ACUSAÇÃO PARTICULAR
IDENTIFICAÇÃO DO ARGUIDO
REJEIÇÃO
Sumário

1–Os requisitos legais quanto ao conteúdo da acusação pública são aplicáveis à acusação particular, por remissão do art.º 285º, nº 3 do Cód. Proc. Penal.

2–Os elementos necessários à identificação do arguido são os previstos nos arts.º 141º, nº 3 e 342º, nº 1 ambos do Cód. Proc. Penal, nomeadamente o nome, a filiação, a freguesia e concelho de naturalidade, a data de nascimento, o estado civil, a profissão, a residência e o local de trabalho.

3–A acusação deve conter todos os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e ter o seu objecto definido de uma forma clara e rigorosa, a fim de permitir a organização da defesa e porque estabelece o âmbito e o limite da intervenção do juiz em sede de julgamento.

4–Há identificação do arguido na acusação quando a sua identificação é completa, mas também quando é indicado o seu nome e se remete a restante identificação para documentos constantes dos autos.

5–Só a ausência total de identificação do arguido, ou a indicação insuficiente no processo de sinais tendentes ao seu reconhecimento inequívoco, gera a nulidade prevista no art.º 283º, nº 3, al. a), “ex vi” do art.º 285º, nº 3 ambos do Cód. Proc. Penal, e, em consequência, impõe a rejeição da acusação, por manifestamente infundada, nos termos do art.º 311º, nºs 2, al. a), e 3, al. a) do mesmo diploma.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


1Relatório


No processo nº 388/21.0T9LSB que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Local Criminal de Lisboa - Juiz 10, foi proferido despacho, datado de 30/09/2022, no qual se rejeitou a acusação particular deduzida pelo assistente A, por manifestamente infundada, nos termos do art.º 311º, nºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea a) do Cód. Proc. Penal.

Inconformado com esta decisão, veio o assistente interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
“ A.- O Assistente, A, é um empresário e filantropo do Zimbabué, que apresentou queixa-crime a 17.01.2021 contra B.
B.- A presente Queixa-Crime, recordou-se, resultou de factos e atos infundados perpetrados pelo Sr. B, que afetaram e afetam, de forma indelével, a honra e o bom nome do aqui Recorrente, meritoriamente reconhecido e apreciado em todo o mundo e muito particularmente em África.
C.- A atuação difamatória que encerra a atuação do Sr. B, realizada a partir de Portugal, onde vive com a sua mulher – inquirida em fase de inquérito - é, pois, particularmente lesiva da honra e bom nome do Recorrente.
D.- Foi, pois, neste contexto, que foi apresentada queixa-crime contra o Sr. B, cuja atuação difamatória lesou a honra e o bom nome do Assistente/Denunciante.
E.- Recordou-se, por isso, e a respeito, que os contornos e detalhes da atuação difamatória estavam devidamente apresentados nestes autos, tendo sido, aliás, conforme se notou e lembrou, reconhecidos indícios suficientes da prática de crime pelo próprio MP, cf. despacho de 02.05.2022 proferido pelo Ministério Público.
F.- Neste sentido, o Assistente apresentou, em 20.05.2022, Acusação Particular onde, para além dos factos e considerações atinentes aos indícios do crime de difamação que acusava, mais se ocupou de detalhar e esclarecer todos os factos relacionados com o paradeiro e concreta identificação do arguido/acusado – vd. parte final da Acusação Particular então deduzida.
G.- Contudo, o despacho de 30.09.2022 do tribunal a quo, entendeu que o acusado seria alguém de todo não identificado ao longo dos autos ou então identificado por referências tão vagas que se torna impossível determinar quem poderia ser”, e com isso concluído pela rejeição da acusação por falta de identificação do arguido.
H.- O Recorrente entende que tal afirmação não reproduz as diligências e, sobretudo, os elementos trazidos aos autos, desde logo pelo próprio Assistente, com vista à identificação do acusado/arguido.
I.- Para tanto recordou-se que, com a apresentação da Queixa-Crime, mas igualmente mediante documentação junta nos autos, e ainda em sede de inquirição das várias testemunhas arroladas (e ouvidas em fase de inquérito), foi possível individualizar de forma rigorosa e objetiva o Sr. B,
J.- Bem como identificar a identidade do arguido, pessoas relacionadas com o arguido e correspondência eletrónica trocada pelo próprio arguido.
K.- Na mesma medida, mais se recordou que a concreta identidade do acusado foi apresentada, sem hesitações ou contradições, desde o primeiro momento, designadamente a nacionalidade (norte americana), a identificação da empresa que cofundou (PocketPatientMD), ou mesmo a identificação e morada profissional da sua mandatária (advogada), em Portugal.
L.- Embora desconhecendo a morada de B, mais se recordou, no entanto, que a sua mulher, C, foi ouvida como testemunha em fase de inquérito, confirmou que trabalha em Portugal, na Fundação D Portugal e, mais relevante, confirmou ser esposa do Sr. B (!).
M.- Resultando, assim, como verdadeiramente surpreendente que o despacho recorrido se refira a referência vagas para identificar o arguido.
N.- Notando-se ainda, e por fim, que a jurisprudência e doutrina de hoje, considera, ainda que salvaguarde, como é natural, a necessidade de a acusação conter elementos que permitam a identificação do arguido, mas dizia-se, considera consequências diversas aos graus de omissão, na acusação, dos elementos de identificação.
O.- Notando, sobretudo, que o critério orientador deve ser o da possibilidade de individualizar o arguido, i.e., de ser garantido que é possível encontrar quem se está efetivamente a acusar, sem se correr qualquer risco de acusar pessoa diversa.
P.- Neste sentido, nomeou-se e transcreveu-se decisões da Relação de Guimarães de 13.07.2020, da Relação de Coimbra de 26.04.2017, e ainda do STJ de 21.06.2017.
Q.- Para notar, para além do mais, que um entendimento diferente comprometeria o acesso ao direito, constitucionalmente reconhecido (cf. art. 20º, n. º 1, da Constituição da República Portuguesa).
R.- De tudo, foi possível concluir que, aceitar o despacho recorrido num caso como o presente (em que dos autos resultam inúmeras indicações e elementos que permitem identificar o arguido), seria vedar a possibilidade de ver, ao menos escrutinado e julgado, uma atuação que foi devida e detalhadamente identificada, e um acusado que foi manifestamente identificado, seja através do seu nome, seja através de inúmeros elementos atinentes à sua clara e concreta individualização.
S.- Concluindo-se, e em síntese, que resultam dos autos dados suficientes e objetivos, tendo em vista a individualização do arguido, rejeitando-se, por tudo, que a Acusação particular possa ser considerada de “manifestamente infundada”.
T.- Pelo contrário, dos autos resultam elementos mais do que suficientes para individualizar e identificar, sem margem para qualquer hesitação, o arguido B.
U.- Razão pela qual se rejeita e recorre da afirmação que sustenta a decisão recorrida, i.e., que o acusado seria “(…) alguém de todo não identificado ao longo dos autos.”
V.- O despacho recorrido é, assim, ilegal, designadamente por resultarem dos autos elementos tendentes à identificação do arguido (art.º 283.º n.º 3 a) do CPP) e, na mesma medida, por violação, designadamente, do art.º 20º, n. º 1, da Constituição da República Portuguesa, o que impõe a sua revogação.”
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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O Ministério Público apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões:
“ 1. Por douto despacho datado de 30 de setembro de 2022 a Meritíssima Juiz a quo rejeitou a Acusação Particular deduzida pelo assistente, por manifestamente infundada, nos termos dos artigos 311.º, n.ºs 1, 2, al. a) e 3, al. a) do Código de Processo Penal (com referência aos artigos 285.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3 do mesmo diploma legal).
2. Inconformado, o assistente interpôs recurso alegando, em síntese, que “resultam dos autos dados suficientes e objetivos, tendo em vista a individualização do arguido, rejeitando-se, por tudo, que a Acusação particular possa ser considerada de “manifestamente infundada”.”.
3. Nestes termos, alega a ilegalidade do despacho recorrido, designadamente por resultarem dos autos elementos tendentes à identificação do arguido, nos termos do artigo 283.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, e na mesma medida por violação do artigo 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, pugnando pela sua revogação.
4. A acusação define e fixa o objeto do processo, pelo que tem de conter todos os elementos essenciais constitutivos do crime imputado, começando pela imputação dos mesmos a um determinado agente.
5. Quanto aos elementos necessários à identificação do arguido entendemos deverem corresponder àqueles previstos nos artigos 141.º, n.º 3, e 342.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, - nome, filiação, freguesia e concelho de naturalidade, data de nascimento, estado civil, profissão, residência, local de trabalho.
6. Sem esses elementos identificativos está a acusação particular deduzida pelo assistente ferida de nulidade, nos termos do artigo 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, ex vi 285.º, n.º 3, do mesmo Código.
7. Analisada a acusação particular, constata-se que, pese embora se refira que a pessoa contra quem é deduzida é B, cônjuge de C, cujo local de trabalho é mencionado, nada mais se diz.
8. Assim, não são indicadas, a data de nascimento, a titularidade de qualquer documento de identificação e respetiva morada.
9. Efetivamente, e ao contrário do alegado pelo recorrente nos pontos H a L e T das conclusões de recurso, pese embora as diligências realizadas nesse sentido, tais dados são absolutamente desconhecidos no processo.
10. Estamos perante uma ausência de identificação, dado que além de não concretizar a pessoa relativamente à qual se requer o julgamento, inviabiliza quaisquer diligências tendentes à respetiva notificação.
11. Faz parte das garantias de defesa do arguido, consagradas no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, poder conhecer, pela simples consulta do texto da acusação os elementos e factos que esta deve conter, o que exige o conhecimento da identidade do arguido.
12. A rejeição da acusação particular deduzida pelo assistente, não cria qualquer obstáculo no acesso ao direito daquele, previsto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, ao contrário do alegado no ponto Q das conclusões de recurso apresentadas pelo recorrente.
13. Sendo maioritariamente pacífico o entendimento jurisprudencial sobre os termos mínimos de identificação do arguido na acusação e não resultando da acusação particular, deduzida pelo assistente, tais elementos, não sendo possível obtê-los por força dos elementos presentes nos autos, não merece censura a decisão recorrida.
14. Deste modo, bem andou a Mma. Juiz a quo quanto à rejeição da acusação particular, por manifestamente infundada, nos termos artigo 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a) e 3, alínea a), do Código de Processo Penal, devendo improceder o recurso apresentado pelo assistente também quanto à invocada ilegalidade do despacho recorrido, alegada no ponto V das conclusões de recurso.
15. A decisão recorrida respeitou os critérios definidos na Constituição e na Lei, não merecendo qualquer censura, pelo que se deverá manter nos seus precisos termos, improcedendo, em consequência o recurso interposto pelo arguido.”
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A Defensora Oficiosa nomeada ao arguido também apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões:
A.- O Assistente apresentou queixa-crime contra o Arguido B, por alegada prática do crime de difamação, nos termos do art.º 180 e 183 do Código Penal;
B.- Contudo, ao longo do inquérito nunca foi possível ao Assistente ou ao Ministério Público identificar o arguido, nomeadamente, data de nascimento, local de residência, titularidade de documento de identificação.
C.- O Assistente não logrou trazer aos autos os elementos de identificação do arguido, estatuídos no art.º 283, n.º 3 por força do art.º 285, n.º 1, e n.º 3 do CPP, apenas apresentou perfis de redes sociais que não é aceite como forma legal de identificação de uma pessoa.
D.- Ora, não conseguindo identificar o arguido, contra quem acusa da prática de crime de difamação, a acusação particular não preenche os requisitos previstos nos art.ºs 283, n.º 3 e art.º 311, n.º 1, n.º2, alínea a) e n.º 3, alínea a) do CPP, é manifestamente infundada devendo o juiz rejeitá-la.
E.- O que aconteceu no despacho com a Ref.ª 417545562, de 30/09/22;
F.- Não contendo a acusação particular os elementos identificativos do arguido contidos no art.º 141, n.º 3 e 342, n.º 1 do CPP, é nula.
G.- Não contendo a acusação particular os elementos identificativos do arguido contidos no art.º 141, n.º 3 e 342, n.º 1 do CPP, é nula.”
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Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, acompanhando a posição assumida na primeira instância, nos seguintes termos:
Vem a Assistente, A, irresignada com o douto Despacho proferido a 30.09.22, que lhe rejeitou a Acusação Particular, deduzida a 20.05.22, por a reputar “manifestamente infundada”, nos termos do art 311º,1 e 2, a), e 3,a), CPP), visto dela não constar a identificação do arguido/acusado, interpor dele Recurso.
Considera a recorrente que, ao invés, dos autos e do próprio libelo, decorrem os elementos individualizadores bastantes, assim considerando preenchido o ónus ou requisito legal respectivo (arts 283º,3,a), e 285º,3, CPP), pelo que se impõe a substituição por outro Despacho que remeta o feito para Julgamento.
Alega, em abono da sua tese a circunstância do MºPº, titular do então Inquérito, a coberto e em cumprimento do art 285º,2, CPP, ter consignado que os indícios do crime se verificavam, por Despacho de 2.05.22
A Exmª PR vem opor-se à procedência da pretensão recursória, em bem elaborada e estruturada Resposta, na qual esclarece que logo naqueloutro Despacho (de 2.05.22: art 285º,2, CPP), registando verificada a indiciação de crime mas informando que o agente do mesmo estava incompleta e insuficientemente identificado, advertência letalmente negligenciada pela Assistente, já que manteve o “laconismo” dos dados individualizadores do pretenso agente da infracção, o que veio, decisivamente, a merecer outro Despacho da Srº Magistrada do MºPº, em 25.05.22, onde, em conformidade, exarou que não iria o MºPº acompanhar a Acusação Particular entretanto deduzida (a 20.05.22), dando cumprimento ao art 285º,4, CPP.
A nosso ver, este posicionamento da Exmª Colega suscita-nos inteiro aplauso, por ser conforme ao Direito, já que a identificação do sujeito activo dum crime pressupõe a sua cristalina individualização relativamente ao demais universo de pessoas cogitáveis (cfr arts 262º,1, 342º,1, 141º,3, e 308º,2, CPP), daí a exigência da completude identificativa e o consequente sancionamento da sua falta (art 283º,3, proémio, e a), CPP). Não basta, obviamente, a alusão a dois dos diversos nomes que compõem a identidade dum cidadão (“B”) e a adenda vaguíssima de que é morador em “Lisboa-Portugal” para que possamos determinar aquele sujeito processual que, de resto, sendo titular de direitos (constitucionais e processuais : arts 20º e 32º, CRP, e 61º, CPP), deverá poder exercê-los sem tibieza alguma.
Por outro lado, à Mmª JI está vedado o convite ao aperfeiçoamento (que mal se entenderia, dado o antecedente aviso dado pelo MºPº, em 2.05.22, sobretudo, e, também, 25.05.22) e/ou a reparação oficiosa, porque contenderia, frontal e insustentavelmente, com a estrutura acusatória do processo penal português (art 32º,5, CRP), ao alterar/acrescentar/melhorar o objecto do processo, que só a Acusação pode delimitar.
Assim, sufragando a ideia de que a Acusação (mesmo que Particular, como “in casu”) deve ser “auto-suficiente”, capaz de fornecer todo o acervo fáctico e subjectivo, através de um enunciado e narrativa elementares (art 283º,3, CPP), aderimos à rejeição definida judicialmente, pela irrepreensibilidade dos seus termos e fundamentação (arts 97º,5, CPP, e 205º,1, CRP), sugerindo a sua confirmação.
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Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo o recorrente vindo acrescentar ao já por si alegado.
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Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.
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2–Objecto do Recurso
Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412º, nº 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)

A questão a decidir neste recurso consiste, assim, em saber se a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que receba a acusação particular do assistente, por a mesma não ser manifestamente infundada.
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3Fundamentação:

3.1.– Fundamentação de Facto
É a seguinte a decisão recorrida:
Tal como resulta do disposto no artigo 311º., n.º 1, do Código de Processo Penal, «recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer»; e se «o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha nomeadamente no sentido: a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada» (preceito citado, n.º 2), entendendo-se como tal a acusação que, além do mais, «não contenha a identificação do arguido» (id., n.º 3, alínea a); vd., ainda, os artigos 285.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, do mesmo diploma legal).
No caso vertente, verifica-se que o assistente, na acusação particular que formulou a 20.05.2022, limita-se a deduzir acusação particular contra B, residente em Lisboa, Portugal.
O assistente não identificou o arguido contra quem deduziu a acusação com o seu nome completo, nem com a morada, não indicando todos os outros elementos conhecidos e estatuídos pelo artigo 342.º, do Código de Processo Penal.
Para além do mais ninguém foi constituído arguido nestes autos, nem ouvido em momento algum do processo, pelo que nem sequer por esse “caminho” se poderá aferir a quem se refere o assistente, uma vez que se trata de alguém de todo não identificado ao longo dos autos ou então identificado por referências tão vagas que se torna impossível determinar quem poderia ser.
Por nós, cremos que não foi seguramente essa a intenção do legislador ao adoptar os artigos 311.º, n.º 1, 285.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, cujo objectivo, aliás de acordo com o princípio do acusatório que vigora no nosso sistema, é claramente o de tornar a acusação uma peça auto-suficiente, que contenha a totalidade dos elementos que revelam «a existência de um crime» e identificam «os seus agentes e a responsabilidade deles», na formulação do n.º 1 do artigo 262.º do Código de Processo Penal.
Só assim se fixará, de forma definitiva e inequívoca (já para não dizer, ainda, adequada), o objecto do processo (na sua dimensão objectiva e subjectiva) a que a actividade cognitória do tribunal irá estar vinculada em sede de julgamento, e se protegerão, concomitantemente, os direitos de defesa dos arguidos (sobre tudo isto, vd. FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, vol. I., págs. 144-145).
Ao Tribunal não cabe esquadrinhar os autos para determinar quem é o acusado no seu âmbito. Isso há-de, ainda que sucintamente, constar expressamente da acusação. Caso contrário, tal peça não poderá deixar de ser rejeitada, à luz do preceituado nos artigos 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea a), 285.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, todos do Código de Processo Penal.
As consequências da omissão na acusação da identificação do arguido encontram-se expressamente previstas no Código de Processo Penal.
Mais, o juiz também não pode convidar o assistente a corrigir a sua acusação particular, depois de decorrido o prazo do artigo 285.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, tanto mais que tal prazo é peremptório e de caducidade.
Acresce que ao juiz está vedado ultrapassar o objecto que lhe é submetido a julgamento, alterando ou corrigindo o que dele consta, sob pena de estar a substituir-se à parte acusadora e deixar de exercer com imparcialidade a sua função.
O artigo 283.º, n.º 3, al. a), do Código de Processo Penal impõe que a acusação contenha, sob pena de nulidade, as indicações tendentes à identificação do arguido. E por identificação entende-se o nome e demais elementos constantes do artigo 342.º, do Código de Processo Penal.
Assim, a indicação apenas do nome, incompleto, não é suficiente, acarreta dúvida ou confusão quanto à identidade da pessoa acusada.
A redacção dos n.ºs 2, al. a) e 3 al. a) do artigo 311.º do Código de Processo Penal é clara, ocorrendo falta de identificação do arguido, a consequência daí resultante é a rejeição da acusação.
Foi, portanto, irrecusavelmente, cometida a nulidade cominada pelo referido artigo 283.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal.
Dir-se-á, porém, que tal nulidade não é insanável, pois não está abrangida na enumeração taxativa do artigo 119.º do Código de Processo Penal, pelo que, para poder ser decretada, faz-se mister que seja arguida, nos termos do artigo 120.º do mesmo Código [Cfr., explicitamente neste sentido, MAIA GONÇALVES in “Código de Processo Penal Anotado e Comentado”, 11ª ed., 1999, p. 544].
Ora, como, no caso sub judice, o arguido não foi sequer notificado pessoalmente da acusação deduzida ainda nem decorreu tal prazo, dos 5 dias subsequentes à sua notificação do teor da referida acusação – como impõe a al. c) do n.º 3 do artigo 120.º do Código de Processo Penal.
A sanação da nulidade por falta de dedução faria tábua rasa da disposição contida no citado artigo 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. a), onde expressamente se prevê que, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ser precedido de instrução, o juiz de julgamento deve rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada, sendo que um dos casos em que a acusação é legalmente havida como infundada é precisamente o de ela não conter a identificação do arguido. Se assim é, se ao juiz de julgamento é lícito rejeitar a acusação quando esta seja omissa quanto à identificação do arguido, então, afinal, a não arguição tempestiva, por parte do arguido, da nulidade cominada pelo citado artigo 283.º, n.º 3, al. a) não importa a sanação dessa nulidade, nos termos do citado artigo 121.º, al. b), do Código de Processo Penal.
Nestes termos, e pelo exposto, decido rejeitar a acusação particular deduzida nestes autos por manifestamente infundada na acepção do citado artigo 311.º. n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea a), do Código de Processo Penal (com referência aos artigos 285.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, do mesmo diploma legal).
Custas pelo assistente.
Notifique.
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3.2.Mérito do recurso
Vem o presente recurso interposto da decisão do Tribunal a quo que rejeitou a acusação particular deduzida nestes autos, por manifestamente infundada, face à ausência de identificação do arguido, nos termos do art.º 311º, nºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea a) do Cód. Proc. Penal, com referência aos arts.º 285º, nº 2 e 283º, nº 3 do mesmo diploma.
Prevê-se no art.º 283º, nº 3 do Cód. Proc. Penal que:
“ 3- A acusação contém, sob pena de nulidade:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido; (…)”.
Os requisitos legais quanto ao conteúdo da acusação pública são aplicáveis à acusação particular por remissão do art.º 285º, nº 3 do mesmo diploma.
Quanto ao que se deva entender por elementos necessários à identificação do arguido, estes correspondem aos previstos nos arts.º 141º, nº 3, e 342º, nº 1 ambos do Cód. Proc. Penal, como sejam o nome, a filiação, a freguesia e concelho de naturalidade, a data de nascimento, o estado civil, a profissão, a residência e o local de trabalho.
A acusação particular tem por finalidade conseguir a submissão do arguido a julgamento pelos factos que, no entender do assistente, consubstanciam a prática de uma actividade criminosa e que podem levar à aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança àquela pessoa em concreto.
Como decorre do art.º 262º, nº 1 do citado diploma, o inquérito é a fase processual que visa “(…) investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.”
Ora, a acusação, enquanto manifestação formal da pretensão de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática de determinado crime e por ele condenado, constitui o pressuposto indispensável da fase de julgamento, por ela se definindo e fixando o seu objeto, ou seja, a infração e o autor acusado da mesma.
A acusação é, assim, uma peça processual que deve valer por si própria, porquanto tem em vista delimitar o thema probandum, estabelecendo o âmbito e o limite da intervenção do juiz em sede de julgamento.
A vinculação temática do Tribunal aos factos alegados na acusação decorre da estrutura acusatória do processo penal e das garantias de defesa do arguido, consagradas no art.º 32º, nºs 1 e 5 da CRP, e não só funciona como mecanismo de salvaguarda do arguido contra o alargamento arbitrário do objecto do processo, como lhe permite a preparação da defesa, no respeito pelo princípio do contraditório.
Daí que o objeto do processo tem que ser fixado com rigor e precisão, devendo a acusação conter todos os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e ter o seu objecto definido de uma forma clara e suficientemente rigorosa, a fim de permitir a organização da defesa.
Por esta razão, e em obediência aos princípios do acusatório e do contraditório que regem o processo penal, o art.º 283º, nº 3 impõe que a acusação identifique claramente a pessoa contra quem é dirigida, individualizando-a no universo de pessoas possíveis.
No caso dos autos consta da acusação particular que a mesma é deduzida contra: “ B, residente em Portugal, Lisboa, com morada desconhecida, casado com C.”
Percorrendo a acusação particular na mesma só se acrescenta, quanto à identificação do arguido, que C trabalha na Fundação D, em Portugal, indicando-se a morada desta fundação.
Não é adicionado qualquer outro elemento que possa permitir a identificação do arguido, nomeadamente os elementos constantes dos arts.º 141º, nº 3, e 342º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, supra referidos.
Nem sequer é feita a menção na acusação da identificação do arguido por remissão para outra peça processual, como por exemplo: “o arguido melhor identificado a fls. X”, ou “o arguido identificado nos autos“, pela simples razão de que o arguido não foi ouvido nos autos, nem a sua completa identificação consta de nenhuma outra peça processual.
Na verdade, não existem nos autos quaisquer outros elementos que permitam proceder à completa identificação do arguido ou conduzir à sua identificação.
Diversamente do que ocorre com a acusação, que se refere às “indicações tendentes à identificação do arguido”, o art.º 311°, nº 3, al. a) do Cód. Proc. Penal é mais preciso, referindo que deve ser rejeitada a acusação manifestamente infundada, considerando-se como tal “Quando não contenha a identificação do arguido”.
Uma interpretação sistemática do preceito, efectuada em conjugação com o previsto no art.º 283º, nº 3, al. a) do mesmo diploma, impõe que se conclua que a acusação que não contém a identificação do arguido é aquela que não contém as indicações tendentes à sua identificação.
É o que sucede no caso dos autos, pois a acusação particular aqui deduzida não contém a identificação necessária e suficiente de quem seja a pessoa do arguido a que se refere.
As indicações tendentes à identificação do arguido visam evitar que haja dúvidas sobre quem é a pessoa acusada e que vai ser submetida a julgamento.
É um problema de identidade da pessoa a julgar, mas também da pessoa que se vai defender, por lhe ser imputada uma acção delituosa, e visa exactamente possibilitar a essa pessoa, a acusada, de se defender, incluindo de não ser ela a autora dos factos, pondo desde logo em causa a sua qualidade material de arguida.
A este respeito, defendeu Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III vol., Verbo, 3º ed. 2009, pág. 205 que: " Parece-nos porém, que se deve entender ser apenas caso de acusação manifestamente infundada a falta de arguido e não apenas a deficiência da sua identificação na acusação, quando suprível com outros elementos constantes do processo, salvo se arguida a nulidade."
Quanto à jurisprudência, esta tem admitido que basta para preencher esse conceito normativo de identificação do arguido, não apenas a sua identificação completa, mas também a indicação do seu nome, se se remeter a restante identificação para documentos dos autos ou se se fizer referência a algum documento oficial, devendo a acusação ser rejeitada apenas quando é totalmente omissa quanto à identificação do arguido ou quando tem indicação insuficiente de sinais tendentes ao reconhecimento inequívoco do mesmo.
Face ao exposto, só a ausência total de identificação do arguido, ou a indicação insuficiente no processo de sinais tendentes ao seu reconhecimento inequívoco, pode gerar a nulidade prevista no art.º 283º, nº 3, al. a), “ex vi” do art.º 285º, nº 3 ambos do Cód. Proc. Penal, e, consequentemente, desencadear a rejeição da acusação, por manifestamente infundada, nos termos do art.º 311º, nºs 2, al. a), e 3, al. a) do mesmo diploma.
É o que ocorre no caso dos presentes autos, porquanto a acusação deduzida pelo assistente não permite identificar a pessoa contra quem é dirigida com uma margem suficiente de segurança e sem que subsistam quaisquer dúvidas, devendo, por esse fundamento, ser rejeitada.
Entendimento diferente ao perfilhado obstaculizaria desproporcionadamente o acesso ao direito, constitucionalmente reconhecido, nos termos do art.º 20º, nº 1 da CRP.

No sentido da nossa decisão, vejam-se a título de exemplo, entre outros, os seguintes acórdãos, todos in www.dgsi.pt:
- Acórdão do TRE de 11/10/11, proferido no processo nº 69/10.0GBVVC.E1, em que foi relator Sénio Alves: “Não é manifestamente infundada, nos termos do artº 311º, nº 3, al. a) do CPP, a acusação onde o arguido esteja identificado pelo seu nome e, por remissão para o auto de denúncia, pela sua residência.”;
- Acórdão do TRC de 26/04/2017, proferido no processo nº 399/15.4T9GRD.C1, em que foi relator Orlando Gonçalves: “ I -A acusação tem de conter, por si só, todos os elementos essenciais constitutivos do crime imputado, começando pela imputação dos mesmos a um determinado agente.
II- Estabelecido que, sendo possível, a identificação do arguido deverá integrar o «nome, filiação, freguesia e concelho de naturalidade, data de nascimento, estado civil, profissão, residência, local de trabalho», a jurisprudência vem estabelecendo consequências diversas aos graus de omissão, na acusação, destes elementos.
III- Resultando da acusação particular, deduzida pela assistente, que em lugar algum do articulado é indicado qualquer elemento tendente à identificação do arguido, não merece censura a decisão recorrida, de rejeição da acusação, por manifestamente infundada, nos termos art. 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea a), do CPP.”;
- Acórdão do TRP de 18/11/2020, proferido no processo nº 654/18.1GAVFR.P1, em que foi relatora Maria Dolores da Silva e Sousa: “ I-A acusação, pública ou particular, tem de conter, sob pena de nulidade sanável, "as indicações tendentes à identificação do arguido".
II- Será rejeitada, por ser manifestamente infundada, a acusação que "não contenha a identificação do arguido".
III- A acusação deduzida, contendo em si indicações tendentes à identificação da arguida, embora por remissão, não cumprido, nesse momento, de forma completa o que lhe é exigido pelo disposto no artigo 283º, n.º 3, al. a) do CPP, contém, ainda assim, "as indicações tendentes à identificação da arguida".(…)”

Em face de tudo o exposto, verifica-se que a decisão recorrida não merece censura, não se considerando violados os preceitos legais invocados pelo recorrente, pelo que se impõe julgar improcedente o presente recurso.
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4–Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, mantendo-se integralmente a decisão do Tribunal a quo.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC´s.



Lisboa, 7 de Março de 2023


(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)



Carla Francisco
(Relatora)
Isilda Pinho
(Adjunta)
Luís Gominho
(Adjunto)