CONTRATO DE CONCESSÃO COMERCIAL
EXCLUSIVIDADE
Sumário

I) O contrato de concessão comercial é o contrato pelo qual um empresário – o concedente – se obriga a vender a outro – o concessionário- , ficando este último, em contrapartida, obrigado a comprar ao primeiro, certos produtos, para revenda em nome e por conta próprios numa determinada zona geográfica, bem como a observar determinados deveres emergentes da sua integração na rede de distribuição do concedente.
II) O contrato de concessão comercial implica as seguintes notas essenciais:
- É um contrato em que alguém assume a obrigação de compra para revenda, nele se estabelecendo logo os termos – ou os principias termos ou regras – em que esses futuros negócios serão feitos, pelo que, ao celebrarem, periodicamente, os contratos de compra e venda pelos quais o concessionário adquire do concedente os bens para revenda, estarão as partes a cumprir a obrigação anteriormente assumida;
- O concessionário age em seu nome e por conta própria, assumindo os riscos da comercialização; e
- As partes vinculam-se a outro tipo de obrigações – além da obrigação de compra para revenda – sendo através delas (no fundo para definir e executar determinada “política comercial”) que verdadeiramente se efetua a integração do concessionário na rede ou cadeia de distribuição do concedente.
III) Como contrato-quadro, o contrato de concessão comercial funda uma relação de colaboração estável, duradoura, de conteúdo múltiplo, cuja execução implica, designadamente, a celebração de futuros contratos entre as partes, pelos quais o concedente vende ao concessionário, para revenda, nos termos previamente estabelecidos, os bens que este se obrigou a distribuir.
IV) O que permite distinguir o contrato de concessão comercial de outros contratos de carácter duradouro como, por exemplo, o contrato de fornecimento ou a distribuição autorizada, é a integração do concessionário na rede de distribuição de produtos adquiridos ao concedente, usualmente pelo recurso a estruturas criadas para tal efeito, grande parte das vezes com a participação do próprio concedente.
V) A matéria de facto apurada (no que concerne às seguintes circunstâncias: Ter a ré diligenciado pela tradução dos rótulos para revenda de produtos da autora em Portugal e Espanha; Ter traduzido catálogos e panfletos informativos desses produtos para português e espanhol; Ter prestado conselhos técnicos especializados aos seus clientes relativamente à escolha e à utilização dos produtos, antes e depois da venda; Ter sido prestada formação – a expensas da ré - por especialistas da marca a empregados da ré e a staff de clientes; Ter a ré realizado descontos e promoções perante diversos clientes; Ter participado - com instalação de pavilhões próprios e a expensas suas - em feiras de produtos do sector – com exibição dos produtos e logotipos e marcas; Ter patrocinado equipas e eventos de publicitação dos produtos (e de disso ter dado conhecimento à autora); Ter divulgado os produtos nos seus sítios na Internet; Terem colaboradores da ré participado em conferências técnicas e comerciais sobre produtos da autora e frequentado cursos de formação técnica e cursos de vendas desses produtos, fora de Portugal; Ter a ré dado conhecimento à autora de algum do material publicitário e traduzido que efetuou; e de a atuação da ré ter criado um mercado com vários clientes para os produtos comercializados pela autora) é insuficiente para demonstrar que a autora tenha assumido perante a ré alguma obrigação de venda, por futuros contratos de compra e venda, ou que esta tenha assumido alguma obrigação de compra perante aquela, no sentido de ter sido executado algum contrato-quadro característico de concessão comercial, não se encontrando consenso algum sobre termos pelos quais devesse ter lugar a aquisição de produtos pela ré à autora, tal como não se encontra alguma vinculação – e em que termos – sobre a ré dever seguir e executar alguma “política comercial” da autora.

Texto Integral

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
1. USN UK, LTD., identificada nos autos, requereu providência de injunção contra USN PORTUGAL – COMÉRCIO E DISTRIBUIÇÃO DE SUPLEMENTOS DIETÉTICOS, UNIPESSOAL, LDA., também identificada nos autos, pedindo que a ré pagasse a quantia de € 174.250,85, acrescida de juros de mora à taxa legal.
Em síntese, a A. invocou que:
- No âmbito das relações comerciais de ambas as partes, a R. encomendou-lhe, e a A. forneceu-lhe diversos produtos melhor descriminados nas faturas que juntou, perfazendo o valor total de 220.402, 37€;
- A deduzir a este valor devem ser contabilizados os seguintes pagamentos e notas de crédito: o pagamento da quantia de 14.793, 14€ reportado à factura n.° …, as notas de crédito … de 26/01/2011no valor de 8.193, 28€, … de 26/01/2011 no valor de 41, 15€, … de 26/01/2011 no valor de 82, 30€, … de 26/01/2011 no valor de 12, 23€, … de 26/01/2011 no valor de 106, 24€, …. de 26/01/2011 no valor de 61, 20€, … de 06/04/2011 no valor de 12,23€, … de 13/06/11 no valor de 25.42€, … de 17/06/2011 no valor de516, 00€, … de 30/11/2011 no valor de 2.240, 00€ e pagamentos em 16/09/2011 de 4.057, 25€, em 21/10/2011 de 9.011, 08€ e em 09/11/2011 de 7.000, 00€, o que totaliza a quantia a deduzir de 46.151, 52€;
- As mercadorias foram fornecidas e aceites pela requerida, que nunca apresentou qualquer reclamação;
- O pagamento do preço daquela mercadoria deveria ter sido efetuado na sede da requerente, na data da respetiva venda e facturação, o que não se verificou;
- Detém assim a A. um crédito sobre a requerida no valor de 174.250, 85€.
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2. A ré deduziu oposição com reconvenção.
Confessou a divida reclamada pela Autora, alegando, todavia, que detém um crédito sobre aquela muito superior ao valor pedido, requerendo a compensação de valores, bem como a condenação da A. no pagamento do remanescente.
Consiste o crédito que invoca:
a) No montante relativo a fornecimentos diretos a terceiros, realizados pela A., em violação do direito de exclusividade da R., no Montante de €108.649,48 (cfr. arts. 9.° e 233.° ou 234.° e 417.° da Oposição);
b) No valor de stock e material de marketing no montante de € 23.866,46 (cfr. arts.10.° e 401.° da Oposição);
c) Numa indemnização de clientela no montante de € 169.008,23 (cfr. arts. 11.2, 356.° e 378.° da Oposição;
d) Numa indemnização por responsabilidade contratual nos montantes de € 78.839,87; e, € 315.785,74.(cfr. arts. 12.°, 233.°, 415.° e 416.°)
e) Numa indemnização por responsabilidade pré-contratual, nos montantes de € 194.205,85; e € 20.000,00. (cfr. arts. 13.° e 290.° da Oposição)
f) Numa indemnização por danos não patrimoniais, no montante mínimo de €20.000,00 (cfr. art. 456.° da Oposição).
Para sustentar tal pedido invoca, em síntese, que celebrou com a A., verbalmente, um contrato de concessão comercial pelo qual ficou com o direito de exclusividade de comercializar a Marca de produtos USN em Portugal e Espanha, com inicio em 2008, e sem termo definido.
Após referir o investimento que efetuou e suportou com a implementação da marca Usn no mercado Ibérico, invoca que a A. violou a clausula de exclusividade a partir de meados do ano de 2011, passando a vender produtos USN diretamente a clientes seus, e por si angariados, nomeadamente o cliente Nutritienda que tinha bastante peso no volume de negócios da R., o que conseguiu com a ajuda do funcionário da R. CT, o qual passava informação confidencial da Ré à A., e serviu de ponte para a A. poder vender diretamente à Nutritienda e outros clientes.
A R. acabou por admitir a solução proposta pela A., isto é, que esta última fornecesse diretamente a Nutritienda, mas com o pagamento pela A. à R. da sua margem de concessionária, para quaisquer vendas que fossem realizadas pela A., valores estes que a R. nunca recebeu.
As relações das partes foram-se deteriorando por culpa da A., que impunha condições inegociáveis e inexequíveis, pelo que em 21-11-2011 acordaram consensualmente nos termos em que a cessação da relação comercial entre ambas iria ocorrer, a saber, a A. comprometia-se a renunciar a quaisquer reclamações relacionadas com o saldo negativo de conta corrente da R. (à data no valor bruto de EUR 174.250,85), e a pagar à R. o valor de EUR 20.000,00, a título de compensação pela cessação do contrato de concessão comercial. Sucede que a A. se recusou a reduzir a escrito tal acordo, e não o honrou, pelo que as negociações foram malogradas por causas exclusivamente imputáveis à A., tendo a R. procedido à resolução do contrato de concessão comercial com exclusividade, através de carta de resolução de 17 de janeiro de 2012.
Mais refere que durante as referidas negociações a A. solicitou à R. que mantivesse o fornecimento dos seus produtos ao mercado, para não prejudicar a sua imagem, o que a R. aceitou tendo efetuado uma encomenda pelo valor de EUR 6.630,42, e a A. exigiu o pagamento de vários valores suplementares num total de 20.000,00 euros que a Ré liquidou, apesar de a A. não ter fornecido a encomenda.
Mais, a A. agiu com a intenção de se apoderar do mercado ibérico dos seus produtos, criado, desenvolvido e mantido pela R., e para conseguir tal desiderato prejudicou a relação de confiança conquistada pela R. Junto dos Seus Clientes, danificando a imagem e reputação da R. junto dos Clientes desta.
Por seu turno, AC e CC, representantes da Ré, tiveram que vir residir para Portugal para implementar a marca USN no território, com todos os constrangimentos inerentes a vir residir para um país estrangeiro, bem como sofreram angústia, dor e sofrimento com a atuação da A.
Conclui que declara compensar os créditos da A. com todos os créditos de que é titular sobre esta, os emergentes da indemnização de clientela, em primeiro lugar, e ainda os da indemnização pela violação do dever contratual de exclusividade, se necessário, extinguindo-se integralmente o crédito da A. e considerando todos os créditos da R. alegados na oposição e não extintos pela compensação, conclui ser a R. credora do valor de EUR 736.149,43, a que acrescem os juros moratórios, que a A. deverá ser condenada a pagar-lhe.
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3. A autora replicou, excecionando a sua ilegitimidade ativa, porquanto o contrato de concessão comercial e as relações comerciais, nomeadamente com clausula de exclusividade ou não, que a R. invocou, não foram celebradas com a A. mas com outras USN do Grupo da Marca, designadamente a USN Africa do SUL e USN Internacional.
Mais alega que a Ré sempre pagou com atraso os fornecimentos de USN que a A. lhe fazia, sendo que esta desde o ano de 2009 interpelou a Ré, sucessivamente, para proceder ao pagamento das quantias por esta devidas à primeira, o que esta nunca fez, vindo, ao contrário, a aumentar a divida junto da A.
A autora alertou por diversas vezes a R. que a falta de pagamento pontual dos valores que lhe eram devidos comprometia o relacionamento existente entre ambas.
Após a R. ter falhado inúmeros planos e promessas de pagamento, e ter ocultado da ora A. "informação sensível" relativa à sua real situação financeira (cfr. cópia do e-mail de 16/08/2011 que ora se junta como Doc. 30 e que aqui se dá por integralmente reproduzido),no dia 5-09-2011 a A. fez um ultimato à R. tendo informado esta que caso não procedesse ao pagamento das quantias e fornecimentos em dívida até ao prazo fixado pela A. (ou seja, 9 de Setembro de 2011), esta deixaria de fornecer produtos à primeira, e assumiria diretamente a condução/exploração do mercado ibérico.
Para além do mais, a A. informou que, sob pena de tal cliente se perder, iria assumir diretamente, e de imediato, a conta da Nutritienda, bem como que, a partir dessa data, apenas aceitaria/despacharia encomendas da R., caso esta procedesse ao respetivo pagamento adiantadamente, sendo certo que a Ré nada pagou.
Ao contrário do que a R. - falsamente- alega, a relação entre as partes não terminou por iniciativa/resolução da mesma, mas sim por iniciativa, devidamente comunicada à primeira, da ora A.. e porque a relação entre a A. e a R. cessou, exclusivamente, com fundamento no incumprimento contratual desta, e por iniciativa, legítima e justificada, da ora A., improcedem, por completo os pedidos reconvencionais.
Mais exceciona o direito de não cumprimento da sua obrigação nos termos do art. 428° do CC, invocando que caso se entenda - o que não se concede - que a relação comercial cessou na sequência da comunicação de 5 de Setembro de 2011, e do posterior incumprimento da R., sempre se dirá que, a partir da data limite de pagamento fixada nessa mesma comunicação, assistia à ora A. o direito de suspender/excecionar o fornecimento de produtos até que a R. efetuasse os pagamentos devidos/exigidos.
A Autora exceciona ainda atuar a R. com Abuso de direito, e ter-se já operado a caducidade do direito da R. de resolver o contrato.
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4. A ré treplicou, respondendo à matéria das exceções invocadas pela A., impugnando a factualidade que as fundamenta, e concluindo pela sua improcedência.
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5. Dispensada audiência prévia, foi proferido despacho saneador – tendo sido julgada improcedente a invocada exceção de ilegitimidade da reconvinda quanto ao pedido reconvencional, foi admitido o pedido reconvencional e a invocação da compensação como exceção perentória, identificado o objeto do litígio e fixados os temas de prova.
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6. Após, teve lugar audiência prévia para apreciação das questões a que se reporta o artigo 593.º, n.º 3, do CPC em vigor, onde se decidiu das reclamações apresentadas, tendo sido alterados os temas da prova fixados.
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7. Teve lugar a realização de prova pericial, tendo sido junto aos autos o respetivo relatório em 11-10-2016 e prestados esclarecimentos escritos (cf. documento junto aos autos em 05-01-2017).
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8. Teve lugar audiência de discussão e julgamento, com sessões realizadas em 10-01-2018, 18-01-2018, 24-01-2018, 25-01-2018, 14-02-2018, 17-10-2018, 18-11-2021, 19-11-2021, 17-12-2021, 27-01-2022, 03-02-2022 e 16-03-2022.
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9. Na sessão de julgamento que teve lugar em 25-01-2018 foi, nomeadamente, proferido o seguinte despacho:
“Relativamente às testemunhas com residência em Africa do Sul e a inquirir via Skipe JV, agendado para 24-1-2018, TB e SE a inquirir no dia de hoje-, com recurso a intérprete de língua inglesa, salienta-se que a ré foi notificada (por despacho de 5-1-2018 e na sessão de julgamento anterior) de que deveria fornecer atempadamente a identificação devidamente certificada de todas as testemunhas, bem como os demais elementos necessários à realização da inquirição por skipe, nomeadamente devendo fornecer os endereços electrónicos das testemunhas, com vista a estabelecer a ligação a estas.
Ora, verifica-se que além de não se mostrarem liquidados os preparos devidos para nomeação de intérprete, a ré não forneceu nem a identificação devidamente certificada da testemunha JV, nem o seu endereço electrónico, cuja inquirição estava agendada para o dia 24-01-2018.
Além do exposto, os elementos de identificação, e em particular os endereços de correio electrónico das testemunhas TB e SE, a ouvir por Skipe no dia de hoje às 14.00h, deveriam ter sido fornecidos pela R. com a antecedência necessária de molde a permitir o contacto com as testemunhas no dia e hora designado pelo tribunal para as inquirir, uma vez que a introdução dos dados no sistema Skipe e o contacto com as testemunhas carece de algum tempo necessário ao estabelecimento da ligação pela internet.
Sucede que apesar de o Ilustre Mandatário da ré ter informado no dia de ontem, na sessão de julgamento de 24-01-2018, que já dispunha de tais elementos, a verdade é que só os veio a fornecer ao tribunal no dia de hoje, por requerimento entrado às 12.01h conforme resulta do citius.
O Sr. Funcionário introduziu prontamente no computador os elementos indicados com vista a estabelecer a ligação às 2 testemunhas, verificando-se neste momento que tal ligação ainda não se mostra feita, desconhecendo-se se virá a lograr-se a ligação e a hora em que eventualmente aquela se consiga obter.
Em face de todo o exposto, dá-se sem efeito a inquirição Via Skipe das duas testemunhas SE e TB, por impossibilidade imputada à Ré.”.
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10. A ré interpôs recurso desse despacho, tendo sido proferido despacho, em 29-06-2018, a esclarecer que “o que foi ndeferido pelo tribunal no início da ausiência foi a designação de nova data para proceder`a inquirição por Skype”, mas que, “atentos os princípios da descoberta da verdade material e da cooperação entre todos os intervenientes processuais (…), a R., caso assim o entenda, pode ainda proceder à inquirição das referidas testemunhas, desde que se comprometa a apresenta-las em tribunal”, determinando-se a notificação da ré para esclarecer em conformidade e aguardando a tomada de posição daquela para pronúncia sobre o recurso, referindo-se que “a tomada de posição da R. ao despacho que antecede” poderia redundar “na desistência e/ou inutilidade do recurso”.
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11. Na sequência, a ré apresentou em juízo requerimento, em 03-09-2018, comprometendo-se a apresentar essas testemunhas no Tribunal, na sequência do que foi proferido o despacho de 13-09-2018, agendando dia para a inquirição das referidas 3 testemunhas da ré “(anteriormente a inquirir por skipe)”.
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12. Em 23-09-2022, foi proferida sentença cujo dispositivo é do seguinte teor:
“(…) A - Julga-se a presente ação totalmente procedente, por provada, e consequentemente, condena-se a Ré Usn Portugal- Comércio e Distribuição de suplementos dietéticos, Unipessoal Lda a pagar à Autora Usn Uk, Ltd a quantia de 174.250, 85€ (cento e setenta e quatro mil, duzentos e cinquenta euros e oitenta e cinco cêntimos), vencida e não paga, acrescida de juros de mora à taxa legal comercial, vencidos desde a data de cada uma das faturas descriminadas em 3 dos fatos provados, e juros vincendos, até efetivo e integral pagamento.
B - Julga-se a Reconvenção/Pedido Reconvencional totalmente improcedente, por não provado, e consequentemente, julga-se improcedente a requerida compensação de créditos, e absolve-se a Autora dos pedidos aí contra si formulados.
C - Custas, na íntegra, a cargo da Ré, atento o seu total decaimento, sendo o valor da ação de 910.400,36 euros (novecentos e dez mil e quatrocentos euros e trita e seis cêntimos).
D - Da não dispensa da taxa de justiça remanescente:
Dispõe o artigo 6.°, n.° 7, do Regulamento das Custas Processuais que «nas causas de valor superior a € 275.000,00, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento».
Resulta do preceito legal mencionado que a regra geral é a da tributação, na conta a final, do remanescente da taxa de justiça nas ações de valor superior a 275.000,00 euros, "só devendo ser dispensado o seu pagamento em situações de manifesta injustiça, ou de intolerável desequilíbrio entre o montante a satisfazer e a atividade desenvolvida pelo sistema de justiça."- (cfr. acórdão do TRL de 22-11-2016, consultado em www.dgsi.pt).
No caso concreto dos autos, ponderando o volume de processado - oito volumes - os articulados das partes em particular a oposição/Reconvenção da Ré com 461 artigos, a sua tréplica e demais requerimentos, as diligências probatórias e trabalhos desenvolvidos na audiência de discussão e julgamento (nomeadamente numero de testemunhas inquiridas), a duração desta e a sentença ora proferida, afigura-se que a presente ação não se enquadra, de todo, no regime de exceção previsto no citado art. 6°, n.° 7.
Por outro lado, a atuação da Ré ao longo do decurso da ação, a saber:
a). Apresentando desnecessariamente articulados muito extensos;
b) Fazendo leituras truncadas e falaciosas dos documentos que junta, atribuindo-lhes fatos e efeitos sem qualquer suporte no documento (exemplificativamente o caso de CT, e a narrativa imaginária de uma cabala montada contra si que a Ré retira de uns email's trocados por aquele, quando é certo que a R. tinha apenas 2 ou 3 funcionários, inquiridos em audiência, os quais mantinham por força do trabalho uma relação próxima, e nenhum deles conhecia o referido CT muito menos como funcionário ou colaborador da Ré);
c) E a sua atuação em audiência de julgamento, para cujas gravações se remete, que em muito contribuiu para o seu prolongamento;
Não contribuiu, antes pelo contrário, para o normal andamento dos autos, de forma célere e eficaz, o que também fundamenta a não concessão do regime de exceção decorrente do disposto na segunda parte do citado art. 6°, n.° 7 do RCP.
Pelo exposto, e nos termos do art. 6°, n.° 7 do RCP, decide-se não dispensar o pagamento do remanescente da taxa de justiça.
Mais se consigna que na numeração dos fatos não provados, omitiu-se por lapso o numero 18.
Registe e Notifique (…)”.
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13. Não se conformando com a decisão proferida, dela apela a ré, pugnando pela revogação da mesma, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1. A sentença recorrida incorre em nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art. 615°, n° 1, d), do CPC, pois a matéria alegada no art. 183° da oposição da Apelante, sendo relevante para a boa decisão da causa, não foi julgada provada nem não provada;
2. Esse facto devia ter sido julgado provado, com fundamento nos meios de prova indicados na narração desta alegação;
3. Os factos não provados n.os 1, 2 e 3 da sentença (segundo a numeração indicada na sentença) deveriam ter sido julgados integralmente provados, com fundamento nos meios de prova enunciados na narração desta alegação;
4. Assim, deveria ter sido julgado provado que: (a) entre a A. e a R. vigorou um contrato verbal de concessão comercial sob o qual a R. operava como distribuidor exclusivo dos produtos da A. no território do mercado ibérico (Portugal e Espanha), que teve início em 2008 e foi resolvido pela R. com produção dos seus efeitos em 17 de Janeiro de 2012; (b) que a partir de 2008 a R. passou a manter com a A. um contrato de concessão comercial não reduzido a escrito, pelo qual a A. se obrigou a fornecer por tempo indeterminado à segunda os produtos USN por si comercializados, e atribuiu à R. o direito de distribuição exclusiva destes produtos no território da Península Ibérica, ocorrendo essa distribuição predominantemente em Portugal, estando vedada a possibilidade de qualquer outra entidade, incluindo a A., de distribuir produtos da marca USN neste território; (3) que por sua vez a R. vinculou-se, por tempo indeterminado, a comprar à A. esses produtos e a revendê- los no mercado Ibérico, e obrigou-se nesse contrato a distribuir tais produtos nas condições acordadas, pagando um preço por tais produtos e comprometendo-se a cumprir determinados objetivos de valor de vendas, nos termos do qual a R. operava como distribuidor exclusivo dos produtos da A. no território do mercado ibérico;
5. Os factos não provados n.°s 4, 5 e 17 segundo a numeração da sentença deveriam ter sido julgados integralmente provados com fundamento nos meios de prova indicados na narração, julgando-se assim provado o seguinte: (a) Que o acordo referido em 8 a 12 dos factos assentes incluísse o direito de exclusividade da Ré de representação da marca USN em Portugal; (b) que nenhuma outra empresa, além da Ré, estava autorizada a distribuir produtos USN em Portugal e Espanha, e que nunca tivesse havido outra empresa a revender produtos USN em Portugal; (c) que a Autora reconheceu à R. ser-lhe devido a margem das encomendas feitas pela Nutritienda diretamente à A. pelo período de agosto de 2011 a janeiro de 2012;
6. Tomando em consideração os factos provados, demonstrou-se a integração comercial entre a Apelante e a Apelada em termos dum contrasto de concessão comercial;
7. A Apelante vinculou-se a comprar produtos comercializados pela Apelada e a revendê-los aos seus próprios clientes em Portugal, o que foi executado por ambas as partes até início de 2012;
8. A Apelante vinculou-se a criar, e criou, um mercado para os produtos da Apelada em Portugal;
9. A Apelante estava comercialmente integrada com a Apelada, tanto assim que tinha a denominação desta última, que é também o elemento nominativo da marca dos produtos comercializados pela Apelada;
10 .A Apelante assumiu um conjunto de atos e obrigações típicas do distribuidor, incluindo obrigações de informação, nomeadamente de apresentação de relatórios mensais e trimestrais;
11. Sendo o contrato de concessão comercial legalmente atípico, é socialmente típico;
12. Assim, estava ambas as partes obrigadas ao seu pontual cumprimento, nos termos do disposto nos arts. 405° e 406° do CC;
13. O facto de não ter sido celebrado por escrito não prejudica a sua validade, ao abrigo do disposto no art. 219° do CC;
14. O contrato foi celebrado com a cláusula de exclusividade a favor da R..
15. Esta cláusula foi confirmada por escrito pela A., pelos documentos citados na narração para sua prova, pelo que, mesmo que essa exigência de forma se lhe aplicasse, o que não é o caso, estaria satisfeita.
16. Ao decidir que as partes não celebraram um contrato de concessão comercial, a sentença recorrida violou as disposições legais referidas.”.
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14. A autora/recorrida apresentou contra-alegações, concluindo pela improcedência do recurso, com manutenção da sentença recorrida.
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15. Nos termos do despacho proferido em 18-01-2023 foi admitido o requerimento recursório.
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16. Foram colhidos os vistos legais.
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2. Questões a decidir:
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC - sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente e apenas estando adstrito a conhecer das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso - , as questões a decidir são as de saber:
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I) Questão prévia:
A) Delimitação do objeto do recurso.
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II) Nulidades da sentença:
B) Se a sentença é nula, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC, por omissão de pronúncia quanto ao alegado no artigo 183.º da oposição?
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III) Impugnação da matéria de facto:
C) Se a matéria constante dos factos não provados n.ºs 1, 2 e 3 da decisão recorrida deve transitar para o rol dos factos provados?
D) Se a matéria alegada no artigo 183.º da oposição deve ser incluída no rol dos factos provados?
E) Se a matéria constante dos factos não provados n.ºs. 4, 5 e 17 da decisão recorrida deve transitar para o rol dos factos provados?
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IV) Impugnação da matéria de direito:
F) Se ficou demonstrada a integração comercial entre apelante e apelada no âmbito de um contrato de concessão comercial, com exclusividade a favor da ré?
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3. Fundamentação de facto:
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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
1- A Autora é uma empresa com sede no Reino Unido, constituída em 2008, que se dedica ao comércio de suplementos nutricionais para a atividade desportiva da Marca USN.
2- A R. é uma sociedade comercial constituída em 30 de Abril de 2007 que tem por objeto social o comércio e distribuição de todo o tipo de bens e produtos e, em especial, de produtos alimentares e similares, suplementos dietéticos e energéticos; representação, importação, agenciamento e exportação de bens e produtos alimentares e similares, prestação de serviços e consultoria comercial conexa com a distribuição e comercialização de bens e produtos de consumo alimentar e similares.
3- No âmbito das relações comerciais de ambas as partes, a R. encomendou à autora, e esta forneceu-lhe diversos produtos de marca USN melhor descriminados nas seguintes faturas juntas:
… de 04/01/2011, no valor de 25.465,82€;
… de 21/01/2011, no valor de 552,48€;
… de 26/01/2011, no valor de 72,28€,
… de 27/01/2011 no valor de 13.165,90€,
… de 01/02/2011 no valor de 1.043,49€,
… de 24/02/2011 no valor de 16.900,38€,
… de 10/03/2011 no valor de 1.723,73€,
… de 21/03/2011 no valor de 40, 14€,
… de 01/04/2011 no valor de 863, 87€,
… de 01/04/2011 no valor de 43.580, 04€,
… de 04/04/2011 no valor de 1.711, 60€,
… de 05/05/2011 no valor de 5.860, 64€,
… de 12/05/2011 no valor de 4.906, 80€,
… de 13/05/2011 no valor de 57, 16€,
… de 13/05/2011 no valor de 792, 00€,
… de 16/05/2011 no valor de 1.943, 52€,
… de 19/05/2011 no valor de 3.291, 00€,
… de 16/06/2011 no valor de 844, 95€,
… de 17/06/2011 no valor de 5.573, 74€,
… de 17/06/2011 no valor de 5.013,33€,
… de 17/06/2011 no valor de 84,00€,
… de 17/06/2011 no valor de 25.771,29€,
… de 08/07/2011 no valor de 1.068,07€,
… de 08/07/2011 no valor de 1.195,36€,
… de 04/08/2011 no valor de 300,48€,
… de 05/08/2011 no valor de 11.435,05€,
… de 24/08/2011 no valor de 31.458,42€,
… de 09/09/2011 no valor de 722,23€,
… de 20/09/2011 no valor de 3.963,36€,
… de 14/10/2011 no valor de 10.948,60€,
… de 14/10/2011 no valor de 52, 64€, tudo no total de fornecimentos no montante de 220.402,37€.
4-A deduzir ao valor de 220.402, 37€, a Ré efetuou os seguintes pagamentos e notas de crédito:
Pagamento da quantia de 14.793, 14€ reportado à factura n.° …; as notas de crédito … de 26/01/2011 no valor de 8.193, 28€, … de 26/01/2011 no valor de 41, 15€, … de 26/01/2011 no valor de 82,30€, … de 26/01/2011 no valor de 12,23€, … de 26/01/2011 no valor de 106, 24€, … de 26/01/2011 no valor de 61, 20€, … de 06/04/2011 no valor de 12, 23€, … de 13/06/11 no valor de 25.42€, … de 17/06/2011 no valor de 516,00€, … de 30/11/2011, no valor de 2.240,00€, e pagamentos em 16/09/2011 de 4.057, 25€, em 21/10/2011 de 9.011, 08€ e em 09/11/2011 de 7.000, 00€, o que totaliza a quantia a deduzir de 46.151, 52€, e o total em dívida de 174.250,85 euros.
5- As mercadorias foram fornecidas e aceites pela Ré, que nunca apresentou qualquer reclamação, assim como aceitou as faturas respetivas, aceitando ser devedora dos montantes nelas titulado.
6- O pagamento do preço daquela mercadoria deveria ter sido efetuado na sede da A., na data constante de cada fatura, o que que não se verificou até ao presente.
7- A autora interpelou a Ré inúmeras vezes para liquidar o valor em dívida, propondo igualmente acordo de pagamento faseado, que a R. recusou, nada tendo liquidado até ao momento.
8- Antes da constituição da Autora em 2008, e desde 2005, existia uma relação comercial entre AC e mulher, e duas outras empresas do grupo económico USN, a USN South Africa [PTY] LTD, anteriormente denominada Ultimate Sports Nutrition CC e a USN UK (esta, anterior à constituição da A., e distinta desta)
9- Em 2005 AC e mulher, CC, então com residência no Zimbabwe, propuseram à USN South Africa criarem um mercado para os produtos da marca USN em Portugal e Espanha, o que após negociações foi aceite, tendo posteriormente transferido a sua residência para Portugal, onde passaram a viver.
10- Em 2005 a marca USN era desconhecida no mercado ibérico.
11- Nesse contexto o casal CC estabeleceu acordo verbal com a USN Africa do Sul comprometendo-se - com a finalidade de os revender no mercado ibérico - adquirir os produtos USN à USN Africa do Sul, com a faculdade de poderem fabricar, e também poderem comprar USN diretamente aos fabricantes, e em contrapartida pagariam à USN Africa do Sul 7,5 % de Royalties.
12- No âmbito do acordo referido em 11, desde o início do ano de 2006 até à constituição da Ré em 30 de abril de 2007, AC e mulher passaram a implementar os produtos USN no mercado português e espanhol, passando a fazê-lo a Ré a partir da sua constituição.
13- Antes da constituição da Autora em 2008, e após esta, a Ré adquiria também os produtos USN não só à USN Africa do Sul, como diretamente a outros fabricantes, nomeadamente à Manumixx e à SCI-MX Nutrition Limited.
14- No acordo referido em 11, a R. tinha o direito a fabricar os produtos USN, e a adquiri-los a qualquer fabricante ou distribuidor.
15- Em 17 de dezembro de 2008 AG, na qualidade de Diretor da USN UK, remeteu para o email "…@...uk", com conhecimento a outras entidades entre elas AC e CC, o texto que consta do documento 6 junto pela Ré, devidamente traduzido a fls. 497, e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, onde além do mais consta que o casal CC, em 2008, "deram um enorme contributo para o sucesso da USN UK", e que passaria a ser Diretor desta JO.
16- Em 17 de Novembro de 2008 AG remeteu para o email de AC o texto constante do documento 7 junto pela Ré, devidamente traduzido a fls. 499, e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
17- A Ré sempre foi representada, de facto, por AC, sendo este que participava pessoalmente, em nome daquela, nas reuniões e correspondência trocada entre a Ré e a Autora, e outros parceiros do grupo económico USN, bem como com clientes da Ré.
18- Foi AC, em representação da Ré, que encetou e sempre manteve negociações com a A. com vista a firmarem contrato escrito de distribuição dos produtos USN no mercado português, o que não veio a lograr alcançar, e era AC quem tomava as decisões sobre a atividade da Ré.
19- Em 1 de abril de 2010, no âmbito das negociações referidas em 18, a Autora remeteu à R. na pessoa de AC o email que consta do documento 12, traduzido e constante de fls. 511 e seguintes do processo físico, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, no qual remete em anexo uma Minuta de contrato, referindo haver alterações e acertos a fazer.
20- Para serem revendidos no mercado ibérico, os produtos USN têm de ser etiquetados de acordo com as instruções das entidades reguladoras de Portugal e Espanha, tendo a Ré diligenciado pela tradução dos rótulos de acordo com os regulamentos legais, a expensas suas.
21- Em Portugal a R. teve de traduzir os rótulos e submetê-los à aprovação da Direção de Serviços de Normalização e Segurança Alimentar, um departamento do Gabinete de Planeamento e Políticas, do Ministério da Agricultura, Mar e Ambiente e Ordenamento do Território.
22- A R. prestava conselhos técnicos especializados aos seus clientes relativamente à escolha e à utilização dos produtos USN, antes e depois da venda.
23- Especialistas da marca USN deslocaram-se a Portugal para dar formação aos empregados da R. e a staff de clientes, como o Holmes Place, o que foi feito a expensas da R..
24- Para fomentar as vendas, a R. também realizou descontos e promoções perante diversos clientes, abdicando de parte da sua margem.
25- A Ré participou, com instalação de pavilhões próprios, a expensas suas, em 2 a 3 feiras de produtos do sector de suplementos alimentares dietéticos e energéticos, nomeadamente nas feiras e convenções da Holmes Place, Open Days, Trade Fairs.
26- Nessas feiras, a R. divulgou os produtos USN, expondo-os perante os potenciais clientes e o público em geral, exibindo o logótipo e as suas marcas.
27- A R. também patrocinou várias equipas e eventos para publicitar os produtos USN que adquiria à USN Africa do Sul e a outras entidades, e posteriormente à A., nomeadamente a Federação Portuguesa de Triatlo em Competições Internacionais e a Federação Portuguesa de Rugby, do que deu conhecimento à A..
28- A R. divulgava os produtos USN no seu sítio na Internet: www.usn.pt, www.usn.com.pt e www.usn.es.
29- Colaboradores da R. participaram, a expensas da primeira, em conferências técnicas e comerciais sobre produtos USN, e frequentaram cursos de formação técnica e cursos de vendas desses produtos, fora de Portugal.
30- A R. traduziu alguns catálogos e panfletos informativos dos produtos USN de Inglês para Português e Espanhol, identificados pelo fabricante e pelo logótipo da USN, e descreviam as características e as especificações técnicas do produto e os seus benefícios para o cliente e para o utilizador.
31- A R. deu conhecimento à A. de algum deste material publicitário, e material traduzido.
32- A atuação da R. criou um mercado com vários clientes para os produtos comercializados pela A., entre os quais, como especialmente relevantes, se contam a Sportzone, Holmes Place, Sport Lisboa e Benfica Futebol SAD e Associação Portuguesa de Rugby.
33- Aos números de vendas da Ré, de produtos USN que adquriu à A, entre 2007 a 2011 (artigos 150° a 154° da Reconvenção), bem como quanto à matéria dos arts. 229, 230, 231, 362 a 377, 406, 407, 412, e primeira parte do art. 415 da Reconvenção, resultou provado o que consta do Relatório Pericial junto a 11-10-2016 sob a Ref.- 8222175, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, bem como Esclarecimento aditado, assinalando-se que a Ré invoca ter vendido aos seus cientes produtos USN adquiridos à A. entre 1 de janeiro a 31 de dezembro de 2007, quando a A. só foi constituída no ano 2008:
34- Por continuar sem liquidar a dívida à A., assumida pela Ré e mencionada em 3 a 5 dos fatos assentes, em 5-09-2011 a A. remeteu à R. na pessoa de AC o teor do escrito enviado por email constante do doc. 68 junto pela R. e cujo teor se dá qui por reproduzido, onde, além do mais, a A. informa a R. que, por falta de solvabilidade desta, passará a fornecer diretamente o cliente Nutritienda, e passará a A. e não a R. a intervir na Feira "Arnold Classic Europe", em Madrid, dando-lhe ainda a possibilidade de reverter tal situação caso liquide a divida até dia 9-09-2011.
35- A ré estava para participar na Feira "Arnold Classic Europe", em Madrid, dirigida ao mercado Ibérico.
36- A Ré não liquidou a dívida, e com data de 20-09-2011, AC em representação da R. escreveu a carta dirigida à A que constitui o documento 71, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
37- Autora e Ré estabeleceram negociações para os termos da cessação da relação negocial, não logrando as partes obter consenso.
38- Em 2011 a R. requereu ao RNPC autorização para aprovação de nova firma, e no dia 22 de dezembro de 2012 o RNPC aprovou que a R. alterasse a sua firma para Onlinelog - Unipessoal, Lda.
39- No dia 6 de dezembro de 2011, a R. representada por AC teve uma reunião na sede da Sportzone, esta representada por AL, em que se discutiu se quem passava a fornecer USN à Sportzone era a Ré ou a A., decidindo a Sportzone aguardar que as partes definissem tal questão.
40- Após tal reunião, AL reuniu com CT.
41- No dia 10 de janeiro de 2012, a R. representada por AC escreveu à A. alertando que existia um risco real de um dos seus melhores clientes, a Sportzone, perder o interesse em comercializar os produtos USN, caso a situação não fosse clarificada pelas partes.
42- A Ré escreveu e endereçou à A. a Carta que apelida de resolução e que constitui o Doc. 88, cujo teor se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais, remetendo-a para a morada da A., tendo remetido igual texto para a A. na pessoa de JO. por email de 17-1-2012.
43- Em 31-01-2012 a Ré endereçou email à A. conforme Doc. 93 cujo teor se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais, onde além do mais lhe concedeu o prazo de 12 horas para declarar se estava interessada na compra do "Stock" de produtos USN que ainda possuía, após o que o venderia a outros interessados.
44- A Ré escreveu e endereçou à A., remetendo-a para a morada desta, a Carta de 20-01-2012 que consta do Doc. 94 da Reconvenção, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, e onde esta reclama o pagamento de "Goodwill".
45- A 17 de fevereiro de 2012 a R. emitiu à A. a fatura n.° 1405, a pronto pagamento, referente a material de marketing no valor de EUR 6.537,16, e emitiu a guia de remessa n.° 7 à A., a pronto pagamento, referente ao stock no valor de EUR 14.122,80.
46- A Ré emitiu à A. a guia de remessa n.° 10 de 22 de fevereiro de 2012.
*
A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO NÃO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
1-Que entre a A. e a R. vigorou um contrato verbal de concessão comercial sob o qual a R. operava como distribuidor exclusivo dos produtos da A. no território do mercado ibérico (Portugal e Espanha), que teve início em 2008 e foi resolvido pela R. com produção dos seus efeitos em 17 de Janeiro de 2012;
2- Que a partir de 2008 a R. passou a manter com a A. um contrato de concessão comercial não reduzido a escrito, pelo qual a A. se obrigou a fornecer por tempo indeterminado à segunda os produtos USN por si comercializados, e atribuiu à R. o direito de distribuição exclusiva destes produtos no território da Península Ibérica, ocorrendo essa distribuição predominantemente em Portugal, estando vedada a possibilidade de qualquer outra entidade, incluindo a A., de distribuir produtos da marca USN neste território;
3- Que por sua vez a R. vinculou-se, por tempo indeterminado, a comprar à A. esses produtos e a revendê-los no mercado Ibérico, e obrigou-se nesse contrato a distribuir tais produtos nas condições acordadas, pagando um preço por tais produtos e comprometendo-se a cumprir determinados objetivos de valor de vendas, nos termos do qual a R. operava como distribuidor exclusivo dos produtos da A. no território do mercado ibérico.
4- Que o acordo referido em 8 a 12 dos fatos assentes incluísse o direito de exclusividade da Ré de representação da marca USN em Portugal;
5- Que nenhuma outra empresa, além da Ré, estava autorizada a distribuir produtos USN em Portugal e Espanha, e que nunca tivesse havido outra empresa a revender produtos USN em Portugal;
6- Que por não ter representante dos seus produtos em Inglaterra, a USN South Africa convidou o casal CC para uma parceria em que o casal teria uma participação social de 15%, face uma participação de 15% de JV e de 70% da USN South Africa, no capital da sociedade USN UK, a constituir pelos três com objetivo de distribuir os produtos USN no Reino Unido, e que o casal aceitou esta proposta.
7- Que no último trimestre de 2007, o casal CC criou a USN UK, ora A..
8- Que só para se estabelecer no mercado, em 2007, a R. despendeu aproximadamente EUR 315.785,47;
9- Que a A. utilizou as traduções dos textos dos rótulos feitas pela Ré, e continua a utilizá-los nos fornecimentos que realiza diretamente para o mercado ibérico;
10- Que a Ré contratou uma dietista para aconselhamento online sobre o consumo dos produtos USN no seu site na Internet;
11- Que enquanto o contrato foi executado, a R. constituiu e manteve um stock dos produtos da A. equivalente a 2 a 3 meses de vendas, para que esses produtos estivessem sempre disponíveis para entrega, sem ruturas, e para assegurar promoções, ofertas de amostras, etc. aos seus clientes, no que investia um valor entre EUR 30.000,00 a EUR 60.000,00.
12- Que por ano, a R. chegou a fazer descontos que atingiam a proporção anual de cerca de 20% do seu volume de vendas, para permitir a criação de um mercado dos produtos da A.;
13- Que informou a A. da divulgação dos seus produtos;
14- Que a R. tinha aproximadamente mil clientes;
15- Que a R. encomendava produtos à A. consoante os pedidos dos clientes e as suas necessidades de aprovisionamento de stock, numa média de 28.000 produtos por ano.
16- Não Provada a matéria relativa a "CT", a saber:
-Que CT foi contratado pela R. em Junho de 2011 como seu colaborador para prestar serviços à R. no âmbito da revenda e continuação da implementação dos produtos USN em Portugal e Espanha;
 -Que CT é atualmente colaborador da A., vendendo os produtos da A. no mercado ibérico, e é detentor de participação social na estrutura entretanto criada por ambos para fornecimento de produtos USN no mercado ibérico;
-Que CT, na qualidade de representante da A., passou a efetuar visitas periódicas a clientes da R., convidando-os a passarem a comprar à A. os produtos e declarando que a R. perderia em breve a concessão desses produtos;
-Que CT, com consentimento da A., divulgava a clientes da R. que podia conseguir preços mais vantajosos do que os praticados pela R. se comprassem diretamente a CT, em virtude de este ter uma relação privilegiada com a A..
-Que a A., através de CT, beneficiou ilegitimamente de informação privilegiada e confidencial da R., tais como lista de clientes, lista de preços e estrutura de descontos para o mercado;
-Que durante o tempo em que prestou serviços à R., entre Junho e Setembro de 2011, a R. pagou a CT o valor de EUR 3.000,00 a título de serviços prestados, despesas de representação e uso de cartão de crédito no valor de EUR 1.025,04, e suportou EUR 2.243.96 com as várias deslocações de CT ao estrangeiro, no período em que prestou serviços à R.
-Que a R. efetuou os investimentos referidos supra contando que CT estava efetivamente a prestar um serviço em seu benefício, mas CT estava ao serviço da A.; -Que desviou clientes da Ré para a A.;
17- Que a Autora reconheceu à R. ser-lhe devido a margem das encomendas feitas pela Nutritienda diretamente à A. pelo período de agosto de 2011 a janeiro de 2012;
19- Que a A. tinha intenção de participar na Feira "Arnold Classic Europe", em vez da R., como parte da estratégia de se apoderar do mercado criado pela Ré;
20- Que a R. tenha suportado 616,00 euros nos pedidos de autorização necessária para aprovação de nova firma;
21- Que em 21-11-2011 A. e R. chegaram a um consenso quanto aos termos da cessação das suas relações comerciais, e que nos termos de tal consenso a A. comprometia-se a renunciar a quaisquer reclamações relacionadas com o saldo negativo de conta corrente da R. (à data no valor bruto de EUR 174.250,85), e a pagar à R. o valor de EUR 20.000,00, a título de compensação pela cessação do contrato de concessão comercial
22- Que durante as negociações de cessação de relações entre A. e R. a primeira solicitou à segunda que mantivesse o fornecimento dos seus produtos ao mercado, para não prejudicar a sua imagem.
23- Que a partir de 9 de novembro de 2011, a A. bloqueou todos os fornecimentos à R.
24- Que a A. agiu com a intenção de se apoderar do mercado ibérico dos seus produtos, criado, desenvolvido e mantido pela R. e para conseguir tal desiderato prejudicou a relação de confiança conquistada pela R. junto dos seus clientes, manchou a imagem e reputação da R. junto dos seus clientes, nomeadamente com a Nutritienda e a Sportzone.
25- Que a A. se tenha oposto a que a R. vendesse o stock a terceiros, e que como tal a R. decidiu então devolver à A. o stock e o material de marketing, em vez de o vender, tendo preparado e embalado este material e o stock em paletes próprias para recolha da empresa prestadora de serviços de logística à A. - Transportes Azkar Portugal; e que em 17 de fevereiro de 2012 a R. colocou o material de marketing e o stock à disposição da Transportes Azkar Portugal, para entrega à A., que tal entrega tenha sido feita, e que os bens estão à disposição da A. desde 17-2-2012;
26- Que a R. se apercebeu que a A. tomava ações à socapa para lhe retirar o mercado que criou, e em que tanto investiu;
27- Que em resultado da aludida resolução do contrato, em 17 de fevereiro de 2012 a Sportzone devolveu à R. produtos que haviam sido por si encomendados;
28- Que tais produtos tivessem o valor de EUR 3.206,50,
29- Que a Ré tenha colocado os produtos à disposição da A.
Consignou-se, ainda, o seguinte:
“A demais matéria alegada pelas partes e não mencionada como provada ou não provada trata-se de matéria que configura unicamente juízos conclusivos, matéria de direito, repetida, ou irrelevante ou alheia à causa (como sejam, nomeadamente, os alegados danos não patrimoniais de AC e mulher, a título pessoal, invocados nos arts. 422 a 455 da Reconvenção, uma vez que não são partes na ação, ou a matéria da encomenda descrita nos arts. 291 a 300, dado que a R. acaba a final por reconhecer que esses valores foram abatidos pela A. ao crédito que reclama sobre si), sendo por isso matéria irrespondível nesta sede. (cfr. Acórdãos do tribunal da Relação de Lisboa de 6-03-2012 e de 2-07-2013, consultados em www.dgsi.pt).
Mais se consigna que não tendo resultado provado que entre a A. e a R. foi celebrado um contrato de concessão ou distribuição comercial, com clausula de exclusividade a favor da Ré, a factualidade relativa às exceções invocadas pela Autora em resposta à Reconvenção, no pressuposto da existência de tal contrato, mostra-se prejudicada”.
*
4. Fundamentação de Direito:
*
I) Questão prévia:
*
A) Delimitação do objeto do recurso.
Preliminarmente, no ponto I das suas alegações, a apelante tece diversas considerações onde salienta que, para si, “(…) é tudo menos surpreendente o sentido da sentença recorrida e a sua agressividade para com a Apelante e a prova que esta produziu neste processo.
Em diferentes ocasiões ao longo do procedimento em 1ª instância a M. Juíza a quo nunca deixou de expressar exatamente o mesmo.
As gravações da audiência de julgamento, mesmo nos limites consentidos pelo mero registo sonoro, evidenciam a forma e a agressividade – para dizer o mínimo – com que a M. Juíza a quo tratou a Apelante e as testemunhas arroladas por esta”.
Em jeito conclusivo, referiu que: “Em face do exposto, surpreendente seria para a Apelante se a sentença julgasse o litígio de forma equilibrada e com sentido de justiça”.
A apelada pronunciou-se, em contra-alegações, sobre este ponto, a título de questão prévia.
Conforme já se aludiu e constitui jurisprudência constante, o objeto do recurso ou o thema decidendum é apenas delimitado pelas conclusões do recorrente na alegação de recurso (ou pelas conclusões do recorrido, no caso de ter ampliado o recurso)  – cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª Ed., Almedina, 2018, p. 114 e os seguintes acórdãos: STJ de 06-06-2018 (Pº 4691/16.2T8LSB.L1.S1, rel. FERREIRA PINTO); de 11-09-2019 (Pº 42/18.0T8SRQ.L1.S1, rel. RIBEIRO CARDOSO); de 24-09-2020 (Pº 4899/16.0T8PRT.P1.S1, rel. ROSA TCHING); de 04-05-2021 (Pº 327/14.4T8CSC.L1.S1, rel. MARIA CLARA SOTTOMAYOR), todos disponíveis em https://www.dgsi.pt (assim como os demais indicados sem outra proveniência).
Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. artigo 5.º n.º 3, do Código de Processo Civil, doravante e abreviadamente, CPC).
Ora, as considerações expendidas pela apelante não se reconduziram, em sede de conclusões recursórias, à formulação de alguma questão sobre a conduta que a apelante regista ter tido o Tribunal recorrido.
Também não se alcança ocorrer alguma questão de oficioso conhecimento por este Tribunal de recurso a tal título.
Tendo presente o âmbito assim delimitado, conhecer-se-á, quanto às demais questões acima enunciadas, do recurso interposto.
*
II) Nulidades da sentença:
*
A) Se a sentença é nula, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC?
Invoca a ré/apelante que a sentença recorrida é nula, por omissão de pronúncia, que argui nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, por, em seu entender, o que alegou no artigo 183.º da oposição – “Não obstante a oposição da R., a A. continuou a fornecer as encomendas recebidas de clientes no mercado ibérico, como a Nutritienda, através de CT, nos termos referidos, até à resolução do contrato celebrado com a R. e, até ao presente, continuou e continua a comercializar os produtos USN no mercado ibérico” – que considera facto relevante para a boa decisão da causa, não ter sido “julgado, nem como provado, nem como provado”.
A recorrida contrapôs que não ocorre a nulidade arguida, “(…) estando assente, logo após a exposição dos factos não provados, que “A demais matéria alegada pelas partes e não mencionada como provada ou não provada trata-se de matéria que configura unicamente juízos conclusivos, matéria de direito, repetida, ou irrelevante ou alheia à causa [...], sendo por isso matéria irrespondível nesta sede. (cfr. Acórdãos do tribunal da Relação de Lisboa de 6-03-2012 e de 2-07-2013, consultados em www.dgsi.pt')."” e que – aludindo aos factos não provados n.ºs. 1 a 4, “tal factologia só seria relevante se tivesse sido dado como provado que entre a Recorrente e Recorrida existiu algum tipo de clausula de exclusividade o que, pelo contrário, foi, desde logo, dado como não provado”.
Vejamos:
Nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, relativo às causas de nulidade da sentença, a sentença será nula se “[o] juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Vejamos se, no caso, o juiz deixou de se pronunciar sobre questões de que devesse conhecer, sabendo-se que, é «frequente a enunciação nas alegações de recurso de nulidades da sentença, numa tendência que se instalou e que a racionalidade não consegue explicar, desviando-se do verdadeiro objecto do recurso que deve ser centrado nos aspectos de ordem substancial. Com não menos frequência a arguição de nulidades da sentença acaba por ser indeferida, e com toda a justeza, dado que é corrente confundir-se o inconformismo quanto ao teor da sentença com algum dos vícios que determinam tais nulidades» (assim, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, pág. 132).
Apenas existirá nulidade da sentença por omissão de pronúncia (ou por pronúncia indevida) com referência às questões objeto do processo, não com atinência a todo e qualquer argumento esgrimido pela parte.
A nulidade por omissão de pronúncia supõe o silenciar, em absoluto, por parte do tribunal sobre qualquer questão de cognição obrigatória, isto é, que a questão tenha passado despercebida ao tribunal, já não preenchendo esta concreta nulidade a decisão sintética e escassamente fundamentada a propósito dessa questão (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-03-2007, Pº 07A091, rel. SEBASTIÃO PÓVOAS).
Caso o tribunal se pronuncie quanto às questões que lhe foram submetidas, isto é, sobre todos os pedidos, causas de pedir e exceções que foram suscitadas, ainda que o faça genericamente, não ocorre o vício da nulidade da sentença, por omissão de pronúncia. Poderá, todavia, existir mero erro de julgamento, atacável em via de recurso, onde caso assista razão ao recorrente, se impõe alterar o decidido, tornando-o conforme ao direito aplicável.
A nulidade da sentença (por omissão ou excesso de pronuncia) há de, assim, resultar da violação do dever prescrito no n.º 2 do referido artigo 608º do Código de Processo Civil do qual resulta que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
A questão a decidir pelo julgador está diretamente ligada ao pedido e à respetiva causa de pedir, não estando o juiz obrigado a apreciar e a rebater cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a procedência da sua pretensão, ou a pronunciar-se sobre todas as considerações tecidas para esse efeito. O que o juiz deve fazer é pronunciar-se sobre a questão que se suscita apreciando-a e decidindo-a segundo a solução de direito que julga correta.
De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 608.º do CPC, “o juiz resolve todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”, pelo que, não se verifica omissão de pronúncia quando o não conhecimento de questões fique prejudicado pela solução dada a outras, sendo certo que, o dever de pronúncia obrigatória é delimitado pelo pedido e causa de pedir e pela matéria de exceção.
“O dever imposto no nº 2, do artigo 608º diz respeito ao conhecimento, na sentença, de todas as questões de fundo ou de mérito que a apreciação do pedido e da causa de pedir apresentadas pelo autor (ou, eventualmente, pelo réu reconvinte) suscitam. Só estas questões é que são essenciais à solução do pleito e já não os argumentos, razões, juízos de valor ou interpretação e aplicação da lei aos factos. Para que este dever seja cumprido, é preciso que haja identidade entre a causa petendi e a causa judicandi, entre a questão posta pelas partes e identificada pelos sujeitos, pedido e causa de pedir e a questão resolvida pelo juiz” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15-03-2018, Processo nº 1453/17.3T8BRG.G1, relatora EUGÉNIA CUNHA).
Assim, “importa distinguir entre os casos em que o tribunal deixa de pronunciar-se efetivamente sobre questão que devia apreciar e aqueles em que esse tribunal invoca razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção, sendo coisas diferentes deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte, por não ter o tribunal de esgotar a análise da argumentação das partes, mas apenas que apreciar todas as questões que devam ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25-03-2019, Processo 226/16.5T8MAI-E.P1, relator NELSON FERNANDES).
Na realidade, como se referiu no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 28-09-2011 (P.º n.º 480/09.9JALRA.C1, relator ORLANDO GONÇALVES): “1.- A nulidade de sentença por omissão de pronúncia refere-se a questões e não a razões ou argumentos invocados pela parte ou pelo sujeito processual em defesa do seu ponto de vista. 2.- O que importa é que o tribunal decida a questão colocada e não que tenha que apreciar todos os fundamentos ou razões que foram invocados para suporte dessa pretensão”.
Se a decisão não faz referência a todos os argumentos invocados pela parte tal não determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, sendo certo que a decisão tomada quanto à resolução da questão poderá muitas vezes tornar inútil o conhecimento dos argumentos ou considerações expendidas, designadamente por opostos, irrelevantes ou prejudicados em face da solução adotada.
Conclui-se – como se fez no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-05-2019 (Processo 1211/09.9GACSC-A.L2-3, relatora MARIA DA GRAÇA SANTOS SILVA) - que: “A omissão de pronúncia é um vício que ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre essas questões com relevância para a decisão de mérito e não quanto a todo e qualquer argumento aduzido. O vocábulo legal -“questões”- não abrange todos os argumentos invocados pelas partes. Reporta-se apenas às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, às concretas controvérsias centrais a dirimir”.
No caso em apreço, o alegado no artigo 183.º da oposição – reportando-se à alegação de oposição da ré e, não obstante tal oposição ao fornecimento que a autora continuou de encomendas de clientes no mercado ibérico, “como a Nutritienda, através de CT, nos termos referidos, até à resolução do contrato celebrado com a R. e, até ao presente, continuou e continua a comercializar os produtos USN no mercado ibérico” – encontra-se integrado na oposição da ré, sob o título “E. DA VIOLAÇÃO DO DEVER DE EXCLUSIVIDADE E DO DEVER DE AGIR DE BOA FÉ” (cfr. p. 23 desse articulado). É na economia da apreciação dessa questão, que a aludida alegação tem enquadramento.
Em sede de saneamento dos autos, o Tribunal enunciou como temas da prova, sobre os quais incidiria a instrução, os seguintes (enunciação efetuada no despacho proferido em 05-01-2015 e depois alterada em ata de audiência prévia, realizada em 07-05-2015):
“(…) a) Das relações entre a Autora e a Ré; se vigorou entre elas acordo e quais as obrigações o constituíam, entre as quais, se:
a. a Autora se obrigou a fornecer á Ré os produtos por si comercializados,
b. a Autora atribuiu á Ré o direito de distribuição exclusiva desses produtos na Península Ibérica,
c. a Autora atribuiu á Ré o direito a comprar esses produtos a qualquer outro fabricante ou distribuidor;
d. a Ré se obrigou a comprar á Autora esses produtos e a revendê-los neste mercado,
e. com a fixação de condições e objetivos de valor de vendas.
b) Dos atos e investimentos da Ré para a execução do contrato, e antes deste para a implementação dos produtos do comércio da Autora, consequências desses atos no volume de negócios dos produtos vendidos pela Autora: se procedeu á criação e desenvolvimento do negócio e ao aumento de vendas no mercado; do aproveitamento desses atos pela Autora;
c) Da venda direta pela Autora dos seus produtos no mercado ibérico, através de acordo com um funcionário da Ré;
d) Do acordo entre Autora e Ré obrigando-se a primeira a entregar á segunda percentagem do valor das vendas por si feitas diretamente á Nutrienda e respetivos valores;
e) Da celebração de acordo entre as partes para a extinção do contrato, incluindo o processo negocial, sua rotura e do bloqueio de fornecimentos,
f) Da resolução dos contratos volume de negócios da Ré á data da resolução do contrato: valor dos produtos vendidos e comprados nos últimos cinco anos, das perdas e ganhos da Autora e Ré por força do terminus do contrato negócios que teria com os clientes angariados por força dos atos da Autora; da previsibilidade de crescimento das margens de lucro, caso se mantivesse a exclusividade na venda dos produtos da Autora;
g) Das consequências dos atos da Autora na imagem e clientes da Ré e custos da guarda e armazenamento de stock e marketing suportados pela Ré;
h) Dos atrasos de pagamento das faturas em que incorreu a Ré e suas consequências nas relações com a Autora, á advertência de que a mesma extinguiria as suas relações comerciais;
i) Da data e momento em que a Ré soube dos factos que fundaram a sua declaração de resolução e dos seus comportamentos durante a manutenção de conversações quanto ao terminus do contrato;
j) Da imagem negativa da Autora provocada pela Ré e suas consequências para a Autora.”.
E, como questões a decidir, enunciou-se na decisão recorrida que:
“Posto que se mostra confessado pela Ré o pedido e causa de pedir da ação, importa apurar da natureza jurídica da relação comercial estabelecida entre a Autora e a Ré e se assiste a esta o direito à Indemnização de Clientela, e demais pedidos indemnizatórios fundados em incumprimento pré-contratual e contratual da A.;
-Na procedência dos pedidos reconvencionais da Ré, apreciar das exceções invocadas pela A., a saber, da exceção de não cumprimento nos termos do art. 428º do CC, do abuso de direito da Ré, e da caducidade do direito da R. à Resolução do contrato.”.
Depois, em sede da selecção factual a que procedeu, o Tribunal recorrido deixou consignado que:
“(…) A demais matéria alegada pelas partes e não mencionada como provada ou não provada trata-se de matéria que configura unicamente juízos conclusivos, matéria de direito, repetida, ou irrelevante ou alheia à causa (como sejam, nomeadamente, os alegados danos não patrimoniais de AC e mulher, a título pessoal, invocados nos arts. 422 a 455 da Reconvenção, uma vez que não são partes na ação, ou a matéria da encomenda descrita nos arts. 291 a 300, dado que a R. acaba a final por reconhecer que esses valores foram abatidos pela A. ao crédito que reclama sobre si), sendo por isso matéria irrespondível nesta sede. (cfr. Acórdãos do tribunal da Relação de Lisboa de 6-03-2012 e de 2-07-2013, consultados em www.dgsi.pt) (…)”.
Perante estas considerações, constantes da decisão recorrida, em particular do trecho que consta sublinhado, não se pode considerar que o Tribunal recorrido tenha omitido pronúncia que devesse ter efetuado sobre o aludido artigo 183.º da oposição, matéria que considerou integrada no aludido conjunto, razão pela qual não a integrou na seleção factual (na dicotomia factos provados/não provados).
E, quanto ao mais, verifica-se que inexiste também alguma omissão de pronúncia quanto à questão onde tal factualidade relevava, a qual, conforme resulta expresso da fundamentação de direito da decisão recorrida, resultou improcedente, por não se comprovarem os pressupostos em que a mesma assentaria: “Do acervo fatual dado por provado e não provado, bem como da respetiva motivação, resulta à saciedade que a Ré não logrou provar, como lhe competia nos termos do art. 342º, n.º 1 do C. Civil, a existência do aludido contrato de concessão comercial da Marca USN, com direito de exclusividade a favor da Ré, alegadamente celebrado entre esta e a Autora.
Na verdade, não só não resultou provada a celebração do dito contrato, como igualmente não se apurou que entre a Autora e a Ré tivesse sido celebrado qualquer outro contrato, sendo as relações comerciais de ambas as de mero fornecedor/vendedor da parte da A., e a de mero comprador da parte da Ré.
Uma vez que todos os pedidos indemnizatórios formulados pela Ré contra a Autora têm como pressuposto – causa de pedir - a existência do referido contrato, e não se mostrando este provado, resta concluir, sem necessidade de outros considerandos, que a reconvenção, bem assim os pedidos reconvencionais, estão votados à total improcedência.
E, nesta conformidade, mostram-se prejudicadas as exceções de abuso de direito e de caducidade invocadas pela A., que pressupõem a existência do aludido contrato”.
Em face do exposto, a nulidade arguida não se verifica, improcedendo o que em contrário foi invocado pela apelante.
*
III) Impugnação da matéria de facto:
Nas conclusões 2 a 5 das alegações da apelante, na sequência da alegação que desenvolve, conclui a recorrente que deve ser a alterada a seleção factual, nos termos que concretiza.
Com a alegação produzida, desenvolvida na motivação das alegações, a recorrente/apelante pretende colocar em crise a factualidade selecionada pelo Tribunal a quo.
No caso sub judice, a prova produzida em audiência foi gravada, pelo que, cumpre apreciar se deve este Tribunal ad quem proceder à reapreciação da matéria de facto impugnada.
Prescreve o artigo 639.º do CPC – sobre o ónus de alegar e de formular conclusões - nos seguintes termos:
“1 - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.
3 - Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada.
4 - O recorrido pode responder ao aditamento ou esclarecimento no prazo de cinco dias.
5 - O disposto nos números anteriores não é aplicável aos recursos interpostos pelo Ministério Público, quando recorra por imposição da lei.”.
Por sua vez, dispõe o artigo 640.º do CPC que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
Assim, aos concretos pontos de facto, concretos meios probatórios e à decisão deve o recorrente aludir na motivação do recurso (de forma mais desenvolvida), sintetizando-os nas conclusões.
As exigências legais referidas têm uma dupla função: Delimitar o âmbito do recurso e tornar efetivo o exercício do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
O recorrente deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-03-2014, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, relator ALBERTO RUÇO).
Os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (cfr. o Acórdão do STJ de 28-04-2014, P.º nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, rel. ABRANTES GERALDES).
Não cumprindo o recorrente os ónus do artigo 640º, n.º 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art. 639º, nº 3 do C.P.C. (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-06-2014, P.º n.º 1458/10.5TBEPS.G1, rel. MANUEL BARGADO).
Dever-se-á usar de maior rigor na apreciação da observância do ónus previsto no n.º 1 do art. 640.º (de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente do mesmo), face ao ónus do n.º 2 (destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, rel. LOPES DO REGO).
O ónus atinente à indicação exata das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicação, com exatidão, só será idónea a fundamentar a rejeição liminar se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (cfr. Acs. do STJ, de 26-05-2015, P.º nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, rel. HÉLDER ROQUE, de 22-09-2015, P-º nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, rel. PINTO DE ALMEIDA, de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, rel. LOPES DO REGO e de 19-01-2016, P.º nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, rel. SEBASTIÃO PÓVOAS).
A apresentação de transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, rel. MARIA DOS PRAZERES BELEZA), o mesmo sucedendo com o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (cfr. Ac. do STJ de 28-05-2015, P.º n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1, rel. GRANJA DA FONSECA).
Nas conclusões do recurso devem ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação, bastando que os demais requisitos constem de forma explícita da motivação (neste sentido, Acs. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, rel. TOMÉ GOMES, de 01-10-2015, P.º nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, relatora ANA LUÍSA GERALDES, de 11-02-2016, P.º nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, rel. MÁRIO BELO MORGADO).
Note-se, todavia, que atenta a função do tribunal de recurso, este só deverá alterar a decisão sobre a matéria de facto se concluir que as provas produzidas apontam em sentido diverso ao apurado pelo tribunal recorrido. Ou seja: “I. Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. II: Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2017, Pº 6095/15T8BRG.G1, rel. PEDRO DAMIÃO E CUNHA).
A insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, rel. TOMÉ GOMES).
Contudo, “não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-09-2015, Pº 6871/14.6T8CBR.C1, rel. MOREIRA DO CARMO), sob pena de se praticar um acto inútil proibido por lei (cfr. artigo 130.º do CPC).
Estas as linhas gerais em que se baliza a reapreciação da matéria de facto na Relação.
No caso dos autos, a recorrente visa impugnar os factos selecionados pelo Tribunal recorrido, nos termos sobreditos.
Ora, afigura-se que, quanto à impugnação deduzida a respeito dos factos não provados n.ºs. 1, 2, 3, 4, 5 e 17, a recorrente cumpriu, em geral, suficientemente, o ónus de impugnação a que se referem as várias alíneas do n.º 2 do artigo 640.º do CPC, tendo identificado os pontos de facto que, em seu entender, deveriam ter tido decisão diversa, identificou qual a decisão que, em seu entender, deve ser proferida e concretizou os meios de prova, tendo procedido, quanto aos depoimentos a que alude e que considera relevante, à transcrição de excertos de tais depoimentos (faculdade que a lei lhe confere).
Mas, igualmente, quanto ao invocado a respeito do artigo 186.º da oposição, se mostram observados os aludidos ónus de impugnação.
Na realidade, conforme se evidenciou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-10-2021 (Pº 4750/18.7T8BRG.G1.S1, rel. FÁTIMA GOMES), “[a]inda que não constitua uma impugnação de matéria de facto, no sentido típico, pode o recorrente entender que a matéria de facto provada e não provada não está completa, para a boa decisão da causa, invocando essa desconformidade em recurso. Com essa pretensão o recorrente quer ver incluídos factos alegados e sobre os quais versou o julgamento na matéria de facto, a partir de alegações e meios de prova, o que significa que o tribunal de recurso carece de ter elementos concretos sobre a indicada pretensão – quais os factos a aditar e porquê; quais os meios de prova que sustentam o aditamento” e, no caso, sobre o ponto referenciado, a impugnante não deixou de concretizar as respetivas motivações impugnatórias.
Cumpre, pois, apreciar os pontos objeto da impugnação de facto.
*
C) Se a matéria constante dos factos não provados n.ºs 1, 2 e 3 da decisão recorrida deve transitar para o rol dos factos provados?
Especificamente sobre a reapreciação probatória, importa referir que “o recorrente que pretenda contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal a quo terá de apresentar razões objectivas para contrariar a prevalência dada a um meio de prova sobre outro de sinal oposto, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro contrário, não sendo suficiente para o efeito a mera transcrição de excertos de alguns dos depoimentos prestados, já antes ouvidos pelo julgador sindicado e ponderados na sua decisão recorrida (art. 640º do C.P.C.)” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02-11-2017 (Processo n.º 501/12.8TBCBC.G1, relatora MARIA JOÃO MATOS).
O artigo 607.º, n.º 4, do CPC impõe ao julgador que na fundamentação da sentença declare “quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”
“A exigência de fundamentação da matéria de facto provada e não provada com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, devem ser feitas com clareza, objectividade e discriminadamente, de modo a que as partes, destinatárias imediatas, saibam o que o Tribunal considerou provado e não provado e a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo Tribunal” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-02-2019, Pº 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, rel. FONSECA RAMOS).
Lebre de Freitas (A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil, 3.ª ed., p. 315) refere, a este respeito, que: “No novo código, a sentença engloba a decisão de facto, e já não apenas a decisão de direito. Na decisão de facto, o tribunal declara quais os factos, dos alegados pelas partes e dos instrumentais que considere relevantes, que julga provados (total ou parcialmente) e quais os que julga não provados, de acordo com a sua convicção, formada no confronto dos meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador; esta convicção tem de ser fundamentada, procedendo o tribunal à análise crítica das provas e à especificação das razões que o levaram à decisão tomada sobre a verificação de cada facto (art. 607, n.º 4, 1.ª parte, e 5) ”.
Conforme se sublinhou no já citado Acórdão do STJ de 26-02-2019, Pº 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, rel. FONSECA RAMOS): “Sendo os temas da prova enunciados de maneira sucinta, ainda que pressuponham ampla matéria de facto, a exigência de fundamentação desta justifica-se, de modo mais acentuado, porquanto não acontece, como no passado, quando a análise da peça processual onde se respondia aos quesitos permitia, em regra, saber de modo discriminado (os quesitos eram enumerados) o que tinha ficado provado e não provado e a fundamentação, que sempre se reputou não ter que ser exaustiva, mas devendo dar a conhecer os meios de prova em que acentuou a convicção quanto à prova submetida a julgamento”.
Por seu turno, refere Francisco Manuel Lucas de Ferreira de Almeida (Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, pp. 350-351) que: “A estatuição do citado nº4 do art- 607º (1º- segmento) é, contudo, meramente indicadora ou programática, não obrigando o tribunal a descrever de modo exaustivo o iter lógico-racional da apreciação da prova submetida ao respectivo escrutínio; basta que enuncie, de modo claro e inteligível, os meios e elementos de prova de que se socorreu para a análise crítica dos factos e a razão da sua eficácia em termos de resultado probatório. Trata-se de externar, de modo compreensível, o itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pelo tribunal na apreciação da realidade ou irrealidade dos factos submetidos ao seu escrutínio. Deve, assim, o tribunal enunciar os meios probatórios que hajam sido determinantes para a emissão do juízo decisório, bem como pronunciar-se: - relativamente aos factos provados, sobre a relevância deste ou daquele depoimento (de parte ou testemunhal), designadamente quanto ao seu grau de isenção, credibilidade, coerência e objectividade; - quanto aos factos não provados, indicar as razões pelas quais tais meios não permitiram formar uma convicção minimamente segura quanto à sua ocorrência ou convencer quanto a uma diferente perspectiva da sua realidade ou verosimilhança […].Não impõe, contudo, a lei que a fundamentação das conclusões fácticas decisórias seja indicada separadamente por cada um dos factos, isolada e autonomamente considerado (podendo sê-lo por conjuntos ou blocos de factos sobre os quais a testemunha se haja pronunciado)”.
Conforme se assinalou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-10-2020 (Pº 258/18.9T8PNF-A.P1, rel. EUGÉNIA CUNHA): “Podendo ser objeto de instrução tudo quanto, de algum modo, possa interessar à prova dos factos relevantes para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, vedado está aquilo que se apresenta como irrelevante (impertinente) para a desenhada causa concreta a decidir, devendo, para se aferir daquela relevância, atentar-se no objeto do litígio (pedido e respetiva causa de pedir e matéria de exceção); Havendo enunciação dos temas de prova, o objeto da instrução são os temas da prova formulados, densificados pelos respetivos factos, principais e instrumentais (constitutivos, modificativos, impeditivos ou extintivos do direito afirmado) –v. arts 410º, do CPC e 341º e seguintes, do Código Civil e, ainda, artigo 5º, daquele diploma legal”.
Nesta linha é, pois, crucial que seja feita a indicação e especificação dos factos provados e não provados e a indicação dos fundamentos por que o Tribunal formou a sua convicção acerca de cada facto que estava em apreciação e julgamento, de acordo com os temas da prova fixados.
“A matéria de facto provada deve ser descrita pelo juiz de forma fluente e harmoniosa, técnica bem diversa de uma que continue a apostar na mera transcrição de respostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados, como os que usualmente preenchiam os diversos pontos da base instrutória (e do anterior questionário). Se, por opção, por conveniência ou por necessidade, se inscreveram nos temas de prova factos simples, a decisão será o reflexo da convicção formada sobre tais factos, a qual deve ser convertida num relato natural da realidade apurada… […]. O importante é que, na enunciação dos factos provados e não provados, o juiz use uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da acção.” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, p. 717).
Ora, conforme se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-05-2018 (Pº 3811/13.3TBPRD.P1.S1, rel. ROSA TCHING), “[f]actos provados são os factos concretos assim julgados, na sentença final, após exame crítico das provas e não os factos tidos como assentes no despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova. Ainda que se admita não haver obstáculo a que o juiz, no âmbito do novo Código de Processo Civil, continue a proferir despacho de fixação da matéria de facto considerada assente, é inquestionável que tal despacho não pode deixar de ser visto como um “guião” ou mero “suporte de trabalho” para o julgamento, pelo que, mesmo depois de decididas as reclamações contra ele apresentadas, não se forma  caso julgado formal sobre ele, podendo, por isso, os factos dados como assentes ser alterados pelo juiz do julgamento e/ou pelo juiz do tribunal de recurso”.
Ainda na mesma linha, cite-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23-11-2017 (Pº 3811/13.3TBPRD.P1, rel. MADEIRA PINTO) onde se escreveu que: “Sendo certo que a instrução tem por objecto os temas de prova enunciados e que no NCPC estes não se confundem apenas com factos podendo ser conclusões jurídicas ou versões contrárias de factos ou conclusões, é seguro para nós e de acordo com a generalidade da doutrina e da jurisprudência, que a enunciação dos temas de prova não constitui despacho que faça caso julgado formal sobre os factos essenciais, instrumentais ou complementares que interessam à decisão de direito segundo as diferentes soluções possíveis e alegados pelas partes de acordo com as regras dos artº 5º, nºs 1 e 2 e 607º, nº 4, NCPC”.
E conforme referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (Manual de Processo Civil, 2.ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 436), para que um facto se considere provado é necessário que, à luz de critérios de razoabilidade, se crie no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto. A prova “assenta na certeza subjectiva da realidade do facto, ou seja, no (alto) grau de probabilidade de verificação do facto, suficiente para as necessidades práticas da vida”.
Essa certeza subjectiva, com alto grau de probabilidade, há-de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto, ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica. Se pelo contrário, existir insuficiência, contradição ou incoerência entre os meios de prova produzidos, ou mesmo se o sentido da prova produzida se apresentar como irrazoável ou ilógico, então haverá uma dúvida séria e incontornável quanto à probabilidade dos factos em causa serem certos, obstando a que se considere o facto provado.
Importa considerar que, em termos substanciais, a impugnação da matéria de facto traduz-se no meio de sindicar a decisão que sobre ela proferiu a primeira instância, procurando-se que a Relação reaprecie e repondere os elementos probatórios produzidos, averiguando se a decisão da primeira instância relativa aos pontos de facto impugnados se mostra conforme às regras e princípios do direito probatório, impondo-se se proceda à apreciação não só da valia intrínseca de cada um dos elementos probatórios, da sua consistência e coerência, à luz das regras da normalidade e da experiência da vida, mas também da sua valia extrínseca, ou seja, da sua consistência e compatibilidade com os demais elementos.
Como refere Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, pág. 127): “Consistindo o processo jurisdicional num conjunto não arbitrário de actos jurídicos ordenados em função de determinados fins, as partes devem deduzir os meios necessários para fazer valer os seus direitos na altura/fase própria, sob pena de sofrerem as consequências da sua inactividade, numa lógica precisamente assente, em larga medida, na autorresponsabilidade das partes e, conexamente, num sistema de ónus, poderes, faculdades, deveres, cominações e preclusões”.
Assim, ressalvadas as modificações que podem ser oficiosamente operadas relativamente a determinados factos cuja decisão esteja eivada de erro de direito, por violação de regras imperativas, à Relação não é exigido que, de motu proprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova sujeitos a livre apreciação e valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova.
Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar, desde logo, o que o recorrente - no exercício do seu direito de impugnação da decisão da matéria de facto - indicou nas respectivas alegações e cujo âmbito tem a função de delimitar o objecto do recurso.
O ordenamento processual probatório português combina o sistema livre apreciação ou do íntimo convencimento com o sistema da prova positiva ou legal, dado que, “a partir da prova pessoal obtida e da análise do teor dos documentos existentes nos autos ou doutra fonte probatória relevante, tomando em consideração a análise da motivação da respectiva decisão, importa aferir se os elementos de convicção probatória foram obtidos em conformidade com o princípio da convicção racional, consagrado pelo artigo 607º, nº 5, do Código de Processo Civil” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06-10-2016, Pº 1306/12.1TBSSB.E1, rel. JOSÉ TOMÉ DE CARVALHO).
A valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, deve ser efectuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação, partindo da análise e ponderação da prova disponibilizada (cfr. Antunes Varela, Miguel Varela e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pp. 435-436).
Os meios probatórios têm por função a demonstração da realidade dos factos, sendo que, através da sua produção não se pretende criar no espírito do julgador uma certeza absoluta da realidade dos factos, o que, obviamente implica que a realização da justiça se tenha de bastar com um grau de probabilidade bastante, em face das circunstâncias do caso, das regras da experiência da comum e dos conhecimentos obtidos pela ciência.
A prova não visa “(...) a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) (...)”, mas tão só, “(...) de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto” (assim, Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, págs. 419 e 420).
A apreciação das provas resolve-se, assim, na formulação de juízos, que assentam na elaboração de raciocínios que surgem no espírito do julgador “(...) segundo as aquisições que a experiência tenha acumulado na mentalidade do juiz segundo os processos psicológicos que presidem ao exercício da actividade intelectual, e portanto segundo as máximas de experiência e as regras da lógica (...)” (assim, Alberto dos Reis; Código de Processo Civil Anotado, vol. III, pág. 245).
Nessa atividade de livre apreciação da prova deve o tribunal especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção adquirida (art. 653º, nº 2 do CPC), permitindo, dessa forma, que se “possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado” (cfr. Teixeira de Sousa; Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p. 348) e exercer um controle externo e geral do fundamento de facto da decisão.
A “prova testemunhal, tal como acontece com a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais, partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência [o id quod plerumque accidit] e de conhecimentos científicos.
Na transição de um facto conhecido para a aquisição ou para a prova de um facto desconhecido, têm de intervir as presunções naturais, como juízos de avaliação, através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam, fundadamente, afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não, anteriormente, conhecido, nem, directamente, provado, é a natural consequência ou resulta, com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de uniformização de jurisprudência, de 21-06-2016, Pº 2683/12.0TJLSB.L1.S1, rel. HÉLDER ROQUE).
Neste enquadramento, a credibilidade firmada em torno de um específico meio de prova tem subjacente a aplicação de máximas da experiência comum, que devem enformar a opção do julgador e cuja validade se objetiva e se afere em determinado contexto histórico e jurídico, à luz da sua compatibilidade lógica com o sentido comum e com critérios de normalidade social, os quais permitem (ou não) aceitar a certeza subjetiva da sua realidade.
Todas estas circunstâncias deverão ser ponderadas na ocasião em que a Relação procede à reapreciação dos meios de prova, evitando a introdução de alterações quando, fazendo atuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados.
Mas, não deverá esquecer-se que a função da Relação não é a de realizar um novo julgamento de facto: “Quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo; Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. Assim, em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30-11-2017, Pº 1426/15.0T8BGC-A.G1, rel. ANTÓNIO JOSÉ SAÚDE BARROCA PENHA).
Neste sentido, “não estando em causa formalidades especiais de prova legalmente exigidas para a demonstração de quaisquer factos e assentando a decisão da matéria de facto na convicção criada no espírito do juiz e baseada na livre apreciação das provas testemunhal e documental e pericial que lhe foram apresentadas, a sindicância de tal decisão não pode deixar de respeitar a liberdade da 1ª instância na apreciação dessas provas. O erro na apreciação das provas consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto quando a conclusão deveria ter sido manifestamente contrária, seja por força de uma incongruência lógica, seja por ofender princípios e leis científicas, nomeadamente, das ciências da natureza e das ciências físicas ou contrariar princípios gerais da experiência comum (sendo em todos os casos o erro mesmo notório e evidente), seja também quando a valoração das provas produzidas apontarem num sentido diverso do acolhido pela decisão judicial mas, note-se, excluindo este. Em caso de dúvida sobre o sentido da decisão, face às provas que lhe são apresentadas, a 2ª instância deve fazer prevalecer a decisão da 1ª instância, em homenagem à livre convicção e liberdade de julgamento. A garantia do duplo grau de jurisdição em caso algum pode subverter o princípio da livre apreciação da prova, de acordo com a prudente convicção do juiz acerca de cada facto e, por isso, o objecto do recurso não pode ser nem a liberdade de apreciação das provas, nem a convicção que presidiu à matéria de facto, mas esta própria decisão” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05-05-2011, Pº 334/07.3TBASL.E1, rel. MARIA ALEXANDRA A. MOURA SANTOS).
É que, na verdade, como escreve Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, p. 234): “… existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador. O sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1ª instância a percepção do entusiamo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo. Além do mais, todos sabemos que, por muito esforço que possa ser feito na racionalização da motivação da decisão da matéria de facto, sempre existirão factores difíceis ou impossíveis de concretizar ou de verbalizar, mas que são importantes para fixar ou repelir a convicção acerca do grau de isenção que preside a determinados depoimentos”.
Em suma: Para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre os factos num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão.
O julgamento dos factos, na sua valoração, mormente quando se reporta a meios de prova produzidos oralmente, não se reconduz a uma operação aritmética de número ou de adição de depoimentos, antes tem de atender a uma multiplicidade de factores, não se bastando com a palavra pronunciada, mas nele confluindo aspetos tão variados como, as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (como por exemplo os olhares) e até interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber quem estará a falar com verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a verdade estar a ser distorcida.
Aplicando estas considerações à impugnação de facto em questão, concluiu a recorrente que “Os factos não provados n.os 1, 2 e 3 da sentença (segundo a numeração indicada na sentença) deveriam ter sido julgados integralmente provados, com fundamento nos meios de prova enunciados na narração desta alegação” (cfr. conclusão 3.ª das alegações de recurso).
E, na motivação das alegações, alegou a recorrente que:
“Na impugnação do juízo sobre estes pontos da factualidade alegada pela Apelante, concorrem 4 aspetos:
1. Um conjunto de outros factos considerados provados
2. Depoimentos testemunhais
3. Documentos juntos ao processo
4. A questão da denominação”.
Desenvolvendo tal alegação, invoca a apelante que:
- Os factos provados n.ºs. 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32 e 37 “demonstram a celebração de um contrato com as notas características de concessão comercial”;
- Os depoimentos de JV, de CB e de RS, nos segmentos que indicou, corroboram tal afirmação;
- A “sentença recorrida não toma em consideração, ignorando-os, um conjunto de elementos que evidenciam à saciedade a existência dum contrato de concessão comercial entre as partes”, enunciando, nesse sentido, os documentos 6, 7, 12 e 13 da oposição; e
- Os domínios USN.com.pt e USN.es na internet estavam registados a favor da apelante desde fevereiro de 2006 (doc 5 da tréplica), sendo essa denominação o elemento nominativo da marca dos produtos da apelada, sendo “manifesto que nos encontramos perante um contrato de concessão comercial”.
Vejamos:
O Tribunal recorrido evidenciou, na motivação da decisão de facto constante da sentença recorrida, em que assentou o juízo probatório alcançado acerca do vertido nos factos não provados n.ºs. 1, 2 e 3, o que fez do seguinte modo:
“Quanto à matéria descrita sob os números 1, 2 e 3, relativa ao invocado contrato verbal de concessão comercial, com clausula de exclusividade celebrado entre a Ré e a A., pugnado pela Ré, o tribunal formou a sua convicção para dar como não provada tal matéria, atenta a análise de toda a prova nos seguintes termos:
Do depoimento de todas as testemunhas resulta (até por declarações das próprias) que nenhuma testemunha inquirida detinha conhecimento direto ou sustentado sobre a existência do contrato invocado pela Ré, todas elas referindo que quem era o representante da Ré era o AC, ainda que a sua esposa também participasse nalgumas ações, sendo este que estabelecia contatos com o grupo USN para a comercialização destes produtos em Portugal e Espanha, desconhecendo, todavia, se havia sido celebrado algum contrato com a A., e em que Termos.
Sopesou-se igualmente o fato de que antes da constituição da Autora em 2008, já a Ré comercializava produtos USN no mercado português desde 2006, adquirindo-os à USN Africa do Sul, Manumixx e SCI-MX Nutrition Limited.
Por sua vez, a testemunha DV depôs com conhecimento direto sobre a relação comercial que estabeleceu com os produtos USN, referindo que de 2006 a 2008 passou a adquirir esta marca de produtos a AC, por via da USN Ibéria, Lda, de onde se conclui que os produtos USN já eram comercializados por AC no mercado português antes da constituição da Autora, não carecendo a Ré desta ultima para comercializar produtos USN.
Conclui-se, igualmente, que não foi obviamente por qualquer acordo estabelecido com a Autora que a Ré, antes da existência daquela, passou a promover os produtos USN no mercado português, encetando ações de publicidade e Marketing e dando formação quer aos seus funcionários, quer a funcionários de grandes clientes como a Sportzone e Holmes Place, sobre as características, potencialidades e demais atributos dos produtos USN. Valorou-se em particular o depoimento de JV, o qual interveio nas negociações entre AC como representante da Ré e a USN África do Sul e mais tarde com a USN Reino Unido (uma sociedade do grupo USN anterior à constituição da Autora). A testemunha depôs com conhecimento direto desta matéria, e de forma objetiva e séria, resultando do seu depoimento que as relações comerciais que a Ré estabeleceu, e qualquer acordo verbal que tenha estabelecido com o Grupo USN, foi-o com a USN Africa do Sul, e não com a A., não confirmando que tenha sido acordada uma cláusula de exclusividade a favor da R. Conclui-se, do exposto, que nenhuma prova testemunhal comprovou a existência do alegado contrato invocado pela Ré, e o clausulado que esta lhe atribui.
A par da prova testemunhal, a Ré junta um numero elevado de documentos que constituem email's trocados entre as partes (mostram-se já alguns supra identificados e descriminados nos próprios fatos dados por provados, e para onde se remete), sendo que de todos eles (ao contrario do que afirma) não resulta que A e R. tivessem firmado algum acordo, muito menos nas condições referidas pela R., em particular ser detentora de clausula de exclusividade na comercialização dos produtos USN, antes resultando do teor dos emails juntos pela R., concatenados com os emails juntos pela A., que as partes mantiveram durante anos, de 2008 até 2011, negociações com vista a chegarem a um acordo de relacionamento comercial, sendo que a concretização deste, por banda da A., implicava como condição essencial que a Ré conseguisse liquidar a sua divida à A., o que a Ré nunca fez.
Aliás, resulta de tais documentos, compaginados com os emails juntos pela A. (mostram-se já supra identificados e descriminados), que esta foi propondo varias soluções de acordo, com varias formas de liquidar faseadamente a divida e pagamento dos fornecimentos posteriores, ao que a Ré, na pessoa de AC contrapunha invariavelmente a alteração de uma qualquer clausula, mantendo o incumprimento no pagamento da mercadoria que lhe era fornecida pela A. Da concatenação dos documentos juntos pela Ré e pela A., supra melhor identificados e analisado o seu conteúdo, resultam à saciedade três evidencias:
1-Na generalidade dos fornecimentos de produtos USN que encomendava à A., a Ré pagava com atrasos, sendo interpelada ao pagamento inúmeras vezes pela A., vindo a acumular a dívida reclamada nestes autos de 174.250,75 euros, que confessa;
2-A Autora mostrou-se aberta a estabelecer um acordo comercial com a R., estabelecendo as partes negociações, sendo que a concretização deste, por banda da A., implicava como condição essencial que a Ré conseguisse liquidar a sua divida de 174.250,75 euros., ainda que faseadamente, o que a Ré nunca fez ou se propôs fazer.
3-Pelo que nunca chegou a ser firmado qualquer acordo comercial entre A. e R., ainda que verbal ou estabelecido em negociações trocadas por email.
Na verdade, não resulta de nenhum documento junto pela R. ou A., que esta ultima tenha aceite as condições que a R. ia levantando para formarem acordo, assim como não resulta de nenhum documento que a Ré tenha aceite alguma das propostas formuladas pela A. Ainda, nesta particular questão, entende-se ser de salientar que é a própria Ré, na carta que escreve a 20-09-2011 dirigida à A., e que junta como Doc. 71, que declara que o "Contrato de Distribuição/ Licença de Utilização" que celebrou no primeiro trimestre de 2008 com efeitos a 1-1-2008, não foi com a Autora, mas com a "Ultimate Sports Nutrition Ibéria, S.L", mais referindo uma "proposta de acordo" formulada pela A.
Quer isto dizer que não só a Ré tinha perfeito conhecimento que a relação comercial que invoca ter estabelecido com a A. por meio de "Acordo" ou "Contrato" verbal não foi com esta firmado, mas antes com outra empresa do grupo económico USN, como não pode desconhecer, porque é a própria que o afirma, que em 20-09-2011 ainda não havia nenhum acordo firmado com a A., tendo esta enviado uma proposta para um eventual acordo.
Por ultimo, entende-se que a questão do "funcionário" CT e do cliente Nutritienda não passa de uma falsa questão levantada pela Ré, truncando a leitura do que consta dos Emails que juntou, uma vez que resulta da troca de tais emails que a A. não só não atuou nas costas da Ré quando estabeleceu contato com o cliente Nutritienda, como lhe deu a possibilidade de o manter para si, desde que, e afigura-se-nos que com justeza, a R. fosse liquidando a sua divida para com a A., o que aquela não fez.
Pelo que a A., tendo dado um ultimato à R. para o pagamento, e informando-a de que perderia tal cliente caso não pagasse, passou a fornecer diretamente a Nutritienda.(v.g. email de 5-09-2011 constante do Doc. 68 da R. ).
Em face de todo o circunstancialismo enunciado, o tribunal entende que não foi feita qualquer Prova da matéria em apreciação, de onde, não provado o descrito em 1 a 3.”.
Ora, considerados os elementos referenciados pela apelante e ouvidos que foram todos os depoimentos e concatenados com todos os elementos documentais constantes dos autos, certo é que, não se encontra fundamento para edificar a conclusão pugnada pela recorrente.
Cumpre referir que, ao invés do invocado pela apelante, do conjunto dos factos provados sob os números 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32 e 37 não resulta a demonstração da celebração entre autora e ré do acordo invocado existir por esta última.
A factualidade constante dos referidos números do rol dos factos provados evidencia que, ainda antes da constituição da autora, foi estabelecida uma relação comercial entre AC e sua mulher, com duas empresas do grupo económico USN: A USN South Africa Pty Ltd. (antes designada por Sports Nutrition CC) e a USN UK (esta não correspondendo e sendo distinta da autora) e que, por proposta de AC e CC à USN South Africa foi proposta a criação de um mercado para os produtos da marca USN em Portugal e Espanha, tendo sido nessa sequência que o casal CC se comprometeu com a USN South Africa a comprar a esta, para revender no mercado Ibérico os produtos USN, pagando em contrapartida à USN South Africa uma royalty de 7,5%.
E, foi no âmbito desse acordo, assim estabelecido – à margem da autora - que desde 2006 até à constituição da ré – em 30-04-2007 – que AC e mulher, passaram a implementar os produtos USN no mercado português e espanhol.
Ora, esta factualidade e a demais vertida nos factos acima aludidos, não comprova o que consta vertido nos pontos 1, 2 e 3 dos factos não provados, onde se retrata uma diversa factualidade, daquela que ficou demonstrada e que teria por objeto a existência de um acordo de exclusividade no fornecimento/aquisição de produtos entre autora e ré.
Toda a demais factualidade, sobre os termos pelos quais a ré procedeu à comercialização dos produtos USN, as operações que desenvolveu para tal, não são de molde a colocar em crise tal conclusão.
De todo o modo, invoca a apelante que os depoimentos de JV, de CB e de RS determinam diversa conclusão da alcançada pelo Tribunal recorrido.
Ouvidos, na íntegra, por este Tribunal, os aludidos depoimentos- assim como os demais produzidos – certo é que, não se alcança a conclusão pugnada pela recorrente.
JV foi claro, preciso e detalhado, no seu depoimento, em referir os termos do acordo que existiu entre o casal CC e a USN África do Sul, explicitou a sua natureza e forma “oral”, mas nenhum ponto do seu depoimento, nomeadamente, os transcritos pela apelante, comprovam a factualidade vertida nos pontos 1, 2 e 3 dos factos não provados.
CB evidenciou não ter estado presente nas negociações tidas entre o casal CC e a USN internacional, sendo nesse enquadramento que têm que ser analisadas criticamente as afirmações a que procedeu sobre a utilização que referiu que a ré efetuava relativamente aos produtos USN, em Portugal, reserva que foi evidenciada pelo Tribunal recorrido: “Instada pelo tribunal, a depoente não pôde assegurar se a marca USN já era vendida em Portugal quando a Ré iniciou a sua atividade. (…).
Sobre uma eventual clausula de exclusividade a favor da R. e conferida pela Autora, para comercializar os produtos USN em Portugal, a depoente declarou não ter estado presente em nenhuma negociação, não detendo conhecimento directo e ou sustentado desta matéria. (…).”.
Finalmente, quanto a Rosa Saraiva não se evidencia que o seu testemunho possa lançar alguma luz sobre a factualidade que ficou vertida nos pontos 1, 2 e 3 dos factos não provados. A mesma referiu que a ré comunicava à autora valores de vendas semanais, segundo julga, para que a autora visse como estava a ser feita a expansão da venda de produtos em Portugal. Não obstante as conclusões que emitiu – baseadas, segundo disse, por a ré só ter produtos USN e por não lhe ter sido transmitido que havia outros distribuidores a fornecer – acabou por transmitir não saber qual o acordo estabelecido entre o casal CC e a autora, nem teve intervenção em negociações destes, nada adiantando de positivo sobre a realidade da correspondente factualidade.
O mesmo se diga relativamente à circunstância – e evidência – de, no nome de autora e ré estar a mesma expressão “USN”, desconhecendo-se, por não ter sido produzida qualquer prova sobre esse ponto, sobre qual a razão para tal suceder, não tendo cunho demonstrativo as afirmações exclamativas produzidas pela apelante a este propósito.
Como bem refere a recorrida, a este propósito, “não é por as partes partilharem parcialmente de uma denominação social, mais concretamente, “USN” que desse facto decorre automaticamente a existência de uma relação contratual entre ambas, porquanto, num cenário hipotético, entre a Recorrente e a Recorrida poderia até nunca ter existido qualquer tipo de relação negocial, in casu, relação de fornecedor e cliente (…)”, considerações que são válidas também relativamente ao que consta do facto provado n.º 28.
Finalmente, quanto aos documentos juntos aos autos e, nomeadamente, aqueles que foram referenciados pela apelante, de nenhum deles se infere algum elemento positivo para a prova de que tenha vigorado entre autora e ré um contrato verbal, pelo qual a ré operaria como distribuidor exclusivo de produtos da ré em Portugal e Espanha – e se obrigaria a autora a fornecer por tempo indeterminado à ré produtos USN, com vedação de outra entidade distribuir produtos em Portugal e que, nesses moldes, a ré se tenha vinculado a comprar esses produtos à autora e a revendê-los no mercado ibérico, como distribuidor exclusivo e comprometendo-se a cumprir objetivos de vendas - , que o mesmo se tenha iniciado em 2008 e que tenha sido resolvido pela ré em 17-01-2012.
Essa factualidade não se demonstra, em particular, do teor que resulta dos documentos n.ºs. 6, 7, 12, 13, 14, 64, 74 e 88 (sendo que, a referência constante do facto provado n.º 42 inculca bem que o que foi assinalado foi, apenas e tão só, que “A Ré escreveu e endereçou à A. a Carta que apelida de resolução e que constitui o Doc. 88…”, não se afirmando que a resolução teve lugar na data de 17-01-2012) da oposição, 13 da réplica, 3 da tréplica, documentos perante os quais não se retiram elementos demonstrativos da factualidade que ficou, e bem, consignada nos pontos 1, 2 e 3 dos factos não provados.
Em conformidade com o exposto, a impugnação de facto deduzida a respeito dos mencionados pontos 1, 2 e 3 dos factos não provados, deverá ser julgada improcedente.
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D) Se a matéria alegada no artigo 183.º da oposição deve ser incluída no rol dos factos provados?
Concluiu ainda a apelante que a matéria alegada no artigo 183.º da oposição deveria ser dada com provada (cfr. conclusão 2.ª), o que, em seu entender, teria assento no depoimento de CB (no sentido de que a apelada continuou a fornecer produtos após a resolução do contrato) e no documento – fatura com data de 19-02-2018 – junto com o requerimento apresentado em juízo em 09-11-2018.
Vejamos:
Conforme se referiu supra, a valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, deve ser efetuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação, partindo da análise e ponderação da prova disponibilizada.
A apreciação das provas resolve-se na formulação de juízos que assentam na elaboração de raciocínios que surgem no espírito do julgador, segundo as aquisições que a experiência tenha acumulado na mentalidade do juiz, de acordo com os processos psicológicos que presidem ao exercício da actividade intelectual e, portanto, segundo as máximas de experiência e as regras da lógica.
Nesta atividade, a credibilidade firmada em torno de um específico meio de prova tem subjacente a aplicação de máximas da experiência comum, que devem enformar a opção do julgador e cuja validade se objectiva e se afere em determinado contexto histórico e jurídico, à luz da sua compatibilidade lógica com o sentido comum e com critérios de normalidade social, os quais permitem (ou não) aceitar a certeza subjectiva da sua realidade.
Igualmente como se referiu, “não estando em causa formalidades especiais de prova legalmente exigidas para a demonstração de quaisquer factos e assentando a decisão da matéria de facto na convicção criada no espírito do juiz e baseada na livre apreciação das provas testemunhal e documental e pericial que lhe foram apresentadas, a sindicância de tal decisão não pode deixar de respeitar a liberdade da 1ª instância na apreciação dessas provas. O erro na apreciação das provas consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto quando a conclusão deveria ter sido manifestamente contrária, seja por força de uma incongruência lógica, seja por ofender princípios e leis científicas, nomeadamente, das ciências da natureza e das ciências físicas ou contrariar princípios gerais da experiência comum (sendo em todos os casos o erro mesmo notório e evidente), seja também quando a valoração das provas produzidas apontarem num sentido diverso do acolhido pela decisão judicial mas, note-se, excluindo este” (cfr., o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05-05-2011, Pº 334/07.3TBASL.E1, rel. MARIA ALEXANDRA A. MOURA SANTOS).
Assim, para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre os factos num determinado sentido, sendo que, o julgamento dos factos, na sua valoração, não se reconduz a uma operação aritmética de número ou de adição de depoimentos, antes tem de atender a uma multiplicidade de factores, não se bastando com a palavra pronunciada, mas nele confluindo aspetos tão variados como, as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (como por exemplo os olhares) e até interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber quem estará a falar com verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a verdade estar a ser distorcida.
Reapreciados os meios de prova produzidos, quer documentalmente, quer pessoalmente, quer ainda a perícia realizada, não se logra alcançar a conclusão expendida pela recorrente, não se evidenciando que o Tribunal recorrido tenha errado na apreciação probatória que empreendeu.
Na realidade, CB no seu depoimento não se reportou a qualquer “continuação de fornecimento” pela autora dos produtos USN, apenas respondendo afirmativamente à pergunta sobre se os produtos USN “depois de deixarem de ser comercializados pela USN Portugal, continuaram a ser comercializados em Portugal”, dizendo, saber isso, “porque consumia ainda algumas vezes produtos da USN”.
Nada se apurou – nem isso resulta quer do aludido depoimento, quer do documento invocado pela apelante – sobre se a autora – ela mesmo - “forneceu” produtos USN após a data invocada pela ré como de resolução contratual.
Aliás, conforme resulta do depoimento de CF, situado com relação aos anos de 2016/2017, os produtos USN encontravam-se disponibilizados no mercado, por várias vias, dizendo que a Nutritienda, em Espanha, tinha vários produtos USN e que comprou produtos USN “online” em Holanda e Espanha e que, mesmo depois da USN Portugal, a Prozis continuou a vender produtos USN, atento o largo volume de compras que efetuou e de stock de produto em carteira (cfr. minuto 13.45 e ss. do referido depoimento).
Os aludidos meios de prova – e os demais produzidos - não permitem evidenciar que tais produtos tenham sido fornecidos por banda da autora.
E, quanto aos demais segmentos constantes do mencionado artigo 183.º da oposição – onde foi alegado que, “Não obstante a oposição da R., a A. continuou a fornecer as encomendas recebidas de clientes no mercado ibérico, como a Nutritienda, através de CT, nos termos referidos, até à resolução do contrato celebrado com a R. e, até ao presente, continuou e continua a comercializar os produtos USN no mercado ibérico” – igualmente, nada se apurou que permita concluir pela realidade do aí consignado (quer no que toca a fornecimentos para o mercado ibérico por intermédio de CT, quer diretamente pela autora e, bem assim, que esta, tenha continuado a comercializar tais produtos).
Assim, não se mostra possível afirmar probatoriamente como demonstrado o que foi alegado no artigo 183.º da oposição.
A impugnação deduzida a este respeito é, pois, de julgar improcedente.
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E) Se a matéria constante dos factos não provados n.ºs. 4, 5 e 17 da decisão recorrida deve transitar para o rol dos factos provados?
Concluiu ainda a apelante que “Os factos não provados n.ºs. 4, 5 e 17 segundo a numeração da sentença deveriam ter sido julgados integralmente provados com fundamento nos meios de prova indicados na narração, julgando-se assim provado o seguinte: (a) Que o acordo referido em 8 a 12 dos factos assentes incluísse o direito de exclusividade da Ré de representação da marca USN em Portugal; (b) que nenhuma outra empresa, além da Ré, estava autorizada a distribuir produtos USN em Portugal e Espanha, e que nunca tivesse havido outra empresa a revender produtos USN em Portugal; (c) que a Autora reconheceu à R. ser-lhe devido a margem das encomendas feitas pela Nutritienda diretamente à A. pelo período de agosto de 2011 a janeiro de 2012;” (cfr. conclusão 5.ª).
No ponto B. das alegações, a apelante concretizou que, em seu entender, a prova dessa factualidade resulta do seguinte:
- “A existência de cláusula de exclusividade, ou seja, de que a Apelante tinha o exclusivo da distribuição dos produtos no mercado português e espanhol, é inequivocamente provado pelos seguintes documentos:
- Doc. 14 da oposição (…);
- Doc. 64 da oposição (…);
- E-mails que constituem o doc. 65 da oposição (…);
- Doc. 66 da oposição (…);
- Doc. 68 da oposição (…);
- Doc. 74 da oposição (…);”.
Em causa está saber se se deve formar positiva convicção – como pretende a apelante - sobre se o acordo referido em 8 a 12 dos factos assentes incluía o direito de exclusividade da Ré de representação da marca USN em Portugal, no sentido de que, nenhuma outra empresa, além da Ré, estava autorizada a distribuir produtos USN em Portugal e Espanha, e que nunca tivesse havido outra empresa a revender produtos USN em Portugal e, ainda, saber se a autora reconheceu à ré ser-lhe devido a margem das encomendas feitas pela Nutritienda diretamente à A. pelo período de agosto de 2011 a janeiro de 2012.
Para a demonstração da existência da referida “exclusividade”, não se mostrava necessário – como parece, a dado passo, inferir-se das alegações da recorrida – que a cláusula obedecesse à forma escrita, a que se reporta o artigo 4.º do regime jurídico do contrato de agência (D.L. n.º 178/86, de 3 de julho), razão pela qual a existência de uma tal estipulação poderia efetuar-se por via testemunhal (no sentido de que “(…) não se mostra adequado, para provar que a ré se obrigou perante a autora garantir-lhe o “exclusivo” da distribuição dos seus produtos, o regime de forma escrita do agente exclusivo a que alude o art. 4.º do DL n.º 178/86, de 3-7”, vd. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-10-2011, Pº 8559-06.2TBBRG.G1.S1, rel. TAVARES DE PAIVA).
Ora, não obstante este ponto, certo é que, apreciados os meios de prova produzidos e, em particular, os indicados pela recorrente, neles não se divisa que tenha havido demonstração de ter sido acordada entre as partes dos presentes autos, a invocada exclusividade.
Assim, ao invés do invocado, do teor dos documentos n.ºs. 14 e 64 da oposição não resulta algum reconhecimento da invocada “exclusividade” da ré, mas tão só que, interpelada a autora, a mesma, pelas razões expressas no documento (sem qualquer alusão a alguma existência de exclusividade), encaminhou a interpelante para o escritório da autora no mercado ibérico (“our iberian office”, no documento original). Tal encaminhamento não traduz a ocorrência de acordo de exclusividade que, logicamente, para ter lugar, teria de ter prévia demonstração.
O mesmo se refira em face do que se lê no documento n.º 65 da oposição (cfr. fls. 363 a 367 dos autos) – email datado de 04-09-2011, contendo outros emails de 01, 02 e 03 de setembro de 2011, dos quais não se retira algum elemento que confirme a “exclusividade” invocada pela apelante. Desconhece-se a razão para o consignado no email de 03-09-2011 referenciado pela apelante, não se afigurando demonstrado o invocado reconhecimento expresso da mencionada “exclusividade”.
Iguais considerações nos merece a apreciação do documento n.º 66 da oposição (a fls. 368 dos autos), respeitante a email, datado de 05-09-2011, remetido por JO para JB da Nutritiend, com conhecimento a CT, do qual não se retira (não se identificando em que consistia a relação que é referenciada como mantida entre a apelada e os “CC), ao invés do pretendido pela ré, que represente alguma evidência sobre que a apelada tenha concedido exclusividade à apelante.
Relativamente ao documento n.º 68 da oposição (constante de fls. 371-372 dos autos), referente a email de 05-09-2011, remetido por JO para AC, CC com conhecimento a CT, também o mesmo não logra demonstrar a pretendida “exclusividade”. O que nele é referido é, tão só, que, em virtude da decisão de recuperar a conta da Nutritienda, tomada pela autora, esta iria alocar a margem da ré para com o débito à autora, sem alguma referência temporal sobre o período a que tal correspondia. Para além disso, tal decisão não apresenta alguma relação com o invocado reconhecimento de “exclusividade” pela autora à ré, que não se retira do email.
Finalmente, a respeito do documento n.º 74 da oposição (cfr. fls. 383 a 394), não se mostra provado que a troca de correspondência que o mesmo espelha, demonstre algum reconhecimento da mencionada “exclusividade” da ré, por banda da autora, mas apenas que, foi estabelecida entre as partes uma tentativa para negociação dos termos de cessação das relações comerciais que existiam entre ambas, nos moldes de que o documento dá conta. E, no que respeita às comunicações remetidas pela autora não se infere nelas qualquer alusão à invocada “justa compensação pela clientela angariada pela Apelante”, que são, ao invés, objeto das comunicações endereçadas por AC a JO. O aludido documento não é, pois, idóneo a demonstrar alguma da factualidade vertida nos pontos 4, 5 e 17 dos factos não provados.
Atenta a ausência de demonstração da mencionada factualidade por via dos mencionados documentos ou, por outro modo (sendo que, por exemplo, Felipe Santos salientou que, antes da autora comercializar os produtos da USN, já outra entidade – uma dietética – na Lourinhã o fazia, aspeto que não inculca a realidade do vertido no ponto 5 dos factos não provados), o juízo alcançado pelo Tribunal recorrido a respeito de tal factualidade, não merece qualquer censura.
Escreveu-se, de facto, a este respeito na sentença recorrida, o seguinte:
“Sobre o fato descrito em 4 apenas a testemunha JV depôs com conhecimento direto e fundamentado, não tendo confirmado se foi estipulado entre a Ré e a USN Africa do Sul alguma cláusula de exclusividade; e sobre o descrito em 5 o tribunal ponderou as declarações da testemunha FS, o qual afirmou que quando iniciou funções na Ré já existia uma sociedade a vender produtos USN em Portugal, de onde, não provada a matéria descrita em 4 e 5. Refira-se ainda, relativamente à clausula de exclusividade, que a generalidade das testemunhas inquiridas declarou desconhecer se autora e ré acordaram na mesma, desconhecendo os termos de eventuais negociações entre as partes, afirmando em contrapartida que por não conhecerem outras empresas a vender produtos USN em Portugal inferiam que a Ré beneficiasse da exclusividade. Ora, o desconhecimento da existência de outras empresas a vender USN no mercado português, só por si, não nos reconduz à conclusão de que a Ré detivesse a exclusividade dos produtos USN em Portugal.
Sobre a factualidade vertida em 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 17, 18, 19, 20, 24, 26, 27, 28 e 29 nenhuma prova foi produzida, impondo-se por isso dar-se a mesma como não provada.
(…)
Relativamente aos fatos de CT e A. com o cliente Nutritienda, o tribunal sopesou o Doc. 68 junto pela R. do qual resulta realidade bem diversa da que esta dele retira.
O documento n.° 68 configura um email da A. à Ré na pessoa de AC, a informá-lo que lhes iria retirar o cliente Nutritienda, e dos motivos de tal decisão, a saber, falta de pagamento reiterado da Ré relativo aos produtos USN que adquiria à A., bem como informou a R. de que as faturas haviam sido enviadas pela A. diretamente à Nutritienda, e que esta havia sido avisada de que o fornecimento seria feito diretamente pela A., comprometendo-se ainda a A. a abater ao valor em dívida pela R. o valor da margem da R. que esta não havia podido cobrar à Nutritienda (…)”.
Em conformidade com o exposto, a impugnação de facto em apreço, soçobra.
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IV) Impugnação da matéria de direito:
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F) Se ficou demonstrada a integração comercial entre apelante e apelada no âmbito de um contrato de concessão comercial, com exclusividade a favor da ré?
No âmbito da impugnação da matéria de direito, a apelante começa por referir as características que modelam o contrato de concessão comercial em geral, para, depois, concluir que:
“(…) tomando em consideração os factos provados, demonstrou-se a integração comercial entre a Apelante e a Apelada.
A Apelante criou um mercado para os produtos da Apelada em Portugal.
Comprava produtos e revendia-os aos seus próprios clientes em Portugal.
A Apelante estava comercialmente integrada com a Apelada, tanto assim que tinha a denominação desta última, que é também o elemento nominativo da marca dos produtos comercializados pela Apelada.
A Apelante assumiu um conjunto de atos e obrigações típicas do distribuidor, incluindo obrigações de informação, nomeadamente de apresentação de relatórios mensais e trimestrais.
A celebração desse contrato está admitida pelo disposto nos arts. 405° e 406° do CC.
À celebração de tal contrato não obsta o facto de não ter sido reduzido a escrito, em face do disposto no art. 219° do CC.
Sendo o contrato de concessão comercial legalmente atípico, é socialmente típico.
Assim, estavam ambas as partes obrigadas ao seu pontual cumprimento (…)”.
A recorrida contra-alegou dizendo que:
“(…) a tese sufragada pela mesma é não só manifestamente errada como não encontra qualquer apoio no texto e no espírito da lei.
(…) a ora Recorrida não celebrou qualquer contrato específico com a Recorrente e/ou que seja susceptível de ser considerado autónomo ou distinto do contrato que a mesma havia celebrado com outras entidades em momento anterior ao da constituição da primeira, nem nunca manteve com a Recorrente qualquer relação que possa ser qualificada como de agência e/ou concessão comercial, porquanto esta sempre/apenas foi um revendedor autorizado/consentido dos produtos da primeira, muito menos em regime, ou com concessão, de direito de exclusivo, tendo-se limitado a celebrar com a mesma sucessivos contratos de compra e venda dos produtos por si comercializados (cfr. factologia dada como não provada n.° 1, 2, 3, 4 e 5, depoimentos das testemunhas JG - na parte em que a sentença reproduz “Estes produtos eram vendidos em outras lojas e on line, não tinham exclusivamente, mas a USN garantia a estabilidade dos preços -, JV - na parte em que a sentença reproduz “Em contra instancia da Autora, a testemunha acabou por declarar que a Autora USN UK, Lda era um mero fornecedor da Ré, e esta por sua vez era um mero revendedor dos produtos USN no mercado português” - e RS - na parte em que a sentença reproduz “Sobre a exclusividade de comercializas os produtos USN em Portugal, direito que a Ré se arroga, declarou, instada a tal, que nunca viu nenhum contrato ou acordo escrito entre a Autora e a Ré” e ainda o doc. 71 junto à oposição).
Realce-se que, em Julho de 2011, ou seja, escassos meses antes da cessação da relação entre as partes, a Recorrente ainda revelava “esperanças” que tal contrato viesse a ser celebrado, tendo, no entanto, a ora Recorrida referido/reiterado que tal celebração dependia da mesma/indispensável condição que já havia sido anteriormente comunicada à Recorrente e que ditou o encerramento das negociações anteriormente mantidas, ou seja, a regularização dos montantes em dívida e a aceitação de prazos de pagamento, cujo incumprimento constituísse fundamento da resolução do contrato, condições essas que, mais uma vez, a Recorrente não aceitou e não cumpriu. (cfr. factologia dada como provada n.° 7 e doc. 8 junto à réplica).
Acresce que, os traços típicos do contrato de concessão comercial não se encontram presentes no âmbito das relações comerciais estabelecidas ao longo dos anos entre as partes.
(…) no caso em apreço nunca existiu qualquer tipo de controlo por parte da Recorrida, nem expresso, nem tácito, sobre a actividade comercial da Recorrente, nem nunca a Recorrida impôs qualquer tipo de política comercial a observar pela Recorrente (cfr. factologia dada como provada n.° 20,22, 27 e 28 (…)).
A Recorrente não estava obrigada a adquirir determinada quantidade mínima de produtos, nem a revender qualquer quantidade mínima e podia revender - e revendeu - os produtos da Recorrida a quem quisesse, nas condições/preços que entendesse e onde quisesse (cfr. factologia dada como provada n.° 24, factologia dada como não provada n.° 3 (…)).
Para além do mais, a Recorrente podia adquirir - e adquiria - produtos a outras entidades, bem como, revender - e revendia - produtos de outras marcas, não se encontrando impedida de desenvolver - nem deixou de o fazer, conforme já fora confessado pela Recorrente no art.° 120.° da oposição - outras actividades comerciais para além das relativas à revenda dos produtos da ora Recorrida (cfr. factologia dada como provada n.° 14 e 27, factologia dada como não provada n.° 3 (…)).
A Recorrida também não determinava nem transmitia à Recorrente directrizes sobre publicidade, condições de exposição dos produtos e de assistência pós-venda, apenas transmitindo à Recorrente orientações de cariz organizativo, destinadas a garantir a qualidade dos seus produtos, bem como regras sobre as condições de pagamento e aquisição dos mesmos, que, refira-se, a Recorrente nunca observou (cfr. factologia dada como provada n.° 25, 26, 27 e 28 (…)).
Designadamente, e sem prejuízo de - naturalmente - acompanhar e apoiar as actividades promocionais e comerciais da Recorrente relacionadas com a revenda dos produtos por si comercializados e fornecidos, a principal, se não única, preocupação/intenção da ora Recorrida sempre/apenas foi a de acompanhar/controlar a situação financeira da Recorrente, designadamente, tendo em vista apurar se devia continuar a fornecer produtos (e crédito) à mesma, bem como, O pontual e regular pagamento dos produtos fornecidos e a fornecer (v., neste sentido, factologia dada como provada n.° 7).
(…) a integração da Recorrente na rede comercial da ora Recorrida assumia uma feição extremamente ténue, bem como que a primeira nunca estabeleceu, pelo menos com a ora Recorrida, qualquer contrato/relação de concessão comercial, ou de natureza análoga.
(…) a minuta de contrato nunca foi aceite pela Recorrente, que propôs alterações à mesma, e que, por sua vez, nunca foram aceites pela Recorrida, sendo certo que a aceitação/concessão do direito de exclusivo ficou dependente da outorga do contrato, bem como do pagamento dos valores devidos à Recorrida (cfr. factologia dada como provada n.° 19 e 37 e docs. N.°s 72 e 74 juntos à oposição) (…)”.
Vejamos:
Na fundamentação de Direito da decisão recorrida, e depois de apreciar o enquadramento jurídico da relação jurídica, de acordo com a perspetiva da pretensão deduzida pela autora, o Tribunal de 1.ª instância apreciou o pedido reconvencional deduzido pela ré, fundando-se, nomeadamente, na seguinte ordem de considerações:
“(…) Para sustentar tal pedido invoca, em síntese, que celebrou com a A., verbalmente, um contrato de concessão comercial pelo qual ficou com o direito de exclusividade de comercializar a Marca de produtos USN em Portugal e Espanha, com inicio em 2008, e sem termo definido.
A coberto desse contrato, a Ré implementou e expandiu a marca USN no mercado português e espanhol, e angariou uma carteira de mil clientes.
Por seu turno a A. violou a clausula de exclusividade a partir de meados do ano de 2011, passando a vender produtos USN diretamente a clientes seus, e por si angariados, nomeadamente o cliente Nutritienda, o que conseguiu com a ajuda do funcionário da R. CT, o qual passava informação confidencial da Ré à A., e serviu de ponte para a A. poder vender diretamente à Nutritienda e outros clientes. A A. agiu com a intenção de se apoderar do mercado ibérico dos produtos USN, criado, desenvolvido e mantido pela R., e para conseguir tal desiderato prejudicou a relação de confiança conquistada pela R. Junto dos Seus Clientes, danificando a imagem e reputação da R. junto dos Clientes desta.
Em simultâneo, a Autora deixou de fornecer produtos USN à R., acabando esta por proceder à resolução do contrato de concessão comercial com exclusividade, através de carta de resolução de 17 de janeiro de 2012.
Conclui a R. que declara compensar os créditos da A. com todos os créditos de que é titular sobre esta, os emergentes da indemnização de clientela, em primeiro lugar, e ainda os da indemnização pela violação do dever contratual de exclusividade, se necessário, extinguindo-se integralmente o crédito da A..
Considerando todos os créditos da R. e não extintos pela compensação, resulta ser a R. credora do valor de EUR 736.149,43, a que acrescem os juros moratórios, que a A. deverá ser condenada a pagar-lhe.
Vejamos o caso concreto.
Do acervo fatual dado por provado e não provado, bem como da respetiva motivação, resulta à saciedade que a Ré não logrou provar, como lhe competia nos termos do art. 342°, n.° 1 do C. Civil, a existência do aludido contrato de concessão comercial da Marca USN, com direito de exclusividade a favor da Ré, alegadamente celebrado entre esta e a Autora.
Na verdade, não só não resultou provada a celebração do dito contrato, como igualmente não se apurou que entre a Autora e a Ré tivesse sido celebrado qualquer outro contrato, sendo as relações comerciais de ambas as de mero fornecedor/vendedor da parte da A., e a de mero comprador da parte da Ré.
Uma vez que todos os pedidos indemnizatórios formulados pela Ré contra a Autora têm como pressuposto - causa de pedir - a existência do referido contrato, e não se mostrando este provado, resta concluir, sem necessidade de outros considerandos, que a reconvenção, bem assim os pedidos reconvencionais, estão votados à total improcedência.
E, nesta conformidade, mostram-se prejudicadas as exceções de abuso de direito e de caducidade invocadas pela A., que pressupõem a existência do aludido contrato (…)”.
Apreciando:
Importa, liminarmente, referir que, na decorrência da improcedência total da impugnação da matéria de facto, pugnada pela recorrente, as premissas em que assentava a sua pretensão, no que se refere à alteração da decisão de Direito, não se verificam, dado que, dependiam da procedência de tal impugnação de facto.
De facto, a matéria provada relevante para a apreciação da qualificação da relação jurídica formada entre as partes reconduz-se, fundamentalmente, à seguinte:
- No âmbito das relações comerciais entre ambas, a ré (que é uma sociedade comercial constituída em 30-04-2007, tendo por objeto social o comércio e distribuição de todo o tipo de bens e produtos e, em especial, de produtos alimentares e similares, suplementos dietéticos e energéticos; representação, importação, agenciamento e exportação de bens e produtos alimentares e similares, prestação de serviços e consultoria comercial conexa com a distribuição e comercialização de bens e produtos de consumo alimentar e similares) encomendou à Autora (que é uma empresa com sede no Reino Unido, constituída em 2008, que se dedica ao comércio de suplementos nutricionais para a atividade desportiva da Marca USN), e esta forneceu-lhe diversos produtos de marca USN melhor descriminados nas faturas juntas aos autos, no valor total de 220.402, 37€;
- As mercadorias foram fornecidas e aceites pela Ré, que nunca apresentou qualquer reclamação, assim como aceitou as faturas respetivas, aceitando ser devedora dos montantes nelas titulado;
- O pagamento do preço daquela mercadoria deveria ter sido efetuado na sede da A., na data constante de cada fatura, o que que não se verificou até ao presente;
- A autora interpelou a Ré inúmeras vezes para liquidar o valor em dívida, propondo igualmente acordo de pagamento faseado, que a R. recusou, nada tendo liquidado até ao momento;
-Antes da constituição da Autora em 2008, e desde 2005, existia uma relação comercial entre AC e mulher, e duas outras empresas do grupo económico USN, a USN South Africa [PTY] LTD, anteriormente denominada Ultimate Sports Nutrition CC e a USN UK (esta, anterior à constituição da A., e distinta desta);
-Em 2005 AC e mulher, CC, então com residência no Zimbabwe, propuseram à USN South Africa criarem um mercado para os produtos da marca USN em Portugal e Espanha, o que após negociações foi aceite, tendo posteriormente transferido a sua residência para Portugal, onde passaram a viver;
-Em 2005 a marca USN era desconhecida no mercado ibérico;
-Nesse contexto o casal CC estabeleceu acordo verbal com a USN Africa do Sul comprometendo-se -com a finalidade de os revender no mercado ibérico- adquirir os produtos USN à USN Africa do Sul, com a faculdade de poderem fabricar, e também poderem comprar USN diretamente aos fabricantes, e em contrapartida pagariam à USN Africa do Sul 7,5 % de Royalties e no âmbito desse acordo, desde o inicio do ano de 2006 até à constituição da Ré em 30 de abril de 2007, AC e mulher passaram a implementar os produtos USN no mercado português e espanhol, passando a fazê-lo a Ré a partir da sua constituição;
- No acordo referido, a R. tinha o direito a fabricar os produtos USN, e a adquiri-los a qualquer fabricante ou distribuidor;
- Antes da constituição da Autora em 2008, e após esta, a Ré adquiria também os produtos USN não só à USN Africa do Sul, como diretamente a outros fabricantes, nomeadamente à Manumixx e à SCI-MX Nutrition Limited;
- Para serem revendidos no mercado ibérico, os produtos USN têm de ser etiquetados de acordo com as instruções das entidades reguladoras de Portugal e Espanha, tendo a Ré diligenciado pela tradução dos rótulos de acordo com os regulamentos legais, a expensas suas;
-Em Portugal a R. teve de traduzir os rótulos e submetê-los à aprovação da Direção de Serviços de Normalização e Segurança Alimentar, um departamento do Gabinete de Planeamento e Políticas, do Ministério da Agricultura, Mar e Ambiente e Ordenamento do Território;
-A R. prestava conselhos técnicos especializados aos seus clientes relativamente à escolha e à utilização dos produtos USN, antes e depois da venda;
-Especialistas da marca USN deslocaram-se a Portugal para dar formação aos empregados da R. e a staff de clientes, como o Holmes Place, o que foi feito a expensas da R.;
-Para fomentar as vendas, a R. também realizou descontos e promoções perante diversos clientes, abdicando de parte da sua margem;
-A Ré participou, com instalação de pavilhões próprios, a expensas suas, em 2 a 3 feiras de produtos do sector de suplementos alimentares dietéticos e energéticos, nomeadamente nas feiras e convenções da Holmes Place, Open Days, Trade Fairs, nas quais a ré divulgou os produtos USN, expondo-os perante os potenciais clientes e o público em geral, exibindo o logótipo e as suas marcas;
-A R. também patrocinou várias equipas e eventos para publicitar os produtos USN que adquiria à USN Africa do Sul e a outras entidades, e posteriormente à A., nomeadamente a Federação Portuguesa de Triatlo em Competições Internacionais e a Federação Portuguesa de Rugby, do que deu conhecimento à A.;
-A R. divulgava os produtos USN no seu sítio na Internet: www.usn.pt,www.usn.com.pt e www.usn.es;
-Colaboradores da R. participaram, a expensas da primeira, em conferências técnicas e comerciais sobre produtos USN, e frequentaram cursos de formação técnica e cursos de vendas desses produtos, fora de Portugal;
-A R. traduziu alguns catálogos e panfletos informativos dos produtos USN de Inglês para Português e Espanhol, identificados pelo fabricante e pelo logótipo da USN, e descreviam as características e as especificações técnicas do produto e os seus benefícios para o cliente e para o utilizador;
-A R. deu conhecimento à A. de algum deste material publicitário, e material traduzido; e
-A atuação da R. criou um mercado com vários clientes para os produtos comercializados pela A., entre os quais, como especialmente relevantes, se contam a Sportzone, Holmes Place, Sport Lisboa e Benfica Futebol SAD e Associação Portuguesa de Rugby.
Importa sublinhar que a denominação de um contrato como pertencendo a um determinado tipo contratual, com relevância para determinar qual o regime jurídico aplicável, é uma operação lógica subsequente à interpretação das declarações de vontade das partes.
Mas, de todo o modo, a qualificação de um contrato é matéria de direito sobre a qual o tribunal se pronuncia livremente (cfr. artigo 5.º, n.º 3, do CPC), sem estar vinculado à denominação que os contraentes tenham empregado ou àquela que considerem que respeita à relação jurídica que concluíram.
Com efeito, de harmonia com o princípio do dispositivo, ao juiz só é lícito servir-se dos factos alegados pelas partes; contudo, no que toca à qualificação jurídica desses factos, rege o princípio da liberdade de apreciação.
Assim, a natureza ou espécie de certo contrato pode não corresponder, necessariamente, à designação que as partes lhe atribuíram e, portanto, à qualificação que dele fizeram.
Neste ponto, importa ainda fazer uma referência ao denominado “contrato de fornecimento”.
A respeito deste contrato refere Carolina Cunha («O contrato de fornecimento no sector da grande distribuição a retalho: perspectivas actuais», in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita, I, org. Diogo Leite de Campos, Coimbra Editora, 2009, pp. 622-623) que: “Trata-se, no caso, de um negócio de execução reiterada, em que uma das partes (o fornecedor) se obriga, contra o pagamento de um preço, a realizar fornecimentos periódicos ao outro contraente (o fornecido)”.
Nas palavras de Carlos Ferreira de Almeida, Contratos II, Almedina, 2007, pp. 142-3, “o contrato de fornecimento caracteriza-se pelo carácter periódico ou contínuo da prestação não monetária (mercadoria, (…)). (…) É frequente a qualificação doutrinária do contrato de fornecimento como subtipo da compra e venda. Mais adequada parece ser porém, se a interpretação do contrato a tal não se opuser, a qualificação como contrato-quadro, no âmbito do qual se celebram múltiplos contratos de compra e venda ou de prestação de serviço”.
De acordo com José Engrácia Antunes (Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, 2009, p. 358), o contrato de fornecimento “pode assumir diferentes configurações que vão desde a execução de prestações periódicas e continuadas até verdadeiros contratos-quadro que dão lugar a sucessivas compras e vendas mercantis independentes que se prolongam no tempo (v.g., contratos de fornecimento de matérias-primas, eletricidade, gás, etc.)”.
No contrato de fornecimento, uma das partes (designada por fornecedor) obriga-se: a fornecer bens ou serviços continuamente, mediante um preço (normalmente a pagar periodicamente) ou a fornecer bens ou serviços, periódica ou reiteradamente, contra uma prestação pecuniária; ou, ainda, a celebrar futuros contratos onerosos (nomeadamente de compra e venda, de locação ou de prestação de serviços), quando solicitado pela contraparte.
Trata-se de um contrato duradouro, com influência direta do tempo no conteúdo da prestação, pois o fornecedor obriga-se a ir prestando (eventualmente, celebrando os futuros contratos de execução) ao longo de um período de tempo, não tendo forma de cumprir antecipadamente, pois os futuros fornecimentos não podem, na lógica do contrato, ser efetuados todos de uma vez, desde logo porque a sua concretização – em termos de número, quantidades, tempos – apenas em momentos futuros e diversos será feita de acordo com as encomendas (ou consumos) a realizar pela contraparte.
Quando o contrato de fornecimento se destina a determinar ou regular a celebração de futuros contratos, é também um contrato-quadro (sobre esta categoria e suas várias modalidades, v. Maria Raquel de Almeida Graça Silva Guimarães, O Contrato-Quadro no Âmbito da Utilização de Meios de Pagamento Electrónicos, Coimbra Editora, 2011, sobretudo pp. 59-168).
Conforme se mencionou no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-02-2018 (Pº 22131/15.2T8LSB.L1-7, rel. HIGINA CASTELO):
“À expressão contrato de fornecimento podem reconduzir-se ocorrências contratuais de feições diversas que podemos agrupar nos seguintes modelos:
a)- Contrato em que o fornecedor disponibiliza o seu produto em contínuo, durante um dado período ou sem termo determinado, obrigando-se a contraparte a pagar em função do que for consumindo ou retirando, sem prejuízo de poder também ser acordada uma prestação fixa, única ou reiterada, por essa disponibilidade;
b)- Contrato pelo qual as partes acordam que o fornecedor realizará futuras entregas de certos produtos e quantidades (ou prestará futuros serviços), com dada periodicidade, durante um período ou sem termo determinado, mediante contraprestação pecuniária;
c)- Contrato no qual as partes (ou uma delas) se obrigam à futura celebração de contratos de execução (compras e vendas, prestações de serviços, locações), durante um dado período ou por tempo indeterminado, podendo regular com maior ou menor intensidade esses futuros contratos (sua cadência, preços, formas de pagamento, quantidades globais por período de tempo, locais de entrega, etc.)”.
A ré, todavia, veio invocar que entre si e a autora foi celebrado um contrato com as caraterísticas da concessão comercial.
O contrato de concessão comercial “define-se como o contrato pelo qual um empresário – o concedente – se obriga a vender a outro – o concessionário- , ficando este último, em contrapartida, obrigado a comprar ao primeiro, certos produtos, para revenda em nome e por conta próprios numa determinada zona geográfica, bem assim como a observar determinados deveres emergentes da sua integração na rede de distribuição do concedente” (assim, José Engrácia Antunes; Direito dos Contratos Comerciais; Almedina, 2009, p. 446).
Este contrato permanece ainda um contrato atípico e inominado, mas trata-se de um contrato socialmente típico, perfeitamente sedimentado na prática negocial, correspondendo a uma das modalidades mais difundidas da distribuição comercial (a par da agência, da franquia, da comissão e da mediação) de bens ou serviços.
Mediante este contrato, “o produtor, fabricante ou importador (concedente) assegura o controlo da distribuição dos seus produtos por um número limitado de revendedores qualificados sem suportar o risco da respectiva comercialização, ao mesmo tempo que o distribuidor (concessionário) goza de uma posição concorrencialmente privilegiada na venda desses produtos em determinada zona” (assim, José Engrácia Antunes; Direito dos Contratos Comerciais; Almedina, 2009, p. 446).
Constituem elementos caracterizadores deste tipo negocial os seguintes (acompanhando-se a exposição de Maria Helena Brito; O Contrato de Concessão Comercial, Almedina, 1990, pp. 179-184; e José Alberto Coelho Vieira; O Contrato de Concessão Comercial; AAFDL, 1991, p. 15):
- O caráter duradouro do contrato (a estabilidade do vínculo);
- A atuação autónoma do concessionário, em nome próprio e por conta própria (transferindo-se o risco do produtor para o distribuidor);
- O objeto mediato, consistente nos bens produzidos ou distribuídos pelo concedente;
- A obrigação do concedente celebrar, no futuro, sucessivos contratos e venda (o dever de venda dos produtos a cargo do concedente);
- A obrigação do concessionário de celebrar – no futuro – sucessivos contratos de compra (dever de aquisição impendente sobre o concessionário);
- O dever de revenda por parte do concessionário dos produtos que constituem o objeto do contrato, na zona geográfica ou humana a que o mesmo se refere;
- A obrigação do concessionário orientar a sua atividade empresarial em função das finalidades do contrato e do concedente fornecer ao concessionário os meios necessários ao exercício da sua atividade; e
- Exclusividade, na grande maioria dos casos (constituindo elemento acidental deste contrato – cfr. Ac. do STJ de 23-03-2000, Rev. 167/2000, 1.ª Sec., rel. LEMOS TRIUNFANTE, em: https://www.pgdlisboa.pt/jurel/stj_busca_processo.php?buscaprocesso=&seccao=&ficha=1141&pagina=39).
Daqui resulta que a concessão comercial “distancia o produtor da comercialização dos seus produtos. O concedente vende os produtos por si fabricados ao concessionário para este os revender no mercado. O concessionário é um intermediário na cadeia produção-consumo. No entanto, ao adquirir os bens do concedente para os revender em seu nome e por sua conta, o concessionário liberta o concedente do risco da comercialização” (assim, José Alberto Coelho Vieira; O Contrato de Concessão Comercial; AAFDL, 1991, p. 15).
Conforme refere Carlos Ferreira de Almeida (Contratos III – Contratos de liberalidade, de cooperação e de risco; Almedina, 2012, pp. 139-140), “[o] objeto nuclear do contrato de concessão comercial é formado pelos contratos que o concedente se obrigam a celebrar. Tem portanto a natureza de contrato unitário mas preliminar e, mais precisamente, de contrato quadro normativo (…), visto que do seu conteúdo constam cláusulas essenciais dos sucessivos contratos de compra e venda, que o concedente e o concessionário se obrigam a celebrar, e dos contratos de revenda, que o concessionário se obriga a celebrar com os seus clientes. O contrato de concessão comercial é ainda, eventualmente, contrato quadro em relação a contratos a celebrar entre o concessionário e subconcessionários e entre o concedente e outros concessionários (…).
Concedente e concessionário obrigam-se pois a celebrar os mencionados contratos em conformidade com o que consta do contrato de concessão, que é geralmente um contrato de adesão do concessionário a um modelo estereotipado pelo concedente para todos os seus concessionários”.
Afim de assegurar a qualidade e um certa uniformidade na rede de distribuição, o contrato de concessão comercial inclui ainda um conjunto de obrigações do concessionário referentes “à promoção dos produtos, aos métodos de venda, a informações técnicas e comerciais a prestar ao concedente e, eventualmente, à organização da empresa concessionária e a serviços pós-venda” (também, Carlos Ferreira de Almeida; Contratos III – Contratos de liberalidade, de cooperação e de risco; Almedina, 2012, p. 140).
Conforme salienta António Pinto Monteiro (Contratos de Distribuição Comercial; Almedina, 2004, p. 107), “pelo contrato de concessão “concede-se” a outrem o “privilégio” de comercializar bens “pré-vendidos”, seja pela notoriedade da marca, seja pela integração numa rede de distribuição, seja pela publicidade de que beneficiam esses produtos, seja, enfim, pela vantagem concorrencial e as oportunidades de ganho em face dos demais comerciantes”.
Fernando A. Ferreira Pinto (Contratos de Distribuição – Da tutela do distribuidor integrado em face da cessação do vínculo; Universidade Católica Editora; Lisboa, 2013, p. 61) sublinha que, “a concessão é, entre nós, encarada como um contrato-quadro que dá origem a uma relação jurídica duradoura e complexa, nos termos da qual um empresário independente – o concedente – se obriga a vender a outro – o concessionário - , certos produtos ou categorias de produtos, vinculando-se este, por sua vez, a adquirir e a revender esses produtos, em seu nome e por sua conta, de acordo com as directrizes formuladas pelo primeiro e sob a sua supervisão”.
Como notas essenciais do contrato de concessão comercial refere António Pinto Monteiro (ob. cit., p. 109), as seguintes:
- É um contrato em que alguém assume a obrigação de compra para revenda, nele se estabelecendo logo os termos – ou os principias termos ou regras – em que esses futuros negócios serão feitos, pelo que, ao celebrarem, periodicamente, os contratos de compra e venda pelos quais o concessionário adquire do concedente os bens para revenda, estarão as partes a cumprir a obrigação anteriormente assumida;
- O concessionário age em seu nome e por conta própria, assumindo os riscos da comercialização; e
- Vinculam-se as partes a outro tipo de obrigações – além da obrigação de compra para revenda – sendo através delas (no fundo para definir e executar determinada “política comercial”) que verdadeiramente se efetua a integração do concessionário na rede ou cadeia de distribuição do concedente.
A concessão comercial apresenta alguma afinidade com o contrato de agência, não só quanto à atividade desenvolvida pelo agente e pelo concessionário, mas ainda quanto à situação de dependência económica em que se encontram relativamente à outra parte estas duas categorias de intermediários comerciais. Todavia, na agência, o agente atua sempre por conta do principal, o que não ocorre na concessão: “o concessionário, ao contrário do agente, actua em seu nome e por conta própria, adquire a propriedade da mercadoria, comprando ao fabricante ou ao fornecedor mercadorias para revender a terceiros (…) e assume os riscos da comercialização” (assim, Pinto Monteiro; Contrato de Agência – Anteprojecto, in BMJ 360.º, p. 22).
Refere o mesmo Autor (Contratos de Distribuição Comercial; Almedina, 2004, pp. 112-113) o seguinte quadro de diferenças entre a agência e a concessão comercial:
- Ao contrário do agente, o concessionário age em seu nome e por conta própria;
- Ao contrário do agente, o concessionário, em regra, adquire a propriedade da mercadoria;
- Ao invés do agente, o concessionário é um comerciante que compra para revenda, estando muitas vezes obrigado a adquirir uma quota mínima de bens;
- O concessionário assume o risco da comercialização;
- O concessionário beneficia, normalmente, do direito de exclusivo;
- As obrigações do concessionário, perante o concedente, não cessam com a alienação dos bens, estando igualmente vinculado a prestar assistência pós-venda aos clientes, mediante pessoal especializado e meios idóneos.
Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30-01-2014 (Pº 679/11.8TJLSB.L1-8, rel. ILÍDIO SACARRÃO MARTINS), “[o] contrato de concessão comercial é um contrato-quadro que faz surgir entre as partes uma relação obrigacional complexa, por força da qual uma delas, o concedente, se obriga a vender à outra, o concessionário, e esta a comprar-lhe, para revenda, determinada quota de bens, aceitando certas obrigações – mormente no tocante à sua organização, à política comercial e à assistência a prestar aos clientes – e sujeitando-se a um certo controlo e fiscalização do concedente. Como contrato-quadro, o contrato de concessão comercial funda uma relação de colaboração estável, duradoura, de conteúdo múltiplo, cuja execução implica, designadamente, a celebração de futuros contratos entre as partes, pelos quais o concedente vende ao concessionário, para revenda, nos termos previamente estabelecidos, os bens que este se obrigou a distribuir. A concessão comercial é, pois, um instrumento de integração económica mediante o qual a empresa do concessionário ingressa na rede comercial do concedente, adquirindo uma posição privilegiada na revenda dos produtos e essa posição tem o seu preço: o concessionário é obrigado a possuir instalações adequadas à actividade de revenda e assistência pós-venda, a especializar o seu pessoal, a dirigir a sua actividade ao incremento da clientela da marca, o que implica um considerável esforço financeiro. No contrato de concessão vinculam-se as partes a outro tipo de obrigações – além da obrigação de compra para revenda -, sendo através delas que verdadeiramente se efectua a integração do concessionário na rede ou cadeia de distribuição do concedente. São obrigações de índole e intensidade diversa, com as quais se visa, no fundo, definir e executar determinada política comercial. Isso pode implicar, designadamente, o estabelecimento de regras sobre a organização e as instalações do concessionário, os métodos de venda, a publicidade, a assistência a prestar aos clientes, etc; consagra-se, além disso, um certo controlo do primeiro sobre a actividade do segundo. Numa palavra, trata-se de definir regras de comportamento através das quais se estabeleçam laços de colaboração entre as partes e se articula e coordena a actividade de todos no seio da rede de distribuição, regras essas que implicam obrigações várias e se fundam – juntamente com a obrigação de compra para revenda – no contrato de concessão como contrato-quadro que é”.
“No contrato de concessão comercial o concessionário, ao contrário do agente, actua em seu nome e por sua conta, assumindo os riscos da comercialização dos produtos que compra ao fabricante ou ao fornecedor, para vender a terceiros, e retirando os proventos do resultado da compra e venda desses produtos” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-07-2004, Pº 4409/2004-7, rel. PIMENTEL MARCOS).
Por outro lado, conforme se referiu no Acórdão do STJ de 10-05-2001 (Rev. n.º 324/01, 7.ª Secção), “o que permite distinguir o contrato de concessão comercial de outros contratos de carácter duradouro como, por exemplo, o contrato de fornecimento ou a distribuição autorizada, é a integração do concessionário na rede de distribuição de produtos adquiridos ao concedente, usualmente pelo recurso a estruturas criadas para tal efeito, grande parte das vezes com a participação do próprio concedente”.
Nesta mesma linha, referiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-07-2009 (Pº 147/06.0TBPNH.C1, rel. SÍLVIA PIRES) que:
“O contrato de fornecimento é o contrato pelo qual uma parte se obriga, mediante pagamento de um preço, a executar, a favor da outra, prestações periódicas ou continuadas de coisas.
Nos casos em que o fornecedor se obriga a transmitir a propriedade de coisas à contraparte, este tipo contratual aproxima-se da compra e venda, apresentando-se como um negócio definitivo e unitário, cujas prestações se sucedem e prolongam no tempo.
No contrato de concessão comercial, que se insere na categoria jurídica dos contratos de distribuição, o concedente obriga-se a vender certos produtos ao concessionário, para que este os revenda a terceiros.
Deste contrato resulta para o concessionário a obrigação de comprar certos produtos ao concedente nos termos previamente estabelecidos, com a finalidade vinculística da sua revenda, e, para este, a obrigação de vender os produtos do concessionário, obrigando-se as partes à celebração de sucessivos contratos de compra e venda.
Além de neste último tipo contratual não existir um único negócio de transmissão da propriedade, é seu elemento essencial, e estranho ao contrato de fornecimento, a obrigação do concessionário revender os produtos comprados ao concedente e de exercer uma actividade de promoção da revenda.
A concessão comercial apresenta-se como um contrato juridicamente inominado que, em traços gerais, se pode descrever como aquele em que um comerciante independente – o concessionário – se obriga a comprar a outro – o concedente – determinada quantidade de bens de marca, para os revender ao público em deter­minada área territorial, e, normalmente, mas nem sempre, com direito de exclusividade.
São indispensáveis à caracterização deste contrato a relação duradoura entre o fornecedor e o distribuidor, a actuação do concessionário em nome e por conta própria, a obrigação do concessionário promover a revenda dos bens adquiridos ao concedente na respectiva zona, constituindo os bens produzidos ou meramente entregues pelo fornecedor o objecto mediato do contrato, a obrigação futura de compra e venda por concessionário e concedente dos produtos objecto do contrato e a obrigação do concessionário orientar a sua actividade em função das finalidades do contrato e do concedente lhe fornecer os meios necessários ao exercício da sua actividade”.
No que respeita à formação de um contrato, a mesma não tem de passar – salvo nos casos em que seja disposta uma particular forma contratual - pela formulação ritual de uma proposta e uma aceitação, paradigma a que o Código Civil reconduz a fase formativa, mas que, é apenas um possível modelo, entre outros, para a conclusão de um contrato (sobre o tema, v. Carlos Ferreira de Almeida, Contratos I, Conceito, fontes, formação, 4.ª ed., Almedina, 2008, pp. 111-200).
Conforme salienta Carlos Ferreira de Almeida (Contratos IV – Funções. Circunstâncias. Interpretação; Almedina, 2014, pp. 275-276), “[a]pesar do predomínio atual das comunicações contratuais escritas, ainda que não assinadas, reforçado pelo correio eletrónico e pelas mensagens enviadas por telefone (sms), subsiste a formação de contratos através do diálogo oral ou gestual, concentrado (…) ou disperso no tempo, presencial ou à distância, modelo agora reanimado pelos meios de comunicação eletrónica de voz e de imagem em simultâneo.
Nestas circunstâncias, o contrato fica concluído quando ambas as partes verifiquem que chegaram a um consenso. Se não for redigido um documento ad probationem e sendo improvável discernir com clareza algo que se possa reconduzir ao esquema de aceitação de proposta, cabe ao intérprete reconstituir o diálogo e construir o texto que reproduz os termos do consenso (…).
O consenso afere-se:
- pela consonância da aceitação com a proposta;
- pela identidade significativa de cada uma das declarações contratuais conjuntas, interpretadas em separado sob o ponto de vista de cada um dos declaratários;
- em geral e noutras variantes, incluindo o diálogo oral concentrado ou não, em que se encadeiam convites, propostas parcialmente rejeitadas, contrapropostas, cláusulas contratuais gerais, pelo recíproco reconhecimento de intenções ou pela demonstração de que as declarações de cada uma das partes inserem os componentes contratuais comuns e as remissões concordantes suficientes para que os respetivos projetos contratuais se considerem realizados e conformes (…)”.
Ora, se olharmos para os factos apurados – por contraponto aos que resultaram não provados – verifica-se que neles não se divisa a existência de algum acordo (quadro) com as caraterísticas típicas de um contrato de concessão comercial.
Houve, como se viu, o estabelecimento de relações comerciais de compra e venda de produtos, pelas quais a ré encomendou à autora, e esta forneceu-lhe diversos produtos de marca USN, que podem caraterizar-se no âmbito de um contrato de fornecimento.
Houve, também, a demonstração de que, antes da constituição da Autora em 2008, e desde 2005, existia uma relação comercial entre AC e mulher, e duas outras empresas do grupo económico USN - a USN South Africa [PTY] LTD, anteriormente denominada Ultimate Sports Nutrition CC e a USN UK (esta, anterior à constituição da A., e distinta desta), por via da qual se estabeleceu, acordo verbal entre o casal CC e a USN Africa do Sul comprometendo-se aqueles a adquirir os produtos USN à USN Africa do Sul, com a faculdade de poderem fabricar, e também poderem comprar USN diretamente aos fabricantes, e em contrapartida pagariam à USN Africa do Sul 7,5 % de Royalties e no âmbito desse acordo, desde o inicio do ano de 2006 até à constituição da Ré em 30 de abril de 2007, AC e mulher passaram a implementar os produtos USN no mercado português e espanhol, passando a fazê-lo a Ré a partir da sua constituição.
Como é claro, não poderá o estabelecimento de tal relação – respeitante a terceira entidade face à autora - vincular a autora sem demonstração de uma declaração negocial (independentemente da forma que a mesma pudesse revestir) por banda da autora, sendo certo que, não se provou o que consta, desde logo, dos factos não provados n.ºs. 1 a 5.
Assim, não se apurou que a autora, ora recorrida, tenha celebrado algum acordo específico, em moldes de contrato-quadro, pelo qual se regessem as relações entre autora e ré (o que, aliás, tendo presente a existência do aludido contrato celebrado com a USN África do Sul, sempre teria carência de sentido).
A ré, tendo por pano de fundo a preexistente relação estabelecida entre a USN South Africa e o casal CC, apenas se enquadra, após a sua criação, num revendedor autorizado/consentido dos produtos da primeira, tendo-se limitado – porque inexistiu demonstração de que houvesse alguma integração característica da concessão comercial - a celebrar com a autora sucessivos contratos de compra e venda dos produtos por si comercializados.
De facto, a matéria de facto apurada (no que concerne à circunstância de a ré ter diligenciado pela tradução dos rótulos para revenda dos produtos USN em Portugal e Espanha; de ter traduzido catálogos e panfletos informativos USN para português e espanhol; no que se refere à prestação de conselhos técnicos especializados aos seus clientes relativamente à escolha e à utilização dos produtos USN, antes e depois da venda; no que se refere à prestação de formação – a expensas da ré - por especialistas da marca USN a empregados da ré e a staff de clientes; no que se refere à realização de descontos e promoções perante diversos clientes; no que toca à participação - com instalação de pavilhões próprios e a expensas suas - em feiras de produtos do sector – com exibição dos produtos e logotipos e marcas; no que tange a ter a ré patrocinado equipas e eventos de publicitação dos produtos USN (e de disso ter dado conhecimento à autora); no que se refere à divulgação dos produtos USN nos seus sítios na Internet; no que toca a colaboradores da R. participarem em conferências técnicas e comerciais sobre produtos USN, e frequentaram cursos de formação técnica e cursos de vendas desses produtos, fora de Portugal; no que tange à ré ter dado conhecimento à autora de algum do material publicitário e traduzido que efetuou; e de a atuação da ré ter criado um  mercado com vários clientes para os produtos comercializados pela autora) é insuficiente para demonstrar que a autora tenha assumido perante a ré alguma obrigação de venda por futuros contratos de compra e venda, ou que esta tenha assumido alguma obrigação de compra perante aquela, no sentido de ter sido executado algum contrato-quadro de concessão comercial.
Em particular, não se encontra consenso algum, no rol dos factos provados, sobre termos pelos quais devesse ter lugar a aquisição de produtos pela ré à autora, tal como não se encontra alguma vinculação – e em que termos – sobre a ré dever seguir e executar alguma “política comercial” da autora.
É certo que se registou a intervenção da ré em diversos domínios que ultrapassam a mera aquisição e revenda de produtos (como seja, por exemplo, a tradução de rótulos de produtos USN ou a participação em feiras e eventos de promoção dos produtos dessa marca), mas tais atuações da ré apenas poderão ser olhadas como estratégias de revenda desses produtos por banda da ré, não tendo, como reverso, alguma vinculação encontrada face à autora, no sentido de esta ter imposto a obrigação da ré se reger, na sua atuação, por alguma política comercial, de ter promovido de determinada maneira os produtos USN, de atingir determinados objetivos comerciais, de existir alguma restrição de atuação comercial da ré, ou de a ré se ter vinculado, por qualquer forma, a revender os produtos que adquiria à autora.
Como bem refere a recorrida, não se divisa, face aos factos apurados, que tenha existido “qualquer tipo de controlo por parte da Recorrida, nem expresso, nem tácito, sobre a actividade comercial da Recorrente, nem nunca a Recorrida impôs qualquer tipo de política comercial”.
Dos factos apurados não resulta que a recorrente estivesse obrigada a adquirir alguns produtos, quer qualitativa, quer quantitativamente definidos, sempre tendo a ré atuado por sua exclusiva orientação e autonomia (conforme resulta, por exemplo, do que consta apurado nos n.ºs. 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31 e 32 dos factos provados), respeitando tal atuação da ré à forma encontrada pela mesma como mais adequada para proceder à revenda dos produtos USN, sem que lhe correspondesse alguma imposição de adotar alguma política comercial por banda da autora.
Por outro lado, a autora, nos termos do acordo estabelecido com a USN South Africa podia adquirir produtos USN a outras entidades (cfr. factos provados n.ºs. 14 e 27), sem alguma restrição comercial que pudesse partilhar das caraterísticas da concessão comercial, não tendo existido alguma vinculação à celebração de futuros contratos de compra e venda sob alguma forma ou modalidade de comercialização.
É certo que, as partes, a certa altura, mantiveram negociações para firmarem um contrato escrito de distribuição comercial dos produtos USN no mercado português, tendo sido trocada uma minuta de tal acordo, mas, não pode esquecer-se que tais negociações não vieram a lograr obter o almejado consenso (cfr. factos provados n.ºs. 18, 19 e 37), nada se podendo daí inferir para a existência de alguma relação de concessão.
Assim, por tudo o exposto, conclui-se que a relação comercial estabelecida entre a autora e a ré não passou, pois, além do fornecimento de bens e de cooperação interempresarial para a aquisição/revenda pela ré de tais produtos, mas sem que, na respetiva atividade recíproca se detetarem as caraterísticas de integração comercial – muito menos com alguma nota de exclusividade em benefício da ré - que definem um contrato de concessão comercial.
O juízo de improcedência da pretensão reconvencional – a qual se sustentava na existência (não apurada) da invocada concessão comercial e nas consequências invocadamente decorrentes da sua cessação – não merece, neste contexto, alguma censura.
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A apelação improcederá em conformidade com o exposto, com manutenção, na íntegra, da decisão recorrida.
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De acordo com o estatuído no n.º 2 do artigo 527.º do CPC, o critério de distribuição da responsabilidade pelas custas assenta no princípio da causalidade e, apenas subsidiariamente, no da vantagem ou proveito processual.
Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. “Vencidos” são todos os que não obtenham na causa satisfação total ou parcial dos seus interesses.
Conforme se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2017 (Pº 1509/13.1TVLSB.L1.S1, rel. TOMÉ GOMES), cujo entendimento se subscreve: “O juízo de procedência ou improcedência da pretensão recursória não é aferível em função do decaimento ou vencimento parcelar respeitante a cada um dos seus fundamentos, mas da respetiva repercussão na solução jurídica dada em sede do dispositivo final sobre essa pretensão”.
Em conformidade com o exposto, a responsabilidade tributária inerente incidirá, in totum, sobre a ré/apelante, que decaiu, para este efeito, integralmente – cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC.
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5. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem o coletivo desta 2.ª Secção Cível, em julgar improcedente a apelação, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.
Custas da apelação pela ré/apelante.
Notifique e registe.
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Lisboa, 16 de março de 2023.
Carlos Castelo Branco
Orlando dos Santos Nasciment
João Miguel Mourão Vaz Gomes