FALECIMENTO DE RÉU
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
NECESSIDADE DE IMPULSO PROCESSUAL
EFEITO EXTINTIVO DA INSTÂNCIA
Sumário

Quando, na sequência do falecimento de um dos réus, a instância é suspensa “até à notificação da decisão que considere habilitados os sucessores do réu falecido, sem prejuízo do disposto pelo art.º 281º, nº 1 do Código de Processo Civil”, o demandante ao ser notificado desse despacho fica ciente, quer da necessidade de impulso processual, quer do efeito extintivo da instância decorrente da inércia prolongada, pelo que não se impõe haver notificação para se poder pronunciar antes de ser declarada deserta a instância, não constituindo a decisão que a declara uma surpresa para as partes.

Texto Integral

Recurso de apelação n.º 3830/19.6T8MTS.P1
Origem: Comarca do Porto, Juízo do Trabalho de Matosinhos – J2



Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
AA (Autora) instaurou contra “A..., Lda.” (Ré) e, BB (1º Réu) e CC (2º Réu), a presente ação, com processo comum, pedindo o reconhecimento o seu direito a resolver, com justa causa, o contrato de trabalho, e a condenação no pagamento de indemnizações e créditos que indica (retribuição em falta; proporcionais de férias e dos subsídios de férias e de Natal; crédito por formação não ministrada; remuneração de trabalho suplementar).
Fundou o seu pedido alegando, em síntese, que em 18/09/1983 contraiu casamento com o 1º Réu, e em 27/09/1983 foi admitida como trabalhadora da sociedade “B..., Lda.”, da qual os 1º e 2º Réus eram sócios, os quais em 01/09/1998 decidiram transmitir o contrato de trabalho para a Ré (de que ambos são sócios); por carta remetida em 05/07/2019 procedeu à resolução do contrato de trabalho; demanda os 1º e 2º Réu porque os mesmos simularam uma extinção do posto de trabalho na sociedade “B..., Lda.” e nova contratação com a Ré, lesando a Autora porquanto não lhe reconhecem a antiguidade reportada à data da admissão naquela sociedade; tem direito a indemnização nos termos do art.º 396º, nº 1 do Código do Trabalho e por danos não patrimoniais sofridos; acrescenta ter direito aos créditos reclamados..

Realizada «audiência de partes», frustrada a sua conciliação, foram notificados os Réus para poderem contestar, os mesmos apresentaram contestação na qual alegaram, em resumo, por um lado serem os 1º e 2º Réus parte ilegítima, mas de todo o modo não estão concretizados os pressupostos para responsabilidade dos mesmos, e por outro lado impugnado o alegado e pedido.

A Autora apresentou contestação.

Foi proferido despacho a convidar a Autora a complementar/aperfeiçoar a petição inicial.
Em resposta a esse despacho a Autora apresentou requerimento, ao qual os Réus responderam.

Foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a exceção da legitimidade, sendo afirmada a validade e regularidade da instância, e sendo dispensada a realização de «audiência prévia» bem como dispensada a prolação de despacho identificando o objeto do litígio e enunciando os temas de prova.
Foi fixado o valor da ação em €553.726,10.

Por despacho de 28/09/2020 foi designada data para realização de «audiência de discussão e julgamento».

Em 11/11/2020, a mandatária dos Réus deu conhecimento no processo do falecimento do 2º Réu, CC (óbito ocorrido em 08/04/2020).

Em 03/12/2020 foi proferido despacho com o seguinte teor:
Considerando o disposto pelos arts. 269º, nº 1, al. a), 270º e 276º, nº 1, al. a) do Código de Processo Civil, suspende-se a instância até à notificação da decisão que considere habilitados os sucessores do réu falecido, sem prejuízo do disposto pelo art.º 281º, nº 1 do mesmo Código.
Notifique.

Em 11/12/2020 foi apresentado requerimento com o seguinte teor:
AA, “A..., Lda., Lda.” e BB, Autora e Réus melhor identificados no processo à margem referenciado, vêm respeitosamente requerer a suspensão da instância pelo período de 60 dias, para que se faça a habilitação de herdeiros dos sucessores do Réu falecido e para que as partes encetem negociações para transigir no presente processo e outros que se encontram pendentes.
Nestes termos, requerem que seja dada sem efeito as datas de audiência de discussão e julgamento agendadas para os dias 07 e 08 de janeiro de 2021, sendo que as partes comprometem-se a informar o Tribunal para o eventual prosseguimentos dos autos, caso as negociações saíam malogradas.

Em 15/12/2020 foi proferido despacho com o seguinte teor:
Uma vez que os autos se encontram já suspensos, conforme resulta do despacho de 03/12/2020, é redundante o requerimento apresentado com essa finalidade, motivo pelo qual se indefere, sem prejuízo de dar, desde já sem efeito a audiência de julgamento designada nos autos, uma vez que, considerando o teor do dito requerimento e o facto de não ter, até esta data, sido requerida a habilitação dos herdeiros do réu CC, se mostra manifestamente inviável a realização do julgamento na data designada.
Notifique e desconvoque.

Em 09/07/2021 o mandatário da Autora apresentou renúncia ao mandato.

Em 06/09/2021 foi proferido despacho com o seguinte teor:
Nos termos do disposto pelo art.º 47º, nº 1 do Código de Processo Civil, notifique as partes da renúncia ao mandato expresso pelo requerimento que antecede, sendo a Autora, nos termos do nºs 2 e 3, al. a) da mesma disposição legal, por carta registada com a/r, para constituir novo mandatário no prazo de 20 (vinte) dias, sob pena de a instância ficar suspensa.

Em 21/09/2021 foi junta procuração na qual a Autora confere mandato a advogada.

Em 27/09/2022 foi proferido despacho com o seguinte teor:
Nos termos do disposto pelo art.º 281º, nº 1 e 4 do Código de Processo Civil, julgo a instância deserta, por falta de impulso das partes há mais de 6 meses.
Notifique

Não se conformando com essa decisão, dela veio a Autora interpor recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES, que se transcrevem[1]:
1.ª A presente Apelação, como a acima se alegou, tem por objeto a decisão proferida nos autos, que julgou a instância deserta, por falta de impulso das partes há mais de seis meses.
2.ª Não deixando nunca de referir todo o respeito devido ao Tribunal a quo, entende a ora Recorrente que o Tribunal laborou em manifesto equívoco.
3.ª É questão pacífica na Jurisprudência, e citamos a título de exemplo, e por todos o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/09/2016, decidido por unanimidade, proferido no processo 1215/14.0TBPBL-B.C1, que a deserção da instância, prevista no artigo 281º do C.P.C, não decorre do simples decurso do prazo de seis meses, previsto naquela norma,
4.ª Mas sim do reconhecimento factual da falta de satisfação do ônus do impulso processual se dever a negligência de quem tinha esse ônus.
5.ª Por isso, o Tribunal deverá apurar o enquadramento factual que lhe permita concluir pela qualificação de negligente do comportamento da parte que tinha o ônus do impulso processual.
6.ª A não ser em casos de clara desnecessidade devidamente fundamentada, o Tribunal não deve proferir nenhuma decisão sobre qualquer questão processual ou substantiva, ainda que de conhecimento oficioso, sem que, previamente, conceda às partes a efetiva possibilidade de discutir e pronunciar – se sobre a questão a ser decidida.
7.ª Ora, foi esta regra, decorrente do Princípio do Contraditório, que o Tribunal a quo não observou.
8.ª Como tal, entende a ora Recorrente que a decisão colocada em crise na presente Apelação está ferida de nulidade, por violação do Princípio do Contraditório.
9º Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo, violou o Princípio do Contraditório.
Termina dizendo dever ser revogada a decisão de deserção da instância proferida nos autos.

Não foi apresentada resposta.

Foi proferido despacho a mandar subir o recurso de apelação, imediatamente, nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo, sendo, imediatamente antes, proferido despacho com o seguinte teor:
A Autora veio interpor recurso da decisão que julgou a instância deserta por considerar que tal decisão é nula por violação do princípio do contraditório.
Ainda que a autora não o afirme expressamente da argumentação que aduz parece resultar que aquela considera que a decisão recorrida foi uma “decisão surpresa”, ou seja, uma decisão do tribunal que não seria expectável pelas partes e que, como tal, estaria sujeita ao prévio cumprimento do disposto pelo art.º 3º, nº 3 do Código de Processo Civil.
Do nosso ponto de vista a Autora não tem razão.
De facto, por despacho de 03/12/2020 a presente instância foi suspensa ao abrigo do disposto pelos arts. 269º, nº 1, al. a), 270º e 276º, nº 1, al. a), todos do Código de Processo Civil, em consequência do óbito do co réu CC, constando de tal despacho que a suspensão se manteria até à notificação da decisão que considerasse habilitados os sucessores do réu falecido, sem prejuízo do disposto pelo art.º 281º, nº 1 do Código de Processo Civil.
Tal decisão foi notificada às partes, pelo que as mesmas desde logo tomaram conhecimento de que, caso não fosse promovida a habilitação dos sucessores do falecido no prazo de 6 meses a que se refere o art.º 281º do Código de Processo Civil, a instância seria considerada deserta.
Apesar disso, nenhuma das partes se pronunciou sobre o referido despacho, ou requereu o que quer que fosse com relevo para a marcha processual, ou justificou a omissão total de impulso processual, nem qualquer das partes, podendo fazê-lo (art.º 351º, nº 1 do Código de Processo Civil) requereu a habilitação do falecido ou qualquer outra coisa, pelo que, não se vislumbra que, ao proferir a decisão recorrida o tribunal tenha violado o direito de qualquer das partes ao contraditório, cientes que todas estavam de que na falta de impulso durante seis meses, o tribunal consideraria a instância deserta.
Nessa medida, sem prejuízo de melhor e superior entendimento, para os efeitos do disposto pelo art.º 641º, nº 1 do Código de Processo Civil, considera-se que o despacho recorrido não enferma da invocada nulidade.

O Sr. Procurador-Geral-Adjunto, neste Tribunal da Relação, emitiu parecer (art.º 87º, nº 3 do Código de Processo do Trabalho), pronunciando-se no sentido de ser negado provimento ao recurso e confirmada a decisão recorrida, referindo essencialmente o seguinte:
4.1. A deserção constitui uma das formas de extinção da instância (ou do recurso se o processo estiver nesta fase), não ficando dependente da sua prévia interrupção, como antes acontecia.
O cumprimento do contraditório deverá ser garantido se o Tribunal não tiver previamente advertido as partes da cominação de deserção da instância em caso de falta de impulso processual.
Ora neste caso, essa advertência foi feita no Despacho que suspendeu a instancia, a 03/12/2020 – fls. 316.
4.2. Além disso, como salientam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Filipe Silva, CPC anotado, vol. I, Almedina, p. 328/329, também essa decisão pode depender das razões que estão na base da suspensão.
Em caso de falecimento de uma das partes em que o processo aguarda a habilitação, sabem à partida os interessados que caso não concretizem a habilitação, a consequência é a suspensão e depois a deserção da instância.
Noutras situações podia não ser, se tal cominação não fosse feita.
Mas neste caso, para além da causa de suspensão ser a morte de um interessado e ser necessária a habilitação sob pena de o processo não poder prosseguir, ser julgada suspensa e deserta a instância, tal advertência foi feita: “sem prejuízo do disposto pelo art.º 281º, n.º 1 do mesmo Código”, do Código de Processo Civil.
Assim, levando em conta esta orientação da doutrina e jurisprudência citada pelos mesmos autores, não merece o Despacho recorrido qualquer censura, devendo ser confirmado.
Para além de que o requerimento feito pelas partes a pedir a suspensão da instância com vista a um entendimento (que se entende poderia ter diferente desfecho), foi indeferido, por esta já se encontrar suspensa, sem que as partes reagissem a este indeferimento, mantendo, pois, apenas o anterior Despacho referido.

Procedeu-se a exame preliminar, foram colhidos os vistos, após o que o processo foi submetido à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

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FUNDAMENTAÇÃO
Conforme vem sendo entendimento uniforme, e como se extrai do nº 3 do art.º 635º do Código de Processo Civil (cfr. também os art.ºs 637º, nº 2, 1ª parte, 639º, nºs 1 a 3, e 635º, nº 4 do Código de Processo Civil – todos aplicáveis por força do art.º 87º, nº 1 do Código de Processo do Trabalho), o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação apresentada[2], sem prejuízo, naturalmente, das questões de conhecimento oficioso.
Assim, aquilo que importa apreciar e decidir neste caso é saber se o tribunal a quo não podia ter julgado a instância deserta, como julgou, sem antes exercer o contraditório.
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Para apreciação dessa questão importa ter presente o desenvolvimento processual relevante, que se consignou no relatório que antecede, nenhuma outra factualidade importando discriminar com vista ao exame da questão suscitada.
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Em face do alegado pela Recorrente, não havendo dúvidas sobre o decurso de mais de 6 meses entre o despacho que declarou suspensa a instância e o despacho que julgou a instância deserta, pergunta-se se o tribunal a quo, ao proferir a decisão a julgar a instância deserta, conforme o nº 4 do art.º 281º do Código de Processo Civil, violou a necessidade de exercício do contraditório, na medida em que não foi facultada à Autora a possibilidade de se pronunciar antes de proceder à qualificação de negligente do comportamento da parte que tinha o ônus do impulso processual [assim o diz a Recorrente, citando o acórdão do TRC de 20/09/2016[3], cuja ideia mestra é a de que a negligência, por falta de satisfação do ónus de impulso processual por parte daqueles sobre quem tal ónus impende, não pode presumir-se do simples facto de ter decorrido o aludido prazo de seis meses sem que alguma diligência tenha sido promovida por parte daquele que tem aquele ónus).
Está em causa a violação do princípio do contraditório, na vertente de violação da proibição da prolação de “decisões surpresa”, que a verificar-se gerará a nulidade da decisão (cfr. art.º 195º do Código de Processo Civil).
O art.º 3º do Código de Processo Civil (com a epígrafe «necessidade do pedido e da contradição») dispõe no seu nº 3 que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Está aqui consagrado em termos gerais o princípio do contraditório, envolvendo este princípio a proibição da prolação de decisões-surpresa, pois não é lícito aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo de conhecimento oficioso, sem que previamente haja sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Em conformidade, o processo está estruturado para facultar o debate sempre que o mesmo se justifique e dentro do condicionalismo previsto na lei, razão pela qual esta “proibição de decisão-surpresa” tenha particular interesse para as questões de que o tribunal pode conhecer oficiosamente.
Mas se tem aí particular interesse, não se esgota nessas questões, sendo certo que há toda a vantagem em que antes de ser proferida decisão no processo, suscetível de afetar o interesse das partes, estas se pronunciem, querendo, sobre determinado sentido da decisão que elas não consideraram na pronúncia que fizeram no processo [vantagem para o julgador porque depois da audição das partes e de analisar iguais ou diferentes pontos de vista pode proferir uma decisão com maior convicção e segurança, vantagem para as partes porque têm a possibilidade de apresentarem os argumentos a favor ou contra a decisão em determinado sentido, podendo de algum modo influenciá-la] [4].
Podemos, enfim, dizer que a “decisão surpresa” é a solução dada a uma questão que, embora previsível, não tenha sido configurada pela parte, sem que a mesma tivesse obrigação de a prever.
Vejamos, então, se a decisão recorrida constitui uma decisão-surpresa.
A questão acaba por se traduzir em saber se o tribunal, para julgar a instância deserta, atende aos elementos objetivos que constem do processo, ou se antes deve facultar à parte que tem o ónus de impulso processual a possibilidade de se pronunciar sobre a razão da sua inércia.
Como refere Salvador da Costa[5], tem vindo ultimamente a ser entendido pela jurisprudência ser a habitação de herdeiros ónus das partes, e que a extinção da instância por virtude de não requererem a habilitação no semestre subsequente à suspensão da instância não tem de ser precedida da sua audição pelo tribunal, e que são elas quem ao tribunal têm previamente de comunicar algum obstáculo ao cumprimento pontual da sua obrigação processual[6].
Acrescenta que, porém, como um dos pressupostos da declaração de deserção da instância é a negligência das partes, decorrido o referido prazo sem o seu devido impulso processual, propende em considerar que o juiz deve ordenar a notificação das partes a fim de, no decêndio posterior, se pronunciarem sobre a omissão, nos termos do nº 3 do art.º 3º e do nº 1 do art.º 7º do Código de Processo Civil. Após a sua resposta ou o termo do referido decêndio, o juiz decide a questão da extinção ou não da instância por deserção, ponderada a censurabilidade da omissão, tendo em conta que o referido semestre começa na data em que as partes conheceram do despacho determinante da suspensão da instância, a contar nos termos do art.º 279º, alínea c) do Código Civil.
No entanto, acolhemos o entendimento dos arestos do STJ citados, e não o entendimento para que propende Salvador da Costa.
Com efeito, como referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luí Filipe Pires de Sousa[7], citando o acórdão do STJ de 14/05/2019[8], a deserção da instância radica no princípio da auto responsabilidade das partes, encontrando a sua razão de ser no facto de não ser desejável, numa justiça que se pretende célere e cooperada, que os processos se eternizem em tribunal, quando a parte se desinteressa da lide ou negligencia a sua atuação, não promovendo o andamento do processo quando lhe compete fazê-lo, escrevendo depois o seguinte (que se transcreve porque elucidativo):
1. A deserção constitui uma das formas de extinção da instância … Opera quando a instância (ou o incidente com efeito suspensivo da instância, como é o de habilitação de sucessores da parte falecida na pendência da causa) fique paralisada por mais de 6 meses, por negligência da parte. …
3. Atenta a diversidade dos factos que colidem com o regular andamento da causa, na apreciação do condicionalismo da deserção da instância é importante que se ponderem globalmente as diversas circunstâncias, quer as de ordem legal, quer as que se ligam ao comportamento da parte onerada com a iniciativa de dinamizar a instância.
4. Daqui pode resultar que, antes de declarar o efeito extintivo da instância decorrente da deserção, se mostre necessário que o juiz sinalize, por despacho, ser aquela a consequência da omissão de algum ato processual … fazendo valer os princípios da gestão e da cooperação processual e o dever de prevenção deles emergente. Estão em causa aspetos que devem ser analisados casuisticamente em função das circunstâncias legais e processuais…
5. O simples facto de, por exemplo, o juiz solicitar ao autor a junção de determinado documento, sem apontar qualquer consequência, não legitima que, através de um encadeamento de juízos, se extraía o efeito da deserção da instância, decorrido que seja o prazo de 6 meses …; só a ordenada junção de documento essencial para o prosseguimento da ação … poderá determinar a deserção…
6. O resultado já poderá ser diverso quando se mostrem evidentes quer a necessidade de impulso processual a cargo da parte, quer o efeito extintivo da instância decorrente da inércia prolongada. É o que sucede nos casos em que a suspensão é motivada pelo falecimento de alguma das partes (STJ 12/01/2021, 3820/17; RL 04/11/21, 1039/14; RP 26/10/20, 1730/14; RL 14/07/20, 6241/17; RP 02/09/18, 21005/15). Como resulta claro do art.º 269º, nº 1, al. a), a partir de então, passa a recair sobre a parte o ónus de promover a habilitação dos sucessores, como o revelam os arts. 276º, nº 1, al. a), e 351º (sobre a aplicação em caso de óbito de um autor coligado, cf. Ac. do Trib. Const. nº 604/2018). Ora, a não ser que a parte revele dificuldades na identificação daqueles ou na obtenção da necessária documentação, dentro do referido prazo de 6 meses ou de outro prazo que resulte de alguma prorrogação, verificar-se-á uma situação de inércia a si imputável, nos termos do nº 3, com efeitos na deserção da instância (RL 04/11/21, 1039/14; STJ 20/04/21, 27911/18; STJ 12/01/21, 3820/17; STJ 22/02/18, 473/14; STJ 20/09/16, 1742/09; STJ 02/06/20, 139/15 ECLI, e STJ 04/02/20, 21005/15 ECLI).
Ou seja, um dos pressupostos para se verificar a deserção da instância (de natureza objetiva) consiste na falta de impulso processual das partes, máxime do autor, para o prosseguimento da instância; só que, não releva qualquer paragem no processo, mas tão-só aquela imposta pela omissão no cumprimento de um ónus, ou seja, a omissão de um dever da parte que impede o normal prosseguimento dos autos[9]; e esta omissão pode ser configurada numa diversidade de situações, sendo numas situações mais evidente que noutras a omissão da parte, sendo nalgumas situações cristalino, em face do expresso pelo legislador ou do consignado em despacho judicial[10], que a parte incumpre um ónus de impulso do processo.
Sendo assim, há situações em que juiz antes de julgar a instância deserta deverá ouvir as partes sobre a omissão do impulso processual, de modo a aferir da existência de comportamento negligente da parte (o outro pressuposto para se verificar a deserção da instância, este de natureza subjetiva, qual seja a inércia causada por negligência)[11], mas outras situações há em que essa audição (prévia) das partes não se impõe, porque a parte sabe já que a sua inércia por mais de 6 meses implica vir a ser declarada judicialmente a deserção da instância, sendo este o caso da suspensão da instância por falecimento superveniente de uma parte, porque é já sabido pelas partes, porque o legislador o esclarece, que a suspensão da instância só cessa com a notificação da decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida, pelo que se nos 6 meses não houver impulso do incidente tendente a essa prolação há negligência que conduz à deserção[12].
Em conformidade, no acórdão do TRC de 08/03/2022[13], escreveu-se que tendo sido notificado às partes o despacho a determinar a suspensão da instância até à habilitação dos sucessores de uma parte falecida, a falta de promoção do incidente de habilitação nos seis meses seguintes, sem que seja apresentada ou resulte dos autos qualquer justificação, é suficiente para concluir pela verificação dos pressupostos de que depende a deserção da instância, sem necessidade de qualquer despacho prévio a advertir as partes para a necessidade de impulsionar o processo.
É que, a partir do momento em que é dado conhecimento à parte que a instância se suspende até haver decisão da habilitação do(s) sucessor(es), a mesma fica ciente de que o andamento do processo fica dependente da prática por si de ato processual, e sem o praticar a instância ficará deserta (assim o diz o legislador), cabendo-lhe a si, caso encontre alguma dificuldade na prática daquele ato, solicitar a prorrogação de prazo e/ou a colaboração do tribunal na remoção de algum obstáculo (art.º 7º, nº 4 do Código de Processo Civil)[14].
Ora, no caso sub judice, o que sucedeu foi precisamente a notificação da Autora de que a instância estava suspensa até à notificação da decisão que considere habilitados os sucessores do réu falecido, sem prejuízo do disposto pelo art.º 281º, nº 1 do mesmo Código, ficando, pois, a Autora a saber desde logo que o andamento do processo dependia do impulso do incidente de habilitação, e que se não houvesse esse impulso haveria negligência conducente à deserção da instância, não se impondo como tal depois o exercício do contraditório (que na prática se traduziria em exercê-lo de novo).
E a tramitação havida após a suspensão da instância, contendeu com a renúncia a mandato, enquadrando-se no disposto no art.º 275º do Código de Processo Civil, não havendo atos tendentes a dar impulso ao processo (ao ser constituído novo mandatário tudo se passa como se o mandatário tivesse sido sempre o mesmo).
Em suma, concluímos que in casu não foi violado o princípio do contraditório, não sendo a decisão recorrida qualificável como decisão surpresa, improcedendo, pois, o recurso.
*
Quanto a custas, havendo improcedência do recurso, as custas do mesmo ficam a cargo da Recorrente (art.º 527º do Código de Processo Civil).
***
DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desembargadores da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente, com taxa de justiça conforme tabela I-B anexa ao RCP (cfr. art.º 7º, nº 2 do RCP).
Valor do recurso: o da ação (art.º 12º, nº 2 do RCP).
Notifique e registe.
(texto processado e revisto pelo relator, assinado eletronicamente)


Porto, 20 de março de 2023
António Luís Carvalhão
Paula Leal de Carvalho
Rui Penha
______________________
[1] As transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo correção de gralhas evidentes e realces/sublinhados que no geral não se mantêm (porque interessa o texto em si), consignando-se que quanto à ortografia utilizada se adota o Novo Acordo Ortográfico.
[2] Vd. António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5ª edição, pág. 156 e págs. 545/546 (estas no apêndice I: “recursos no processo do trabalho”).
[3] Consultável em www.dgsi.pt, processo nº 1215/14.0TBPBL-B.C1.
[4] Vd. Fernando Pereira Rodrigues, “O Novo Processo Civil – Os Princípios Estruturantes”, Almedina, 2013, págs. 39 e 47ss.
[5] In “Os Incidentes da Instância”, 12ª edição (revista e ampliada), Almedina, 2023, págs. 187/188.
[6] E cita três arestos do STJ:
− de 02/06/2020 [consultável em www.dgsi.pt (Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça – Portal Europeu da Justiça e-Justice), processo nº 139/15.8T8FAF-A.G1.S1], no qual se sumariou o seguinte: [c]onstituindo a habilitação de sucessores um ónus que, além destes, recai sobre a parte, em face da clareza do início do prazo de seis meses e das respetivas consequências, a declaração de extinção da instância por deserção não tinha que ser precedida de despacho a indicar tal cominação, inexistindo fundamento legal, nomeadamente à luz do princípio do contraditório, para prévia audição das partes com vista a aquilatar da sua negligência;
− de 12/01/2021 [consultável em www.dgsi.pt, processo nº 3820/17.3T8SNT.L1.S1], no qual se sumariou o seguinte: [d]ecorridos mais de seis meses sobre a suspensão da instância, motivada pelo falecimento de uma das partes, e sem que tenha sido promovida a respetiva habilitação de herdeiros (ou requerido o que quer que fosse), impõe-se declarar a deserção da instância, nos termos do nº 1 do artigo 281º do CPC, sem necessidade da prévia audição das partes;
− de 05/05/2022 [consultável em www.dgsi.pt, processo nº 1652/16.5T8PNF.P1.S1], no qual se sumariou o seguinte: [d]eclarada a suspensão da instância por óbito de uma das partes passa a recair sobre a parte ou os sucessores da parte falecida, o ónus de promover a habilitação dos sucessores, como decorre dos art.º 276º/1 a) e art.º 351º CPC e ainda, art.º 3º/1 e art.º 5º CPC. / Nestas circunstâncias não cumpre ao tribunal promover a audição da parte sobre a negligência, tendo em vista formular um juízo sobre a razão da inércia, por não resultar da lei a realização de tal diligência. / A negligência será avaliada em função dos elementos objetivos que resultarem do processo. Recai sobre a parte o ónus de informar o tribunal sobre algum obstáculo que possa surgir. / A declaração de deserção, nos termos do art.º 281º/1 CPC, constitui uma consequência processual diretamente associada na lei à omissão negligente da parte tal como retratada objetivamente no processo.
[7] In “Código de Processo Civil Anotado – vol. I Parte Geral e Processo de Declaração”, 3ª edição - 2022, Almedina, pág. 365.
[8] Consultável em www.dgsi.pt, processo nº 3422/15.9T8LSB.L1.S2.
[9] Cfr. o acórdão do STJ de 02/05/2019, consultável em www.dgsi.pt, processo nº 1598/15.4T8GMR.G1.S2.
[10] Como se escreveu no recente acórdão do TRL de 12/01/2023 (consultável em www.dgsi.pt, processo nº 13761/18.1T8LSB.L2-2), a prevenção à parte da possibilidade da possibilidade de deserção da instância pode ocorrer por singela referência ao preceituado no art.º 281º, nº 1 do Código de Processo Civil, mormente quando a parte se encontra representada por advogado.
[11] Por exemplo, o caso analisado no acórdão do TRC de 05/06/2018 (consultável em www.dgsi.pt, processo nº 1516/13.4TBCLD.C2), em que as partes solicitaram, e foi deferida, a suspensão da instância por 30 dias, com o fundamento de necessitarem de encetar diligências visando porem termo ao litígio por acordo, e nada disseram depois de decorrido esse prazo.
[12] No acórdão do TRG de 03/02/2022 (consultável em www.dgsi.pt, processo nº 115/17.6T8TMC.G1), até se escreveu que [e]m regra, o teor objetivo dos autos (nomeadamente, o concreto impulso processual devido, o que já antes tenha sido determinado pelo Tribunal e a reação que as partes tenham adotado) dispensará a prévia audição da parte relapsa, por se poder concluir desde logo que a sua inércia e/ou o seu silêncio, por mais de seis meses, se devem a negligência sua; e só título excecional se admitem situações em que assim não suceda, justificando então (no estrito cumprimento dos princípios gerais enformadores do processo civil) que seja previamente ouvida, por a respetiva negligência não resultar ainda objetivamente do concreto teor dos autos (art.º 3.º, n.º 3, do CPC).
[13] Consultável em www.dgsi.pt, processo nº 11/19.2T8ALD.C1.
[14] No acórdão do STJ de 20/04/2021 (consultável em www.dgsi.pt, processo nº 27911/18.4LSB.L1.S1) considerou-se não se mostrar violada, ao não determinar o tribunal a audição da parte antes de declarar a deserção da instância, a garantia de um processo equitativo, ou o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.