A lesão sofrida atingiu local alojando órgãos essências para a vida.. Foi empregue força de penetração, pois envolveram varias estruturas até atingir a superfície do pulmão esquerdo (pneumotórax)”. Quanto a CC pode ler-se a fls. 843 verso: “Em face destes dados clínicos disponíveis, as lesões traumáticas infligidas, pela sua multiplicidade, gravidade de algumas delas e região do corpo atingida [que como é sabido, aloja órgãos essenciais à vida (pulmões)], revelam idoneidade por si só, de provocarem perigo para a vida do ofendido e mesmo a sua morte. Todavia, ambas as situações foram supridas pela imediata e tempestiva assistência médico-cirúrgica e internamento hospitalar em tempo empreendidos.”

A matéria descrita no ponto 12 e 13 resulta igualmente da conjugação da restante matéria dada como provada com regras de experiência comum. O facto do arguido ter ocultado a verdadeira faca que utilizou, mentindo quanto ao objeto concretamente utilizado, é revelador do conhecimento que efetivamente detém do caráter proibido e punível da sua conduta, sendo que a capacidade para adequar o seu comportamento de acordo com essa avaliação resultou da imediação e da ausência de qualquer elemento clínico comprovativo de uma qualquer incapacidade a este nível.

A matéria descrita no ponto 14 resultou provada do depoimento credível prestado pelo ofendido BB que o afirmou.

O tribunal formou a convicção na prova dos factos descritos nos pontos 15 a 19 com base no relatório social.

O tribunal formou ainda a convicção nos antecedentes criminais do arguido com base no certificado de registo criminal atualizado e junto aos autos.

No que concerne à matéria de facto não provada, a alínea a) alicerçou-se na total ausência de prova a esse respeito, não tendo qualquer testemunha visto o arguido fugir. Pelo contrário, o arguido reside por cima do estabelecimento comercial café, junto do qual ocorreram os factos, tendo sido detido nesse local em momento muito posterior aos factos, concluindo-se que o mesmo não fugiu.

A alínea b) resulta diretamente do relatório de exame pericial ao objeto que comprova a impossibilidade da navalha examinada ter sido utilizada no cometimento dos factos”.

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Apreciando

Impugnação da matéria de facto (e erro notório)

Invoca o recorrente que terá sido mal julgada a matéria de facto, (conclusivamente refere que só deveria ser considerado provado o constante do ponto 1, da primeira parte do ponto 2 e o confessado pelo arguido que tão pouco especifica), pretendendo que o tribunal de recurso sindique e censure a forma como o tribunal de primeira instância apreciou a prova produzida em audiência mas, para tanto, haveria de ter dado adequado cumprimento ao disposto no art. 412º., nºs. 3 e 4 CPP, o que não se mostra correctamente efectuado.

É que ao contrário do que por vezes se pensa, o recurso não tem por finalidade nem pode ser confundido com um "novo julgamento" da matéria de facto, assumindo-se antes como um “remédio” jurídico.

Como várias vezes salientou o Prof. Germano Marques da Silva, presidente da Comissão para a Reforma do Código de Processo Penal:

- “… o recurso é um remédio para os erros, não um novo julgamento” (conferência parlamentar sobre a revisão do Código de Processo Penal, in Assembleia da República, Código de Processo Penal, vol. II, tomo II, Lisboa 1999, pág. 65);

- “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância” (Forum Justitiae, Maio/99);

- “Recorde-se que o recurso ordinário no nosso Código é estruturado como um remédio jurídico, visa corrigir a eventual ilegalidade cometida pelo tribunal a quo. O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Daí que também a renovação da prova só seja admitida em situações excepcionais e, sobretudo, o recorrente tenha que indicar expressamente os vícios da decisão recorrida.” (Registo da prova em Processo Penal, Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, 2001).

Daí que o legislador tenha estabelecido um específico dever de motivação e formulação de conclusões do recurso nesta matéria, dispondo o art. 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal:

«Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.»

Acrescentando o n.º 4 do mesmo artigo que:

“Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.

Impunha-se ao recorrente, em vista disso, para que do recurso pudesse retirar alguma utilidade que impugnasse devidamente a matéria de facto, cumprindo adequadamente o constante dos nºs 3 e 4 do art. 412º. CPP.

E é sabido que ao cumprimento de tal desiderato não bastará somente identificar os intervenientes (muito menos só alguns deles, por sinal com depoimentos irrelevantes), efectuar uma apreciação mais ou menos genérica do que possam ter dito, repousando em considerações da leitura pessoal, unilateralista e interessada que os sujeitos processuais fazem das provas (tal qual ocorre no presente caso), atacar a motivação do tribunal a quo ou a respectiva convicção (tal qual ocorre igualmente no presente caso), devendo antes precisar-se, em primeiro lugar, detalhadamente cada um dos pontos da matéria de facto constante da decisão proferida colocados em crise (dizendo o recorrente, por exemplo, que pretende impugnar os pontos 7 e 8 dos factos provados ou as als. a) e c) dos não provados), indicando-se depois, relativamente a cada um deles, as passagens concretas e determinadas dos depoimentos em que se funda a impugnação que impõem decisão diversa (e não que meramente a possibilitariam) e procurando-se localizar, ao menos de forma aproximada, o início e termo de tais passagens por referência aos suportes técnicos, conforme o preceituado no referido n.º4. Assim, por exemplo, o recorrente poderá indicar que o afirmado se reporta à passagem do depoimento da testemunha A que vai do minuto 3º. ao 6º. da gravação efectuada em CD pelo Tribunal.

Revertendo ao recurso em apreciação resulta manifesto que o recorrente assim não procedeu, uma vez que jamais indica relativamente a cada um dos pontos em causa as provas que impõem manifestamente distinta decisão (o que forçosamente nada tem que ver com a sua mera interpretação pessoal do ocorrido e do que seja um depoimento mais ou menos credível), como se lhe impunha, nunca colocando sequer em crise, ao fim e ao cabo, a motivação de facto do Tribunal a quo acima indicada e da qual era suposto dissentir e antes se limitando a propor a este Tribunal de recurso que efectue um novo julgamento, como se o primitivo não tivesse ocorrido.

Atente-se que dentro da sua retórica perfeitamente inconsequente alude no recurso a 4 testemunhos irrelevantes para a fixação dos factos (máxime no tocante à utilização da faca), esquecendo tudo o constante da motivação de facto da peça recorrida a tal respeito e, sobretudo, o afirmado pela única vítima presente em julgamento (BB) sobre o assunto.

Em suma, o recorrente, por um lado, não entendeu que o recurso não tem por finalidade nem pode ser confundido com um "novo julgamento" da matéria de facto, assumindo-se antes como um “remédio” jurídico para deficiências factuais circunscritas, violando o entendimento uniforme que doutrina e jurisprudência retiram dos dispositivos legais aplicáveis, tal qual explanámos acima. E, por outro, não cumpriu o respectivo ónus de impugnação especificada, já que se limita a propor uma distinta leitura, de cariz pessoal e interessado, relativamente ao ocorrido mas jamais indica em concreto quaisquer provas que imponham efectivamente distinta decisão.

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Importa relembrar, então, que o recurso da matéria de facto tão pouco se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art. 127º do CPP. A decisão do Tribunal há-de ser sempre uma "convicção pessoal - até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais" - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, voI. I, ed.1974, pág. 204.

Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava Alberto do Reis “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal”. E concluía aquele Professor, citando Chiovenda, que “ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre apreciação é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar” CPC anotado, vol. IV, págs. 566 e segs.

De facto, como múltiplas vezes se tem escrito, as declarações dos arguidos e a prova testemunhal são apreciadas segundo a regra da livre convicção do julgador.

E o controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode subverter ou aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.

A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não pode servir para subverter o princípio da livre apreciação da prova que está deferido ao tribunal da primeira instância, sendo que na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também factores não materializados, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.

Daí que o recurso da decisão da primeira instância em matéria de facto não sirva para suprir ou substituir o juízo que aquele tribunal formulou, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade de declarantes e testemunhas. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprimido pelo tribunal da segunda instância. Este não é chamado a fazer um novo julgamento - como parece entender o recorrente - mas a remediar erros que não têm a ver com o juízo de maior ou menor credibilidade ou fiabilidade dos intervenientes no julgamento. Esses erros ocorrerão quando, por exemplo, o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário.

Ora, o recorrente não alega qualquer destes erros (nem estes se detectam da análise dos autos).

Como está bom de ver, na decorrência do supra-exposto, esta é uma questão que, de forma exemplar, escapa ao juízo do tribunal da segunda instância, por estar estreitamente dependente da imediação.

Não está aqui em causa qualquer erro de julgamento (no sentido acima indicado), mas tão só a contestação da decisão do tribunal da primeira instância sobre a credibilidade e fiabilidade das declarações e depoimentos em causa. Ademais no presente caso o Tribunal a quo objectivou adequadamente a sua convicção, ao esclarecer com detalhe de forma racional, lógica e correctamente articulada a respectiva ponderação efectuada, tal qual se colhe da motivação transcrita acima, sendo certo que nada do que vem invocado no recurso permite colocar em crise tal julgamento.

Por outro lado, tão pouco se entende que o recorrente pareça “espantado” com a utilização de prova por presunção, ainda que jamais articule seja o que for de concreto e detalhado no sentido de questionar a mesma.

É que todo o sistema probatório se alicerça em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções.

É legítimo o recurso às referidas presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125º do CPP), e o artigo 349º do Código Civil prescreve que as presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (artigo 351º deste mesmo diploma legal).

As presunções simples ou naturais são meios lógicos de apreciação das provas, meios de convicção, sendo o produto das regras da experiência. O juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto.

Como pode ler-se em Prova Testemunhal, Luís Filipe Pires de Sousa, Almedina, 2014, pág. 361:

“… A eficácia do indício não é menor que a da prova directa, tal como não é inferior a certeza racional à histórica e física. O indício é sempre subordinado à prova, porque não pode subsistir sem uma premissa, que é a circunstância indiciante, ou seja, uma circunstância provada; e o valor crítico do indício está em relação directa com o valor intrínseco da circunstância indiciante…”.

Ou no Ac.. STJ de 28-6-2017, pr. 79/15.0 JAPDL.L2.S1, rel. Pires da Graça

“Ademais, «são admissíveis [em processo penal] as provas que não forem proibidas por lei» (art. 125.º do CPP), nelas incluídas as presunções judiciais (ou seja, «as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido»: art. 349.º do CC).

Daí que a circunstância de a presunção judicial não constituir «prova directa» não contraria o princípio da livre apreciação da prova, que permite ao julgador apreciar a «prova» (qualquer que ela seja, desde que não proibida por lei) segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (art. 127.º do CPP). Não está, por isso, vedado às instâncias, ante factos conhecidos, a extracção - por presunção judicial - de ilações capazes de firmar um facto desconhecido”.

Escreve o Prof. Vaz Serra, Direito Probatório Material, BMJ 112-190, “ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (...) ou de uma prova de primeira aparência”.

A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não diretamente demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente certos factos são a consequência de outros.

Daí que não se vislumbre qualquer razão para afastar o juízo de valoração da prova levado a cabo pelo Tribunal a quo, resultante de uma apreciação “livre” mas devidamente fundamentada, em obediência à lei.

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Alude, além disso, o recorrente, ainda que somente nas conclusões do recurso, à verificação de erro notório na apreciação de prova (vício previsto no art. 410, nº 2, do CPP) porquanto em seu entender o tribunal a quo teria errado no julgamento, confundindo tal vício pretensamente detectado, com a valoração da prova produzida, o que manifestamente nada tem que ver com qualquer dos vícios previstos no dispositivo em causa.

É que, como é sabido e resulta expressamente da letra da lei, em sede de apreciação destes vícios, a matéria de facto só é sindicável quando o vício de que a mesma possa enfermar “resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” (corpo do nº. 2 do art. 410º. do CPP), sem recurso a quaisquer elementos externos à decisão, designadamente às declarações ou aos depoimentos exarados no processo durante o inquérito, a instrução ou o julgamento.

E, analisando a peça recorrida facilmente se constata a inexistência de qualquer vício deste jaez, limitando-se de facto o recorrente a confundir tal pretenso vício com a pretendida impugnação dos factos, quando é certo que o mesmo nada tem que ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende que seria a correcta face à prova produzida.

Nem faz qualquer sentido a seguinte afirmação do recorrente “Trata-se de uma prova, o exame hematológico à navalha, cujas circunstâncias de realização, data, local e demais condições técnicas específicas, nunca foram apresentadas ao arguido para este se pronunciar, quanto ao rigor e ajustamento dessa prova, que, assim, é uma prova nula, o que, “hic et nunc, ” se argui”, desta vez só na motivação do recurso.

Subscrevendo-se o que, a propósito, respondeu o MP sobre tal tema: “Muito se estranha que o arguido suscite em fase recursória, a questão da nulidade da prova consistente no exame hematológico à navalha apreendida, por nunca da mesma ter tido conhecimento.

Embora tal nulidade não tenha sido sequer fundamentada, nem a sua invocação retomada em sede conclusiva, sempre se dirá que constam dos autos, a fls. 45 a 51, 55 e 56 e sobretudo, 279 a 280, os exames periciais à navalha, dos mesmos se concluindo que a arma branca apreendida em casa do arguido não foi utilizada na prática dos factos objecto dos autos.

O arguido teve conhecimento do resultado de tais exames, até porque a própria decisão instrutória se lhes referiu (cfr. fls. 3 da mesma).

A mera inserção nos autos de tais exames permite o funcionamento do princípio do contraditório, não tendo ocorrido qualquer violação ao preceituado no artigo 355º, nº 1, do Código de Processo Penal (admite-se que o arguido pretendesse aludir a esta disposição legal e não a qualquer nulidade)”.

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Finalmente, cumpre dizer que mostrando-se inalterados os factos, não podem colher, naturalmente, quaisquer das alterações de qualificação jurídica alvitradas pelo recorrente sem qualquer fundamento válido e relevante.

Daí que sem necessidade de quaisquer outras considerações, se julgue improcedente o recurso, uma vez tão pouco merecer qualquer censura o enquadramento jurídico levado a cabo pelo Tribunal a quo.

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III- Decisão

Nos termos expostos, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.

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Évora, 14/3/2023