ACÇÃO TUTELAR COMUM
REGULAÇÃO DOS CONVÍVIOS DA CRIANÇA
CONVÍVIO COM A AVÓ
DIREITO DE VISITA
CONFLITO ENTRE AVÓ E FILHA/PROGENITORA
Sumário

1 – Nos termos do disposto no artigo 1887º-A do Código Civil, os avós e os netos detêm um direito às relações pessoais recíprocas, presumindo-se que o convívio da criança com os avós é benéfico para ela e necessário ao desenvolvimento harmonioso da sua personalidade, pelo que não pode ser injustificadamente derrogado pelos pais.
2 – Em caso de conflito entre os pais e os avós da criança, o critério para conceder ou negar o direito de visita, é o superior interesse desta.
3 - O direito de visita ou de convívio dos avós não se confunde com os poderes-deveres que integram as responsabilidades parentais, nem tem o mesmo conteúdo que o direito de visita do progenitor não guardião, não cabendo aos avós o poder-dever de educação dos filhos, que só aos pais compete.

Texto Integral

Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
A, cartão de cidadão nº …, residente na Praceta …, Agualva Cacém veio deduzir contra B, residente à Rua …, Agualva Cacém a presente acção tutelar comum para regulação dos convívios da criança C nascida em 5 de Abril de 2012, com a requerente, sua avó materna.
Alega, muito em síntese, o seguinte (cf. Ref. Elect. 14065215):
- A requerente é mãe de B, requerida, que é mãe da criança C, sua neta;
- A neta residiu com a mãe na sua casa até Janeiro de 2018 e sempre manteve uma relação harmoniosa com a requerente, que dela cuidou desde o nascimento;
- A requerida saiu da casa da requerente, passando a viver com o seu companheiro e a menor numa outra casa, impedindo os contactos desta com a avó devido aos desentendimentos que tem com a requerente, que não concorda com a relação que mantém com o actual companheiro;
- A requerente receia pelo bem-estar emocional e psicológico da sua neta, que sofre com esta separação.
A requerida foi citada para os termos da acção e deduziu oposição, nos seguintes termos (cf. Ref. Elect. 14422279):
* A avó mantém os contactos com a neta, visitando-a no Centro de Estudos;
* A criança quer estar com a avó, mas na presença da mãe, devido ao facto de a requerente ameaçar chamar a polícia para poder estar com ela e porque transmite uma imagem deturpada da mãe;
* Aceita que sejam mantidos os laços afectivos entre a avó e a neta, mas em condições que permitam protege-la das atitudes da requerente.
O pai da criança, Nc, foi citado e opôs-se à pretensão da requerente (cf. Ref. Elect. 15416625).
Em 6 de Janeiro de 2020 teve lugar a realização de conferência de pais onde foi alcançado o seguinte acordo, homologado por sentença (cf. Ref. Elect. 123077729):
“1 - A C passará a tarde de sábado, de duas em duas semanas, com a avó materna A , indo a avó buscar a C às 16:00 horas a casa da mãe, e entrega às 21:00 horas no mesmo local.
2 - A Requerente/avó materna poderá contactar com a neta telefonicamente, por correio electrónico ou qualquer outro meio tecnológico, sem prejuízo dos afazeres escolares e de descanso da criança.”
Por requerimento de 3 de Fevereiro de 2020 a requerida veio solicitar a realização de nova conferência para rever o regime acordado, dado que a requerente procedia a telefonemas constantes e insistia em impor a sua vontade (cf. Ref. Elect. 16296201).
Na sequência de um requerimento enviado ao processo em 6 de Fevereiro de 2020, foi instaurado por apenso aos autos uma acção de promoção e protecção relativamente à C, que constitui o apenso C, e que determinou a suspensão da presente instância, em 2 de Março de 2020 (cf. Ref. Elect. 16322292, 124046364 e 124107163).
A criança foi ouvida no âmbito do processo de promoção e protecção em 12 de Outubro de 2020, tendo sido proferida decisão de arquivamento em 23 de Novembro de 2020 (cf. Ref. Elect. 127108787 e 127889886 do apenso C).
Retomado o andamento destes autos, em 2 de Fevereiro de 2021 foi determinada a audição técnica especializada, com vista à obtenção de consenso entre as partes, encontrando-se junto aos autos o respectivo relatório, com data de 18 de Agosto de 2021, notificado às partes em 19 de Agosto de 2021 (cf. Ref. Elect. 128997659, 19365215, 132348203, 132348261, 132348262, 122348304 e 132348305).
A requerente, notificada do conteúdo do relatório social, solicitou a realização de perícia à criança C através do Instituto de Medicina Legal, que foi ordenada por despacho de 4 de Outubro de 2021, encontrando-se junta aos autos, com data de 9 de Dezembro de 2021 (cf. Ref. Elect. 19478978, 133004413 e 20257964).
A requerente e os progenitores foram notificados para, querendo, apresentarem alegações, o que fizeram, arrolando testemunhas (cf. Ref. Elect. 20981692 e 21026379).
Foi realizada nova conferência de pais, com o estabelecimento de um acordo para uma visita da avó materna e dos irmãos da progenitora à C, que se gorou, prosseguindo os autos para a audiência de julgamento, vindo a ser proferida sentença, em 21 de Outubro de 2022, com o seguinte dispositivo (cf. Ref. Elect. 110318850):
“Pelo exposto, a menina C pode conviver com a avó materna A e irmãos gémeos da mãe, em casa da mãe e acompanhada por esta, no 2.º e 4.º sábado de cada mês, das 16:00 horas às 19:00 horas.
A avó poderá falar com a neta C, por telemóvel, à segunda e quinta-feira, entre as 19:00 e 20:00 horas.”
Inconformada, a requerente veio interpor recurso de tal decisão (cf. Ref. Elect. 22237652).
Em 9 de Fevereiro de 2023 a ora relatora proferiu despacho convidando a recorrente a sintetizar as suas conclusões, indicando os fundamentos por que pretende a alteração da decisão recorrida, suprindo o vício de que aquelas padeciam (prolixidade) (cf. Ref. Elect. 19597813).
A recorrente acedeu ao convite e por requerimento de 22 de Fevereiro de 2023 apresentou o recurso com as seguintes conclusões (cf. ref. Elect. 621005):
I. Impugna-se a matéria de facto, devendo o Tribunal a quo ter considerado provada a seguinte factualidade:
A- Da sentença do Proc. 4442/19.0T9AMD (Ponto 10 da matéria assente), resulta o seguinte: (...) "DG, ex-cônjuge do assistente IG, declarou que o relacionamento com este terminou de modo conflituoso, tendo a declarante apresentado queixa do mesmo por violência doméstica já em 2017, existindo ainda diversos outros processos judiciais entre ambos.
E disse ainda que chegou a ter conhecimento de que o seu ex-marido se tinha casado posteriormente com uma idosa de cerca de 80 anos, que o mesmo apelidava de “patroa” e a quem cuidava, tal como a respectiva irmã, auferindo rendimentos por esse facto."(...)
"De facto, caso este se mostrasse pessoa alheia às relações dos assistentes e da arguida, ou pessoa de mera convivência social, aquela conclusão poderia mostrar-se mais plausível.
No entanto, Rn é pai da assistente e ex-marido da arguida e, portanto, quando esta comunica ao mesmo circunstâncias que refere gerarem-lhe preocupação como mãe, antes se denota mais plausível que, pese embora o desinteresse manifestado pelo destinatário, a arguida tenha tentado confidenciar aquelas preocupações e procurar que o seu ex-marido também as tivesse e tentasse apurar do estado de saúde da filha, dada a maior proximidade de relacionamento que então mantinha com esta.
A tanto acresce ainda notar que as referências da arguida quanto ao conhecimento de que afilha de ambos teria sido vítima de violência doméstica às mãos do ex-companheiro e que o actual, ora assistente, teria vários processos judiciais em curso com a sua ex-mulher, designadamente um em que era acusado da prática desse crime, bem como de que este estava casado com uma pessoa idosa por interesses meramente financeiros, cumpre dizer que os depoimentos de SR, MF, SC e DG, como referido supra, antes indiciaram que a arguida teria razões para considerar tais alegações como verdadeiras, sendo certo que a certidão de casamento junta com a contestação e as próprias declarações do assistente IG confirmaram que este é ainda casado com FV, actualmente com 89 anos de idade, por matrimónio contraído quando a mesma possuía 82 anos e o assistente 36.
Ora, considerando a manifesta diferença de idades, a par, também de, como o próprio assistente referiu, o mesmo manteve contactos com a referida Floriana e respectiva irmã mesmo depois de uma alegada separação após um ano de coabitação, incluindo na pendência do relacionamento com a assistente B, mostrou-se plausível e humanamente atendível que a arguida, ao saber de tais circunstâncias, enquanto mãe, sentisse preocupações quanto ao carácter do assistente IG e quanto às reais intenções que teria no relacionamento com a aqui assistente."
(...)
"Ainda assim, a referência ao assistente ser casado com senhora de idade avançada, gerindo os rendimentos desta e da irmã, não exercendo profissão, mostrou-se, tal como já acima exposto, corresponder a um facto real quanto ao aludido casamento e a factos que a arguida teria razões para considerar verdadeiros."
(...)
"De todo o modo, mostrou-se humanamente atendível que no contexto supra referido, a arguida, enquanto mãe e avó, tenha experimentado sentimentos de preocupação e de irritação perante o comportamento da filha e do seu actual companheiro.”
Como resulta da Sentença absolutória junta aos autos.
B- Ainda hoje, IG (44 anos) é casado com FV. (90 anos), cfr. resulta da consulta da certidão de casamento, com o código de Acesso: 2122-8935-1935, válido até 22-05-2023, cuja junção foi requerida.
C- A partir do final do ano de 2018, a Requerida passou a impedir os convívios e contactos entre a C e a avó;
Como resulta dos próprios articulados das partes, e da conjugação de toda a prova documental e depoimento das testemunhas.
D- A Requerida privou a filha dos convívios com a avó injustificadamente;
Como resulta da conjugação de toda a prova documental e depoimento das testemunhas.
E- Sem qualquer motivo, a partir do final de 2018, a Requerida passou a impedir os convívios e contactos entre a C e todos os restantes elementos da família materna, incluindo os tios - gémeos menores, 4 anos mais velhos que a C; e o primo Tomás, da mesma idade daqueles;
Como resulta dos próprios articulados das partes, e da conjugação de toda a prova documental e depoimento das testemunhas, em particular da testemunha, ouvida em 13-10-2022, a partir das 14:18:55 da gravação áudio, do minuto 6:35 e o minuto 9:48
F- Na data e hora do convívio agendado para 04-06-2022 (Pontos 23 e 24 da matéria assente), a mãe foi vista com a C na Primark;
Como resulta do depoimento da testemunha Zd, ouvida em 13-10-2022, a partir das 14:51:53 da gravação áudio, ao minuto 2:24 e entre o minuto 5:00 e o 6:20
II. Os presentes autos reflectem a preocupação da avó pelo bem-estar da sua neta, mas principalmente visam e regulação dos convívios entre ambas, os quais deixaram de existir por imposição da Requerida, e não só relativamente à Requerente, mas a todas as pessoas que ao longo dos 6 anos de vida da C eram a referência da menor:
- o marido da avó, o “avô Ls”,
- os filhos gémeos da Requerente, tios da C e 4 anos mais velhos que ela;
- o sobrinho da Requerida, primo da C e 4 anos mais velho que ela;
- o irmão e a cunhada da Requerida, tios da C;
A preocupação da Recorrente para com a neta é natural, considerando que a menor C, nascida em 05/04/2012, é fruto do relacionamento da Requerida com Nc. O qual, tinha um vasto registo criminal de vários tipos de crimes (tráfico de estupefacientes, roubo e sequestro), e se encontrava em cumprimento de pena de prisão, no Estabelecimento Prisional de Alcoentre, ao tempo da entrada dos presentes autos, onde aquele viria a ser citado.
Tanto a Requerida como a menor C, residiram com a Requerente, o marido desta e os filhos gémeos do casal, até Janeiro de 2018, altura em que a Requerida foi viver maritalmente com IG.
Sucede que, com a saída de casa da Requerente, a requerida começa a afastar-se gradualmente de todas as pessoas da família e amigas, até ao ponto de deixar de atender telefonemas, mensagens, bloquear os contactos daqueles e também nas redes sociais, e de proibir os contactos da C na escola e no centro de estudos às pessoas da sua família, incluindo os tios gémeos e o primo, todos menores – com apenas mais 4 anos que a C.
Por outro lado, veio a Requerente a saber que o homem com quem a sua filha vivia em união de facto, era na verdade casado com uma senhora de idade superior a 80 anos, gerindo os rendimentos e bens destas e de sua irmã também idosa e incapaz, não exercendo o IG qualquer tipo de profissão conhecida, na altura.
Bem como veio a saber que IG havia tido diversos processos em tribunal, sendo que um deles era de crime de maus-tratos infligidos a DG, mãe da sua filha menor.
III. Durante todo o processo, a Requerida negou todas as recomendações de contactos acompanhados entre a avó e a menor, por exemplo através da intervenção da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa sugerida pelo Ministério Público, bem como obstaculizou o normal andamento dos autos, desrespeitando as ordens do tribunal em fazer comparecer a menor às diligências marcadas, designadamente, para a realização da perícia.
E passados quase 4 anos, a avó continua a ver a neta apenas através do gradeamento da escola, assim, como os outros familiares que vão ver a C, de vez em quando, acompanhando a avó, mantendo vivas as lembranças da menor.
IV. Quanto ao Relatório da Perícia Médico-Legal realizada à menor C na Unidade de Psiquiatria e Psicologia Forense do IML, impugna-se o resultado do mesmo, nos seguintes termos:
- Por Despacho de 04-10-2021, V. Exa. ordenou a realização de perícia médico-legal à menor, a fim de se aferir, além da sua personalidade, a recolha de elementos que ajudam a“(…) definir e interpretar o real interesse da criança, suas necessidades e aspirações, a sua inserção social e familiar, o seu relacionamento com a mãe e avó materna e imagem destas, permitindo conhecer a personalidade e o caracter destas e suas motivações (…)”
A Perícia foi pedida e ordenada apenas e tão só, à menor C.
Todavia, resulta do Relatório que a Metodologia foi a seguinte:
2.1 Pesquisa e consulta documental do Processo n.º 5292/16.0T8SNT-B enviado.
2.2 Observação e Entrevista Clínica-Forense com a examinanda e com a progenitora que a acompanhou a exame pericial.
2.3 Avaliação Psicológica e Instrumental: Aplicação das seguintes provas e escalas: EMBU – Crianças (6-12 anos).
Tendo a progenitora acompanhado a menor durante a realização do exame pericial, o qual, incluiu Observação e Entrevista Clínica-Forense com a examinada e com a progenitora. E ainda, Entrevista Complementar com a Progenitora.
V. As declarações da C não foram prestadas de forma livre, espontânea e genuína, como se impunha. Sendo contraproducente a presença da progenitora durante a realização do exame médico-psicológico.
Todo o discurso da menor deixa transparecer a influência da progenitora.
E
Qual o fundamento para ser ouvida a menor na presença da progenitora?
Qual o fundamento para a Entrevista Complementar com a Progenitora?
Qual o fundamento para ser ouvida a progenitora, e não a avó materna?
A conclusão final do Relatório não assentou em nenhum critério científico, isento e credível, por parte do técnico que o subscreveu, limitando-se o mesmo a reproduzir e a expressar a visão que a progenitora entendeu dar-lhe sobre os presentes autos, sem qualquer base para tanto.
Razão, pela qual, não deveria ser considerada nem valorada pelo Tribunal.
V. Devem ser retomados os convívios entre avó e neta, permitindo assim um relacionamento são, genuíno, puro, livre e desinteressado entre ambas, repleto de carinho, amor e harmonia.
A menor C não tem de estar sujeita aos desamores e teimosias da sua mãe, nem tem de ser obrigada a pedir-lhe para ver a avó, de quem muito gosta, sabendo que vai entristecer a progenitora.
A menor não tem de fazer qualquer escolha.
E não pode ser confrontada com essa divisão.
A menor tem direito a relacionar-se com a sua família materna alargada, antes que a esqueça, uma vez que não falou do marido da avó Ft, que também tratava por avô, nem dos filhos gémeos da Requerente, pouco mais velhos que a C, e que também tratava como irmãos, e com quem foi criada desde que nasceu.
Nem dos tios e primos, de quem sempre gostou.
Quanto mais tempo passa, mais lembranças perde!
Não fosse a persistência da avó Ft, ora Requerente, em ir ver a neta à escola, de longe, mandando-lhe um beijinho através do gradeamento, já a menina seguramente a tinha esquecido.
VI: Impunha-se a intervenção do Tribunal na defesa, salvaguarda e garantia dos direitos da C, em privar e relacionar-se naturalmente com a sua avó materna, retomando e reforçando os laços familiares que sempre as uniram.
A Requerida também não respeitou sequer as soluções consensuais alcançadas nos autos.
Apesar de ter sido alcançado um acordo de visitas em 06.01.2020 (apenso B), entre Requerente e Requerida, existiu apenas um convívio entre avó e neta, para, logo de seguida, voltar tudo à estaca zero!
Também na conferência de 01.06.2022 foi obtido um acordo provisório de modo a permitir uma aproximação gradual, nos seguintes termos: “no próximo sábado (04-06-2022) a C estará com a avó materna, os irmãos gémeos da mãe, e a mãe no Parque Central da Amadora das 16:00 horas até às 18:00 horas.”
Mas a mãe Requerida não compareceu, desmarcou o convívio agendado, alegando que a C tinha de ficar em casa a estudar para os testes.
Tudo conforme Factos provados 23. e 24.
VII. E os factos ocorridos após a prolação da sentença, com as tentativas goradas de contacto da Recorrente com a C, fazem antever a continuidade do desrespeito por parte da progenitora relativamente a qualquer decisão judicial que vise a aproximação da C à sua avó.
Está bem de ver qual vai ser o futuro de um qualquer regime de convívios estabelecido pelo tribunal, que a Requerida nunca respeitará, sem qualquer motivo que justifique a privação que impõe à sua filha de se relacionar e conviver com a sua avó.
VIII. Nos presentes autos, pretende-se unicamente a regulação de convívios entre a menor C e a sua avó materna, ora Recorrente, mas não é aceitável que o regime de visitas decorra num ambiente “presidiário”, por considerar que tal não é benéfico para a menor.
A evolução da criança como sujeito de direitos pressupõe a consideração da família como espaço de desenvolvimento da personalidade dos seus membros.
Há aqui uma preocupação de garantir uma tutela mais eficaz e ampla da pessoa humana.
A vida, garantida com o nascimento da pessoa e seu posterior desenvolvimento, depende do Direito que é um instrumento fundamental para a sua efectivação. E há uma relação entre o Direito e a Bioética que garante a vida e a sua dignidade, fixando parâmetros para a sua concretização e estabelecendo limites para distinguir o lícito do ilícito.
O denominado princípio da afectividade fundamenta as relações interpessoais e é o elemento formador e estruturador da família. Esta tem na essência o estabelecimento de vínculos afectivos.
No ano de 1959, com a Declaração dos Direitos da Criança o princípio do superior interesse da criança foi consolidado: “A criança gozará de protecção especial e deverão ser-lhe dadas oportunidades e facilidades através da lei e outros meios para o seu desenvolvimento psíquico, mental, espiritual e social num ambiente saudável e normal e em condições de liberdade e dignidade. Na elaboração das leis com este propósito, o superior interesse da criança constituirá a preocupação fundamental. - ”Princípio 2º da Declaração dos Direitos da Criança de 1959.
“Todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas, ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança.” - Artigo 3º da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989.
Dessa forma, esse princípio tornou-se tanto orientador para o legislador como para o aplicador da norma jurídica, já que determina a primazia das necessidades do menor como critério de interpretação da norma jurídica ou mesmo como forma de elaboração de futuras demandas.
Em suma, o interesse superior da criança centrar-se-á sempre no direito desta ao desenvolvimento são e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social, em
condições de liberdade e dignidade.
IX. O artigo 1887.º-A do CC, aditado pela lei n.º 84/95, de 31.8, consagrou não só o direito do menor ao convívio com os avós, como reconheceu, também, um direito destes ao convívio com o neto, que poderá designar-se por “direito de visita” em sentido amplo.
Pode, mesmo, dizer-se que se introduziu expressamente um limite ao exercício das responsabilidades parentais, impedindo os pais de obstarem, sem qualquer justificação, a que os filhos se relacionem com os seus ascendentes ou com os irmãos.
Deste modo, existe uma presunção de que a relação da criança com os avós e irmãos é benéfica para ela, incumbindo ao progenitor que pretende impedir as visitas, alegar e provar que este convívio é prejudicial.
Na verdade, é incontroverso que a convivência das crianças com os avós representa uma ponte com o mundo externo. Ao visitar os avós, a criança descobre que fora de sua casa também existem lugares seguros e agradáveis
O passado dos avós é referência para os netos na medida em lhe contam, com emoção, o que passou na sua época e revivem esses momentos, colaborando para o enriquecimento da identidade dos netos.
X. Apela-se assim à intervenção deste Tribunal na defesa, salvaguarda e garantia dos direitos da C, em privar e relacionar-se naturalmente com a sua avó materna, retomando e reforçando os laços familiares que sempre as uniram.
E condenando os Requeridos a fazer cumprir os convívios que venha a fixar, estabelecendo uma sanção pecuniária compulsória que se mostre adequada.
A lei não consagra uma protecção especial aos contactos e convívios dos menores com todos os elementos da família alargada daqueles, à excepção dos irmãos e ascendentes, a avó, no caso dos autos.
Mas não é irrelevante, nem pode passar despercebido ao Tribunal, que a partir e determinado momento, sem uma razão válida, a progenitora decida erradicar da vida da filha todas as pessoas da sua família, e com quem ela sempre viveu e cresceu, sendo alguns daqueles, menores como a C.
E se, por um lado, o Tribunal não pode impor à progenitora um comportamento diferente, relativamente àqueles, torna-se imperativo que o faça relativamente à pessoa da avó. E aí não poderá o Tribunal esperar que a Requerida venha a adoptar uma conduta diferente daquela que motivou a entrada dos presentes autos e daquela que demonstrou ao longo dos 4 anos do processo.
Aí o tribunal tem de assegurar que a menor vê respeitado o seu direito a conviver com a sua avó. E este convívio não pode ficar reduzido a uma mera visita sob a alçada da progenitora que hostilizou a Requerente com acusações de perseguição, injúrias e difamação; que proibiu que a menor se aproximasse do gradeamento da escola para falar à avó...
XI. O razoável será o estabelecimento de um regime de convívios da C com a avó, em que a menor possa estar na companhia daquela num fim-de-semana de 3 em 3 semanas, ou um dia de 15 em 15 dias, e com possibilidade de passar uma semana de férias no verão.
A avó é uma pessoa responsável. A C gosta da avó.
O bem-estar da menor ficará assegurado na companhia da avó, sem a supervisão da Requerida.
O que se requer.
XII. Por isso, andou mal o Tribunal a quo ao determinar que os convívios se dessem em casada Requerida, condicionando o relacionamento entre neta e avó, à presença daquela, impedindo ou reprimindo desse modo a espontaneidade/liberdade da criança, não se mostrando assim tal regime orientado em função do superior interesse da criança.
Daí resultando uma desconformidade com o que dispõe o Princípio 2º da Declaração dos Direitos da Criança de 1959 e o Artigo 3º da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989.
A conduta da Requerida, ao privar a filha, menor de 10 anos, de conviver com a sua avó nos últimos 4 anos, constitui uma grave violação do disposto no Artº 1887º-A do Código Civil.
Não existiu, nem existe, qualquer motivo válido que justifique tal privação.
Termina pedindo que a decisão seja revogada e substituída por outra que estabeleça um regime de convívios da C com a avó, em que esta possa estar na sua companhia num fim-de-semana de 3 em 3 semanas ou um dia, de 15 em 15 dias, com possibilidade de passar uma semana de férias no verão.
A requerida/recorrida apresentou contra-alegações pugnando pela manutenção da decisão recorrida (cf. Ref. Elect. 22323743).
O Ministério Público contra-alegou sustentando que deve manter-se inalterada a decisão recorrida (cf. Ref. Elect. 22438024).
*
II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil[1], é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não podendo o tribunal ad quem pronunciar-se sobre questões novas não submetidas à apreciação do Tribunal a quo - cf. António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 97.
No caso sub judice, o objecto da presente apelação está circunscrito às seguintes questões:
a) Questão prévia – admissibilidade da junção de documentos;
b) Da impugnação da matéria de facto;
c) Do regime de convívios entre a avó e a neta.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
*
II - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
Na primeira instância foram considerados como provados os seguintes factos:
1. No dia 5 de Abril de 2012 nasceu na freguesia de Campo Grande, concelho de Lisboa, C , registada na Conservatória do Registo Civil de Lisboa, constando na menção da maternidade ser filho de B e na de paternidade de Nc.
2. A requerente A é avó materna da C.
3. Os pais da C estão separados (o pai reside em Inglaterra).
4. Em 17.10.2013 foi regulado o exercício das responsabilidades parentais da menor C, nos seguintes termos: A criança fica a residir com a mãe, a quem compete o exercício exclusivo das responsabilidades parentais, o pai poderá estar com a filha sempre que quiser, combinando previamente com a mãe e o pai contribuirá com a quantia mensal de €100,00 a título de pensão de alimentos (apenso A).
5. Realizada uma conferência no dia 6.01.2020 mãe e avó materna acordaram, devidamente homologado por sentença, que:
1 - A C passará a tarde de sábado, de duas em duas semanas, com a avó materna A, indo a avó buscar a C às 16:00 horas a casa da mãe, e entrega às 21:00 horas no mesmo local.
2 - A Requerente/ avó materna poderá contactar com a neta telefonicamente, por correio electrónico ou qualquer outro meio tecnológico, sem prejuízo dos afazeres escolares e de descanso da criança.
6. Instaurado processo de promoção e protecção (apenso C) a favor da menina C por decisão proferida em 23.11.2020, determinou-se o seu arquivamento, nos seguintes termos:
“O Ministério Público instaurou a presente ação de promoção e proteção a favor da menor C, nascida em 5.04.2012, filha de Nc e B , requerendo que lhe seja aplicada uma medida de promoção e proteção adequada a prover o seu bem-estar, alegando, em síntese, que a situação da menor foi sinalizada pela avó materna por considerar que não lhe era permitido pela mãe estar com a neta, assim a criança está privada dos contatos sociais e afetivos próprios do seu desenvolvimento (27.02.2020).
Declarada aberta a instrução (2.03.2020) foi elaborado relatório social (1.06.2020).
Procedeu-se à audição da menor (12.10.2020).
Procedeu-se à audição dos pais e avó materna (19.10.2020).
O Ministério Público promove (26.10.2020) e a mãe requer (16.11.2020) o arquivamento dos autos (26.10.2020).
Os factos
Dos autos, resultam assentes os seguintes factos:
1. A menor C, nasceu em 5.04.2012 e é filha de Nc e B (Assento de Nascimento n.º ... do ano de 2012 da Conservatória do Registo Civil de Lisboa).
2. A é avó materna da menor.
3. A avó materna participou à CPCJ da Amadora que é impedida de ver a neta pela mãe, dando origem ao presente processo de promoção e proteção.
4. Em 17.10.2013 foi regulado o exercício das responsabilidades parentais da menor C, nos seguintes termos: A criança fica a residir com a mãe, a quem compete o exercício exclusivo das responsabilidades parentais, o pai poderá estar com a filha sempre que quiser, combinando previamente com a mãe e o pai contribuirá com a quantia mensal de €100,00 a título de pensão de alimentos (apenso A).
5. Em 18.02.2019 a avó materna instaurou uma ação contra os pais da C, alegando que é impedida de conviver com a neta, pedindo que se regule o convívio, tendo-se obtido uma solução consensual, em 6.01.2020 (apenso B) nos seguintes termos:
1 - A C passará a tarde de sábado, de duas em duas semanas, com a avó materna A, indo a avó buscar a C às 16:00 horas a casa da mãe, e entrega às 21:00 horas no mesmo local.
2 - A Requerente/ avó materna poderá contactar com a neta telefonicamente, por correio eletrónico ou qualquer outro meio tecnológico, sem prejuízo dos afazeres escolares e de descanso da criança.
6. A progenitora e menor viveram com a avó materna até 2018.
7. Desde janeiro de 2018 a criança reside com a mãe e o companheiro em habitação arrendada.
8. Pelo menos desde março a C não convive com a avó.
9. É intenso o conflito entre a mãe e avó materna, devido a questões patrimoniais.
10. Os pais e avó materna consideram que a criança está bem (audição de 19.10.2020).
11. A C é uma criança feliz, gosta dos amigos e da escola, afirma estar muito bem com a mãe e companheiro desta e não revela qualquer sofrimento ou mal-estar devido à falta de convívio com a avó materna (audição da menor de 12.10.2020).
12. A menor C frequenta a Escola Básica n.º 1/J.I. V, é uma aluna assídua e pontual, relaciona-se com facilidade com os pares e adultos, é afetuosa e o seu aproveitamento é muito bom, revelando empenho e motivação na realização das tarefas.
13. A mãe, encarregada de educação, é interventiva e preocupada.
Motivação da decisão de facto
Estabelece o artigo 607.º, n.º 4 do NCPC (aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06) que a decisão relativa à matéria de facto declarará quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador. Posto isto, ponderaram-se as audições realizadas (12 e 19.10.2020) resultando, no essencial, que é intenso o conflito entre a mãe e avó materna, devido a questões patrimoniais, os pais e avó materna consideram que a criança está bem, a C é uma criança feliz, gosta dos amigos e da escola, afirma estar muito bem com a mãe e companheiro desta e não revela qualquer sofrimento ou mal-estar devido à falta de convívio com a avó materna, conjugado com o teor dos documentos juntos aos auto (Assento de Nascimento n.º ... do ano de 2012 da Conservatória do Registo Civil de Lisboa; actas dos apensos A e B) e relatório social de 1.06.2020).
Motivação jurídica
Dispõe o artigo 3.º da LPCJP que a intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo. Por outro lado, define o n.º 2 do supracitado artigo, que a criança ou jovem está em perigo quando, designadamente, se encontra numa das seguintes situações: a) Está abandonada ou vive entregue a si própria; b) Sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais; c) Não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal; d) É obrigada a atividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento; e) Está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional; f) Assume comportamentos ou se entrega a atividades ou consumos que afetem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação. Por sua vez, encerrada a instrução, o Juiz decide o arquivamento do processo quando concluir que, em virtude de a situação de perigo não se comprovar ou já não subsistir, se tornou desnecessária a aplicação de qualquer medida de promoção e proteção - artigo 110.º alínea a) e 111.º, ambos da LPCJP. É o caso dos autos. Com efeito, efetuada a instrução do processo (conjunto de diligências que visam conhecer a situação da criança e do seu agregado familiar e da existência ou não da situação de perigo) apurou-se que a C é uma criança feliz, gosta dos amigos e da escola, afirma estar muito bem com a mãe e companheiro desta e não revela qualquer sofrimento ou mal-estar devido à falta de convívio com a avó materna.
Por último, parece-nos que se trata de matéria tutelar cível e não de promoção e proteção. Com efeito, é indiscutível a crescente influência avoenga (os avós têm hoje inegável legitimidade ativa para, em Tribunal, e ao abrigo do disposto no artigo 1887.º-A do Código Civil) virem requerer a marcação de um espaço de convívio com os seus netos, mesmo contra a vontade dos progenitores (na realidade, a figura dos avós tem vindo a assumir uma importância crescente na sociedade dos nossos dias: por um lado, o aumento da esperança de vida e a melhoria das condições de vida das pessoas idosas, nomeadamente, a nível económico, proporcionam a existência de uma ligação mais duradoura e mais estreita entre as gerações e, por outro, os avós mais jovens e mais disponíveis que, no passado, prestavam um apoio fundamental à família, quer em situações de normalidade, quer em situações de crise da vida familiar) devendo a questão continuar a ser apreciada no âmbito do apenso B - artigos 3.º e 6.º alíneas l) e 67.º do RGPTC aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8.09 que constituem, além de outras, uma providência tutelar cível a regulação dos convívios da criança com os ascendentes. Destarte, impõe-se concluir que a menina C não se encontra em situação de perigo para a sua segurança, formação, saúde, educação ou desenvolvimento.
Decisão
Assim sendo, determino o arquivamento do processo, após fiscalização e correição.”
7. No dia 9.12.2021 realizou-se uma perícia médico-legal Psicologia (INML) à menina C, constando do respectivo relatório, além do mais, que:
“(…) Solicitada a falar sobre o seu contexto familiar, a menor indica que “vivo com a mãe, com o padrasto e com a minha irmã (…) a mãe chama-se B, tem 33 anos, é Lojista, trabalha numa loja de artesanato (…) o padrasto chama-se IG, sei que é jardineiro pelo colete que ele usa e tem 44 anos (…) a irmã chama-se M, tem 6 anos e já está no 1º ano (…) é filha do IG” (sic), assinalando uma boa relação com os diversos elementos deste agregado. Descreve a sua mãe e o seu padrasto dizendo que “a mãe é querida, simpática, engraçada, esperta (…) ela trata-me bem (…) gosta muito de mim (…) ajuda-me em tudo (…) o padrasto é bom comigo, faz muitas brincadeiras, também é esperto e ajuda-me nos TPC” (sic). Descreve o seu comportamento dizendo que “eu às vezes porto-me mal, às vezes tento fazer as coisas bem mas no final faço mal (…) acho que é mais a mãe que castiga, proibir me de ver o tablet (…) bater-me não, nunca” (sic). Questionada sobre o seu progenitor, relata que “o meu pai chama-se Mc, não sei bem a idade dele, mas sei que ele está na Inglaterra (…) ele liga-me e falamos por telemóvel e por whatsapp (…) ele já está lá há muito tempo (…) no ano passado ele visitou-me (…) Perguntada sobre se tem contacto com a sua família paterna, afirma que “tinha só com o pai, mas agora ele não tem vindo (…) só veio uma vez (…) tenho uma avó do pai, chamo-a de avó Quinta, mas não costumo estar com ela, mas eu falo com ela” (sic). Questionada sobre a sua família materna alargada, relata que “tenho o avô Rn e a avó Ft, eles estão separados (…) o meu avô está com outra senhora que agora é minha avó, chamo ela de avó Bl (…) o avô vive em Santarém e avó Ft acho que ela vive no Cacém (…) nós vivemos na Amadora” (sic). Perguntada sobre se tem contacto com os seus avós maternos, afirma que “o avô Rn veio hoje para minha casa, é muito simpático, querido, engraçado e às vezes é desastrado (…) a avó Ft vem-me visitar às vezes na escola (…) para mim ela é uma avó como as outras e também gosto dela” (sic). Pedida para descrever a sua avó Ft, relata que “é simpática para mim, mas às vezes zanga-se comigo, porque às vezes eu faço coisas más e porto-me mal (…) a minha casa não vai, porque ela quer que eu vá para casa dela e eu não vou (…) porque ela diz que a minha mãe não me deixa ir, mas é mentira (…) eu não vou a nenhum lado sem a minha mãe e não quero ir lá sozinha (…) já fui sozinha porque eu quis, correu bem, a mãe tinha ido trabalhar (…) eu não quero ir porque estou habituada a estar com a minha mãe” (sic) Perguntada sobre a sua perceção acerca da relação entre a sua mãe e a sua avó materna, afirma que “elas não se dão muito bem (…) a avó está sempre a dizer que eu não sou feliz com a mãe, que eu tenho problemas psicológicos (…) que a mãe não me deixa ir vê-la, que eu choro muito (…) diz mentiras e isso” (sic). Questionada sobre se tem algum acompanhamento psicológico, afirma que “tenho uma psicóloga que vai à escola para falar dos sentimentos, ela vai desde o 3º ano (…) a turma toda fala com ela (…) falamos sobre sentimentos (…) eu sinto-me feliz (…) sou feliz em todo lado” (sic). Perguntada sobre se gostaria de mudar algo na sua vida, afirma que “mudava tudo, com mais cores, mais alegria (…) porque eu sou muito feliz e gosto de ver as pessoas felizes (…) mudava uma coisa, que a minha avó mudasse, porque não gosto quando ela diz mentiras e depois a minha mãe chora com as mentiras” (sic). A progenitora afirma que o que move a minha mãe é ter controlo sobre a minha vida e usar a menina para fazer esse jogo, fez isso comigo em criança” (sic). Relativamente ao desenrolar dos presentes autos, afirma que “já houve uma audiência e foi estabelecido visitas provisórias em que a C foi (…) mas depois meteu-se a pandemia e outras situações graves que a avó andou a alegar, falsas alegações, recaiu sobre ela processo de promoção e proteção que foi arquivado e onde ela foi a tribunal e viram que é uma criança saudável e tranquila” (sic). Acrescenta que “ela quer visitas e levar a menina, eu não me sinto confortável porque da forma como ela extremou a situação em lhe confiar a minha filha sozinha (…) no entanto, eu converso com a C sobre isso, que eu e a avó temos estado aborrecidas, mas que não tem nada a ver com ela e digo-lhe que se ela quer ir visitar a avó que pode ir (…) a C diz que não quer ir, não tem nada contra a avó, mas isto tem-se vindo a arrastar, depois a avó vai para a porta da escola fazer-lhe exigências (…) ela não manifesta vontade para ir a avó e que se for quer ir comigo” (sic).
C apresentou à data do exame um humor eutímico (normal), com uma postura adequada e colaborante, perante o processo de avaliação pericial. A menor exibiu num discurso espontâneo, compreensível e adequado para a sua idade, não se tendo observado qualquer indicador de eventual desajustamento emocional, comportamental ou de qualquer natureza do seu funcionamento psicológico em geral. Resposta aos quesitos solicitados que visavam definir e interpretar o real interesse da criança, suas necessidades e aspirações, a sua inserção social e familiar, o seu relacionamento com a mãe e com a avó materna e imagem destas, permitindo conhecer a personalidade e o caracter destas e suas motivações, somos do parecer que a menor se encontra num status quo equilibrado, estável, adaptado e funcional em termos emocionais e psicológicos em geral, assinalando bons relacionamentos dentro do seu seio familiar. Nesse sentido, a existir uma eventual obrigatoriedade de um regime de visitas que não é desejado pela menor relativamente à sua avó materna não se afigura como uma medida que possa salvaguardar a estabilidade e o desenvolvimento psicológico e emocional da menor, muito pelo contrário, provavelmente acarretará um cada vez mais progressivo afastamento entre a menor e sua avó, pois se a menor consegue reconhecer a assinalar algumas dinâmicas e aspetos positivos inerentes à relação com a sua avó materna, uma imposição rígida e indesejada irá ser contra produtivo à manutenção desses laços.”
8. Em 10.03.2019 o pai da C encontrava-se em cumprimento de pena de prisão (E.P. de Alcoentre) e a avó escreveu-lhe uma carta, onde consta, além do mais, que:
“(…) preciso de falar contigo, como sabes a C já não vive connosco … vou te pedir o favor de não dizer à B que quero falar contigo, senão ela fica furiosa e não me deixa ver a C, como não mora aqui foge-me do controle (fls. 130/1).”
9. A requerida B e companheiro IG deduziram acusação particular contra a requerente, sua mãe, A, requerendo o seu julgamento, pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de quatro crimes de difamação, todos p. e p. pelo artigo 180.º do C. Penal, dois crimes de injúrias, ambos p. e p. pelo artigo 181º do C. Penal, dois crimes de denúncia caluniosa, ambos p. e p. pelo artigo 365º, nº 1, do C. Penal, e um crime de perseguição, p. e p. pelo artigo 154º-A do C. Penal.
O Ministério Público declarou acompanhar a acusação.
10. Proferida sentença, em 26.11.2021, transitada em julgado em 10.01.222, julgou-se a acusação particular improcedente e absolveu-se a arguida A dos crimes por que vinha acusada (Proc. 4442/19.0T9AMD).
11. A avó, progenitora e criança viveram desde o nascimento da C em casa da avó materna e até Janeiro de 2018.
12. Em 2018, a mãe, o companheiro IG e menina C, saíram da casa da avó materna e foram viver em casa arrendada.
13. Quando viviam juntos, a avó materna e o marido Ls ajudavam a tomar conta da C e existia uma boa relação entre todos.
14. Pelo menos desde Março de 2020 a C não convive com a avó e irmãos gémeos da mãe (13 anos).
15. É intenso o conflito entre a mãe e avó materna, devido a questões patrimoniais.
16. A C é uma criança feliz, gosta dos amigos e da escola, afirma estar muito bem com a mãe e companheiro desta e não revela qualquer sofrimento ou mal-estar devido à falta de convívio com a avó materna (audição da menor de 12.10.2020 – apenso C) (este ponto foi renumerado correspondendo ao segundo ponto 15., sendo que não existia ponto 16.).
17. A menor C frequenta a Escola Básica, é uma aluna assídua e pontual, relaciona-se com facilidade com os pares e adultos, é afectuosa e o seu aproveitamento é muito bom, revelando empenho e motivação na realização das tarefas.
18. A mãe, encarregada de educação, é interventiva e preocupada.
19. A avó vai ver a neta, através do gradeamento, à escola.
20. A C gosta de ver a avó e, através do gradeamento da escola da escola, envia-lhe beijinhos e desenha corações com os dedos.
21. A mãe desligou os contactos telefónicos e não atende nenhum familiar materno.
22. A C gosta da avó.
23. No dia 1.06.2022 realizou-se uma conferência e obteve-se um acordo nos seguintes termos: no próximo sábado (04-06-2022) a C estará com a avó materna, os irmãos gémeos da mãe, e a mãe no Parque Central da Amadora das 16:00 horas até às 18:00 horas.
24. A mãe não compareceu, desmarcou o convívio agendado, alegando que a C tinha de ficar em casa a estudar para os testes.
*
O Tribunal recorrido deu como não provado o seguinte:
- que a mãe impõe à C que o IG é o pai desta;
-  que a menor sofre imenso com a separação da avó materna;
- que a C é uma criança traumatizada com rupturas causadas pelo tipo de vida amorosa da requerida.
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3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
3.2.1 Questão prévia – da admissão dos documentos juntos com as alegações
A apelante junta com as suas alegações quatro documentos que constituem uma certidão do casamento celebrado entre IG, companheiro da requerida, e FV e mensagens de correio electrónico trocadas entre a requerida e a requerente e o companheiro desta entre os dias 24 e 28 de Outubro de 2022 referindo, tão-somente, para justificar a sua junção neste momento, que esta se tornou “necessária nos termos do disposto da parte final do n.º 1 do art.º 651º do CPC”.
A recorrida nada disse quanto à junção de tais documentos.
Os momentos normais para a junção dos documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção e da defesa são: 1) com o articulado respectivo (cf. art.º 423º, n.º 1 do CPC); 2) até ao encerramento da discussão em 1ª instância com multa (ou sem ela, se feita a prova da indisponibilidade no primeiro momento) – cf. n.º 2 do art.º 423º.
Depois do encerramento da causa, a junção de documentos apenas é admissível para aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior (art.º 425º do CPC).
Dispõe o art.º 651º, n.º 1 do CPC: “As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.”
Por sua vez, o art.º 425º do CPC estatui que “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.”
Da conjugação destas normas resulta que a junção de documentos em sede de recurso (junção que é considerada apenas a título excepcional) depende da alegação e da prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações:
a) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso, valendo aqui a remissão do artigo 651º, n.º 1 para o artigo 425º;
b) o ter o julgamento da primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional, que até aí – até ao julgamento em primeira instância – se mostrava desfasada do objecto da acção ou inútil relativamente a este.
A impossibilidade de apresentação anterior legitima as partes a utilizar no recurso, juntando-os com a motivação deste, documentos cuja apresentação não tenha sido possível até esse momento, ou seja, até ao julgamento em primeira instância, o que pressupõe aquilo que se refere como superveniência objectiva ou subjectiva do documento pretendido juntar, impondo-se que a parte demonstre a referida superveniência – cf. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 2018, pág. 313; cf. acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 5-05-2016, relator Manuel Bargado, processo n.º 788/13.9TBSTR.E1[2].
Quanto à impossibilidade de apresentação anterior, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre referem que “Constituem exemplos de impossibilidade de apresentação (n.ºs 2 e 3) o de o documento se encontrar em poder da parte ou de terceiro, que, apesar de lhe ser feita a notificação nos termos do art.º 429 ou 432, só posteriormente o disponibiliza, de a certidão de documento arquivado em notário ou outra repartição pública, atempadamente requerida, só posteriormente ser emitida [superveniência objectiva] ou de a parte só posteriormente ter conhecimento da existência do documento [superveniência subjectiva]. Acresce o caso em que o documento, com que se visa provar um facto já ocorrido e alegado, só posteriormente se tenha formado (contendo, por exemplo, uma declaração confessória extrajudicial desse facto).” – cf. Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª edição, pp. 240 e 241.
No que tange à necessidade da junção em virtude do julgamento da primeira instância “a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da ação (ter perdido, quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em primeira instância. O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objecto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida» - cf. Antunes Varela et al, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pp. 533-534.
Como tal, não é admissível a junção, com a alegação de recurso, de um documento potencialmente útil à causa ab initio e não apenas após a sentença, ou seja, não é admissível a junção de documentos para provar factos que já antes da decisão a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado.
Por outro lado, uma vez que a junção de documentos tem em vista a prova de factos que hajam sido alegados, a possibilidade de junção de documentos, em sede de recurso, não poderá ter como objectivo ou finalidade a prova de factos que não hajam sido alegados. “Se os documentos visam a prova de factos alegados apenas no recurso e se, neste, o tribunal ad quem não pode atender a esses factos, não se vê qualquer utilidade na junção dos documentos com o recurso.” – cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-09-2010, processo n.º 304/08.4TTPRT.P1 disponível em www.colectaneadejurisprudencia.com.
Na situação em apreço, é patente que o documento oferecido pela apelante que constitui a certidão de casamento não é objectivamente superveniente, pois que foi produzido antes do encerramento da discussão em 1ª instância. Por outro lado, porque diz respeito ao casamento do companheiro da requerida, por diversas vezes alegado e mencionado na profusão de requerimentos que pela requerente foram remetidos aos autos, não constitui, seguramente, um documento subjectivamente superveniente.
Logo, a admissibilidade da sua junção só poderá fundar-se no facto de a apresentação ser necessária por virtude do julgamento proferido na 1ª instância – cf. art.º 651º, n.º 1, segunda parte do CPC.
Alguma doutrina sustenta que a junção do documento será admissível sempre que a decisão se baseie numa norma jurídica com cuja aplicação as partes não tivessem contado.
De acordo com outra, a admissibilidade da junção dos documentos prevista na norma referida destina-se a contraditar, pelo documento, meios probatórios introduzidos de surpresa no processo, que venham a pesar na decisão, que determinem, embora não necessariamente de forma exclusiva, o seu sentido; ou seja, considerando a amplitude do Tribunal no tocante à indagação e interpretação das regras de direito, a junção é admissível sempre que a aplicação da norma jurídica com que as partes justificadamente não contavam seja o reflexo da introdução no processo, pelo juiz, de um meio de prova com que as partes foram, inesperadamente, surpreendidas (cf. art.º 5, n.º 3 do CPC). Quando isso suceda, a junção será sempre possível; se, pelo contrário, a aplicação, pela sentença, de norma com que as partes não contavam, não resulta da consideração de um novo meio de prova, a apresentação deve ter-se por inadmissível.
Uma outra doutrina defende que o legislador quis cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objecto da condenação, se tornou necessário fazer a prova de um facto ou factos com cuja relevância a parte não podia, razoavelmente, contar antes do proferimento da decisão.
Um ponto comum em todas estas orientações é o de que aquela previsão não abrange o caso de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da causa e visar, com esse fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e de deveria ter oferecido na 1ª instância – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20-01-2015, processo n.º 2996/12.0TBFIG.C1.
No caso em apreço, verifica-se que a situação que determinou a junção da certidão de casamento do actual companheiro da requerida nada tem que ver com qualquer surpresa que a apelante possa manifestar em relação à decisão recorrida, nem tão-pouco nesta foram convocados meios de prova com que a aquela não pudesse contar ou foram aplicadas normas jurídicas que não tenham sido ponderadas ao longo de todo o processo.
Por outro lado, quanto às mensagens de correio electrónico importa notar que são posteriores à audiência de julgamento e, bem assim, à data da prolação da sentença, representando troca de correspondência electrónica ocorrida entre a requerente e o seu companheiro e a requerida já depois de encerrada a discussão em 1ª instância.
Não se pode deixar de ter presente a natureza excepcional da admissão de documentos nesta sede, uma vez que a reapreciação das decisões deve ser efectuada em função dos meios de prova constantes dos autos no momento em que foram proferidas.
Além disso, porque o recurso se destina a controlar a decisão impugnada, apenas devem ser admitidos documentos que se reportem a factos supervenientes que sejam estranhos ao objecto da lide ou que se destinem a pôr-lhe termo, ou ainda, em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, sejam documentos que por si só tenham força probatória suficiente para destruir a prova em que a decisão da primeira instância assentou, nos termos do art.º 662º, n.º 1 do CPC – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23-02-2017, processo n.º 1954/15.8T8STR-A.E1.
Quer porque se reportam a factos ocorridos posteriormente à audiência de julgamento, quer porque tais documentos não têm, por si só, face à profusão de prova produzida, incluindo prova pericial, a virtualidade de arredar a sua relevância, não estão reunidos os pressupostos para a sua admissão neste momento.
Acresce que tais mensagens correspondem a factos inovatoriamente introduzidos nos autos em sede de recurso e ainda que se pretendesse fazer apelo à verificação de factos modificativos ou extintivos supervenientes, sempre não poderiam aqui ser considerados (eventualmente, apenas, para posterior alteração da decisão, nos termos do art.º 988º, n.º 1 do CPC).
Na verdade, apesar da dissonância existente na doutrina e na jurisprudência quanto à possibilidade de alegação e conhecimento em recurso de factos supervenientes[3], não se pode deixar de ter presente que, não obstante a remissão efectuada pelo art. 663º, n.º 2 do CPC para o art.º 611º do mesmo diploma legal, que prevê a consideração dos factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da acção, tal sucede tendo por referência o momento do encerramento da discussão, ou seja, a decisão deve corresponder à situação existente no momento do encerramento da discussão na 1ª instância, não depois – cf. neste sentido, Rui Pinto, op. cit., pág. 345.
Com tais fundamentos, indefere-se a junção aos autos dos documentos apresentados com as alegações da apelante.
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3.2.2. Da Impugnação da Matéria de Facto
Após discorrer sobre as razões que entende justificarem a alteração do regime de convívios entre a avó e a neta fixado na decisão recorrida, a apelante introduz, já na parte final das suas alegações, um «capítulo», com início no artigo 58º, que intitula “Da impugnação da matéria de facto”, referindo apenas que o Tribunal recorrido deveria ter considerado provada a factualidade que passa a descrever, remetendo para o conteúdo de documentos e dizendo que tais factos resultam dos articulados das partes, da conjugação da prova documental e do depoimento das testemunhas, reproduzindo alguns excertos de depoimentos apenas quanto a dois dos factos que pretende que sejam dados como provados.
A recorrida, nas suas contra-alegações, limitou-se a pugnar pela manutenção da decisão sobre a matéria de facto.
Dispõe o art.º 640º, n.º 1 do CPC:
“Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
À luz do normativo transcrito, afere-se que em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
Fundando-se a impugnação em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados (existem três tipos de meios de prova: os que constam do próprio processo – documentos ou confissões reduzidas a escrito -; os que nele ficaram registados por escritos – depoimentos antecipadamente prestados ou prestados por carta, mas que não foi possível gravar -; os que foram oralmente produzidos perante o tribunal ou por carta e que ficaram gravados em sistema áudio ou vídeo), o recorrente deve especificar, na motivação, aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
O recorrente deve consignar, na motivação do recurso, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, o que se exige no contexto do ónus de alegação, de modo a evitar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.
De notar que a exigência de síntese final exerce a função de confrontar o recorrido com o ónus de contra-alegação, no exercício do contraditório, evitando a formação de dúvidas sobre o que realmente pretende o recorrente – cf. António Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 142, nota 228.
António Abrantes Geraldes pugna no sentido de que “A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, n.º 4, e 641º, n.º 2, al. B));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640º, n.º 1, al. a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v. g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.” – cf. op. cit., 2016, 3ª edição, pág. 142.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015, processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1 refere-se, a este propósito:
“[…] a exigência da especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio tem por função delimitar o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, serve sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no n.º 1 do artigo 662.º do CPC. É, pois, em vista dessa função, no tocante à decisão de facto, que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação com a sanção da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afectada, nos termos do artigo 640.º, n.º 1, proémio, e n.º 2, alínea a), do CPC. Não sofre, pois, qualquer dúvida que a falta de especificação dos requisitos enunciados no n.º 1 do referido artigo 640.º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada.”
Num outro acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-10-2015, processo n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1 aduz-se ser “possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação []; e um ónus secundário – tendente, não tanto a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida – que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização das passagens da gravação relevantes.”
E o mesmo Tribunal afirmou no acórdão de 31-5-2016, processo n.º 1572/12.2TBABT.E1.S1 que “[] do art.º 640º nº 1 al. b) não resulta que a discriminação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou da gravação realizada tenha que ser feita exclusiva e unicamente nas conclusões. Tem sim, essa especificação de ser efectuada nas alegações. Nas conclusões deve ser incluída a questão atinente à impugnação da matéria de facto, ou seja, aí deve introduzir-se, sinteticamente “os fundamentos por que pede a alteração (ou anulação) da decisão” (art.º 639º nº 1), o que servirá para o recorrente afirmar que matéria de facto pretende ver reapreciada, indicando os pontos concretos que considera como incorrectamente julgados, face aos meios probatórios que indica nas alegações.”
Neste caso, a recorrente, sem qualquer tipo de introdução ou identificação quanto à oportuna alegação dos factos que entende que a 1ª instância deveria ter dado como provados, limita-se a remeter, quando à maioria deles, para o conteúdo dos articulados[4] e para o conjunto da prova documental e testemunhal, sem efectuar qualquer apreciação crítica desta prova e sequer sem indicar em que documentos, em concreto, se baseia ou em que depoimento se louva para sustentar que tais factos devem ser dados como provados.
Como tal, importa aferir se a impugnação da decisão da matéria de facto deve ser admitida ou rejeitada liminarmente por referência a cada um dos novos factos que a recorrente pretende que passem a integrar o elenco factual provado.
Quanto ao ponto A que identifica, com base na sentença proferida no processo-crime n.º 4442/19.0T9AMD referido no ponto 10. dos factos provados, pretende a apelante que se introduza um novo ponto que corresponde à transcrição parcial da motivação de facto vertida nessa decisão.
A sentença em causa encontra-se junta aos autos, conforme ofício de 17 de Janeiro de 2022 com a Ref. Elect. 20249019.
Ora, os documentos não são factos mas meros meios de prova de factos – cf. art.ºs 362º e seguintes do Código Civil e art.ºs 410º e 423º do CPC - cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26-03-2015, processo n.º 82170/12.2YIPRT.G1.
A declaração do juiz sobre os factos que julga provados e não provados é sobre factos (cf. art.º 607º, n.º 4 do CPC), e não sobre outra coisa qualquer que não sejam factos.
Processualmente é tão errado dar como reproduzidos documentos que constem do processo, como reproduzi-los integralmente sem indicar os factos que esses documentos comprovam.
“O facto provado por documento não corresponde ao próprio documento. Em vez de o juiz se limitar a “dar por reproduzido o teor do documento X”, importa que extracte do mesmo o segmento ou segmentos que sejam concretamente relevantes, assinalando, assim, o específico meio de prova em que se baseou. Imposição que obviamente colide com a pura reprodução de todo o documento, mesmo dos segmentos que não são de modo algum determinantes para a apreciação do caso.” – António Abrantes Geraldes, Sentença Cível, Janeiro de 2014, pág. 19, nota 26[5].
Com efeito, “os documentos não são mais do que um meio de prova destinados a demonstrar a realidade de certos factos; os documentos não são mais do que escritos que corporizam declarações de ciência, pelo que na descrição da matéria de facto provada só há que consignar os factos eventualmente provados por esses documentos. Em suma: a mera remissão para documentos tem apenas o alcance de dar como provada a existência desses documentos, meios de prova, e não o de dar como provada a existência de factos que com base neles se possam considerar como provados - dar como reproduzido um documento significa apenas dar como provado que ele se encontra nos autos.” – cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-09-2012, processo n.º 1011/08.3TTVFR.P1.
Assim, não cumpria ao Tribunal a quo verter na matéria de facto provada ou não provada o conteúdo da sentença em referência e menos ainda uma parte da motivação da matéria de facto que aborda o depoimento prestado por uma das testemunhas e que se reporta a factos atinentes ao actual companheiro da requerida, que nenhuma relevância têm para a apreciação daquilo que aqui cumpre apreciar.
Improcede, assim, nesta parte, a pretensão da recorrente de ver aditado um novo ponto à matéria de facto com a transcrição de parte da sentença mencionada.
Pretende a recorrente aditar ainda a seguinte enunciação fáctica:
B- Ainda hoje, IG (44 anos) é casado com FV (90 anos), cfr. resulta da consulta da certidão de casamento, com o código de Acesso: 2122-8935-1935, válido até 22-05-2023, cuja junção foi requerida.
C- A partir do final do ano de 2018, a Requerida passou a impedir os convívios e contactos entre a C e a avó;
D- A Requerida privou a filha dos convívios com a avó injustificadamente;
E- Sem qualquer motivo, a partir do final de 2018, a Requerida passou a impedir os convívios e contactos entre a C e todos os restantes elementos da família materna, incluindo os tios - gémeos menores, 4 anos mais velhos que a C; e o primo Tomás, da mesma idade daqueles;
F- Na data e hora do convívio agendado para 04-06-2022 (Pontos 23 e 24 da matéria assente), a mãe foi vista com a C na Primark.
O descrito sob as letras C e D não corresponde propriamente a factos, enquanto realidade susceptível de ser apreendida, assumindo antes a feição de meros juízos conclusivos, que se hão-de extrair das realidades fácticas que hajam sido apuradas.
O art.º 607º, n.º 4 do CPC determina que devem constar da fundamentação da sentença os factos – e apenas os factos – julgados provados e não provados, o que significa que deve ser suprimida toda a matéria deles constante susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, conforme vem sendo aceite, engloba, por analogia, juízos de valor ou conclusivos – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-05-2012, processo n.º 240/10.4TTLMG.P1.S1[6]; no mesmo sentido, acórdãos do mesmo Tribunal de 23-09-2009, processo n.º 238/06.7TTBGR.S1 e de 7-05-2009, processo n.º 08S3441.
Como é sabido, nem sempre é fácil distinguir entre o que é matéria de facto e matéria de direito, sendo, contudo, consensual, na doutrina e na jurisprudência, que, para efeitos processuais, tudo o que respeita ao apuramento de ocorrências da vida real é questão de facto e é questão de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7-05-2009, processo n.º 08S3441, no “âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis: os acontecimentos externos (realidades do mundo exterior) e os acontecimentos internos (realidades psíquicas ou emocionais do indivíduo), sendo indiferente que o respectivo conhecimento se atinja directamente pelos sentidos ou se alcance através das regras da experiência (juízos empíricos)” e ainda, enquanto realidades susceptíveis de averiguação e demonstração, os juízos qualificativos de fenómenos naturais ou provocados por pessoas, desde que, envolvendo embora uma apreciação segundo as regras da experiência, não decorram da interpretação e aplicação de regras de direito e não contenham, em si, uma valoração jurídica que, de algum modo, represente o sentido da solução final do litígio.”
Os pontos em referência, embora não contenham expressa valoração jurídica e possam ainda ser tidos como uma asserção/síntese passível de extrair da prova de outros factos, certo é que contêm afirmações conclusivas que não têm que constar do elenco factual apurado, devendo antes ser extraídas a partir deste.
Aliás, nem se percebe a utilidade do aditamento visado, tendo em conta que sob os pontos 14. e 21. ficou demonstrado que, pelo menos desde Março de 2020, a C não convive com a avó e os irmãos gémeos da mãe e que esta desligou os contactos telefónicos e não atende nenhum familiar materno, dados que por si são pertinentes para a decisão que cumpre proferir.
Por outro lado, sempre se imporia a rejeição da impugnação da matéria de facto nesta parte, porquanto a apelante não deu cumprimento ao ónus impugnatório que sobre si recaía, não tendo indicado, em concreto, quais os meios de prova em que se louva para pretender dar como provados esses enunciados, remetendo singelamente para o conjunto da prova produzida, abstendo-se de efectuar qualquer ponderação crítica da apreciação da prova por parte para fundamentar a pretensão de revisão da decisão de facto por parte desta Relação.
Assim, quanto a estas alíneas não há que apreciar da questão suscitada.
No que diz respeito ao descrito sob as letras B, E e F impõe-se concluir também pela rejeição da apreciação da revisão da matéria de facto pretendida, tendo em conta que o direito à impugnação da decisão de facto não subsiste por si, mas assume um carácter instrumental face à decisão de mérito do pleito.
Deste modo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for(em) insusceptível(veis) de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27-05-2014, processo n.º 1024/12.0T2AVR.C1– “Se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for irrelevante para a solução da questão de direito e para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente destituído de qualquer eficácia, por não interferir com a solução de direito encontrada e com a decisão tomada”, situação que, diga-se, sempre se verificaria no caso presente.
Com efeito, está em causa nos autos o estabelecimento de um regime de convívios entre a requerente, avó, e a criança C, sua neta, sendo requeridos os progenitores desta.
Ressalta à abundância dos autos o conflito existente entre a requerente e a requerida, sua filha e mãe da C, e a incapacidade que ambas têm revelado no sentido de alcançarem um entendimento exequível sobre as circunstâncias e condições logísticas em que os encontros entre a avó e a neta possam ter lugar.
Assim, para a solução a encontrar é irrelevante saber o estado civil do companheiro actual da requerida[7], como também não releva a circunstância de a requerida impedir o convívio com tios e primos, pois do que se trata é do convívio com a sua ascendente, a avó aqui requerente, sendo evidente, também, que no contexto litigioso que marca a relação entre a avó e a progenitora, apurar se esta foi vista com a filha num centro comercial no mesmo dia em que deveria ter assegurado a visita da criança à avó, que desmarcou (cf. pontos 23. e 24.), é inócuo ou despiciendo para aquilo que aos autos interessa e que é determinar, de acordo com o interesse da C, se e em que termos devem ser assegurados os convívios com a avó.
Com tais fundamentos, rejeita-se, também nesta parte, a apreciação da impugnação da matéria de facto.
*
3.2.3. Do regime de convívios entre a avó e a neta
Veio a requerente deduzir a presente acção tutelar comum visando obter uma regulação para o convívio da C consigo, sua avó materna, alegando que desde que nasceu e até aos seis anos, acompanhou e cuidou da neta, que residia com a mãe na sua casa, sendo que, tendo ocorrido desentendimentos entre ela e a progenitora, esta saiu de sua casa, com a filha e o companheiro, e a partir de então a requerida impede-a de estar com a criança.
A requerida deduziu oposição referindo que face ao comportamento da avó e às «ameaças» que esta dirige à C, dizendo que irá chamar a polícia para que possa estar com ela e transmitindo-lhe uma má imagem da mãe, entende que os convívios, a existirem, têm de ter lugar na sua presença.
Após as diligências instrutórias supra mencionadas no relatório e realizada a audiência de julgamento, foi proferida decisão que determinou que a menina C pode conviver com a avó materna A e irmãos gémeos da mãe, em casa da mãe e acompanhada por esta, no 2.º e 4.º sábado de cada mês, das 16 às 19 horas, podendo a avó poderá falar com a neta C, por telemóvel, à segunda e quinta-feira, entre as 19 e as 20 horas, o que fundamentou do seguinte modo:
“O artigo 1887.º-A do Código Civil preceitua que os pais não podem injustificadamente privar os filhos do convívio com os irmãos e ascendentes. Independentemente de se saber se trata ou não, de haver um direito de visita ou se é apenas um direito ao convívio, há que interpretar com cuidado este preceito, pois do mesmo não resulta nem pode resultar que este direito é idêntico ou tem o mesmo conteúdo dos direitos e deveres dos pais sobre os filhos. Bem pelo contrário, do dito preceito apenas resulta que as crianças podem e devem ter e manter laços familiares, designadamente com os avós, quer haja ou não separação dos pais e independentemente da regulação do exercício das responsabilidades parentais sobre os menores, mas sem que daí advenham limitações e muito menos complicações a este exercício, que se pretende exercido de forma responsável, na sua plenitude e até preferencialmente com a colaboração e o auxílio dos avós. Donde resulta que aos pais de uma criança é admitida a possibilidade de obstarem a esse tipo de convívio familiar caso o mesmo se revele prejudicial para a criança, mas apenas em tais casos.
Com interesse, apurou-se, além do mais, que:
Quando viviam juntos, a avó materna e o marido Ls ajudavam a tomar conta da C e existia uma boa relação entre todos.
Pelo menos desde março de 2020 a C não convive com a avó e irmãos gémeos da mãe (13 anos).
É intenso o conflito entre a mãe e avó materna, devido a questões patrimoniais.
A avó vai ver a neta, através do gradeamento, à escola.
A C gosta de ver a avó e, através do gradeamento da escola da escola, envia-lhe beijinhos e desenha corações com os dedos.
A mãe desligou os contatos telefónicos e não atende a avó materna.
A C gosta da avó.
Isto posto e perante o intenso conflito entre a avó materna e a mãe (conflito esse escolhido pelos adultos e ao qual a menina C deveria ser poupada) há neste momento que criar condições para que as visitas aconteçam, que não podem ser introduzidas de forma intempestiva, com o risco de serem geradoras de forte angústia na criança. Desta forma, parece-nos prudente que o contacto com a avó materna seja efetuado de forma progressiva, ou seja, os encontros devem ocorrer inicialmente num ambiente que seja familiar à criança e na presença de uma figura securizante à qual esteja vinculada. Com efeito, é fundamental não esquecer que as visitas visam sobretudo a satisfação do interesse da menina C. Deste modo, enquanto a relação entre os adultos se mantiver no patamar do conflito que os autos evidenciam, dificilmente haverá pacificação na relação familiar e melhoria da qualidade dessa relação. Com efeito, só após o ultrapassar, ainda que eventualmente não na sua completude, do clima hostil e de constante tensão entre a avó requerente e a progenitora requerida, no mútuo respeito pela posição e promoção dos interesses da menina C, é que os convívios poderão voltar a ser gratificantes e sadios para a criança, sem estarem inquinados ou maculados pela perceção de um constante, permanente e latente conflito entre a mãe e a avó, que a não obrigue a uma escolha de lealdades, que a não faça sentir-se insegura, que não atinja a sua livre afetividade e que seja capaz de salvaguardar a sua saúde emocional – Ac. TRG de 7.04.2022 Juíza Relatora Maria Cristina Ferreira.
Assim, entende-se que a menina C conviver com a avó materna e irmãos gémeos da mãe, em casa e acompanhada da mãe, no 2.º e 4.º sábado de cada mês, das 16:00 horas às 19:00 horas, e contactos telefónicos bi-semanais, parece-nos um regime adequado não comprometendo a segurança, estabilidade e bem-estar da criança, respeitando o único critério e o limite último de qualquer decisão nesta matéria, o do superior interesse da menina C.
Com efeito, face à enorme e intensa conflitualidade que existe entre a mãe e avó materna, fixar um amplo regime de visitas à avó não é, neste momento, salutar para um harmonioso e pacífico desenvolvimento da criança, porquanto esta reaproximação não se faz com movimentos pendulares, mas com posições de equilíbrio e sustentadas no tempo. Só depois de um período de adaptação (cuja duração não podemos prever face às características particulares do caso) e dependendo sempre da reação da criança à nova situação, se poderão programar outro tipo de visitas.
Apurou-se, igualmente, que a avó materna escreveu uma carta ao pai da C (em 10.03.2019 quando se encontrava em cumprimento de pena de prisão no E.P. de Alcoentre) onde consta, além do mais, que: (…) preciso de falar contigo, como sabes a C já não vive connosco … vou te pedir o favor de não dizer à B que quero falar contigo, senão ela fica furiosa e não me deixa ver a C, como não mora aqui foge-me do controle.
Ora, a menina C está entregue à guarda e cuidados da mãe, a quem cabe o exercício das responsabilidades parentais, o que tem vindo a cumprir. Ora, para que esta mãe (ou qualquer outra) possa cumprir as suas funções, em pleno e de forma responsável, tem de ter condições para o efeito e não limites ou barreiras externas à sua vontade que obstem a esse exercício ou que não lhe permitam assumir e exercer plenamente essas ditas funções, muito especialmente quando essa função é predominantemente de autoridade e de disciplina em relação à filha. Ora, sabendo-se que à avó não cumpre velar para que assim suceda, nem ela está pessoal e habitualmente, vocacionada ou preparada para exercer um poder disciplinador, formativo e de guarda da neta, antes lhe cabe um papel afetivo e lúdico, satisfazendo as necessidades emocionais da neta. Concluindo, não cabe aos avós um direito para além do convívio, isto é, estes são alheios ao poder-dever de guarda e de educação dos netos, quando este caiba aos pais da criança.
Por último, também se pode afirmar que, neste mundo complexo em que os tribunais são chamados, cada vez mais, a resolver situações que a sociedade, com o bom senso e os saberes adquiridos, devia saber evitar, nada se compõe convenientemente, apenas se remedeia – Ac. TRP de 30.05.2018, Juíza Relatora Ana Lucinda Cabral.”
A recorrente insurge-se contra o regime de convívios fixado argumentando que a requerida tudo tem feito para impedir os contactos com a neta, obstaculizando o andamento do processo e impugnou o resultado da perícia de avaliação psicológica efectuada à C, por a progenitora ter estado presente durante a observação e entrevista, levando a que as declarações da menor não tenham sido prestadas de forma livre e espontânea, atenta a manipulação da requerida, pelo que o Tribunal não poderia ter considerado o respectivo resultado.
Mais refere que a requerida não tem qualquer intenção de promover ou permitir os convívios e não aceita o regime que decorra num ambiente “presidiário”, por não ser benéfico para a neta, propondo como razoável que a criança possa estar na sua companhia num fim-de-semana de 3 em 3 semanas ou um dia de 15 em 15 dias, com possibilidade de passar uma semana de férias no Verão.
No que ao resultado da perícia diz respeito surge algo deslocada a impugnação do seu valor probatório no contexto da apreciação jurídica da causa, sem que, com base nisso, se tenha pretendido infirmar qualquer um dos factos apurados, mas, ao que se depreende, visando afastar a relevância das suas conclusões para a consideração da posição assumida pela própria criança.
O relatório da perícia médico-legal no âmbito da psicologia – relatório psicológico – atinente à avaliação efectuada pelo Instituto de Medicina Legal à C, com data de 9 de Dezembro de 2021, foi remetido aos autos em 18 de Janeiro de 2022 e notificado às partes por ofício com certificação Citius dessa mesma data.
No seu requerimento de 31 de Janeiro de 2022, a apelante propugnou pela desconsideração do resultado pericial, invocando, precisamente, a presença da progenitora no decurso da avaliação como factor inquinador da sua valia probatória, mas sem que tenha apresentado qualquer reclamação ou requerido a realização de segunda perícia, nos termos do disposto nos art.ºs 485º e 487º do CPC.
Conforme dispõe o art.º 388º do Código Civil, “a prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuam, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial”.
A prova pericial, no caso exame médico-legal, visa a percepção indiciária de factos por inspecção de pessoas, a ter lugar por intermédio do perito, enquanto pessoa idónea para alcançar a plena apreensão da prova face aos seus conhecimentos especializados.
O perito carreia para os autos não apenas a perspectiva de factos, mas também a apreciação ou a sua valoração dos factos, pois que é uma pessoa qualificada que exerce a sua actividade sobre dados técnicos, sobre matéria de natureza especial, pelo que com os seus específicos conhecimentos faculta ao juiz critérios de valoração ou apreciação dos factos, juízo de valor, que assenta na sua cultura especial e na sua experiência técnica.
Como refere Luís Filipe Pires de Sousa[8], o “traço definidor da prova pericial é, de facto, o de se chamar ao processo alguém que tem conhecimentos especializados em determinados aspectos de uma ciência ou arte para auxiliar o julgador, facultando-lhe informações sobre máximas de experiência técnica que o julgador não possui e que são relevantes para a percepção e apreciação dos factos controvertidos. Em regra, além de facultar ao julgador o conhecimento dessas máximas de experiência técnica, o perito veicula a ilação concreta que se justifica no processo, construída partir de tais máximas da experiência”.
A perícia tem como finalidade auxiliar o julgador na percepção ou apreciação dos factos a que há-de ser aplicado o direito, sempre que sejam exigidos conhecimentos especiais que só os peritos possuem. Embora o relatório pericial esteja fundamentado em conhecimentos especiais que o juiz não possui, é este que tem o ónus de decidir sobre a realidade dos factos a que deve aplicar o direito. Em termos valorativos, os exames periciais configuram elementos meramente informativos, de modo que, do ponto de vista da juridicidade, cabe sempre ao julgador a valoração definitiva dos factos pericialmente apreciados, conjuntamente com as demais provas.
No entanto, o juízo técnico e científico inerente à prova pericial presume-se, à partida, subtraído à livre apreciação do julgador. O julgador está cingido ao juízo pericial e sempre que dele divergir deve fundamentar esse afastamento, exigindo-se um acrescido dever de fundamentação.
Significa isto que as respostas dos peritos podem ser decisivas para o pleito, mas delas não resulta prova vinculada, posto que o juiz aprecia livremente o que delas resulta – cf. António Menezes Cordeiro, Código Civil Comentado, I – Parte geral, CIDP 2020, pág. 1070; José Lebre de Freitas, Código Civil Anotado, Volume I, 2ª Edição Revista e Atualizada, Ana Prata (Coord.), pág. 510; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-03-2010, processo n.º 949/05.4TBOVR-A.L1-8.
Cabia, pois, ao Tribunal recorrido apreciar a prova pericial com a amplitude descrita, em conjugação com toda a demais prova produzida nos autos, sendo certo que, para além das meras apreciações subjectivas invocadas pela apelante, nada nos autos autoriza a afirmar que o resultado da perícia psicológica a que a criança foi sujeita foi desvirtuado pela presença da progenitora que, como é evidente, enquanto mãe e titular das responsabilidades parentais e a quem a criança está confiada era quem tinha de a acompanhar e quem podia e devia ser ouvida pelo perito, se assim este o entendesse.
Mais do que isso, nenhuma reclamação foi regularmente deduzida contra tal relatório e não foi requerida segunda perícia, pelo que o resultado da perícia podia e devia ser ponderado, como foi, pelo tribunal recorrido.
Quanto ao regime de convívios fixado, a recorrente dele discorda quer por entender que a mãe não se aprestará a cumpri-lo, quer por considerar que tais convívios não devem ocorrer na casa da progenitora ou na presença desta, pretendendo gozar de um regime de visitas ao fim-de-semana e nas férias.
A decisão recorrida apreciou de forma correcta, cabal e fundamentada as questões suscitadas nos autos, fixando um regime de convívios que, face aos factos apurados, se revela sensato, ponderado e adequado a assegurar o restabelecimento da relação entre a avó e a neta e, simultaneamente, potenciar paulatinamente o esbatimento da conflituosidade existente entre a avó e a progenitora.
No entanto, em reforço do decidido, tecem-se as seguintes considerações.
O artº. 1887º-A do Código Civil, aditado pela Lei nº. 84/95 de 31 de Agosto, que dispõe que “os pais não podem injustificadamente privar os filhos do convívio com os irmãos e ascendentes”, veio consagrar um direito autónomo da criança ao relacionamento com os avós e com os irmãos, que pode designar-se como um amplo direito de visita e que não pode ser, de modo infundamentado, afastado pelos pais, devendo ainda ser entendido como um direito recíproco de visitas de avós e netos ou um direito de avós e netos às relações pessoais recíprocas – cf. neste sentido, Rosa Martins e Paula Távora Vítor, O direito dos avós às relações pessoais com os netos na jurisprudência recente”, pp. 64-65[9].
Decorre do referido normativo legal a existência de uma presunção no sentido de que a relação da criança com os avós é benéfica para esta, de modo que se os pais quiserem impedir, com êxito, esse convívio terão de invocar e demonstrar razões concretas para a proibição – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-07-2020, processo n.º 24889/19.0T8LSB-A.L1-6.
O fim principal visado será o de promover o direito ao desenvolvimento da personalidade da criança, concretizado através das relações com outras pessoas, sendo seguro que a relação que se estabelece entre avós e netos contribui para a formação moral e para o desenvolvimento dos últimos, atento o seu cariz afectivo e a contribuição que aqueles prestam para a satisfação da necessidade emocional da criança.
Através desse convívio garante-se ainda o direito à historicidade pessoal, mediante o conhecimento dos antepassados, a sua integração na família e o acesso às origens.
Enquanto direito pessoalíssimo e direito de personalidade, o direito ao convívio com os ascendentes representa uma densificação do direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade e do direito à historicidade pessoal do neto – cf. art.º 26º da Constituição da República Portuguesa.
Como sustentam Rosa Martins e Paula Távora Vítor, o direito dos avós às relações pessoais com os netos enquadra-se na categoria dos poderes funcionais: há um titular do poder – os avós; e o titular do interesse que através dele se prossegue – o neto. O seu exercício tem, pois, por critério orientador o interesse do neto – cf. op. cit., pág. 69.
Inicialmente, quem avaliará do interesse da criança em manter o relacionamento com os avós serão os pais, a quem o exercício das responsabilidades parentais está confiado, e que poderão, em determinado momento, identificar uma causa justa para impedir o contacto entre avós e netos.
O conteúdo deste direito deve delinear-se não necessariamente pela periodicidade dos contactos, mas pela exigência de uma certa regularidade e por períodos suficientes para que seja fomentada uma comunicação inter relacional entre as partes, ou seja, deve ser visto como um direito dos avós às relações pessoais com os netos[10].
Não obstante a amplitude que lhe deve ser reconhecida, é importante destacar, como decorre da decisão recorrida, a diferença entre o direito dos avós e os poderes-deveres abrangidos pelas responsabilidades parentais (cf. art.º 1878º do Código Civil), desde logo, o primeiro não abrange, como os segundos, o poder-dever de guarda sobre a criança, que, por regra, cabe aos pais (cf. art.ºs 1901º e 1905º do Código Civil), nem tão-pouco se identifica com o “direito de visita” de um dos progenitores (o não guardião), porque tem menor amplitude, não cabendo também aos avós uma actuação no âmbito do exercício de outros poderes funcionais, como o poder-dever de educação.
O ponto fulcral é que será o interesse do neto que irá configurar o direito dos avós, enquanto poder funcional, que deve ser orientado e justificado posto que se revele adequado àquele interesse. O direito “de visita” dos avós pode, pois, ser limitado ou até mesmo suprimido quando seja susceptível de causar maior prejuízo ou afectar negativamente a criança.
Como referem Andreia Martins, Bruno Alcarva e Débora Marques, o direito dos avós está sempre condicionado ao superior interesse da criança, que deve ser também o objectivo final do respectivo exercício, tal como decorre do disposto no art.º 3º, n.º 1 da Convenção dos Direitos da Criança[11] e do art.º 24º, n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia[12]; tendo isto em conta, o direito pode ser exercido a qualquer momento, seja por iniciativa da criança, seja por iniciativa de quem pretenda obter ou manter a relação com ela. Ponto é que, em caso de conflito com as necessidades dos adultos é o interesse da criança que deve prevalecer – cf. Children in Post-Modern Families: The Right of Children To Have Contact With Attachment Figures, in ebook Direito da Família – Vária, Outubro 2018, pág. 92[13] [14].
Os pais podem limitar ou recusar o direito dos avós, cabendo ao tribunal apreciar se o motivo da recusa constitui uma causa justa, o que deve ser avaliado “de acordo com os parâmetros da proporcionalidade em sentido estrito, da necessidade e da adequação em relação ao interesse do filho” – cf. Rosa Martins e Paula Távora Vítor, op. cit., pág. 75.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4-10-2018, processo n.º 195/15.9T8AMD-D.L1-2, no desenvolvimento do estatuído no n.º 2 do art.º 1878º do Código Civil quanto à autonomia da criança na organização da sua vida e à atendibilidade da sua opinião, o menor tem “o direito de conviver com quem quiser, excepto nos casos em que houver motivo justificado para ser privado desse convívio, mas mesmo nestes casos terão de ser tidas em consideração a sua idade e maturidade. E ninguém, por isso mesmo, o pode obrigar a qualquer convívio: o menor não é objecto de qualquer direito de visita. Tem direito ao desenvolvimento da sua própria personalidade, podendo escolher as pessoas com quiser conviver, salvo se essa escolha se mostrar contrária ao seu interesse”.
Face ao patente conflito entre a progenitora da C e a sua avó, ora recorrente, impõe-se, naturalmente, a consideração do superior interesse da criança na fixação do direito de visita ou convívio, sendo que, no caso, aquele não se compadece com a extensão ou amplitude dos convívios tal como pretende a recorrente.
Como é sabido, o interesse superior da criança deve ser entendido como “o direito da criança ao desenvolvimento são e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.”” – cf. art.º 4º, a) da LPCJP; Tomé d`Almeida Ramião, Regime Geral do Processo Tutelar Cível Anotado e Comentando, pág. 23.
Por se tratar de um conceito vago e genérico, existem vários factores relativos à criança e aos pais que devem ser ponderados na concretização de qual seja o superior interesse da criança, identificando-se os seguintes: as necessidades físicas, religiosas, intelectuais e materiais da criança, a sua idade, sexo, grau de desenvolvimento físico e psíquico, a sua adaptação ao ambiente (escola, família, amigos, actividades extra-escolares), a sua maturidade emocional e estabilidade psicossocial, entre outros.
Tendo presente os dados factuais apurados e que foram correctamente tidos em consideração na decisão recorrida, concorda-se com esta quando afirma que não existem, no caso, motivos bastantes para impedir a manutenção dos contactos entre a apelante e a neta, tanto mais que desde o nascimento desta aquela auxiliou a progenitora a dela tomar conta, existindo na altura uma boa relação entre todos os que residiam na casa da avó, para além do que, após os desentendimentos com a mãe, a avó continuou a manter algum contacto com a neta, indo vê-la à escola, através do gradeamento, ao que a C reagia com beijinhos e «desenhando» corações com os dedos, revelando desse modo a sua proximidade e satisfação pela sua presença.
Mais do que isso, resultou positivamente demonstrado que a C gosta da avó e aquando da sua avaliação psicológica manifestou vontade de estar com esta, mas não o quer fazer a sós, mas sim na presença da mãe, pelas razões que ficaram plasmadas no relatório psicológico e que têm que ver, precisamente, com a insegurança causada pelo facto de, por um lado, gostar da avó e querer manter esse contacto, mas, por outro, saber que a avó, com a sua conduta e pelas afirmações que efectua acerca da mãe e da afectação da estabilidade mental e emocional da neta por via do afastamento da avó, que esta não reconhece, causa sofrimento à mãe.
Todavia, face à conflituosidade existente entre a avó e a progenitora e aos próprios receios manifestados pela criança perante as afirmações produzidas pela avó e ao facto de aquela não se rever na afectação psicológica que esta lhe imputa, associados à incapacidade que a apelante e a requerida têm revelado no cumprimento dos acordos que foram sendo assumidos para a concretização das visitas, seguro é que o restabelecimento dos convívios, tal como foi estabelecido pela 1ª instância, se afigura adequado a promover o serenar dos conflitos, permitir a ligação da avó com a neta e a aumentar a confiança de ambas as partes, que, mais à frente, possa permitir um aligeiramento da regulação das condições em que tais convívios devem ter lugar.
Como bem se refere na decisão recorrida, o importante é que as visitas satisfaçam o interesse da C, com respeito pela autonomia desta (sendo uma criança de 10 anos de idade tem já capacidade para participar na escolha das pessoas com quem prefere conviver e de que modo, devendo ser atendida a sua posição) quanto ao estabelecimento das suas próprias relações significantes com a família alargada.
Atento o princípio da subsidiariedade da intervenção do Estado na família, a possibilidade de impor judicialmente um direito de visita contra a vontade dos pais só deve concretizar-se em casos extremos e desde que a intervenção do Tribunal possa resolver o conflito funcionando como um factor pacificador – cf. neste sentido, Maria Clara Sottomayor, Regulação do Exercício do Poder Paternal nos Casos de Divórcio, 3ª edição, Almedina, pág. 102 e seguintes apud acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 7-04-2022, processo n.º 1369/21.9T8BRG-B.G1.
Além disso, enquanto poder funcional que é, o direito dos avós às relações pessoais com o neto não pode interferir na relação da criança com os pais nem com os poderes-deveres destes característicos das responsabilidades parentais.
Como tal, reconhecendo a importância dos convívios da C com a sua avó, pessoa que lhe é próxima, tanto mais que dela cuidou desde o nascimento e até aos seis anos de idade, há que admitir que, apesar dos conflitos com a mãe, tal convívio terá a virtualidade de fortalecer os laços de afectividade e do sentido de pertença da menor, o que constitui um benefício em termos de desenvolvimento e formação da sua personalidade.
No entanto, por ora, importa que esses convívios, para que sejam um momento tranquilo e psicologicamente recompensador, ocorram num meio tido como seguro para a criança e de modo que esta não receie que deles advenha qualquer consequência menos boa para o seu relacionamento com a mãe, daí que devam ter lugar na casa da progenitora e na presença desta, tal como determinado pela 1ª instância.
Com efeito, só nesse contexto será possível o atenuar do clima hostil entre a avó e a progenitora, potenciando a sua aproximação em defesa e promoção do interesse da C, de modo a que tais convívios possam ser gratificantes e sadios para esta, sem a constante percepção ou receio de que a mãe não goste de algo, evitando-se, assim, que a criança seja obrigada a uma escolha de lealdades e que se sinta insegura, o que poderia ocorrer se tais convívios, num momento em que as partes ainda não conseguiram ultrapassar os seus desentendimentos, houvessem de ter lugar na casa da avó, sem supervisão da mãe.
Neste contexto, e enquanto não for apaziguado o conflito entre a avó e a progenitora, revela-se contrário ao interesse da C o estabelecimento de um regime de convívios que implique a deslocação da neta para a casa da avó, durante um fim-de-semana ou em férias, como se direito de visita do progenitor não guardião se tratasse e menos ainda com a regularidade pretendida pela recorrente, o que seria totalmente desrazoável não só num momento em que as relações entre a avó e a neta estiveram suspensas havendo que as retomar de modo progressivo, como também por se traduzir na imposição de um convívio demasiado amplo para colher a aceitação e colaboração da mãe, que, não se opondo totalmente ao convívio, pretende que este ocorra sob a sua supervisão.
Como tal, não se descortinam razões para dissentir da fundamentação aduzida na decisão recorrida, reconhecendo a adequação do regime estabelecido pela sua proporcionalidade face aos factos apurados e por atender ao interesse da C na manutenção dos laços de afectividade com a avó.
Improcede, assim, a presente apelação, mantendo-se inalterada a decisão recorrida.
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Das Custas
Nos termos do art.º 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais[15], considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
Uma vez que a apelante decai na pretensão recursória estaria, em princípio, obrigada ao pagamento das custas devidas.
No entanto, a apelante litiga com benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo (cf. Ref. Elect. 15814558).
Nestas circunstâncias, não há sequer lugar a elaboração de conta de custas, nos termos do art.º 29º, n.º 1, a) do RCP, o que sucede pelo facto de a parte vencida beneficiária do apoio judiciário na mencionada modalidade não poder ser condenada no pagamento de custas (taxa de justiça, encargos e custas de parte).
Como tal, não há lugar ao pagamento de custas seja pela recorrente, seja pela recorrida.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.
Sem custas.
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Lisboa, 14 de Março de 2023[16]
Micaela Marisa da Silva Sousa
Cristina Silva Maximiano
Alexandra Castro Rocha

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[1] Adiante designado pela sigla CPC.
[2] Acessível na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem.
[3] De que se dá conta, de forma sintética e cabal, designadamente, no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30-05-2018, processo n.º 6676/17.2T8PRT.P1 que acaba por concluir pela sua admissibilidade.
[4] Face à profusão de requerimentos e respostas constantes dos autos, não se lobriga discernir se remete apenas para o requerimento inicial e oposição e posteriores alegações ou para todos os requerimentos das partes remetidos aos autos ao longo de três anos.
[5] Acessível em
https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/asentencacivelabrantesgeraldes.pdf.
[6] “[…] «[n]ão porque tal preceito, expressamente, contemple a situação de sancionar como não escrito um facto conclusivo, mas, como tem sido sustentado pela jurisprudência, porque, analogicamente, aquela disposição é de aplicar a situações em que em causa esteja um facto conclusivo, as quais, em rectas contas, se reconduzem à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objecto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum»”.
[7] A pretender-se daí extrair algum juízo de valor sobre o carácter do companheiro da mãe e do possível reflexo na educação e desenvolvimento da criança Nicole, sempre se trataria de questão que assumiria relevância no contexto do processo de promoção e protecção, entretanto já arquivado – cf. ponto 6..
[8] In Prova testemunhal, 2014, Almedina, Agosto de 2014, p. 175 e 176 apud acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-01-2021, processo n.º 847/20.T8BCL-C.G1.
[9] In Revista Julgar, n.º 10 – Janeiro – Abril 2010.
[10] De acordo com o artigo 2º, a) da Convenção do Conselho da Europa sobre as relações pessoais no que se refere às Crianças, STE n.º 192, 15 de Maio de 2003, o direito ao contacto abrange a possibilidade de a criança estar ou encontrar-se com uma pessoa, por período de tempo limitado, com quem não vive habitualmente; qualquer forma de comunicação entre a criança e essa pessoa, nomeadamente por telefone, Skype, redes sociais, correio electrónico; a prestação de informação a essa pessoa sobre a criança ou a esta sobre aquela.
[11] Adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990.
[12] Proclamada em 7 de Dezembro de 2000.
[13] Acessível em
https://www.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/pdf/eb_direitofamiliavaria2018.pdf.
[14] Em tradução livre da relatora. No original: “This right shall be always subject to the condition that this contact is in the child’s best interest, which should also be the final goal of its exercise, as provided in Article 3 (1) of the Convention on the Rights of the Child and Article 24 (2) of the Charter of Fundamental Rights of the European Union. Having that in mind, this right may be exercised at all times, whenever the child, on his or her initiative or the persons who wish to obtain or maintain contacts apply for it. However, when the child’s best interest is in conflict with the adults’ needs, the first one has to prevail, both in the short and long term.”
[15] Adiante designado pela sigla RCP.
[16] Acórdão assinado digitalmente – cf. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.