COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS
INSOLVÊNCIA SUPERVENIENTE
ABUSO DE DIREITO
Sumário

1- Só há lugar a declarar a extinção da instância, por deserção, quando o processo aguarda há mais de seis meses a prática de qualquer acto processual que cumpre à parte praticar, por força de disposição legal nesse sentido, e desde que se comprove a negligência da parte nessa conduta omissiva.
2- Estando em causa a verificação de um crédito sobre a insolvência, para efeitos de afirmar a compensação (parcial) do mesmo com um crédito da insolvência, o art.º 99º do CIRE permite tal compensação, desde logo quando o preenchimento dos seus pressupostos legais (aqueles que resultam do art.º 847º do Código Civil) é anterior à data da declaração de insolvência (al. a) do nº 1 do referido art.º 99º).
3- A insolvência superveniente da A. não deve afectar esse efeito extintivo da obrigação, que se terá por verificado retroactivamente, com a eficaz invocação da compensação de créditos pela 1ª R., na sua contestação.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

Em 25/10/2012 Aquaplásticos, S.A. propôs acção declarativa com processo ordinário contra Sumol+Compal Marcas, S.A. (1ª R.) e contra Arténius Pet Packaging Iberia, S.A. (2ª R.), pedindo a condenação solidária das RR. no pagamento da quantia global de € 19.269.538,32.
Alega para tanto, e em síntese, que as RR. deixaram de cumprir as obrigações que tinham para com a A., de modo concertado e visando afastá-la das relações comerciais que mantinham, o que conseguiram, porque a colocaram na impossibilidade generalizada de cumprir as suas obrigações e assim resolveram os contratos que mantinham com a A., apoderando-se da unidade fabril cedida no âmbito dos referidos contratos e inviabilizando a sua actividade de produção de garrafas de plástico, daí resultando os prejuízos que quantifica.
As RR. apresentaram contestações separadas, ambas com reconvenção.
Quanto à 1ª R., pediu a condenação da A. no pagamento da quantia de €1.968.927,21, acrescida de juros, mais pedindo que se declarasse operada a compensação, caso venha a ser condenada no pagamento de qualquer quantia à A., e fundando tal pedido no incumprimento das obrigações assumidas pela A., por via dos contratos que celebrou consigo, e bem ainda no prejuízo causado pelo furto de bens da propriedade da 1ª R.
Quanto à 2ª R., pediu a condenação da A. no pagamento da quantia de €1.259.436,74, acrescida de juros, e fundando tal pedido no incumprimento das obrigações assumidas pela A., no âmbito dos fornecimentos de bens por si prestados.
A A. foi notificada de ambas as contestações e apresentou réplica apenas em relação à contestação da 2ª R., aí concluindo pela improcedência da reconvenção, por falta de causa de pedir, e ainda por ser infundada e não provada.
Por requerimento de 3/5/2013 veio a A. arguir a nulidade do processado após a apresentação da contestação da 1ª R., invocando a falta de notificação desta contestação, para que pudesse exercer o seu direito à apresentação da réplica.
Entretanto, por despacho de 14/2/2014 foi verificado que a A. tinha sido declarada insolvente, através de sentença proferida em 24/1/2014 e que ainda não havia transitado em julgado.
Após a realização de diligências instrutórias naquele incidente suscitado pela A. em 3/5/2013, em 24/4/2014 foi proferido despacho que julgou não verificada a arguida nulidade.
Por requerimento de 9/5/2014 a A. (agora correspondendo à massa insolvente de Aquaplásticos, S.A.) veio requerer que, face à declaração da insolvência, fosse julgada inadmissível a reconvenção da 1ª R., bem como a apreciação do pedido de compensação de créditos, sustentando para tanto que “só no âmbito do apenso de reclamação de créditos, da acção de insolvência, se pode discutir e apreciar dos alegados créditos e da sua forma de pagamento / liquidação / compensação”.
Por requerimento de 22/5/2014 a 1ª R. exerceu o contraditório, invocando, em síntese e na parte que aqui interessa, que:
. A falta de contestação da A. ao pedido reconvencional por si apresentado conduz a que a matéria por si alegada se deva considerar admitida por acordo, assim sendo a A. devedora do montante peticionado;
. A resposta à reconvenção entretanto apresentada pela A. é extemporânea e deve ter-se por não escrita;
. Reclamou no processo de insolvência da A. os créditos que se viessem a apurar no âmbito do seu pedido reconvencional, os quais devem ser sempre apreciados neste processo, por se apresentarem como litigiosos.
Conclui pedindo que se dê por não escrita a resposta da A. ao pedido reconvencional, e que se declarem admitidos por acordo os factos alegados no pedido reconvencional e, consequentemente, se condene a A. no pagamento à 1ª R. do valor peticionado.
Tendo por despacho de 10/11/2014 sido determinado que “previamente, atentos os seus inevitáveis reflexos no conhecimento dos pedidos reconvencionais” a secretaria averiguasse “(incluindo através do site oficial) se já transitou em julgado a sentença que decretou a insolvência da Autora, e qual a data do trânsito”, em 28/1/2016 foi junta aos autos informação no sentido de a sentença em questão ainda não ter transitado em julgado, face à interposição de embargos.
Por despacho de 11/2/2016 foi proferido despacho que determinou que os autos aguardassem por quatro meses o trânsito em julgado da sentença que declarou a insolvência da A.
Por requerimento de 24/10/2016 a 1ª R. veio trazer aos autos cópia do anúncio (publicado no portal Citius) da revogação da sentença de declaração de insolvência, por procedência dos embargos opostos à insolvência, mais requerendo o prosseguimento dos ulteriores termos do processo.
Por requerimento de 7/11/2016 a A. veio demonstrar haver sido declarado iniciado processo especial de revitalização (a correr termos na 1ª Secção de Comércio da Instância Central da Comarca de Lisboa sob o nº 21726/16.1T8LSB), mais tendo sido proferido despacho a declarar suspensas as acções em curso para cobrança de dívidas contra a mesma, e mais requerendo a suspensão da instância reconvencional.
Por requerimento de 21/11/2016 a 1ª R. respondeu a tal pretensão da A. nos seguintes termos:
1. A R. S+C não pode dizer-se surpreendida com a informação vertida no requerimento a que ora se responde, porquanto o presente litígio - e os com eles conexos – já demonstraram à saciedade o uso que tem sido feito dos meios processuais.
2. No que concerne requerido efeito suspensivo do 2º Processo Especial de Revitalização a que a A. se propôs na pendência dos presentes autos, e sendo conhecida a querela doutrinária e até jurisprudencial quanto à aplicação do artigo 17º-E do CIRE às acções declarativas, entende a R. S+C, salvo melhor opinião, que a requerida suspensão não é aplicável.
3. Com efeito, haverá que atentar que os presentes autos (acção declarativa de condenação) tiveram o seu início no ano de 2012, e, em tempo, a R. S+C deduziu, entre outras, a excepção de compensação, bem como pedido reconvencional contra a A..
4. No seu pedido reconvencional a R. Reconvinte pretende ver reconhecido o seu direito de crédito sobre a A. e, no que não se concede, mas equaciona por mera cautela de patrocínio, caso sobreviesse a sua condenação poder compensar o seu crédito.
5. Cumpre sublinhar, por relevante, que a A. não respondeu às excepções deduzidas pela R. S+C, nem contestou a Reconvenção deduzida, conforme resulta demonstrado nos autos.
6. Sendo ainda de atentar que à data da apresentação da contestação e reconvenção da R. S+C, o Código Processo Civil em vigor previa a existência de um articulado para resposta às excepções e à reconvenção,
7. Prevendo as legais consequências para a sua não apresentação.
8. Assim, salvo o devido respeito, os presentes autos estavam e estão aptos a prosseguir no seu todo e não apenas quanto ao pedido formulado pela A..
9. Caberá a este Tribunal agendar (ou não) a audiência prévia, nos termos do disposto nos artigos 591º e 593º do novo CPC, e proferir despacho saneador no qual poderá, desde logo, conhecer das excepções, bem como “conhecer imediatamente do mérito da causa” relativamente ao pedido reconvencional (artigo 595º, nº 1, al. a) e b) do CPC).
10. Os presentes autos não podem ficar eternamente a aguardar que a A. consiga ou queira reestruturar-se.
11. E a R. S+C não pode, sob pena de denegação de justiça, ver o Tribunal não aplicar as cominações legais pelas omissões processuais há muito verificadas e apenas imputáveis à A.,
12. De igual modo, não pode este Tribunal, sob pena de violação do princípio da igualdade e de premiar um uso manifestamente reprovável dos meios legais, conhecer do pedido formulado pela A. contra as Rés e, simultaneamente, ignorar, suspendendo a decisão do pedido reconvencional sine dia.
13. Como Doutamente já se escreveu a este a propósito, “O PER não tem por finalidade dirimir litígios sobre a existência, natureza ou amplitude de créditos, sendo tal conhecimento meramente incidental e com efeitos restritos ao próprio PER. Assim sendo, o respectivo credor pode ter interesse na prossecução da acção declarativa, seja para se munir de um título executivo para o caso de incumprimento do plano, seja por se tratar de um crédito litigioso, na sua totalidade ou em parte.” (…)
14. A R. S+C tem interesse e o direito de ver declarado o efeito cominatório da falta de contestação da reconvenção e das excepções”.
Conclui pelo indeferimento do pedido de suspensão da instância reconvencional e pelo prosseguimento dos autos.
Não tendo entretanto sido proferido qualquer despacho, por requerimento de 24/1/2019 a 1ª R. veio informar os autos que:
. “Dada a falta de impulso processual por parte da Autora, cumpre trazer aos autos a informação de que a Autora não se encontra em processo de revitalização, nem se encontra insolvente desde 26/06/2018 (…)”;
. “(…) após a não aprovação do plano de revitalização e o parecer do administrador judicial provisório de que a aqui Autora se encontrava em situação de insolvência”;
. “Foi a sua (da Autora) insolvência declarada nos autos que correram termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Comércio de Lisboa – J5, sob o nº 10785/17.0T8LSB”;
. “Na sequência dos recursos apresentados (…), transitou em julgado o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa”, que revogou a sentença que declarou a insolvência da A.;
. “(…) por Douto Despacho de 30/11/2018, veio o Tribunal de Primeira Instância, concluir que, na sequência do Douto Acórdão do Tribunal da Relação, cessam todos os efeitos da declaração de insolvência, tendo a requerida o direito de livre disposição dos seus bens gestão dos seus negócios (…)”.
Conclui pedindo que se ordene o prosseguimento dos autos.
Vem então, em 2/5/2019, a A. apresentar o seguinte requerimento:
A sociedade Aquaplásticos foi declarada insolvente no processo que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Comércio de Lisboa – Juiz 5, sob o n.º 4190/19.0T8LSB, por decisão de 18 de Março, já transitada em julgado.
Assim, anexa-se procuração, outorgada a favor do mandatário subscritor, pedindo-se que a mesma seja considerada.
Além disso,
Conforme último despacho, de 11 de Fevereiro de 2016,
"Da insolvência da Autora/reconvinda e suas consequências no tocante às reconvenções: Os presentes autos encontram-se em fase de saneamento, sendo que, cada uma das Rés deduziu pedido reconvencional nas respectivas contestações.
Ora, tendo presente que de acordo com jurisprudência uniformizada (cfr. acórdão de uniformização de jurisprudência do S.T.J. nº1/2014 de 08/05/2013, publicado no DR, I Série, de 25/02/2014), o trânsito em julgado da sentença que decretou a insolvência da Autora acarretará a inutilidade superveniente da lide das reconvenções, a prolação de despacho saneador e enunciação dos temas de prova com contemplação das reconvenções pode vir a revelar-se inútil, além de que também a prova a produzir se terá de adaptar à circunstância de não virem a ser conhecidas as reconvenções.
...
Assim, aguardem os autos por 4 meses o trânsito em julgado da sentença de insolvência da Autora, o que as partes deverão dar conta no processo."
Termos em que se requer o prosseguimento dos autos, para apreciação do pedido inicial, pois que os pedidos reconvencionais, como já decidido, podem e devem ser apreciados, apenas, no processo de insolvência, onde são apreciados os créditos da agora insolvente e, só, aí”.
No exercício do contraditório a 1ª R. apresentou, em 16/5/2019, requerimento do seguinte teor:
1. Veio a A./Reconvinda informar os presentes autos que foi declarada insolvente – pela 3ª vez – no processo que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Comércio Juiz 5, sob o nº 4190/19.0T8LSB, e, em consequência, requerer o prosseguimento dos autos “para apreciação do pedido inicial, pois que os pedidos reconvencionais, como já decidido, podem e devem ser apreciados, apenas, no processo de insolvência, onde são apreciados os créditos da agora insolvente e só aí.”
2. Salvo o devido respeito, nos últimos 7 anos, a aqui A./Reconvinda andou de PER em Insolvência, ao sabor das suas conveniências.
3. Esta actuação tem sido sempre em prejuízo dos seus credores, incluindo a aqui R./Reconvinte.
4. Cumpre ainda referir que apenas os autos de insolvência agora identificados foram iniciados pela própria, e só após a R./Reconvinte ter informado estes autos (requerimento com referência CITIUS 13983727) em 24 de Janeiro último, que a anterior sentença que declarou a insolvência tinha sido revogada, por decisão transitada em julgado em 26.06.2018.
5. Cumpre sublinhar que os presentes autos se iniciaram em 2012, ainda antes da entrada em vigor do actual código de processo civil.
6. O código processo civil em vigor à data da tramitação dos factos previa a Réplica como sendo o articulado em que o Autor respondia às excepções deduzidas pelo réu e apresentava a contestação ao pedido reconvencional deduzido.
7. Nos presentes autos, a R./Reconvinda S+C contestou e reconveio.
8. A A./Reconvinda não Replicou.
9. A consequência da falta de resposta às excepções e não contestação era (e é): “consideram-se confessados os factos articulados pelo autor” (artigos 483º e 502º do antigo CPC e actual artigo 567º, nº 1 do CPC).
10. No âmbito dos presentes autos, ainda não foi agendada audiência prévia.
11. A entrada em vigor do CPC vigente não tem a virtualidade de mudar o facto de a Autora não ter contestado o pedido reconvencional, nem respondido às excepções, como processualmente determinado na lei anterior.
12. Com efeito, a Lei nº 41/2016 de 26 de Junho, determinou, no nº 3 do artigo 5º, que:
“3. As normas reguladoras dos actos processuais da fase dos articulados não são aplicáveis às acções pendentes na data de entrada em vigor do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei.”
13. Assim sendo, e sob pena de frustração das expectativas das partes e do princípio da igualdade de armas, não poderá o Tribunal deixar de considerar estas circunstâncias e, em consequência, proferir a decisão que se impõe.
14. O crédito da R./Reconvinte está confessado nos presentes autos pela A./Reconvinda, pelo que, salvo o devido respeito, não poderá onerar-se a R./Reconvinte S+C com a reclamação do seu crédito nos autos de insolvência.
15. E o mesmo se diga no que respeita à não resposta das excepções deduzidas.
16. Acresce que, salvo melhor opinião, o despacho a que a A./Reconvinda alude, proferido nos presentes autos em 2016, no âmbito de uma sentença de declaração de insolvência revogada, não pode produzir efeitos na insolvência agora comunicada aos autos.
17. A revogação da sentença que declarou a insolvência que deu origem àquele despacho fez cessar todos os efeitos da mesma,
18. E, consequentemente, daquele despacho.
19. A A./Reconvinte não pode ser permitida a usar e abusar da justiça ao sabor da sua conveniência.
20. Termos em que se requer a este Tribunal que profira saneador sentença no que respeita à R./Reconvinte S+C.
21. Caso assim não se entenda, no que não se concede, mas cogita por mera cautela de patrocínio, deve o Tribunal valorar a inércia da A./Reconvinda – isto é, a ausência de informação quanto ao facto de a sua anterior situação de insolvência ter sido revogada, por decisão transitada em julgado em 26.06.2018.
22. Com efeito, a A./Reconvinda só interveio nos presentes autos em Maio de 2019, após se ter apresentado à insolvência em 14.03.2019 (cfr. doc. 1, que se junta e cujo teor se dá integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais).
23. O mesmo é dizer que a A./Reconvinda demorou quase 12 meses lembrar-se que deveria vir aos autos defender os seus interesses no processo que iniciou em 2012.
24. Pelo que, valorada a inércia e contabilizado o tempo decorrido, deverá, em consequência, ser declarada a deserção da instância, nos termos do disposto no nº 1, do artigo 281º do CPC.
25. A justiça não pode premiar quem obstaculiza a sua realização.
26. As partes contrárias não podem ficar reféns da instrumentalização da justiça, sob pena de se ter que considerar que estamos perante uma situação de denegação de justiça”.
Conclui pedindo que se profira saneador sentença, no que a si respeita, e, caso assim não se entenda, que se declare a deserção da instância, quando ao pedido da A., por negligência da mesma, nos termos do art.º 281º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Em resposta a A. sustenta a improcedência destas pretensões da 1ª R., designadamente, e no que respeita à pretendida declaração de deserção da instância, porque o processo não se encontrava a aguardar impulso processual há mais de seis meses.
Por despacho de 5/6/2019 foi designado dia o dia 26/9/2019 para a realização da audiência prévia, e “para apreciação das questões suscitadas nos três requerimentos que antecedem”.
Tendo sido tal data dada sem efeito, foi então designado o dia 23/6/2020 para a sua realização.
Tendo sido tal data dada novamente sem efeito, foram as partes ouvidas sobre a possibilidade de o despacho saneador ser proferido por escrito, ao que deram o seu assentimento.
Em 14/12/2020 foi então proferido despacho do seguinte teor (no que aqui releva):
Solicite ao processo n.º 4190/19.0T8LSB informação sobre o estado dos autos.
*
Obtida a informação supra notifique dela as partes e (e tendo em consideração que a autora/reconvinda foi declarada insolvente no âmbito do processo n.º 4190/19.0T8LSB, por sentença proferida em 18.03.2019 e transitada em julgado em 10.04.2019), ao abrigo do disposto no art.º 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, notifique as mesmas para, querendo, tomarem posição relativamente aos efeitos jurídicos da declaração de insolvência no processo em curso, o que o Tribunal pretende conhecer no despacho saneador a proferir”.
Obtida a informação em questão, no sentido de ainda não ter sido proferida decisão de encerramento da insolvência da A., foram as partes notificadas da mesma, após o que foi proferido despacho saneador em que, a respeito da “admissibilidade das reconvenções e efeito da declaração de insolvência da A. sobre a instância reconvencional”, foi decidido admitir os pedidos reconvencionais e julgar extinta a instância reconvencional, por inutilidade superveniente da lide, com custas pelas RR. reconvintes.
A 1ª R. recorre desta decisão, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
A. A Recorrente não se conforma com Despacho Saneador, na parte em que a propósito da Reconvenção, admite os pedidos deduzidos pelas RR., mas acaba a:
“b) julgar extinta a instância reconvencional, por inutilidade superveniente da lide;” Vejamos,
B. Os presentes autos iniciaram-se na pendência do CPC de 1961, pelo que, de acordo com o disposto no artigo 5º, nº 3, da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou o Novo CPC, até ao termo dos articulados, ser-lhe-á aplicado o CPC à data vigente,
C .O Despacho Saneador ora em crise, salvo o devido respeito, pelo decurso do tempo e ausência de tramitação em tempo útil, torna-se numa decisão surpresa, com clara violação do princípio da igualdade, o que não pode deixar de constituir um defraudar das expectivas da Recorrente, tendo em conta as cominações previstas ao abrigo do CPC de 1961, atenta a não apresentação de Réplica pela Recorrida/Reconvinda.
D. Não obstante a já longa existência do processo, dos vários volumes, a Recorrente não pode aceitar que na decisão recorrida não tenham sido retiradas todas ilações do comportamento processual das partes e das cominações (legais), e, menos ainda que as questões que suscitou ao longo processo não tenham sido objecto de decisão pelo Tribunal a quo.
E. A ausência de Réplica no código à data vigente determinava a procedência das excepções, e, a confissão dos factos alegados na reconvenção deduzida.
F. A Recorrida, foi ao logo destes anos, requerendo PER, objecto de processos de insolvência requeridos por terceiros, que terminavam com a procedência de uma decisão de embargos que revogava a sentença que declarava a insolvência.
G. Todavia, a Recorrida, principal interessada na tramitação dos presentes autos, nunca deu nota desta factualidade (relevante).
H.Em 24.10.2016, a Recorrente submeteu aos presentes autos um requerimento, com a Ref. 23896713, dando nota que desde 02.03.2016 foram julgados procedentes os embargos de terceiro deduzidos pela Sociedade Panóplia SA e revogada a sentença que declarou a Recorrida insolvente; neste requerimento foi requerido o prosseguimento dos autos.
I. Em 21.11.2016, a Recorrente após ter tido conhecimento do 2º PER a que a Recorrida se apresentou, juntou aos autos um requerimento com a referência 24159559, opondo-se à requerida suspensão dos presentes autos, invocando a violação do princípio da igualdade e recordando que a Recorrida não apresentou Réplica.
J. No dia 16.05.2019, A Recorrente S+C promoveu a junção aos autos de um requerimento, com a Ref.: 14727017, reforçando que a decisão da 3º insolvência fora também revogado, na sequência de novos embargos de terceiro, decisão que transitara em julgado em 26.06.2018,
K. Tendo ainda requerido que fosse proferido Despacho Saneador e/ou declarada a deserção da Instância pela inercia da Recorrida;
Nada aconteceu.
L. E em Maio de 2019, a Recorrida informou os autos que se apresentara à insolvência no dia 14.03.2019.
M. O Tribunal a quo não se pronunciou quanto à deserção da instância, nem determinou a notificação da Recorrida.
N.Compulsado o Despacho Saneador recorrido, também nele não se encontra qualquer resposta às questões suscitadas, pelo que se trata de uma omissão geradora de nulidade, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, al. d) do CPC, aplicável ex vi nº 3, do artigo 613º do CPC.
O. É manifesto que a ausência de pronúncia ou de tomada de posição pelo Tribunal a quo teve influência na decisão da causa (artigo 195º, nº 1, do CPC), desde logo fez extinguir a instância reconvencional, premiando quem tem feito um uso reprovável do processo e da Justiça.
P. Tivessem os pedidos da Recorrente sido considerados e tomada posição quanto ao requerido, seguramente que tinha sido determinada a deserção da instância, ou, pelo menos, nos momentos em que a Recorrida não se protegeu com PER e processos de insolvência, a reconvenção (a qual não foi objecto de Réplica) teria sido admitida e evitada a sua extinção por inutilidade superveniente da lide.
Q. A Recorrente está plenamente consciente do muito trabalho dos Senhores Juízes e Funcionários judiciais, bem como da sua insuficiência, mas isso não pode ser justificação para que a Recorrente ou qualquer outra parte que procura protecção nos Tribunais sejam prejudicados, sob pena de se negar um dos direitos fundamentais previstos na Constituição da República Portuguesa: o direito ao acesso à justiça,
R. A delonga do processo e o não conhecimento dos pedidos formulados pela Recorrente, determinaram uma situação processual, materialmente injusta, o que é manifestamente inconstitucional por violação do princípio da segurança e protecção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático.
S. Caso assim não se entenda, o que sem conceder apenas se admite por cautela de patrocínio, sempre haverá que concluir pela verificação de abuso de Direito.
T. Com efeito, a admitir-se tal decisão, o Tribunal a quo estaria a compactuar com a Recorrida, encobrindo um comportamento abusivo supra descrito.
U. A actuação da Recorrida na presente acção configura, desde logo, um verdadeiro abuso de direito,
V. O Despacho Saneador recorrido incorre também num erro de direito porquanto considera supervenientemente inútil todo o pedido reconvencional, não excepcionando a parte relativa à compensação de créditos.
W. Ora, ao contrário do que o Tribunal a quo refere, no caso sub iudice o conhecimento da compensação-excepção não implica o reconhecimento de um crédito sobre a massa insolvente.
X. O que se pretende não é a condenação da Recorrida naquele montante, mas apenas a absolvição da Recorrente do pedido formulado na acção a título principal.
Y. Para o efeito, é relevante que o contra-crédito invocado pela Recorrente seja de valor muito inferior ao crédito invocado pela Recorrida.
Z. Por essa razão, aliás, é que ao abrigo do CPC anterior a compensação de créditos, quando o contra-crédito fosse inferior ao crédito, era considerada uma excepção peremptória e não um pedido reconvencional.
AA. Por conseguinte, não faz sentido que o Tribunal se demita de conhecer do contra‑crédito remetendo o seu conhecimento para outra sede, porquanto por essa via estará a imiscuir-se de conhecer das razões de direito porque a Recorrida se opõe à pretensão da Recorrente, sob pena de ficar coarctada a defesa da Recorrente.
BB. Ou seja, se assim for, o Tribunal estará a negar à Recorrente o exercício do contraditório, violando os mais elementares direitos fundamentais a uma tutela jurisdicional efectiva.
CC. Neste contexto, deve considerar-se que uma interpretação do artigo 90.º do CIRE que implique a inutilidade superveniente da lide quanto ao pedido de compensação de créditos constitui uma violação do artigo 20.º, n.º 4, da Constituição.
DD. Configurando, por isso, uma inconstitucionalidade, que desde já se invoca.
EE. Acresce que qualquer decisão do tribunal sobre o crédito da Recorrida, abstraindo do contra-crédito da Recorrente se subjugará a um princípio de mera justiça formal e não material,
FF. Resultando numa decisão que abstrai da verdade dos factos, ao considerar que, a existir o crédito da Recorrida, a Recorrente o deve na totalidade,
GG. O que seria absolutamente contrário ao espírito do nosso Processo Civil. Sem conceder,
HH. Apenas se evitaria a verificação da inconstitucionalidade invocada, no caso de todo o processo ser apensado aos autos de insolvência nos exactos termos em que se encontrava no momento anterior ao Despacho Saneador, ou seja, confissão pela Recorrida/Autora/Reconvinda dos factos alegados na Contestação com Reconvenção, face à ausência de Réplica, por causa imputável à Recorrida.
II. Termos em que deve ser revogado o Despacho Saneador e substituído por decisão em consonância com as conclusões que se oferecem.
A A. apresentou alegação de resposta, aí sustentando a improcedência do recurso.
***
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem‑se com:
. A nulidade da decisão recorrida, por omissão de pronúncia;
. O abuso de direito;
. Os efeitos da declaração de insolvência da A. no conhecimento da compensação como excepção peremptória.
***
A materialidade com relevo para o conhecimento do objecto do presente recurso é a que decorre das ocorrências e dinâmica processual expostas no relatório que antecede.
***
Da omissão de pronúncia
Segundo a al. d) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil, a sentença é nula quando aí deixe de ser apreciada questão que devesse ser apreciada.
Sobre a questão da nulidade da sentença por omissão de pronúncia, refere Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, volume II): “Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe estão submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe caiba conhecer (art 660º/2), o não conhecimento do pedido, causa de pedir ou excepção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade (…)”.
Reconduzindo tais considerações ao caso concreto dos autos, reporta-se a omissão de pronúncia invocada pela 1ª R. à ausência de decisão quanto à deserção da instância (tão só no que respeita ao pedido da A.), cuja declaração foi pedida pela 1ª R. no seu requerimento de 16/5/2019.
No despacho de 5/6/2019 o tribunal recorrido referenciou que na audiência prévia seriam apreciadas as questões suscitadas nos três requerimentos que antecedem o mesmo despacho, ou seja, o requerimento da A. de 2/5/2019, o requerimento da 1ª R. de 16/5/2019 e a resposta subsequente da A.
Ora, a 1ª R. havia concluído o seu requerimento de 16/5/2019 pedindo que fosse proferido saneador sentença, no que a si respeita. Mas, “caso assim não se entenda”, pediu também que se declarasse a referida deserção da instância.
Pelo que, desde logo falta à verdade a 1ª R. quando afirma (conclusão K.) que requereu que fosse proferido saneador sentença “e/ou” fosse declarada a deserção da instância, já que a expressão acima reproduzida afasta definitivamente a possibilidade de se falar em duas pretensões apresentadas cumulativamente (na acepção do art.º 555º do Código de Processo Civil) ou, sequer, alternativamente (na acepção do art.º 553º do Código de Processo Civil).
Dito de outra forma, e tendo em atenção a literalidade da parte final do requerimento da 1ª R., seria de admitir que o segundo pedido (a declaração de deserção da instância) só seria de considerar a título subsidiário (na acepção do art.º 554º do Código de Processo Civil), e para o caso de não ser considerada a prolação de decisão final quanto à sua pretensão reconvencional.
Pelo que, por esta via, sempre se poderia afirmar que, tendo o tribunal recorrido conhecido da pretensão da 1ª R. formulada pela via reconvencional, admitindo a reconvenção e decidindo que a instância respectiva se considerava extinta, por inutilidade superveniente da lide, sempre se havia pronunciado nos termos pretendidos pela 1ª R., proferindo decisão final quanto à sua pretensão reconvencional, pelo que não estava obrigado ao conhecimento daquela pretensão apresentada a título subsidiário e para ser considerada, tão só, no caso de improcedência da pretensão apresentada a título principal.
Mas mesmo admitindo que, por se tratar de uma questão de natureza exclusivamente adjectiva (a deserção da instância), haveria que incidir pronúncia expressa sobre a mesma, na parte que respeita à acção proposta pela A. (ainda que a 1ª R. a tivesse apresentado para ser conhecida a título subsidiário), a omissão dessa pronúncia sempre pode (e deve) ser sanada por este Tribunal de recurso, atento o disposto no nº 1 do art.º 665º do Código de Processo Civil, e em termos tais que conduzem ao mesmo resultado prático obtido na instância recorrida, correspondente ao prosseguimento dos autos para conhecimento do pedido da A.
Com efeito, e como resulta do art.º 281º, nº 1, do Código de Processo Civil, a instância da acção declarativa considera-se deserta quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.
E do nº 1 do art.º 6º do Código de Processo Civil decorre que cumpre ao juiz promover oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes.
Como ensina António Júlio Cunha (Direito Processual Civil Declarativo, 2ª edição, pág. 56), “Após a demanda cabe ao juiz, atento o seu poder de direcção (art.º 6º nº 1), providenciar pelo andamento regular e célere da acção, mas ainda assim importa ter em conta que determinados preceitos impõem às partes certos ónus de impulso subsequente como, por exemplo, o ónus de requerer a habilitação dos sucessores da parte falecida (…)”.
Ou seja, só há lugar a declarar a extinção da instância, por deserção, quando o processo aguarda há mais de seis meses a prática de qualquer acto processual que cumpre à parte praticar, por força de disposição legal nesse sentido, e desde que se comprove a negligência da parte nessa conduta omissiva.
Por isso é que o Supremo Tribunal de Justiça afirmou já, no acórdão de 9/11/2017, relatado por Távora Victor e disponível em www.dgsi.pt, que se “no que nos interessa considerar, a deserção da instância se se basta com o prazo de seis meses, tendo acabado o estádio intermédio da interrupção, o certo é que agora se exige ao Juiz um esforço acrescido na medida em que tem de indagar se as partes mantêm por sua culpa o processo parado não promovendo os respectivos termos. E claro está, que para conseguir o seu desiderato deverá lançar mão do supracitado artigo 6º do NCPC onde se confere para tanto ao Juiz amplos poderes intervencionistas e de agilização”.
Ou, como também já ficou afirmado por este Tribunal da Relação de Lisboa, no seu acórdão de 3/3/2016, relatado por Maria de Deus Correia e disponível em www.dgsi.pt, “a deserção da instância deixou de ser automática carecendo, portanto, de ser julgada por despacho do juiz, ao contrário do que acontecia no sistema anterior no qual, como acima ficou dito, a instância ficava deserta independentemente de qualquer decisão judicial.
Sucede, porém, que no despacho que julga deserta a instância o julgador terá de apreciar se a falta de impulso processual se ficou a dever à negligência das partes, o que significa que lhe incumbe efectuar uma valoração do comportamento das partes, por forma a concluir se a falta de impulso em promover o andamento do processo resulta, efectivamente, da negligência destas. Cremos, assim, que o Tribunal antes de lavrar despacho a julgar extinta a instância por deserção, deverá ouvir as partes de forma a melhor avaliar se a falta de impulso processual é imputável ao comportamento negligente de alguma delas ou de ambas.
Além do mais, “o princípio da cooperação, reforçado no actual CPC, justifica que as partes sejam alertadas para as consequências gravosas que possam advir da sua inércia em impulsionar o processo, decorrido que seja o prazo fixado na lei, agora substancialmente mais curto””.
Revertendo tais considerações para o caso concreto dos autos, é forçoso concluir que, em momento algum, a A. deixou de impulsionar o andamento do processo, omitindo negligentemente acto processual que lhe cumprisse praticar, em consequência de disposição legal.
É que, desde que em 24/4/2014 foi decidido que não se verificava a nulidade arguida pela A., não havendo lugar a notificar a mesma da contestação da 1ª R., porque tal notificação se tinha por regularmente realizada (quando igualmente lhe foi notificada a apresentação da contestação da 2ª R.), deu-se por finda a fase dos articulados, e competindo então ao tribunal recorrido dar cumprimento ao disposto nos art.º 5º, nº 4, da Lei 41/2013, de 26/6, bem como, subsequentemente, ao disposto nos art.º 590º e seguintes do Código de Processo Civil.
Do mesmo modo, colocando-se supervenientemente a questão da insolvência da A. e dos seus efeitos quanto ao conhecimento dos pedidos reconvencionais (como logo no despacho de 10/11/2014 ficou a mesma sinalizada), era ao tribunal recorrido (e não às partes) que competia apurar do trânsito em julgado da sentença respectiva, para então afirmar e decidir que efeitos eram esses.
E se é certo que as partes não ficaram escusadas do dever de colaborar com o tribunal recorrido, na obtenção das informações que permitissem afirmar ter a A. sido declarada insolvente por sentença transitada em julgado, isso não significa que sobre as mesmas recaía a obrigação de vir aos autos dar conta das sucessivas vicissitudes dos diversos processos instaurados, visando a revitalização/insolvência da A., não tendo o tribunal recorrido de praticar qualquer acto e devendo aguardar esse impulso correspondente.
Assim, quando em 24/1/2019 a 1ª R. vem aos autos informar que a A. não se encontra insolvente desde 26/6/2018, nem sujeita a processo especial de revitalização, porque a declaração de insolvência proferida no processo 10785/17.0T8LSB tinha sido revogada por acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa, e vindo depois a A. (em 2/5/2019) informar que foi declarada insolvente por sentença de 18/3/2019, proferida no processo 4190/19.0T8LSB, isso não significa que desde 26/6/2018 até 18/3/2019 a A. estava obrigada a vir aos autos dar conhecimento daquela primeira factualidade, sob pena dessa (inexistente) inércia ser considerada como omissão negligente da sua obrigação de impulsionar o andamento dos autos, em substituição (inadmissível) do tribunal recorrido e do cumprimento do dever de gestão processual deste.
Ou seja, e recuperando o afirmado no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 15/12/2016 (relatado por Maria Teresa Albuquerque e disponível em www.dgsi.pt), “não basta que o processo esteja objectivamente parado mais de seis meses. Será necessário, ainda, concluir, utilizando com razoabilidade os recursos necessários para tanto, se essa paragem se ficou a dever, efectivamente, à negligência da parte”.
E como no caso concreto a paragem do processo não se fica a dever a qualquer conduta negligente da A., desde logo porque nenhuma conduta lhe era processualmente exigida (mas antes ao tribunal recorrido), torna-se evidente que não havia (e não há) que declarar a deserção da instância, nos termos visados pela 1ª R., antes havendo que conhecer e decidir da admissibilidade das reconvenções e dos efeitos da insolvência da A. sobre as mesmas, como fez o tribunal recorrido.
Aliás, a própria 1ª R. contradiz-se na afirmação da existência da obrigação da A. de impulsionar o processo, no período em questão (entre 26/6/2018 e 18/3/2019), quando logo no ponto 27. do corpo da sua alegação reconhece que “nos espaços “de solvência” [como é aquele período temporal] poderia ter sido conhecido o mérito da acção”, o que, obviamente, competia ao tribunal e nunca à parte.
Pelo que, ainda que por esta via, não há que revogar a decisão recorrida, por efeito da omissão de pronúncia suscitada em sede do presente recurso, na medida em que o suprimento da mesma conduz ao mesmo resultado que foi obtido pelo tribunal recorrido, ao omitir tal pronúncia respeitante à deserção da instância.
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Do abuso de direito
O invocado abuso de direito é sustentado pela 1ª R. nos seguintes termos:
32. A aceitar-se que não ocorreu qualquer nulidade em virtude da omissão de pronúncia pelo Tribunal a quo, ainda se deve considerar que ocorreu um erro de direito na decisão de julgar extinta a instância reconvencional por inutilidade superveniente da lide.
33. Com efeito, a admitir-se tal decisão, o Tribunal a quo estaria a compactuar com a Recorrida, encobrindo um comportamento abusivo supra descrito.
34. A actuação da Recorrida na presente acção configura, desde logo, um verdadeiro abuso de direito”.
Do art.º 334º do Código Civil resulta que é abusivo (ou ilegítimo) o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
O excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé ocorre quando o titular do direito viola o princípio da confiança que nele foi depositada pela contraparte, através da prévia aquisição da expectativa de uma conduta de sinal contrário à que se mostra adoptada.
Este sentido interpretativo é aquele que é seguido pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, como no acórdão de 12/2/2009 (relatado por Azevedo Ramos e disponível em www.dgsi.pt), aí se referindo que “no âmbito da fórmula “manifesto excesso” cabe a figura da conduta contraditória (venire contra factum proprium), que se inscreve no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara”. E no mesmo acórdão refere-se ainda que “o abuso do direito só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações chocantes do direito e da justiça”.
Também no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2/11/2010 (relatado por Sebastião Póvoas e disponível em www.dgsi.pt), é afirmado que o abuso de direito, “tal como resulta do seu “nomen juris”, pressupõe a existência de um direito radicado na esfera do titular, direito que, contudo, é exercido por forma ilegítima por exceder manifestamente a boa fé, os bons costumes ou o seu fim social ou económico (artigo 334.º do Código Civil).
Quer o preceito vigente (com redacção idêntica à do artigo 334.º do Anteprojecto do Código Civil [2.ª revisão ministerial], quer a primeira proposta – artigo 297.º - 1.ª revisão ministerial – “O exercício de um direito (…) através de factos que contrariem os princípios éticos fundamentais do sistema jurídico (…).”) têm ínsito o “qui jure sua utitur”, ou seja, que o abusador surja titular de um direito subjectivo, ou de parte dele.
E, então, ou o utiliza licitamente – dentro dos limites do direito objectivo – ou ultrapassa limites que a ética, a boa fé e o fim social não toleram.
Assim, são os casos de “venire contra factum proprium”, em que o exercício contradiz uma conduta antes presumida ou proclamada pelo agente (Cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Maio de 2007 – 07 A1180, desta Conferência e de 30 de Março de 2006 – P.º 3921/05, 4.ª).
Aí, o ponto de partida é uma anterior conduta de um sujeito jurídico que “objectivamente considerada é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira.” (cf. Prof. Baptista Machado, apud “Obra Dispersa”, 1, 415 e ss).
A conduta pregressa terá criado na contraparte uma situação de confiança com base na qual esta tenha tomado disposições ou organizado planos que, gorados, lhe causarão danos.
Tem aqui ínsita a ideia de “dolus praesens”, a trair um investimento de confiança feito pela outra parte, originado por dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidas no tempo. (cf. o Prof. Menezes Cordeiro, “o primeiro – o ‘factum proprium’ – é, porém, contrariado pelo segundo”, apud, “Da Boa Fé no Direito Civil”, 45; e ROA – 58, 1998, 964)”.
Do mesmo modo, e a propósito do abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, afirmou o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 12/11/2013 (relatado por Nuno Cameira e disponível em www.dgsi.pt), que “são pressupostos desta modalidade de abuso do direito (…) os seguintes: a existência dum comportamento anterior do agente susceptível de basear uma situação objectiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e actual) ao agente; a boa fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma actividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o “investimento” que nela assentou”.
Reconduzindo tais considerações ao caso concreto dos autos, desde logo fica por afirmar que a actuação processual da A. configura o exercício abusivo do seu direito de acção, em razão dos diversos processos instaurados, visando a sua revitalização/insolvência, e porque mais não representou que qualquer conduta contraditória com a propositura da acção e destinada, tão só, a trair o investimento de confiança colocado pela 1ª R. na pendência da acção e na consequente apresentação da reconvenção.
Aliás, a 1ª R. antevê isso mesmo, já que, não só omite qualquer indicação das circunstâncias pelas quais afirma conclusivamente que a actuação da A. “na presente acção configura, desde logo, um verdadeiro abuso de direito”, mas igualmente porque reconhece que a questão que se coloca é a do erro de direito na decisão recorrida, quando julga extinta a instância reconvencional por inutilidade superveniente da lide, por corresponder a uma decisão que “compactua” com uma tramitação anormal, porque omissa de decisão sobre o pedido reconvencional em tempo oportuno, mais concretamente “nos espaços “de solvência”” da A. (ou seja, o mesmo circunstancialismo invocado para sustentar a questão da omissão de pronúncia no sentido da deserção da instância, já ultrapassada). Mas, a ser assim, o que estaria em causa era a actuação do tribunal recorrido (isso mesmo já se deixou explicitado, quando se afirmou que a paragem do processo não emerge de qualquer conduta da A.), deixando então de se poder falar no exercício abusivo do direito de acção da A.
Pelo que, sem necessidade de ulteriores considerações, improcedem as conclusões do recurso da 1ª R., no que respeita a esta questão do abuso de direito.
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Dos efeitos da declaração de insolvência da A.
Na decisão recorrida ficou assim fundamentada a extinção da instância reconvencional, por efeito da declaração de insolvência da A.:
Como esclarece a doutrina, «a reconvenção constitui uma acção cruzada contra o autor», que serve para o réu «formular pretensão ou pretensões correspondentes a uma ou diversas acções autónomas» (Abrantes Geraldes e outros, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição, 2022, Almedina, p. 334).
O Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão n.º 1/2014, sustentou que, «[d]eclarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência». Por isso, «a partir daí, os direitos/créditos que a A. pretendeu exercitar com a instauração da acção declarativa só podem ser exercidos durante a pendência do processo de insolvência e em conformidade com os preceitos do CIRE», como expressamente determina o artigo 90.º deste código.
Precisamente por isso o referido aresto uniformizou jurisprudência no sentido de que, «[t]ransitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art.º 287.º do C.P.C.».
Visando as RR., com a reconvenção, exercer direitos de crédito de natureza patrimonial sobre a A/reconvinda constituídos antes da declaração de insolvência, deve estender-se também a esta hipótese a jurisprudência fixada no referido Acórdão n.º 1/2014, pois que, também em relação ao réu reconvinte, se aplica, a partir do trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência do autor reconvindo, o ónus previsto no artigo 90.º do CIRE.
Ora, impondo a lei, atenta a natureza específica do processo de insolvência, que todos os credores do insolvente aí reclamem os seus créditos e pela forma estabelecida no CIRE, só no processo de insolvência da A., acima identificado, podem as RR. fazer valer os créditos ora invocados sobre ela.
Por isso, embora as reconvenções anteriormente deduzidas pelas RR. sejam processualmente admissíveis, deve julgar-se extinta a instância reconvencional, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.º, alínea e), do CPC de 2013, aplicável, o que, por sua vez, prejudica o requerimento de apensação apresentado pela 2.ª R. na contestação.
Admitindo que as RR. invocam em sua defesa a compensação de créditos - que, na interpretação dominante à data da vigência do CPC de 1961, aplicável, assumia a natureza de excepção peremptória quando o valor do contra-crédito invocado pelo réu não excedesse o do crédito do autor, como é o caso - está também vedado ao Tribunal dela conhecer.
Com efeito, o conhecimento da compensação-excepção, mesmo para os efeitos estritamente extintivos que lhe estão associados, implica sempre o reconhecimento de um crédito sobre a massa insolvente, o que só pode ser feito no processo de insolvência da A. e de acordo com as normas consagradas no CIRE, como expressamente determina o citado artigo 90.º do CIRE”.
Embora não conste expressamente do dispositivo da decisão recorrida, resulta da mesma que ficou igualmente decidido que a instância se extinguia, no que respeita ao conhecimento da compensação enquanto excepção peremptória (como se retira dos dois últimos parágrafos acima reproduzidos).
A 1ª R. não coloca em crise que, à face da jurisprudência uniformizada pelo acórdão 1/2014 do Supremo Tribunal de Justiça, a instância reconvencional não pode prosseguir, como foi decidido.
Todavia, entende que isso não impede que o crédito reclamado por essa via possa ser considerado nos termos da defesa por excepção, sendo compensado com o crédito da A. e conduzindo à absolvição (parcial) do pedido formulado por esta.
E, para tanto, sustenta que uma interpretação do art.º 90º do CIRE que conduza a afirmar a inutilidade superveniente da lide, igualmente no que toca ao conhecimento da excepção peremptória em questão, se apresenta como inconstitucional, por violação dos “mais elementares direitos fundamentais a uma tutela jurisdicional efectiva”.
Importa desde logo recordar que, como explicam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 651), a compensação mais não é que “uma forma de extinção das obrigações, à luz do direito substantivo (art. 847º do CC) e que radica na invocação de um contra-crédito tendente ao encontro de contas (total ou parcial)”.
Tais autores explicam ainda (pág. 303-305), a respeito da tomada de posição legislativa quanto à forma de invocação em juízo do referido contra-crédito e da subsequente controvérsia doutrinária e jurisprudencial suscitada, que “por agora, o que podemos afirmar é que, sem embargo da pertinência de alguns dos argumentos que ainda se podem extrair do elemento literal (…), os precedentes históricos (em face do CPC de 1961) e a manifesta vontade do legislador de alterar o anterior paradigma parecem induzir a conclusão de que, sempre que o réu pretenda invocar um contra‑crédito com vista a obter a improcedência da acção (por extinção do crédito do autor) ou a obter a condenação do autor no pagamento do valor remanescente, deve agir através da dedução de reconvenção”.
Todavia, em momento algum tais autores colocam em crise que na génese da compensação, seja a mesma passível de ser invocada judicialmente pela via da excepção peremptória quando se trate de obter a extinção parcial do crédito do autor (como sucedia no domínio do Código de Processo Civil de 1961), seja a mesma passível de ser invocada judicialmente pela via da reconvenção, está sempre um crédito do réu sobre o autor e a vontade daquele de alcançar o referido “encontro de contas”.
E se assim é, quer por uma via, quer pela outra, sempre terá o tribunal de verificar a existência do crédito do réu sobre o autor.
Dito de outra forma, se é verdade que a compensação, invocada judicialmente pela via da excepção peremptória, conduz à extinção (se não total, pelo menos parcial) do direito de crédito que o autor pretende exercitar pela acção, com a correspondente absolvição do réu (total ou parcial) do pedido, isso não significa que não se apure a existência do crédito do réu, já que é esse o facto essencial da excepção peremptória em questão.
É claro que essa verificação judicial do crédito do réu sobre o autor não conduz a qualquer condenação deste na sua satisfação àquele, quando efectuada em sede de excepção peremptória. Mas não deixa de se reconhecer a sua existência, enquanto primeiro pressuposto da aplicação do instituto da compensação.
Pelo que reconduzindo tais considerações ao caso concreto dos autos, não se acompanha o afirmado pela 1ª R., quer quando afirma que “o conhecimento da compensação-excepção não implica o reconhecimento de um crédito” sobre a A., quer quando afirma que “reconhecer a procedência da compensação em nada implica o reconhecimento de um crédito sobre a massa insolvente na medida em que esse crédito se dilui na apreciação do pedido principal”.
É exactamente porque a compensação não pode operar se não se verificar a existência do crédito invocado pela 1ª R., que a aplicação do instituto em questão (ainda que pela via da excepção peremptória) impõe tal reconhecimento do crédito em questão.
Pelo que, nesta medida, nenhuma censura há a fazer à afirmação constante da decisão recorrida, no sentido de “o conhecimento da compensação-excepção, mesmo para os efeitos estritamente extintivos que lhe estão associados”, implicar “sempre o reconhecimento de um crédito sobre a massa insolvente” (tendo presente que a A. foi, entretanto, declarada insolvente).
Mas será que, como consta igualmente da decisão recorrida, está vedado ao tribunal recorrido efectuar tal reconhecimento, enquanto pressuposto da validade da declaração de vontade compensatória efectuada pela 1ª R., porque a A. foi, subsequentemente, declarada insolvente, e tendo presente que tal reconhecimento só poderá ser feito em sede de processo de insolvência, de acordo com o disposto no art.º 90º do CIRE?
Tratando-se da verificação de um crédito sobre a insolvência, para efeitos de afirmar a compensação (parcial) do mesmo com um crédito da insolvência, o art.º 99º do CIRE permite tal compensação, desde logo quando o preenchimento dos seus pressupostos legais (aqueles que resultam do art.º 847º do Código Civil) é anterior à data da declaração de insolvência (al. a) do nº 1 do referido art.º 99º).
Como compaginar, então, tal possibilidade de verificação judicial do crédito sobre a insolvência, para efeitos de afirmação da compensação em sede de excepção peremptória, com a jurisprudência uniformizada pelo acórdão nº 1/2014 do Supremo Tribunal de Justiça, e mencionada na decisão recorrida?
Recorde-se que tal uniformização de jurisprudência parte, entre outros pressupostos, da constatação de que “a finalidade do processo de insolvência, enquanto execução de vocação universal – art.º 1.º /1 do CIRE – postula a observância do princípio ‘par conditio creditorum‘, que visa, como é consabido, a salvaguarda da igualdade (de oportunidade) de todos os credores perante a insuficiência do património do devedor, afastando, assim, a possibilidade de conluios ou quaisquer outros expedientes susceptíveis de prejudicar parte (algum/alguns) dos credores concorrentes”.
E, por isso, é que se conclui que, com a declaração de insolvência, “todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência”, devendo exercitar os seus direitos de crédito no processo de insolvência e em conformidade com os preceitos que regulam, como dispõe o art.º 90º do CIRE.
Tal exercitação dos direitos de crédito sobre a insolvência deve, todavia, ser entendida por relação à circunstância de a insolvência se apresentar como uma execução universal, só havendo necessidade de reconhecer os créditos sobre a insolvência na medida em que os mesmos serão satisfeitos pelo produto da massa insolvente, segundo a ordem de preferência dos mesmos e rateadamente, na medida em que o puderem ser.
Todavia, quando um dos credores é simultaneamente devedor do insolvente e anteriormente já havia declarado a sua vontade de compensar os créditos em questão, é-lhe admitido obter essa extinção da sua obrigação para com a insolvência, em “encontro de contas” com o seu crédito sobre a insolvência.
Assim, uma primeira conclusão se apresenta como óbvia, no sentido de a referida igualdade de tratamento dos credores não se apresentar como absoluta, admitindo excepções, como no caso dos credores que, sendo igualmente devedores do insolvente, tenham declarado a compensação anteriormente à declaração de insolvência (e desde que não se verifique alguma das circunstâncias a que respeita o nº 4 do art.º 99º do CIRE).
Por isso é que o Supremo Tribunal de Justiça afirmou já, no seu acórdão de 17/10/2019 (relatado por Hélder Almeida e disponível em www.dgsi.pt), que a “admissão da compensação, no âmbito do procedimento insolvencial, não constitui violação do princípio par conditio creditorum, mas apenas e só mera excepção a esse princípio que a doutrina tem entendido como não sendo absoluto”.
Assim sendo, se é admitida tal excepção ao princípio da igualdade de tratamento dos credores, e se o prescrito no art.º 90º do CIRE mais não é que uma emanação desse princípio, então nada obsta a que tal compensação possa ser invocada e declarada no âmbito de processo declarativo desencadeado pelo insolvente (em momento anterior à declaração de insolvência), onde o mesmo visa o reconhecimento de um crédito (posteriormente denominado como crédito da insolvência) que detém sobre esse seu credor, e sendo depois processualmente considerada no âmbito desse processo declarativo, enquanto concretização da referida excepção ao princípio par conditio creditorum.
E por isso é que o Supremo Tribunal de Justiça afirmou já, no seu acórdão de 13/4/2021 (relatado por Maria Olinda Garcia e disponível em www.dgsi.pt), que “a superveniência da insolvência da contraparte não deve projectar-se retroactivamente na eficácia da compensação que havia sido exercida antes da declaração de insolvência, tendo presente que o art.º 854º do CC consagra o efeito retroactivo da invocação da compensação ao momento em que os créditos se tornam compensáveis”.
Do mesmo modo, é por isso que o Supremo Tribunal de Justiça afirmou igualmente, no seu acórdão de 14/12/2021 (relatado por Fernando Samões e disponível em www.dgsi.pt) que “a insolvência superveniente da contraparte não deve afectar o efeito extintivo da obrigação que já se tenha produzido com a eficaz invocação da compensação de créditos, por via extrajudicial, nos termos dos art.ºs 848.º e 854.º do C. Civil”.
E se em ambos os casos aí considerados a imposição da anterioridade da declaração de compensação em relação à declaração da insolvência levou à afirmação da necessidade de uma declaração extrajudicial (exactamente porque quando a acção respectiva foi proposta já havia sido declarada a insolvência de cada um dos aí autores), no caso concreto dos autos nada obsta a que a declaração de compensação possa ter sido efectuada em sede de contestação, uma vez que a declaração de insolvência da A. é posterior em cerca de seis anos à apresentação da contestação da 1ª R.
Dito de outra forma, porque o que está em causa é a anterioridade da invocação da compensação de créditos relativamente à declaração de insolvência (e não a circunstância de tal compensação haver sido invocada judicial ou extrajudicialmente), e sendo manifesto, no caso dos autos, que tal anterioridade está presente, nada obsta a que a 1ª R. possa fazer valer essa garantia do seu crédito (o termo surge no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/9/2019, relatado por Ana Paula Boularot e disponível em www.dgsi.pt, emergindo da doutrina aí identificada), opondo-o ao contra-crédito da A. em litígio, e tendo em vista a afirmação da sua extinção, na medida correspondente.
Poder-se-ia objectar que, ainda assim, o disposto no art.º 90º do CIRE deveria ser interpretado no sentido de a afirmação da compensação dever ocorrer apenas e tão só no âmbito do processo de insolvência e, mais concretamente, em sede de verificação dos créditos sobre a insolvência.
Todavia, do disposto no art.º 85º do CIRE resulta que as acções cujo resultado possa influenciar o valor da massa insolvente não deixam de correr os seus termos, só sendo apensadas ao processo de insolvência se o administrador da insolvência nisso vir alguma conveniência. Por outro lado, resulta do art.º 154º, nº 2, do CIRE que o administrador da insolvência não mais está obrigado que a declarar as possibilidades de compensação dos créditos sobre a insolvência.
Ou seja, e como já se disse, não emergindo do disposto no art.º 90º do CIRE um princípio absoluto no sentido de todas as situações relativas a créditos da insolvência e créditos sobre a insolvência deverem ser verificadas em sede do processo de insolvência e dos seus incidentes (desde logo o incidente de verificação de créditos), mas admitindo-se que as questões relativas à compensação de créditos se apresentam como uma excepção a esse princípio, nada impede que as mesmas possam ser discutidas no processo onde foram suscitadas, a título de excepção peremptória.
Em suma, porque os efeitos da declaração de insolvência da A. não impedem o conhecimento da compensação invocada pela 1ª R., a título de excepção peremptória, não pode subsistir a afirmação constante da decisão recorrida, no sentido de estar vedado ao tribunal recorrido conhecer da mesma.
Pelo que, nesta parte, procedem as conclusões do recuso da 1ª R., mantendo-se a declaração da extinção da instância reconvencional, mas havendo que determinar o conhecimento dessa excepção peremptória pelo tribunal recorrido.
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DECISÃO
Em face do exposto julga-se procedente o recurso e altera-se a decisão recorrida, no sentido de se manter a declaração de extinção da instância reconvencional por inutilidade superveniente da lide, com custas pelas RR. reconvintes, e de se determinar o conhecimento, pelo tribunal recorrido, da compensação invocada pela 1ª R., a título de excepção peremptória.
Custas do recurso pela A.

16 de Março de 2023
António Moreira
Carlos Castelo Branco
Orlando Nascimento