TÍTULO CONSTITUTIVO DA PROPRIEDADE HORIZONTAL
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
USO DIVERSO DO FIM A QUE SE DESTINA
Sumário

I - Constando no título constitutivo da propriedade horizontal (negócio jurídico celebrado por escritura pública) que a fração C (de que a 1.ª Ré é proprietária e a 2.ª Ré arrendatária) é “destinada a comércio”, sendo “composta por uma área ampla para exposição e comercialização de veículos automóveis e duas instalações sanitárias”, não se poderá entender, de harmonia com os critérios interpretativos consagrados nos artigos 236.º a 238.º do CC, que a fração se destinava apenas a comércio de veículos automóveis, antes se nos afigura que tal descritivo da composição da fração serve o propósito de clarificar uma das possíveis e concretas atividades comerciais incluídas no uso para “comércio”.
II - Ante a interpretação casuística do referido título, é de concluir que a 1.ª Ré, ao arrendar a fração para aí ser instalado o “estabelecimento de restaurante” explorado pela 2.ª Ré, está a dar-lhe um uso diverso do fim a que a mesma é destinada, o que lhe está expressamente vedado pelo art.º 1422.º, n.º 2, al. c), do CC. Também à 2.ª Ré, até por maioria de razão, é proibido fazê-lo, pese embora não seja condómina, mas arrendatária.
III - Está provado que a 1.ª Ré diligenciou, antes de dar a fração de arrendamento, pela alteração da licença de utilização, que passou a ser, de “comércio” para “comércio/ serviços”. Sem essa alteração seria fácil concluir que o contrato de arrendamento era nulo (cf. art.º 5.º, n.º 8, do Decreto-Lei n.º 160/2006, de 08-08, republicado pelo Decreto-Lei n.º 266-C/2012, de 31-12), já que a exploração de um “estabelecimento de restaurante” não é de considerar incluída no conceito de comércio.
IV - No caso, tendo presente a função económico-social do arrendamento, mas também os interesses de ordem pública que todas as normas em presença visam acautelar, mormente a segurança e proteção da qualidade de vida e saúde dos cidadãos em geral, é de considerar que a exploração de um estabelecimento de restaurante na dita fração é uma atividade não abrangida pelos conceitos de “comércio / serviços”, concluindo pela nulidade do contrato de arrendamento.
V - A idêntica conclusão se chega, não por via da aplicação o art.º 280.º do CC, mas antes do art.º 401.º do CC, verificando-se uma impossibilidade originária da prestação no caso de celebração de contrato de arrendamento da fração em apreço para uma finalidade (“estabelecimento de restaurante”) diversa da permitida legalmente para o uso da mesma, conforme resulta do título constitutivo da propriedade horizontal.
(Sumário da exclusiva responsabilidade da Relatora – art.º 663.º, n.º 7, do CPC)

Texto Integral

Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO

GIGAMANIA – UNIPESSOAL, LDA. interpôs o presente recurso de apelação da sentença que julgou parcialmente procedente a ação declarativa que, sob a forma de processo comum, contra si e a sociedade SPELLINGSPICES, LDA. foi intentada pelo CONDOMÍNIO DO PRÉDIO URBANO SITO ….
Na Petição Inicial, apresentada em 16-01-2020, o Autor peticionou que:
a) as Rés fossem condenadas a reconhecer que a fração C do prédio identificado correspondente à loja A, destinada a comércio no piso zero do Bloco C, só pode ter como fim o comércio, devendo as Rés afetá-la a esse fim e, consequentemente, que fossem condenadas a não exercerem na fração a atividade de restauração e a dar-lhe um uso diverso do fim a que é destinada, considerando-se como inexistentes e sem efeito as cláusulas contratuais existentes nos contratos de arrendamento respetivos que eventualmente mencionem o objeto como sendo de atividade de restauração tradicional e “take away”;
b) as Rés fossem condenadas a ressarcirem os danos decorrentes da situação descrita, isto é, do uso como atividade de restauração dado à fração autónoma, que provoca danos na estrutura do prédio, como manchas ou fissuras.
O Autor alegou, para tanto e em síntese, que:
- a 1.ª Ré é proprietária de fração autónoma que integra o prédio dos autos, destinada, segundo consta do título constitutivo da propriedade horizontal, a comércio;
- a 1.ª Ré deu de arrendamento à 2.ª Ré a referida fração para instalação de restaurante, uso que está a ser efetivamente dado à mesma, o que afronta o regime jurídico da propriedade horizontal e causa ao prédio danos por emissão de fumos, cheiros e ruídos.
A 2.ª Ré apresentou a sua Contestação, em 25-02-2020, defendendo-se por impugnação, de facto e de direito, mais requerendo a condenação do Autor como litigante de má-fé.
A 1.ª Ré veio também, em 20-05-2020, apresentar a sua Contestação, defendendo-se por impugnação, de facto e de direito.
Foi proferido despacho, em 08-05-2021, concedendo ao Autor o prazo de 50 dias para se munir da autorização da assembleia de condóminos para demandar as Rés, sob pena de estas serem absolvidas da instância, exceção que, no seguimento da junção de deliberação daquela assembleia, foi considerada sanada.
O Tribunal de 1.ª instância convidou as partes a pronunciarem-se sobre as exceções atinentes à ineptidão parcial da petição inicial e à falta de personalidade judiciária do Condomínio Autor para o pedido de indemnização, mais tendo convidado o Autor a aperfeiçoar a Petição Inicial, convite a que este correspondeu, conforme requerimento apresentado em 18-11-2021, tendo as Rés exercido o contraditório.
Foi ainda proferido despacho, em 27-03-2022, convidando as partes a juntarem documentos (o que veio a ser feito por requerimento de 14-04-2022) e anunciando que o Tribunal considerava estarem reunidos todos os elementos para conhecimento do mérito da causa no saneador.
Em 24-11-2022, foi proferido saneador-sentença, julgando inepta a petição inicial no que respeita ao pedido indemnizatório por danos nas partes comuns e verificada a exceção de falta de personalidade judiciária do Autor para o pedido indemnizatório por danos não patrimoniais, absolvendo as Rés da instância quanto àqueles. Decidiu ainda o Tribunal conhecer do mérito da causa, com a prolação da decisão (recorrida) cujo segmento decisório tem o seguinte teor:
“Em face do acima exposto, julgo a presente procedente e, consequentemente:
a) declaro que o fim fixado no título constitutivo da propriedade horizontal para a fracção melhor identificada a 3. do julgamento de facto é o de o comércio de veículos automóveis;
b) declaro que as RR. estão proibidas de usar a referida fracção para outro fim que não ao descrito em a);
c) declaro nulo e de nenhum efeito o contrato de arrendamento celebrado entre as RR. e melhor identificado a 5. do julgamento de facto.
Custas da responsabilidade das RR., sem prejuízo das condenações parcelares realizadas no saneamento dos autos – cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil.”
Inconformada com esta decisão, veio a 1.ª Ré interpor o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
a) A atividade que a Câmara Municipal de … determinou que podia ser desenvolvida na fração C do prédio urbano sito na Rua …, descrito no Registo Predial no número 262 da União de Freguesias…, é estabelecimento de comércio e serviços.
b) A atividade desenvolvida pela Ré Spellingspices é de venda de refeições não cozinhadas, empratadas para serviço à mesa no espaço arrendado e mencionado em 1, ou embaladas para venda a terceiros que as consomem no exterior do estabelecimento.
c) No estabelecimento arrendado pela Ré Gigamania à Ré Spellingspices não foram, nem são confecionadas refeições através de meios tradicionais de cozedura, assadura fritadura, grelhado, ou por qualquer meio transformadas através do calor.
d) A atividade desenvolvida pela Ré Spellingspices respeita, integralmente, a atividade de comércio e serviços que para a fração foi determinada pela Câmara Municipal de …, pelo que
e) Não pode ser sentenciado que as RR. estão proibidas de usar a referida fração para outro fim que não o de o comércio de veículos automóveis
f) Porque não estão violados deveres a que as Rés estivessem obrigadas, não pode o contrato de arrendamento celebrado entre as Rés Gigamania e Spellingspices ser considerado nulo.
Terminou a Apelante requerendo que a parte da sentença que declarou (a) que o fim fixado no título constitutivo da propriedade horizontal para a fração melhor identificada a 3. do julgamento de facto é o de o comércio de veículos automóveis, (b) que as Rés estão proibidas de usar a referida fração para outro fim que não ao descrito em a) e (c) nulo e de nenhum efeito o contrato de arrendamento celebrado entre as Rés e melhor identificado a 5. do julgamento de facto, seja substituída por acórdão que julgue (a) não limitar o fim fixado no título constitutivo da propriedade horizontal para a fração de que a 1.ª Ré é proprietária a comércio de veículos automóveis, (b) que as Rés não fiquem proibidas de usar a referida fração para outro fim que não a de comércio de veículos automóveis e (c) que o contrato de arrendamento celebrado entre as Rés não seja declarado nulo.
A 2.ª Ré (Spellingspices) apresentou requerimento de adesão ao recurso.
Não foi apresentada alegação de resposta.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
As questões a decidir consistem em saber se:
- às Rés não deve ser vedado o uso da fração em apreço para outro fim que não o de o comércio de veículos automóveis;
- o contrato de arrendamento celebrado entre as Rés não é nulo.

Factos provados
No saneador-sentença foram considerados provados os seguintes factos (acrescentámos os que constam entre parenteses retos, por estarem plenamente provados pelos documentos indicados):
1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de… sob o n.º 262, o prédio urbano sito na Rua … [com Autorização de Utilização n.º 551/2000, datada de 07-08-2000, emitida pela Câmara Municipal - An. Of. de 2008/11/24 2009/01/15 - doc. 2 junto com o requerimento de 16-01-2020].
2. Pela Ap. 11 de 20000318, encontra-se registada a constituição de propriedade horizontal do prédio acima referido, composto pelas frações autónomas A a AU [constituído por edifício multifamiliar com dois Blocos, designados por A e B, com cave para garagem e arrumos, rés-do-chão para habitação e comércio, primeiro, segundo, terceiro, quarto e quinto andares para habitação, e um anexo para serviços e logradouro, correspondendo as frações A e B às garagens n.ºs 1 e 2, respetivamente, a fração C a “Loja A, destinada a comércio, no piso zero do Bloco B, composta por uma área ampla para exposição e comercialização de veículos automóveis e duas instalações sanitárias”, as frações D a AT a apartamentos e a fração AU a “Anexo E, no logradouro, destinado a escritório, composto por um espaço amplo” - doc. 1 junto com o requerimento de 16-01-2020].
3. A 1.ª Ré é a titular inscrita na descrição acima referida da propriedade da fração autónoma C [constando no registo predial que a sua composição é a seguinte: “Loja A, destinada a comércio no piso zero do Bloco B” - doc. 2 junto com o requerimento de 16-01-2020]
4. No título constitutivo da propriedade horizontal [negócio celebrado por escritura pública outorgada no dia 04-04-2000 no 2.º Cartório Notarial de…], consta que a fração autónoma referida em 3. é uma loja destinada a comércio, sendo composta por uma área ampla para exposição e comercialização de veículos automóveis.
5. Por escrito assinado pelas Rés, a 1.ª Ré declarou dar de arrendamento à 2.ª Ré, que declarou tomar de arrendamento, a fração descrita a 3. para estabelecimento de restauração [mais precisamente “estabelecimento de restaurante”], com efeitos a 01-09-2018 [mencionando-se no contrato que a fração arrendada tem a licença de utilização n.º 90/2015 emitida pela Câmara Municipal de … - doc. 1 junto com a Contestação apresentada a 25-02-2020].
6. A 2.ª Ré tem exercido a atividade de restauração na fração dos autos.
7. A 06-04-2015, a Câmara Municipal de … concedeu autorização para utilização da fração dos autos para estabelecimento de comércio/serviços [por despacho do Sr. Presidente da Câmara foi deferido o requerimento da 1.ª Ré, autorizando a mudança de utilização da fração referida em 3. “de comércio para comércio/ serviços”, vindo a ser, depois, emitido pela Câmara Municipal de … o alvará de alteração de utilização n.º 90/2015 – documentos juntos com o requerimento de 14-04-2022].

Do uso diverso do fim a que é destinada a fração

Na decisão recorrida teceram-se, a este respeito, as seguintes considerações de direito (reproduzimos algumas passagens, para melhor compreensão, omitindo as notas de rodapé):
“(…) Ora, da factualidade apurada nos autos e na qual unicamente se pode estribar qualquer decisão a proferir, resulta sem margem para dúvidas que o prédio aqui em causa se encontra constituído em propriedade horizontal, sendo integrado pela fracção autónoma da titularidade da 1.ª R.. Donde, e sem necessidade de maior e/ou mais aprofundada argumentação, conclui-se pela aplicação do regime ínsito nos artigos 1417.º e seguintes do Cód. Civil.
Por outro lado, adquirido está que no título constitutivo da propriedade horizontal, de acordo com a sua interpretação realizada ao abrigo dos artigos 236.º e seguintes do Cód. Civil, a utilização legalmente permitida da fracção em causa é a de comércio de veículos automóveis ou similar, não permitindo assim o estatuto real do direito de propriedade horizontal o seu uso para fim distinto.
Ora, quedou-se provado que a 1.ª R., através da arrendatária da fracção autónoma, aqui segunda impetrada, encontra-se a utilizá-la como estabelecimento de restauração.
Tem vindo a ser posição jurisprudencial consolidada a de que o sentido corrente e normal que se tem em vista quando se menciona que se destina a comércio um determinado espaço, é o sentido de nesse local se instalar um estabelecimento comercial para mediação e troca de bens ou serviços, e não um estabelecimento em que se exerça uma actividade industrial, como é o caso da restauração; isto porque se entende que a actividade de restauração, para além de implicar por natureza a transformação de alimentos, é geradora de relevante emissão de cheiros e ruídos, ..., com potenciais efeitos nocivos da normal fruição das restantes fracções.
Do exposto, resulta cristalino que ainda que o título constitutivo da propriedade horizontal não concretizasse o comércio a que se destinaria a fracção da propriedade da primeira demandada, como faz, a verdade é que não se poderia deixar de considerar que a utilização como restaurante não estaria abrangida pela destinação ali consignada.
Mas mais: ainda que se entendesse diferentemente, ou seja, que a actividade da restauração não implica a transformação de alimentos, mas tão só a sua confecção, sendo assim susceptível de integrar a destinação comércio, acompanhando Abílio Neto ter-se-ia de considerar que só à Câmara Municipal, sendo a única entidade pública detentora de competência para fixar o uso das fracções autónomas, no exercício de prerrogativas de autoridade e orientada por razões de interesse público, se deve reconhecer competência para determinar a amplitude ou o conteúdo concreto do conceito relativamente indeterminado através do qual definiu aquele fim, ou seja, se determinada actividade pretendida cai no âmbito do fim fixado e pode, portanto, ser exercida sem modificação do título constitutivo..., ou, se pelo contrário, o extravasa, embora seja licenciável como fim novo, carecendo da observância do artigo 1419.º
Isto porque a propriedade horizontal não se rege somente pelo Direito Civil, nela assumindo particular relevo o do Urbanismo, como até deriva do vertido no artigo 1418.º, n.º 3 do Cód. Civil, que comina com nulidade o título constitutivo que revele falta de coincidência entre o fim nele consignado e o fixado pela entidade pública competente para cada uma das fracções integrantes.
Assim, sempre que um condómino pretenda exercer na sua fracção uma actividade distinta daquela que até então era exercida, deve solicitar que a câmara municipal lhe certifique se a nova actividade cai, ou não, no âmbito da já licenciada, e se só se for diversa deve pedir a respectiva modificação.
Se a certificação for no primeiro sentido, não há lugar, obviamente ao cumprimento do art.º 1419.º, ou seja, à alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, ...
Se a certificação a qualificar como nova, então, aí sim, o condómino interessado terá de desencadear o procedimento interno para modificação do título constitutivo da propriedade horizontal...
Face ao exposto e bem assim do que deriva da factualidade demonstrada nos autos, no decurso do ano de 2015, foi solicitada e concedida uma alteração à licença de utilização da fracção autónoma sub judicio, de modo a que esta passou a ser urbanisticamente utilizável para estabelecimento de comércio/serviços.
Sendo certo que no título constitutivo da propriedade horizontal à fracção em referência foi fixado o uso de loja destinada ao comércio integrada por área para exposição e comercialização de veículos automóveis, a alteração de que acima se dá nota demonstra que a própria Edilidade considerou que se impunha realizar uma alteração administrativa ao uso daquela por não estar abrangida pelo anterior licenciamento; circunstância que, nos termos preditos, determina a consideração da efectiva utilização em contravenção com o que lhe foi destinado no título constitutivo da propriedade horizontal e que integra o seu estatuto real – a saber, de estabelecimento comercial de veículos automóveis.
Pelo exposto, não restam quaisquer dúvidas quanto a ser a utilização da fracção autónoma como estabelecimento de restauração contrária à destinação dela realizada no título constitutivo da propriedade horizontal do prédio, não se podendo deixar de concluir por se encontrar a 1.ª R., através da arrendatária aqui segunda demandada, a violar a limitação ao exercício do seu direito real imposta na alínea c) do artigo 1422.º do Cód. Civil. Razão pela qual procede o pedido de declaração de que o fim da referida fracção não comporta o exercício da actividade da restauração, com a consequente proibição das RR. em utilizá-la para esse fim.”
Apreciando.
No que ora importa, preceitua o art.º 1422.º do CC, sob a epígrafe “Limitações ao exercício dos direitos”, que:
“1. Os condóminos, nas relações entre si, estão sujeitos, de um modo geral, quanto às fracções que exclusivamente lhes pertencem e quanto às partes comuns, às limitações impostas aos proprietários e aos comproprietários de coisas imóveis.
2. É especialmente vedado aos condóminos:
(…) c) Dar-lhe [à fração] uso diverso do fim a que é destinada”.
Lembramos, a propósito, as palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Volume III, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 426, em anotação a este artigo: “O destino das frações autónomas tanto pode ser estabelecido no título constitutivo, mediante declaração expressa, como resultar da forma como elas se encontram aí descritas, designadamente pelo que respeita às características das divisões que as integram”.
Na interpretação do título constitutivo da propriedade horizontal em apreço que, foi constituída por negócio jurídico celebrado por escritura pública, regem as normas que disciplinam a interpretação da declaração negocial (cf. artigos 236.º a 238.º do CC), valendo a invocada cláusula com o sentido que um destinatário medianamente instruído e sagaz, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu contexto; acresce que, por se tratar de um negócio formal não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso, podendo esse sentido, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.
Ora, vendo bem, no título em análise consta tão só que a fração C é “destinada a comércio”, e não também, como entendeu o Tribunal recorrido, mais especificamente ao comércio de veículos automóveis. Esta outra referência surge-nos unicamente com o propósito de descrever a composição (à data) da fração, sendo “composta por uma área ampla para exposição e comercialização de veículos automóveis e duas instalações sanitárias”.
Não nos parece, pois, que se deva interpretar essa menção como significando que a fração se destinava apenas a esse uso específico, assim restringindo a - mais abrangente - declaração expressa de ser “destinada a comércio”, antes se nos afigura que tal menção serve o propósito de clarificar uma das concretas atividades comerciais incluídas no uso para “comércio”.
Na verdade, dadas as caraterísticas e até localização da fração - uma loja num edifício multifamiliar cuja maior parte das frações são apartamentos para habitação -, seria quase absurdo pretender que naquela apenas pudesse funcionar um stand de automóveis. Registe-se que nem o Condomínio Autor faz uma tal alegação, antes se limita a defender que a fração se destina a “comércio”, pretendendo que isso seja reconhecido. Não significa isto que a composição da loja tal como descrita no título constitutivo seja irrelevante para o caso, como adiante melhor se verá.
A questão que se coloca é, pois, a de saber se o uso para “comércio” mencionado no título constitutivo da propriedade horizontal abrange ou não a atividade de restauração que é desenvolvida no locado, pela 2.ª Ré, arrendatária.
A questão suscita alguma controvérsia, que o Tribunal recorrido se eximiu de analisar, ante a conclusão - inaceitável - de que o uso indicado no título constitutivo da propriedade horizontal era o “comércio de veículos automóveis ou similar”.
Na análise que se impõe, começamos por reconhecer que, em linguagem corrente, até se se pode afirmar que a exploração de um estabelecimento de restauração é uma atividade comercial, sendo uma empresa que se dedique a tal atividade uma empresa comercial. Nesta linha de pensamento, o STJ entendeu, no acórdão do STJ de 23-05-2019, proferido na Revista n.º 7034/15.9T8FNC.L1.S1 - 6.ª Secção, conforme consta do respetivo sumário, disponível em www.stj.pt, que:
“I - A atividade de restauração constitui um misto de exercício de comércio e de indústria, exercício esse feito através de um estabelecimento comercial. 
II - A declaração constante do título constitutivo da propriedade horizontal de que a fração se destina a “comércio” é interpretável por um declaratário normal no sentido da fração consentir o funcionamento de um estabelecimento comercial, como é o caso de um restaurante, isto por oposição a um destino habitacional ou a um destino estritamente industrial.”
No entanto, ainda sem descer às particularidades do caso concreto, embora possamos considerar que a atividade de restauração está entre o exercício do comércio e da indústria, já nos custa aceitar que a declaração constante do título constitutivo da propriedade horizontal de que a fração se destina a “comércio” seja interpretável por um “declaratário normal” no sentido de incluir um estabelecimento de um restaurante. Uma tal perspetiva não nos parece a mais adequada, tendo em vista a finalidade das referidas normas do regime da propriedade horizontal, incluindo as atinentes aos requisitos legais para a sua constituição, parecendo-nos preferível a orientação, que há muito supomos dominante na doutrina e na jurisprudência, segundo a qual o uso de comércio não abrange a atividade de restauração.
Neste sentido, veja-se a Recomendação do então Provedor de Justiça José Menéres Pimentel de 25-03-1997, disponível em https://www.provedor-jus.pt/documentos-html/?id=3784, em que, no que ora interessa, se afirma o seguinte:
«(…) porém, que a actividade prosseguida pelos estabelecimentos similares dos hoteleiros, quer se trate de estabelecimento de “Snack-bar”, quer esteja em apreço tão só estabelecimento de bebidas, não se reconduz na sua essência, à actividade típica dos estabelecimentos comerciais.
Embora afins, não deverão, em rigor, considerar-se como equiparadas, nem, como tal, integrar o mesmo tipo de utilização as actividades cujo objecto se cinja à venda de artigos ao público e a actividade que comporte, ainda que acessoriamente, a transformação ou confecção de alimentos, em ordem a posterior consumo pelo público.
Decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 27.01.1993, proc. 82630, que a noção de comércio para um declaratário normal coincidirá com a ideia de “compra e venda de valores, mercadorias, negócio, permutação de produtos, troca de valores”, pelo que divergirá substancialmente do “conjunto de actividades de produção e transformação de matérias”.
Acrescidamente, perfilhando o entendimento explicitado na decisão recorrida, aduz o Supremo Tribunal de Justiça que a circunstância das demais fracções do edifício se destinarem a habitação obstará a que um declaratário normal atribua à declaração “destinada a comércio” um sentido lato e compaginável com a utilização de actividades “provocando emanações de vapores gordurosos, gases e cheiros, que vêm conspurcando o prédio, e ruídos, que se fazem sentir nas fracções dos AA.
De acordo com a boa fé, não é de admitir que a utilização assim feita das fracções corresponda ao comércio a que foram destinadas, segundo se declara no título. Outra interpretação sacrificaria com aquela utilização, apesar das restrições derivadas das relações de interdependência e vizinhança decorrentes da propriedade horizontal, os legítimos interesses dos titulares das fracções destinadas à habitação, em proveito de actividades não abarcadas pelo sentido normal da expressão comércio”.
Às actividades compagináveis com o uso comercial se reporta também o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.01.1995 (publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XX, 1995, Tomo I, p.p. 24 a 27), ao definir o comércio como actividade de troca de produtos por dinheiro, e ao excluir daquele conceito “a transformação da matéria prima em produto acabado e sua posterior venda”, concluindo, consequentemente que, “constando do título constitutivo da propriedade horizontal que a fracção se destina a comércio, não pode o condómino afectá-la ao fabrico de pão e pastéis, mesmo que sejam para serem vendidos na fracção”.
3.3. De resto, por possuírem diferente natureza, dispõem tais actividades de enquadramento legal díspar.»
A orientação jurisprudencial que perfilhamos vem sendo firmada ao longo dos anos e ilustrada por numerosos acórdãos de que destacamos, a título exemplificativo, os que a seguir indicamos, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Em primeiro lugar, o acórdão do STJ de 04-12-2008, proferido no proc. n.º 08B1350, em cujo sumário se afirma:
«II - Na definição dos direitos de cada um dos condóminos de acordo com este título deve haver um rigor extremo, uma vez que um conceito alargado do que cada um possa fazer é “meio caminho andado” para que todos perturbem todos. 
III - Quando na escritura de constituição da propriedade horizontal se inscreve que determinada fracção se destina a centro comercial, situando-se no âmbito do terciário/comércio, nesse destino não se inclui a indústria da restauração. 
IV - É a personalidade fisico-juridica do prédio a opor-se a uma diferente interpretação, quando o funcionamento de um restaurante instalado na fracção implica a necessidade da realização de obras que o regime da propriedade horizontal qualifique como proibidas.»
Mais lembramos o acórdão do STJ de 30-06-2011, proferido no proc. n.º 734/06.6TBA, em cujo sumário se afirma, no que ora importa, que:
“(…) 2. Não assumindo, em princípio, qualquer relevo o facto de o arrendamento ser para comércio ou para indústria, já que se lhe aplicam as mesmas regras, o conceito de comércio integra a actividade de mediação nas trocas e o de restauração envolve o de produção e de transformação de mercadorias (indústria).
3. A actividade de restauração deve, assim, ser considerada como uma actividade industrial e não comercial.
4. Bem se compreendendo a importância da distinção entre prédios (ou fracções) destinados ao exercício da actividade comercial e ao exercício da actividade industrial, no âmbito do direito do urbanismo e da edificação, uma vez que os pressupostos para a utilização de uma e outra finalidade são bem diferentes, designadamente, ao nível da segurança das estruturas ou da protecção ambiental.”
De referir também o acórdão do STJ de 15-05-2013, proferido no proc. n.º 3424/07.9TBVNG.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, em que se decidiu, numa situação em que estava em causa uma fração autónoma destinada a “comércio e/ou restaurante”, inexistir razão para declarar que apenas a atividade de restaurante (em sentido estrito) era passível de ser desenvolvida na fração, tendo reputado inaceitável e formalista que aí não estivesse incluído o fabrico próprio de pastelaria e panificação, afirmando-se, no que ora importa, que: «É certo que a actividade desenvolvida na fracção, fabrico próprio de pastelaria e panificação, não poderá ser integrada numa actividade comercial. Com efeito, como refere Aragão Seia (in Arrendamento Urbano, pág. 113) invocando Pereira Coelho essa actividade consistirá numa “mediação de trocas” ou, como se refere no acórdão deste STJ de 3-11-2009 (www.dgsi.pt/jstj.nsf), “entende-se por actividade comercial a actividade de mediação nas trocas, baseada na permuta e restrita à aquisição de mercadorias e sua revenda com intuito lucrativo” o que, obviamente, não sucede num estabelecimento em que se procede ao “fabrico próprio de pastelaria e panificação”. Aqui não está em causa uma função intermediária entre a produção e o consumo” (vide mesmo acórdão).
(…) Assim, devendo desde logo ter-se como excluído (quanto ao fabrico de produtos de pastelaria e panificação) o desenvolvimento de uma actividade comercial no local, a questão que mais particularmente se coloca será a de saber se a acção empreendida na fracção será possível de integrar na denominação “restaurante”.
Como se refere no acórdão deste STJ de 30-6-2011 (www.dgsi.pt/jstj.nsf) deve entender-se como actividade de restauração a “que envolve a produção e transformação de mercadorias”, pelo que a respectiva laboração “deve antes ser tida como uma actividade industrial e não comercial”. No mesmo sentido refere-se no já mencionado acórdão deste STJ de 3-11-2009 que “a actividade de restauração não pode ser tida como uma actividade comercial, mas sim industrial”, pois esta traduz-se “numa actividade criadora, de produção, extracção ou transformação de bens”.
A nosso ver são correctas estas asserções, sendo que devem valer os conceitos assumidos pela verbalização usual e corrente já que a lei não estabelece uma definição jurídica específica sobre estas actividades. Portanto a actividade de restauração, implicando uma evidente acção de produção ou transformação de bens e produtos alimentícios, deve ser entendida como uma actividade industrial.»
Destaque ainda para o acórdão do STJ de 13-02-2014, proferido no proc. n.º 373/04.6TBVFR.P2.S1, conforme se alcança do respetivo sumário, com o seguinte teor:
“1. A expressão estabelecimento comercial, constante do título constitutivo da propriedade horizontal, e definidora do uso legítimo de certa fracção deve ser interpretada conforme o uso corrente da expressão actividade comercial, de mediação e troca de bens e serviços, com exclusão das actividades transformadoras, de cariz industrial, normalmente dotadas de um acrescido impacto ambiental negativo - não abrangendo, em princípio, a actividade de restauração, envolvendo preparação e confecção de refeições para número significativo de clientes, geradora de relevante emissão de cheiros e ruídos, perceptíveis nas demais fracções habitacionais.
2. Na interpretação de tal expressão, delimitadora do tipo de actividades empresariais que é possível exercitar licitamente no imóvel, tem identicamente de se ponderar as condições objectivas da fracção para suportar, sem alterações estruturais no prédio (sujeitas a indispensável aprovação da assembleia de condóminos) e sem lesão inadmissível dos direitos subjectivos dos restantes condóminos, o seu efeito potencialmente nocivo quanto à normal fruição das restantes fracções autónomas.”
De referir também o acórdão do STJ de 28-01-2016, proferido no proc. n.º 3076/06.3TVLSB.L1.S1, de que citamos, pela sua clareza, parte do respetivo sumário:         
“I - O título constitutivo da propriedade horizontal deve ser interpretado à luz das regras constantes dos artigos 236.º a 238.º do Código Civil
II - O sentido corrente e normal que se tem em vista quando se menciona que se destina a loja um determinado espaço, é o sentido de nesse local se instalar um estabelecimento comercial e não um estabelecimento em que se exerça atividade industrial como é o caso da restauração, implicando esta atividade violação do disposto no artigo 1422.º/2, alínea c) do Código Civil.
(…) IV - O declaratário normal e diligente sabe que as atividades industriais, incluindo a restauração, são suscetíveis de facilmente pôr em causa em causa a tranquilidade e o sossego dos moradores e a própria qualidade ambiental do imóvel; é, pois, levado a considerar que, quando se referencia no título constitutivo determinada fração ou frações para instalação de lojas, as lojas a instalar são estabelecimentos comerciais cuja atividade, em regra, implica afluência limitada de pessoas, um horário de funcionamento diurno e a ausência de cheiros, odores e ruídos próprios do exercício de outras atividades, designadamente as de natureza industrial.”
Este acórdão contém abundantes referências de jurisprudência, aí se afirmando perentoriamente: «A jurisprudência tem, pois, sustentado que a afetação das frações à atividade comercial exclui as atividades que não sejam comerciais e tem considerado que os restaurantes se inscrevem no exercício da atividade industrial. E mais sustenta, quando o título constitutivo fixo à fração o destino de "loja", que o sentido a considerar é o sentido comum ou corrente em que "loja" equivale ao local onde se exerce atividade comercial.
56. No Ac. do S.T.J. de 11-1-2005 (rel. Moreira Alves), revista n.º 3615/04 considera-se que "constando do título constitutivo da propriedade horizontal que determinada fração se destinava a loja, nela não poderá ser desenvolvida a atividade industrial de panificação, com os inerentes riscos, cheiros, barulhos e as necessárias obras de adaptação suscetíveis de perturbar os condóminos das frações habitacionais e afetar as partes comuns dos edifícios ou o seu arranjo arquitetónico. O licenciamento administrativo da atividade em causa em nada afeta o fim a que se destina a fração segundo o título constitutivo".
57. Reconhecendo que a atividade de restauração é uma atividade mista, industrial e comercial, uma vez que "se verifica a atividade de transformação de matérias alimentares, anteriormente à comercialização dos produtos transformados" ainda assim ocorre violação do artigo 1422.º/2, alínea c) do Código Civil) pois não se pode exercer nessa fração "atividade mista de restauração" (Ac. da Relação de Coimbra de 9-11-2005, rel. João Cura Mariano, C.J.,5, pág. 5).»
Também os Tribunais de 2.ª instância têm maioritariamente vindo a seguir esta orientação, destacando-se apenas, por economia, dois acórdãos, ambos disponíveis em www.dgsi.pt:
- o acórdão da Relação de Lisboa de 03-02-2009, proferido no proc. 10800/2008-1, como se pode ver pelas seguintes passagens do respetivo sumário:
“1. Se o título constitutivo permite que na fracção seja exercitada a actividade de comércio e não qualquer actividade industrial, ao exercer a actividade de restauração, o réu faz da sua fracção um uso indevido, um uso diverso do fim a que se destina, um uso não normal da fracção por contrário ao do título constitutivo de propriedade horizontal - 1422.º, n.º 2, al. c), do CC.
(…) 3. O facto da Câmara Municipal ter atribuído a licença de utilização destinado a estabelecimento de restauração não impede que os condóminos de prédio em regime de propriedade horizontal se oponham a que na fracção autónoma seja exercida aquela actividade.
4. A Câmara Municipal tem como função assegurar o respeito pelas normas de direito público, a defesa de interesses públicos, não lhe cabendo resolver conflitos de natureza meramente privada entre particulares.”
- o acórdão da Relação de Coimbra de 31-03-2020, proferido no proc. n.º 22/17.2T8CLB.C1, de que destacamos parte do respetivo sumário:
“(…) 8.- O título constitutivo da propriedade horizontal deve ser interpretado à luz das regras constantes dos art.ºs 236º a 238º do CC.
9.- O sentido corrente e normal que se tem em vista quando se menciona que se destina a comércio um determinado espaço, é o sentido de nesse local se instalar um estabelecimento comercial, para mediação e troca de bens e serviços, e não um estabelecimento em que se exerça actividade industrial como é o caso da restauração.
10.- Não resultando do título quaisquer outras indicações quanto à finalidade a prosseguir nesse espaço, mas dele resultando que a maioria das fracções se destina a habitação, o declaratário normal, exigente e sagaz, sabe que o licenciamento administrativo do estabelecimento, e respectivos critérios e condicionante, não releva no sentido de permitir que, à luz das finalidades que constam do título constitutivo, seja admissível, no imóvel, um restaurante.”
Na esteira desta jurisprudência, transposta para o caso concreto, parece-nos importante sublinhar que a fração autónoma em apreço é o único espaço comercial existente num edifício multifamiliar, com dois blocos que, na sua maioria, são apartamentos, estando tal fração situada no piso zero do Bloco B, paredes meias com uma fração autónoma que é um apartamento e tendo imediatamente por cima outro apartamento. Conforme acima referido, a fração foi descrita no título constitutivo da propriedade horizontal como sendo composta por uma área ampla para exposição e comercialização de veículos automóveis e por duas instalações sanitárias, o que sugere, sem dúvida, que no espaço podia ser instalado um stand de automóveis, muito embora se desconheça se isso chegou a suceder.
Neste contexto, sendo facto notório [cf. art.º 5.º, n.º 2, al. c), do CPC] que o funcionamento de um restaurante num prédio implica com frequência (por vezes mesmo após a realização de obras de adaptação) algumas emissões de cheiros e ruídos, em virtude da preparação de alimentos e do afluxo de clientes, que podem incomodar os moradores, parece-nos que um declaratário normal, colocado na posição dos diferentes proprietários, os condóminos que foram adquirindo as frações (a grande maioria destinadas a  habitação), não contava seguramente que um dos usos possíveis da dita fração, destinada a comércio, pudesse ser o de estabelecimento de restauração.
Assim, é inevitável concluir que a 1.ª Ré, ao arrendar a fração para aí ser instalado o “estabelecimento de restaurante” explorado pela 2.ª Ré, lhe está a dar um uso diverso do fim a que a mesma é destinada, o que lhe está expressamente vedado pelo art.º 1422.º, n.º 2, al. c), do CC.
Do mesmo passo, também à 2.ª Ré, até por maioria de razão, é proibido fazê-lo, pese embora não seja condómina, mas arrendatária. Com efeito, conforme se explica no citado acórdão do STJ de 28-01-2016, se aos condóminos “é vedado dar à sua fração um uso diverso do fim a que é destinada no respetivo título, tal proibição estende-se ao arrendatário visto que o conteúdo dos poderes e deveres do arrendatário, enquanto possuidor em nome de outrem (artigo 1253.º, alínea c) do Código Civil), está delimitado em função dos poderes do proprietário.
25. Daqui decorre que, embora o arrendatário utilize a fração arrendada em conformidade com o fim que consta do contrato de arrendamento e em conformidade com a licença de utilização, ele está adstrito, tal como o proprietário locador, a observar o fim a que a fração se destina à luz do respetivo título constitutivo que está dotado de natureza real.”
Assim, embora não possamos acompanhar inteiramente a fundamentação da decisão recorrida, por discordarmos da interpretação que aí se fez do título constitutivo quanto ao uso da fração de que a 1.ª Ré Apelante é proprietária e a 2.ª arrendatária, já quanto ao mais concordamos com a decisão recorrida, improcedendo as conclusões da alegação de recurso tendentes a ver reconhecida a licitude do uso que vêm fazendo da fração.

Da nulidade do contrato de arrendamento

Neste particular, a fundamentação do saneador-sentença é a seguinte:
“Por outro lado, resultando do consignado que a fracção autónoma da propriedade da 1.ª R. não pode legalmente ser destinada a fim diferente daquele que consta no título constitutivo da propriedade horizontal, a saber o comércio de veículos automóveis, então qualquer contrato que permita o uso e fruição daquela para finalidade diversa é nulo por o seu objecto ser legalmente impossível – cfr. artigo 280.º, n.º 1 do Cód. Civil.
Considerando que o A. peticiona a declaração de ineficácia das cláusulas do contrato de arrendamento vigente que permitem a utilização da fracção em contravenção com o seu estatuto real, é clara a intenção de que seja conhecida a invalidade do contrato em referência; e sendo certo que se deverá ter por indubitavelmente interessado na respectiva declaração de nulidade, há que reconhecer a sua legitimidade para a respectiva invocação, não olvidando a cognoscibilidade de ofício da mesma por este Tribunal, tal como deriva do artigo 286.º do Cód. Civil.
Assim, declaro nulo e de nenhum efeito o contrato de arrendamento celebrado entre as RR., melhor identificado a 5. do julgamento de facto.”
Apreciando.
Estamos perante um contrato de arrendamento de fração autónoma, com fim não habitacional, o que convoca diferentes preceitos legais.
Começando pelos que dizem respeito à licença de utilização (cuja emissão é feita no contexto de uma relação jurídica de direito público administrativo), lembramos o disposto no art.º 1070.º do CC, que se refere aos requisitos de celebração do contrato, prevendo que:
“1 - O arrendamento urbano só pode recair sobre locais cuja aptidão para o fim do contrato seja atestada pelas entidades competentes, designadamente através de licença de utilização, quando exigível.
2 - Diploma próprio regula o requisito previsto no número anterior e define os elementos que o contrato de arrendamento urbano deve conter.”
Esse diploma é o Decreto-Lei n.º 160/2006, de 8 de agosto (republicado pelo Decreto-Lei n.º 266-C/2012, de 31 de dezembro), estabelecendo, no seu art.º 2.º o conteúdo necessário do contrato de arrendamento, designadamente, conforme previsto na alínea e), a existência da licença de utilização, seu número, data e entidade emitente ou referência à sua não exigibilidade, nos termos do art.º 5.º do mesmo diploma, dispondo este, no que ora importa, sob a epígrafe é “Licença de utilização”, que:
“1 - Só podem ser objeto de arrendamento urbano os edifícios ou suas frações cuja aptidão para o fim pretendido pelo contrato seja atestada pela licença de utilização.
2 - O disposto no número anterior não se aplica quando a construção do edifício seja anterior à entrada em vigor do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38 382, de 7 de agosto de 1951, caso em que deve ser anexado ao contrato documento autêntico que demonstre a data de construção.
3 - Quando as partes aleguem urgência na celebração do contrato, a licença referida no n.º 1 pode ser substituída por documento comprovativo de a mesma ter sido requerida com a antecedência mínima prevista na lei.
4 - A mudança de finalidade e o arrendamento para fim não habitacional de prédios ou frações não licenciados devem ser sempre previamente autorizados pela câmara municipal.
5 - A inobservância do disposto nos n.ºs 1 a 4 por causa imputável ao senhorio determina a sujeição do mesmo a uma coima não inferior a um ano de renda, observados os limites legais estabelecidos pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, salvo quando a falta de licença se fique a dever a atraso que não lhe seja imputável.
(…) 7 - Na situação prevista no n.º 5, o arrendatário pode resolver o contrato, com direito a indemnização nos termos gerais.
8 - O arrendamento para fim diverso do licenciado é nulo, sem prejuízo, sendo esse o caso, da aplicação da sanção prevista no n.º 5 e do direito do arrendatário à indemnização. (…)”
Está provado que a 1.ª Ré diligenciou pela alteração da licença, que passou a ser, de “comércio” para “comércio/ serviços”. Sem essa alteração seria fácil concluir que o arrendamento em apreço era nulo, já que, em linha com as considerações que fizemos, a exploração de um “estabelecimento de restaurante” não está incluída no conceito de comércio. Neste sentido, veja-se o acima referido acórdão do STJ de 30-06-2011, em que se decidiu não ser possível a instalação de um estabelecimento de restauração na fração objeto do contrato de arrendamento firmado entre as partes, que apenas possuía alvará para o exercício de comércio e não para outro fim, afirmando-se bem se compreender “a importância da distinção entre prédios (ou fracções) destinados ao exercício da actividade comercial e ao exercício da actividade industrial, no âmbito do direito do urbanismo e de edificação, uma vez que os pressupostos para autorização de uma e de outra finalidade são bem diferentes, designadamente ao nível da segurança das estruturas ou da protecção ambiental.
De facto, uma coisa é viabilizar e aprovar uma construção destinada a comércio (na sua generalidade, com excepção de actividades tidas como particularmente perigosas) e outra, muito diferente, autorizar a construção destinada ao exercício da indústria, que, consabidamente, envolve, em princípio, mais riscos, exigindo, por isso, desde logo, diferentes condições de segurança.
E, assim, constando do alvará do prédio que a fracção se destinava ao exercício do comércio, nunca as partes a poderiam afectar a um fim diferente, in casu, ao exercício da restauração.”
A solução a dar ao caso é mais duvidosa já que, à partida, que não custa admitir que o conceito de “serviços” tem suficiente abrangência para incluir um restaurante ou a atividade de restauração, sendo certo que, na linguagem corrente, até se pode falar em serviços de restauração.
Porém, não nos parece que essa seja a melhor resposta, considerando a descrição da fração autónoma, “composta por uma área ampla para exposição e comercialização de veículos automóveis e duas instalações sanitárias”, sem notícia da realização (ou sequer viabilidade) das indispensáveis obras de adaptação daquele espaço comercial às necessidades específicas de um espaço de restauração, como, aliás, é facto notório [cf. art.º 5.º, n.º 2, al. c), do CPC] - sendo indispensável a existência de uma zona de cozinha, mormente para preparação de alimentos, confeção de refeições e lavagem de loiça, utensílios, etc.
Além das normas em apreço, parece-nos que a necessidade de uma diferenciação dos conceitos decorre do próprio Regime Jurídico de Acesso e Exercício de Atividades de Comércio, Serviços e Restauração (RJACSR), aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16 de janeiro, em vigor a 1 de março de 2015 (cf. art.º 17.º, n.º 1), portanto já após a referida alteração.
Assim, tendo presente a função económico-social do arrendamento, mas também os interesses de ordem pública que as normas em presença visam acautelar, mormente a segurança e proteção da qualidade de vida e saúde dos cidadãos em geral, tendemos a considerar que a exploração de um estabelecimento de restaurante é uma atividade não abrangida pelos conceitos de comércio e serviços, concluindo assim pela nulidade do contrato de arrendamento em apreço.
Ademais, ainda nos parece possível um diferente ângulo de análise, partindo do regime do Código Civil. Assim o fez o Tribunal recorrido, ao entender que se estava perante um arrendamento cujo objeto era legalmente impossível, nos termos do art.º 280.º do CC.
Porém, não nos parece acertada essa perspetiva, uma vez que, como é evidente, não se mostra vedado o arrendamento da fração autónoma em apreço que faz parte do prédio constituído em propriedade horizontal. Note-se que nem sequer estamos a falar de uma construção clandestina.
Poderia ser equacionada a aplicação do art.º 281.º do CC, por ser contrário à lei o fim do negócio jurídico, fim esse é que comum a ambas as partes. Porém, como é óbvio, a exploração de um estabelecimento de restaurante, por si só, nada tem de contrário à lei, sendo-o apenas na medida em que ofende o disposto no art.º 1422.º, n.º 2, al. c), do CC. Para se compreender isto, basta ver os exemplos dados por Pires de Lima e Antunes Varela no seu “Código Civil Anotado”, volume I, 4.ª edição, pág. 259: “Neste artigo prevêem-se casos de licitude do objecto do acto, mas com ilicitude do fim. Aluga-se, por exemplo, uma arma para matar alguém ou arrenda-se uma casa para instalar nela uma associação ilegal. Alugar ou arrendar não são actos, em si, contrários à lei, à ordem pública ou ofensivos dos bons costumes; mas já o são, se se atender ao fim que se destinam as coisas alugadas ou arrendadas”).
Também não parece que a melhor solução seja a de reconduzir o caso à previsão do art.º 294.º do CC (“Negócios celebrados contra a lei”), ante a possibilidade de modificação do título constitutivo da propriedade horizontal, nos termos do art.º 1419.º do CC.
Estamos em crer que o mais acertado será, como entendeu o STJ no acórdão de 30-06-2011, proferido no proc. n.º 734/06.6TBA acima citado, aplicar o disposto no artigo 401.º, que, sob a epígrafe “Impossibilidade originária da prestação”, preceitua o seguinte:
“1. A impossibilidade originária da prestação produz a nulidade do negócio jurídico.
2. O negócio é, porém, válido, se a obrigação for assumida para o caso de a prestação se tornar possível, ou se, estando o negócio dependente de condição suspensiva ou de termo inicial, a prestação se tornar possível até à verificação da condição ou até ao vencimento do termo.
3. Só se considera impossível a prestação que o seja relativamente ao objecto, e não apenas em relação à pessoa do devedor.”
A situação apreciada nesse acórdão era precisamente a de fração autónoma correspondente a uma loja destinada a comércio e cuja licença de utilização era o comércio, pelo que se considerou ser “desde logo, inviável a prestação do locador, de assegurar o seu gozo à locatária para o fim a que, por consenso de ambos, é verdade, a destinaram – o da restauração.
Estando-se, in casu, perante uma impossibilidade originária da prestação (art.º 401.º, nº 1).
E não de uma mera dificuldade, sendo a mesma impossibilidade objectiva, absoluta e essencial (não versando sobre aspectos incidentais da prestação).
Tal impossibilidade produz a nulidade do negócio – referido art.º 401.º, nº 1.
Com efeito, sendo certo que as partes, dentro dos limites da lei, podem livremente fixar o conteúdo dos contratos (art.º 405.º), implicando estes, desde logo, o seu acordo sobre determinado objecto, a verdade é também que as mesmas, dentro dos limites da lei podem livremente fixar o conteúdo da prestação (art.º 398.º, nº 1).
Devendo a prestação, que é o objecto da obrigação (art.º 397.º), alem do mais, ser possível, isto é, realizável, pois ninguém pode considerar-se obrigado ao que não é susceptível de cumprimento.
Obstando, em princípio, a impossibilidade originária, que é aquela que é contemporânea da constituição do vínculo obrigacional, a que a obrigação se constitua validamente (art.º 401.º, nº 1, já citado).
Podendo a impossibilidade temporária, nos precisos termos do nº 2 do mesmo art.º 401.º, que aqui não estão em causa, não acarretar a nulidade do negócio.
Sendo certo que apenas a impossibilidade objectiva, que afecta a prestação em si mesma, invalida a obrigação”.
É exatamente esta a situação em que nos encontramos. A consequência da celebração de contrato de arrendamento em apreço, para uma finalidade (“estabelecimento de restaurante”) diversa da permitida legalmente, conforme indicado no título constitutivo da propriedade horizontal, para o uso da fração (“destinada a comércio”) é, a nosso ver, ante a impossibilidade originária da prestação, a nulidade daquele contrato. Trata-se de uma impossibilidade atinente ao objeto do contrato, que poderia ter sido “ultrapassada” se a 1.ª Ré tivesse celebrado o contrato para a eventualidade de conseguir obter o acordo dos condóminos nos termos do referido art.º 1419.º do CC.
Note-se que não existem nos autos quaisquer elementos que revelem a intenção das partes procederem em conformidade com os assinalados preceitos, de modo algum se podendo ver na situação concreta uma mera impossibilidade temporária da prestação.
Assim, improcedem, neste particular, as conclusões da alegação de recurso, ao qual será concedido apenas parcial provimento, nos termos acima referidos, eliminando-se da alínea a) do segmento decisório a referência a “veículos automóveis”, já que, na interpretação que fizemos do título constitutivo da propriedade horizontal, a fração se destina a “comércio”.

Pese embora a procedência parcial do recurso, não se justifica que o Autor-Apelado seja responsável, numa qualquer proporção, pelas custas do recurso, ao qual não deu causa, como bem se vê pelo teor do pedido formulado, tão pouco se podendo dizer que retira proveito da parte da decisão em que se concede provimento ao recurso, que aproveita à 1.ª Ré. Assim, a responsabilidade pelas custas do recurso é das Rés-Apelantes (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).
***
III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se parcialmente a decisão recorrida, eliminando-se a menção “de veículos automóveis” constante da alínea a) do segmento decisório, mantendo-se quanto ao mais, embora com fundamentação não inteiramente coincidente, aquela decisão.
Mais se decide condenar as Rés no pagamento das custas do recurso.

D.N.
Lisboa, 16-03-2023
Laurinda Gemas
Arlindo Crua
António Moreira