RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
JUSTA CAUSA
COMUNICAÇÃO POR ESCRITO
DESCRIÇÃO CIRCUNSTANCIADA DOS FACTOS
Sumário


Incumbe ao trabalhador invocar na carta de resolução do contrato os factos concretos que fundamentam a justa causa, circunscrevendo-os no tempo, não satisfazendo tal ónus a invocação vaga e genérica do comportamento ilícito do empregador ou a transcrição de alguma das situações previstas no nº 2 do artigo 394º do Código do Trabalho.

Texto Integral


Questão prévia: admissibilidade de documento junto com o recurso

Com a apresentação do recurso a autora junta um documento alegando que “….apenas por mero lapso, a Recorrente não juntou com a sua petição cópia da resposta da Recorrida, nem esta a fez juntar na sua contestação.”
Trata-se de uma carta dirigida pela ré à autora datada de 13-05-2022 visando responder ao “aviso de despedimento” que esta lhe havia dirigido em 9-05-2022.
A petição foi apresentada em 6-06-2022.
A ré recorrida refere que o documento ora junto é extemporâneo e deve ser desentranhado
Na parte que ora releva, do artigo 651º, CPC, consta ” As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º….”
Segundo este último normativo “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recursos, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento” - 425º CPC.
São exemplos dessa impossibilidade de junção anterior o documento que se encontre em poder de outrem só posteriormente disponibilizado apesar de lhe ter sido feita a notificação prevista no art. 429º ou 432º CPC, ou documento só posteriormente formado - José Lebre de Fritas e Isabel Alexandre, CP anotado, Vol. 2º, 4ª ed., p 243.
No caso, a própria autora reconhece que já tinha o documento em seu poder. Trata-se de um documento que não é objectivamente superveniente.
Pelo exposto, não se admite o documento e determina-se o desentranhamento.

***
I – RELATÓRIO

AA intentou contra U... - Sociedade de Restaurantes Públicos e Privados, S.A. acção emergente de contrato individual de trabalho sob a forma de processo comum.

PEDIDO: condenação da ré a pagar à autora a quantia de €43.492,72, acrescidas de juros de mora; ser considerado com justa causa o despedimento efectuado pela autora e consequentemente ser indemnizada por danos morais no valor de € 10.000,00; deve ainda a ré ser condenada nos vencimentos devidos desde a propositura da acção até à data da Sentença; deve a ré ser condenada nos juros de mora à taxa legal vincendos.

CAUSA DE PEDIR - sustenta que a ré é devedora das seguintes remunerações: €1.171,00, relativa ao mês de férias vencidas e não gozadas 01.01.2022; € 1.171,00, relativa ao subsídio de férias vencidas em 01.01.2022; € 1.171,00, relativa ao mês de férias não gozadas em 2022; € 665,34, relativa a proporcionais de subsídio de férias de 2022; € 665,34, relativa a proporcionais de féria não gozadas em 2022; € 665,34, relativa a proporcionais de subsídio de natal de 2022; € 1.097,20, relativa às horas de formação não dadas á autora; € 36.886,50 a título de indemnização pelo despedimento com justa causa; dado que a primeira Ré lhe provocou danos não patrimoniais pelo despedimento com justa causa, pretendendo receber uma indemnização no montante de € 10.000.

CONTESTAÇÃO: sustenta-se a falta de alegação dos factos justificativos da justa causa e, bem assim, a caducidade do direito da Autora, por terem decorrido, aquando da carta remetida, mais de 30 dias sobre o conhecimento dos factos que alega na petição inicial como lesivos dos seus direitos. Ademais, impugna parte da factualidade alegada pela Autora, mais alegando que não se verifica justa causa para resolução do contrato de trabalho, nem são devidos os créditos reclamados pela Autora. Formula pedido reconvencional, peticionando a condenação da Autora no pagamento da quantia de € 1.842 respeitante ao montante correspondente ao período de pré-aviso não cumprido pela Autora, que deverá ser/foi compensado com os créditos de férias e subsídio de férias e descontado no recibo de fecho de contas.
Resposta da autora sustenta a improcedência das excepções e da reconvenção por o seu despedimento ter ocorrido por justa causa.

DESPAHO SANEADOR OBJECTO DE RECURSO (DISPOSITIVO):

“julga-se parcialmente procedente a acção e totalmente procedente a reconvenção e, em consequência:

a) declara-se a Ré “U... - Sociedade de Restaurantes Públicos e Privados, S.A.” devedora à Autora AA da quantia de € 5.753,22;
b) declara-se a Autora AA devedora à Ré “U... - Sociedade de Restaurantes Públicos e Privados, S.A.” da quantia de € 1.842;
c) declara-se compensado no valor referido em a) o crédito referido em b);
d) condena-se a Ré “U... - Sociedade de Restaurantes Públicos e Privados, S.A.” a pagar à Autora o remanescente da operada compensação, ou seja, a quantia de € 3.911,22, acrescida e juros de mora, à taxa legal, devidos desde a data da entrada da petição inicial até efectivo e integral pagamento.
» Custas da acção a suportar pela Autora e pela Ré, na proporção do decaimento. (Cfr. Artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil)”

A AUTORA RECORREU -CONCLUSÕES:

A. Por sentença datada de 14 de outubro de 2022, decidiu o Tribunal a quo julgar parcialmente procedente a ação e totalmente procedente a reconvenção e, em consequência a) Declarou-se a Ré devedora à Autora da quantia de € 5.753,22; b) Declarou-se a Autora devedora à Ré da quantia de € 1.842,00; c) Declarou-se compensado no valor referido em a) o crédito referido em b); d) Condenou-se a Ré a pagar à Autora o remanescente da compensação, ou seja, a quantia de € 3.911,22, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da entrada da petição até efetivo e integral pagamento.
B. Defendendo a sentença que “a situação reportada quanto à desigualdade no acesso ao emprego e no meu local de trabalho, a discriminação e o assédio e o crime de perseguição, mantêm-se [in]alterados”, a que se refere a motivação de resolução do contrato de trabalho feita pela Recorrente, não seria atendível para justificar a justa causa, por se tratar de “mera conclusão”, “não referindo qualquer factualidade que a preencha, nomeadamente quais as concretas situações de desigualdade de que foi alvo, quer no acesso ao emprego, quer no seu local de trabalho, quais as concretas situações de discriminação, assédio e perseguição”, não preenchendo, na opinião do Tribunal a quo, o requisito de “indicação sucinta dos factos que justificam a resolução prevista no n.º 1 do artigo 395.° do CT.
C. A Recorrente não se conforma com a referida decisão.
D. Pois o raciocínio seguido na decisão em crise extrapola a letra e o espírito do disposto no art. 395.º, n.º 1 do CT.
E. A violação dos direitos que a Recorrente invoca é claramente indicada, antes de mais, na carta enviada à Recorrida que precede a comunicação da resolução do contrato com justa causa, onde se faz referência aos emails e comunicações prévias à entidade empregadora e, também, dos Inspetores da ACT, que são do inteiro conhecimento da Recorrida.
F. Os atos ilícitos praticados pela Recorrida sobre a Recorrente consubstanciam uma violação reiterada, permanente e ininterrupta dos direitos da trabalhadora a que se aludiu na carta que antecedeu a resolução do contrato de trabalho.
G. Se nessa carta da Recorrente se faz referência aos e-mails e comunicações (de diversa natureza) dos Inspetores da ACT, fazendo, como lhe competia, uma correlação entre tais emails e comunicações e a falta de correção da atuação da Recorrida, instando-a, ainda, a informá-la quando adotaria a postura correta para fazer cessar todas as infrações, é seguro afirmar-se que, de facto, nessa missiva foi feita uma referência remissão para o teor dessas comunicações, ao contrário do que se decidiu na 1.ª instância.
H. Também não é menos verdade que o sumário do relatório elaborado pela ACT junto pela Recorrente com a sua petição não foi impugnado pela Recorrida.
I. Tanto assim é que a Recorrida respondeu à carta da Recorrente, dizendo que os factos relatados pela autora são “destituídos de fundamento”.
J. E apenas por mero lapso a Recorrente não juntou com a sua petição cópia da resposta da Recorrida, nem esta a fez juntar na sua contestação, apesar de tanto na petição como na contestação se fazer referência à resposta da ora Recorrida, o que foi replicado em resposta à contestação (artigo 10.º).
K. Alegou ainda a Recorrida que a ACT não lhe levantou qualquer auto de notícia ou processo de contraordenação decorrente dessas visitas, o que é falso!
L. Mas para se aferir da veracidade destas questões no sentido de contextualizar em que termos fora comunicada a resolução do contrato de trabalho com justa causa e a apreensão dos motivos que lhe estão subjacentes, impunha-se que o Tribunal a quo oficiosamente diligenciasse pela junção da resposta da Recorrida à primeira carta enviada pela Recorrente, assim como se impunha que apurasse se a Recorrida fora ou não notificada de qualquer auto de notícia ou processo de contraordenação decorrente das visitas efetuadas pela ACT e, ainda, se a Autora e a Ré haviam trocado correspondência prévia a respeito da violação dos direitos que a trabalhadora invocou como fundamento para a resolução do seu contrato de trabalho com justa causa – violação esta reiterada, permanente e duradoura.
M. A junção destes elementos de prova era absolutamente essencial para que o Tribunal a quo formasse uma convicção segura sobre o incumprimento do dever ínsito no artigo 395.º, n.º 1 do CT a que estava a Recorrente adstrita.
N. Não o tendo feito, não estavam reunidas as condições para que o Tribunal a quo conhecesse de imediato do mérito da causa, pelo que a sentença deve ser revogada de forma a que os autos baixem à 1.ª instância e aí prossigam os seus trâmites normais.
O. A resposta da Recorrida, que se junta nos termos do disposto no n.º 1 do art. 651.º do C.P.C., é absolutamente inequívoca quanto à apreensão pela entidade empregadora dos motivos que estiveram na base da resolução da justa causa – o que lhe possibilitou reagir contra os mesmos da forma como o fez, sendo esta a finalidade ínsita no artigo 395.º n.º 1 do CT…
P. O art. 395.º, n.º 1 do CT exige a indicação sucinta de factos e não a indicação concreta, sendo que a Recorrente deu cumprimento a esse ónus.
Q. A letra e o espírito daquele preceito visam o cidadão comum – e a Recorrente mais não é que um cidadão comum – a quem o legislador assegurou legibilidade e clareza, e a quem não é razoavelmente exigível nem capacidade interpretativa de subtilezas filosóficas exegéticas e nem conhecimento da jurisprudência prévio à elaboração de uma carta de despedimento, não havendo por isso necessidade de interpretar a mesma como fez o Tribunal a quo, nem motivo para que os factos indicados sejam qualificados de “conclusivos”.
R. O entendimento que a sentença recorrida faz do art. 395.°, n.° 1 do CT viola princípios fundamentais do direito da União Europeia e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, nomeadamente da clareza das leis, da segurança jurídica e da confiança legítima.
S. Ao interpretar ultra legem o conceito de “factos” constante do n.º 1 do artigo 395.° do CT, a decisão recorrida cria direito que viola direito da União e frustra a sua aplicação.
Nestes termos e nos mais de direito, Deverá a sentença do Tribunal a quo ser revogada e substituída por outra que ordene a baixa dos autos à 1.ª instância para que os mesmos prossigam os seus trâmites.
Subsidiariamente, a Recorrente requer o envio de pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, visando obter a opinião desse Tribunal sobre a compatibilidade da decisão do Tribunal da 1.ª Instância com o direito da União.

CONTRA-ALEGAÇÕES DA RÉ: refere que o documento ora junto pela autora é extemporâneo e deve ser desentranhado (questão acima já decidida). No mais sustenta a improcedência da apelação, referindo que não tem conhecimento de qualquer processo crime, nem tão pouco lhe foi levantado pela ACT qualquer auto de contra-ordenção.

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO – sustenta a improcedência da apelação.
A ré apresentou resposta aderindo ao parecer.

QUESTÕES A DECIDIR (o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo as questões de natureza oficiosa artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC.): averiguar se a comunicação da resolução do contrato contém a indicação sucinta dos factos que a justificam.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A - FACTOS PROVADOS

A. Em Agosto de 2017, a Ré ganhou o concurso com a DGESR (Direcção Geral dos Estabelecimentos Escolares).
B. Na data referida em A., a Autora tinha a categoria de Encarregada A e auferia o salário de € 808, acrescido do prémio mensal de € 250.
C. Actualmente, a Autora auferia a retribuição mensal ilíquida de € 921, a que acresce a quantia de € 250 de prémio mensal.
D. O horário a praticar é de 40 horas semanais.
E. Em 9 de Maio de 2022, a Autora enviou à Ré uma carta registada com aviso de recepção, com o seguinte teor:
“M/Ref.: Aviso despedimento
Ex.mos Senhores,
Não obstante os diversos mails e comunicações da minha parte e até dos Inspectores da ACT o certo é que a Vossa actuação nunca foi corrigida e contínuo até ao momento a ser vítima de desigualdade no acesso ao emprego e no meu local de trabalho, infracção prevista e punida no art. 24.º do Código do Trabalho, sofro de discriminação, infracção prevista e punida no art. 25.º do Código do Trabalho e de Assédio, infracção prevista e punida pelos nº 1, 2 e 5 do art. 29º do Código do Trabalho, bem como sou vítima do crime de perseguição previsto e punido no nº 1 do artigo 154º -A do Código Penal, pelo que se V. Ex.ºs não corrigirem a V. actuação no prazo de oito dias é minha intenção rescindir o meu contrato de Trabalho com justa causa.
Assim, fico a aguardar que me seja comunicado quando é que V. Ex.ªs adoptarão a postura correcta para fazerem cessar todas as infracções detectadas no Auto de notícia nº ...13, constante do processo crime nº 500/21.....
Sem outro assunto de momento, com os melhores cumprimentos, (…)”
F. Em 25 de Maio de 2022, a Autora enviou à Ré uma carta registada com aviso de recepção, com o seguinte teor:

“M/Ref.: Aviso despedimento
Ex.mos Senhores,
No seguimento da mina carta enviada em 09.05.2022 e não obstante a Vossa resposta a situação reportada quanto à desigualdade no acesso ao emprego e no meu local de trabalho, a discriminação e o assédio e o crime de perseguição, mantêm-se alterados, pelo que venho comunicar a V. Ex.ª que é minha intenção rescindir o contrato de trabalho com justa causa, nomeadamente por violação dos arts. 24º, 25l, nºs 1, 2 e 5 do artigo 29º todos do Código do Trabalho.
A rescisão do meu contrato tem efeitos a partir do dia 01.06.2022, pelo que agradecia que me preparassem todos os meus créditos, direitos e os créditos de formação profissional dos últimos cinco anos, bem como agradecia o envio do modelo 5044 no prazo de cinco dias.
Sem outro assunto de momento, com os melhores cumprimentos, (…)”.
G. A Ré, em 27 de Junho de 2022, pagou à Autora a quantia de € 1.824,40, correspondente às quantias constantes do recibo de vencimento datado de 30/06/2022 emitido pela Ré a favor da Autora nos seguintes termos:
Designação Quant. Valor
Vencimento 1,00 30,70
Subsídio de Alimentação (Valor) 0,00 35,02
Subsídio de Férias 30,00 921,00
Proporcional Subsídio de Férias 0,00 383,75
Férias nã gozadas 0,00 921,00
Proporcional de Férinas não gozadas 0,00 383,75
Subsídio de natal 12,50 383,75
Horas de formação 0,00 602,28
Prémio 0,00 8,35
Prémio (SF, Férias e SN) 0,00 812,45
Deslocações 680,00 204,00
Indemnização por falta aviso prévio -60,00 - 1.842,00
Falta Injustificada -1,00 -39,03

B - DA JUSTA CAUSA DE RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO DA INICIATIVA DO AUTOR

O tribunal a quo não considerou lícita a resolução do contrato de trabalho, porquanto a trabalhadora não terá cumprido o ónus de indicação dos factos concretos que subjazem à justa causa, nem o momento em que aqueles terão ocorrido, em violação dos requisitos procedimentais.
Extraímos as seguintes passagens demonstrativas do raciocínio seguido na primeira instância:

“ Como resulta da Alínea F. dos factos provados, a Autora por carta remetida à Ré em 25 de Maio de 2022 declarou resolver o contrato de trabalho celebrado invocando justa causa.
A primeira questão que importa apreciar é a de averiguar se a comunicação da resolução do contrato contém a indicação sucinta dos factos que a justificam.
Com efeito, ocorrendo justa causa pode o trabalhador fazer cessar imediatamente o contrato (cfr. artigo 394.º, n.º 1 do Código do Trabalho).
Não carecendo de ser exercida mediante acção judicial, a resolução opera-se por meio de uma declaração unilateral, receptícia, que, neste caso, se funda na lei e que para se tornar eficaz tem de chegar ao conhecimento do destinatário (Cfr. artigo 395.º do Código do Trabalho e artigo 224.º do Código Civil).
De acordo com o artigo 395.º, n.º 1 do Código do Trabalho “O trabalhador deve comunicar a resolução do contrato ao empregador, por escrito, com indicação sucinta dos factos que a justificam, nos 30 dias subsequentes ao conhecimento dos factos”.

Como refere Joana Vasconcelos (in “Código do Trabalho Anotado”, Almedina, 13.ª edição, pág. 925), em anotação ao referido dispositivo legal “A observância pelo trabalhador dos requisitos de natureza procedimental previstos no n.º 1 do presente preceito – forma escrita, indicação sucinta dos factos que em seu entender são de molde a constituir justa causa (e não mera reprodução ou remissão genérica para uma qualquer alínea dos nº 2 e 3 do artigo 394º) e prazo – constitui condição de licitude da resolução, pois dela depende a atendibilidade dos factos invocados para justificar a imediata cessação do contrato.
Significa isto que, perante a respectiva preterição, tudo se passa como se o trabalhador tivesse feito cessar o contrato invocando uma justa causa não verificada. E porque só a justa causa legitima a cessação imediato do contrato, ao dispensar o trabalhador da obrigação de aviso prévio, a resolução será, em tais casos – e a menos que este proceda à regularização permitida pelo nº 4 do artigo 398º -, ilícita, incorrendo o seu autor em responsabilidade civil perante o empregador nos termos dos artigos 399º e 401.º.”.
Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 2010 – processo 934/07.1TTCBR.C1.S1 – disponível em www.dgsi.pt, citando o parecer do Ministério Público “«o ónus da indicação sucinta dos factos integradores da justa causa, imposto ao trabalhador pelo n.º 1 do artigo 442.º do Código do Trabalho, tem uma dupla função: por um lado, visa dar a conhecer esses factos à entidade patronal, permitindo-lhe ajuizar se os mesmos são ou não suficientes para configurarem justa causa de resolução; por outro lado, delimita os factos atendíveis pelo tribunal na acção judicial em que for apreciada a ilicitude ou ilicitude da resolução do contrato». O que «significa que se o trabalhador, na comunicação da resolução do contrato, não indicar os factos que a justificam, não pode suprir, na petição inicial, esse vício de procedimento através da indicação de factos que não constem da declaração escrita de resolução do contrato».”, acrescentando que “a indicação dos factos concretos e da temporalidade dos mesmos, na carta de resolução, se mostra indispensável para, além do mais, se aferir se o direito foi exercido dentro do prazo de 30 dias, estabelecido no artigo 442.º, n.º 1, condição formal, de que, também, depende a licitude da resolução.” e bem assim que “a circunstância de, na contestação, o Réu ter sido capaz de quantificar valores de retribuição devidos à Autora e ter invocado que esta ficara em casa, sem trabalhar, a pedido dela, apenas tem o valor de contrariar o que fora alegado na petição inicial, não tendo, em face da lei, virtualidade para suprir as ditas exigências formais, sendo certo que, na economia da contestação, surge, em primeiro lugar a invocação da falta de cumprimento dessas exigências formais, apresentando-se o mais, subsequentemente alegado, sob a menção «sem prescindir e por mera cautela».”, isto é, não é pelo facto de a entidade empregadora se pronunciar sobre os factos alegados pelo trabalhador que fica suprida aquelas exigências, pelo menos, quando aquela, em sede de contestação, arguiu a referida invalidade.
A exigência quanto à comunicação de resolução não é tão acentuada como a feita relativamente à nota de culpa, não se exigindo uma “descrição circunstanciada dos factos”, mas apenas uma “indicação sucinta” dos mesmos, o que se compreende, pois que, “no primeiro caso, trata-se somente de anunciar à contraparte o fundamento de uma rescisão imediata, em termos tais que permitam, se necessário, apreciação judicial da justa causa alegada, enquanto no segundo, a descrição factual insere-se num processo de despedimento, sendo a mesma essencial para a defesa do trabalhador, já que as suas possibilidades de defesa dependem do conhecimento dos factos de que é acusado". Não obstante, “embora a indicação dos motivos que fundamentam a resolução contratual por parte do trabalhador possa ser efectuada de forma sucinta, os mesmos têm, cum grano salis, que delimitar espacio-temporalmente os factos integradores desses motivos. Só esses factos, e não outros, podem ser invocados judicialmente, em sede de acção indemnizatória” (cfr. Ricardo Nascimento, in “Da Cessação do Contrato de Trabalho - em especial por iniciativa do Trabalhador”, Coimbra, 2008, pág. 246.).
Assim sendo, incumbe ao trabalhador invocar na carta de resolução os factos concretos que a fundamentam, circunscrevendo-os no tempo, não satisfazendo tal ónus a invocação vaga e genérica do comportamento ilícito do empregador ou a transcrição de alguma das situações previstas no n.º 2 do artigo 394.º do Código do Trabalho.
“Na falta de cumprimento do ónus de indicação dos factos concretos e do seu contexto temporal, a resolução operada tem de ser considerada ilícita, por incumprimento da condição formal da sua licitude a que se refere o mencionado art. 396º do C.T., tudo se passando como se o trabalhador tivesse feito cessar o contrato invocando uma justa causa inexistente ou não provada, com a consequência prevista pelo art. 399º o C.T., ou seja a obrigação de indemnizar o empregador pelos prejuízos causados, não inferior ao montante calculado nos termos do art. 401º do C.T., ou seja para as situações de denúncia sem aviso prévio” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18/06/12, disponível em www.dgsi.pt).
Posto isto, analisemos a comunicação enviada pela Autora, nos termos constantes do ponto F. da matéria de facto provada: “No seguimento da mina carta enviada em 09.05.2022 e não obstante a Vossa resposta a situação reportada quanto à desigualdade no acesso ao emprego e no meu local de trabalho, a discriminação e o assédio e o crime de perseguição, mantêm-se alterados, pelo que venho comunicar a V. Ex.ª que é minha intenção rescindir o contrato de trabalho com justa causa, nomeadamente por violação dos arts. 24º, 25, nºs 1, 2 e 5 do artigo 29º todos do Código do Trabalho.
A rescisão do meu contrato tem efeitos a partir do dia 01.06.2022, pelo que agradecia que me preparassem todos os meus créditos, direitos e os créditos de formação profissional dos últimos cinco anos, bem como agradecia o envio do modelo 5044 no prazo de cinco dias.
Sem outro assunto de momento, com os melhores cumprimentos, (…)”.
Ora, da leitura desta comunicação resulta que a Autora limita-se a referir que “a situação reportada quanto à desigualdade no acesso ao emprego e no meu local de trabalho, a discriminação e o assédio e o crime de perseguição, mantêm-se alterados”, o que faz de forma conclusiva, remetendo para as normas legais - arts. 24º, 25, nºs 1, 2 e 5 do artigo 29º todos do Código do Trabalho – não referindo qualquer factualidade que as preencha, nomeadamente quais as concretas situações de desigualdade que foi alvo, quer no acesso ao emprego, quer no seu local de trabalho, quais as concretas situações de discriminação, assédio e perseguição de que foi alvo, como, de resto, a autora vem agora invocar, sendo que, como atrás se disse, tal omissão não pode considerar-se sanada com a matéria agora alegada na petição inicial, cujo conhecimento está vedado ao tribunal.
Refere a Autora que, em 09.05.2022 havia remetido à Ré uma carta onde sucintamente relatava os motivos que justificaram o despedimento, o que, como se pode constar do teor da referida carta, reproduzido no ponto E. dos factos provados, não se verifica, pois que, mais uma vez a Autora fá-lo de forma conclusiva:
“Não obstante os diversos mails e comunicações da minha parte e até dos Inspectores da ACT o certo é que a Vossa actuação nunca foi corrigida e contínuo até ao momento a ser vítima de desigualdade no acesso ao emprego e no meu local de trabalho, infracção prevista e punida no art. 24.º do Código do Trabalho, sofro de discriminação, infracção prevista e punida no art. 25.º do Código do Trabalho e de Assédio, infracção prevista e punida pelos nº 1, 2 e 5 do art. 29º do Código do Trabalho, bem como sou vítima do crime de perseguição previsto e punido no nº 1 do artigo 154º -A do Código Penal, pelo que se V. Ex.ºs não corrigirem a V. actuação no prazo de oito dias é minha intenção rescindir o meu contrato de Trabalho com justa causa.
Assim, fico a aguardar que me seja comunicado quando é que V. Ex.ªs adoptarão a postura correcta para fazerem cessar todas as infracções detectadas no Auto de notícia nº ...13, constante do processo crime nº 500/21.....”.
Refere, ainda, a Autora que, em tal carta, remete os pormenores para o relatório da ACT junto com a petição, deixando, assim, de estar obrigada a reproduzir 90 páginas e anexos.
Ora, por um lado, do teor da carta não resulta tal remissão: apenas é feita referência a um auto de notícia constante de um processo crime, sendo que, da carta não resulta que tal tenha sido enviado em anexo, e, por outro lado, ainda que resultasse, não cremos que fosse suficiente para suprir aquela exigência, sem que a Autora fizesse uma concretização mínima dos factos na carta de resolução propriamente dita, isto é, a que foi enviada em 25 de Maio de 2022, pois que, como se disse, é desta comunicação – em que o trabalhador «“deve concretizar com o mínimo de precisão, os factos que estão na base da sua decisão” – de forma a permitir ao empregador apreender e avaliar tais motivos e, se assim o entender, reagir contra os mesmos, bem como possibilitar uma eventual “apreciação judicial da justa causa” – a que a comunicação da resolução não se pode esquivar.» (cfr. “Código do Trabalho Anotado”, Almedina, 13.ª edição, pág. 926).
A observância pelo trabalhador dos requisitos de natureza procedimental previstos no n.º 1 do artigo 395.º do Código do Trabalho: (1) forma escrita; (2) indicação dos factos; e (3) observância do prazo – constitui condição de licitude da resolução.
Perante a sua preterição, tudo se passa como se o trabalhador tivesse feito cessar o contrato invocando uma justa causa não verificada (cfr. Código do Trabalho anotado, Almedina, 13.ª edição, pág. 925).
2. Quais as consequências de tal conclusão relativamente aos pedidos formulados pela Autora e pela Ré.
2.1. Desde logo, relativamente ao pedido da Autora constante no artigo 95.º alínea h) da petição inicial, ou seja, a indemnização pela justa causa da resolução, temos que o mesmo terá, necessariamente de soçobrar, considerando que como se concluiu a resolução do contrato por parte da autora não se pode ser considerada com justa causa (artigo 396.º, n.º 1 do Código do Trabalho a contrario).” - fim de transcrição de sentença de 1ª instância, sendo os negritos da nossa autoria.

Concordamos integralmente quer quanto ao enquadramento teórico da questão, quer quanto à aplicação do direito ao factos e conclusão alcançada.
A autora resolveu o contrato de trabalho por carta enviada em 25 de Maio de 2022. A mesma não contém qualquer descrição de factos concretos, ainda que sumária. Apenas se alude conclusivamente a razões de “desigualdade no acesso ao emprego e no meu local de trabalho, a discriminação e o assédio e o crime de perseguição” -alínea f da matéria provada.
Factos são acontecimento ou ocorrências apreensíveis pela experiência. São eles que nos permitem tirar conclusões. Demos um exemplo: alega-se que em determinada empresa todos os trabalhadores homens recebem 1.000€, ao passo que as trabalhadoras mulheres recebem 800€ no desempenho das mesmas funções e para o mesmo número de horas, com igual categoria e antiguidade. Desta factualidade extrai-se a conclusão de desigualdade entre Mulheres e Homens no mercado de trabalho.
Ora, como se refere na decisão a quo, pese embora não se exija um detalhe profundo, a indicação dos factos, embora sucinta, tem de lá estar. O que não acontece de todo no caso, onde apenas se utilizam expressões genéricas e conclusivas.
Ainda que, com esforço e/ou generosidade, se entendesse que a missiva de resolução remetia para a carta anteriormente enviada à ré (“No seguimento da mina carta enviada em 09.05.2022 …”) a verdade é que esta não contém factos, sendo igualmente conclusiva.
Ali também apenas se refere a “diversos mails e comunicações da minha parte e até dos Inspectores da ACT…” e que “continuo até ao momento a ser vítima de desigualdade no acesso ao emprego e no meu local de trabalho, infracção prevista e punida no art. 24.º do Código do Trabalho, sofro de discriminação, infracção prevista e punida no art. 25.º do Código do Trabalho e de Assédio…”. Ou seja, o padrão de falta de indinação de factos permanece.
Finalmente alude-se a “todas as infracções detectadas no Auto de notícia nº ...13, constante do processo crime nº 500/21.....”. Ora, este tipo de referência indeterminada de factos indexada a um processo não satisfaz obviamente a exigência legal sobre a identificação do circunstancialismo que o trabalhador reputa de ofensivos dos seus direitos, não ficando o empregador, nem o tribunal, minimamente em condições de saber quais sejam eles.
Vitimiza-se a recorrente dizendo que não é exigível a um trabalhador o “conhecimento da jurisprudência prévio à elaboração de uma carta de despedimento”, mencionando princípios constitucionais de segurança e de confiança. Mas, no caso, curiosamente, a trabalhadora cita até inúmeras vezes os artigos da lei (mais parecendo jurista) e não invoca aquilo que qualquer cidadão comum é capaz, como descrever as circunstâncias factuais discriminatórios contra as quais se insurge.
Pretende ainda a recorrente que a senhora juiz deveria ter procedido a diligência probatória antes de decidir. Ora, remete-se para a fundamentação acima exposta da qual se extrai a inutilidade do pretendido, porque o vício da falta de indicação na carta de despedimento dos facos motivadores da resolução, ainda que de forma sucinta, não é suprível. Remete-se para a bem fundamentada decisão a quo.
Subsidiariamente, a Recorrente requer o envio de pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, visando obter a opinião desse Tribunal sobre a compatibilidade da decisão do Tribunal da 1.ª Instância com o direito da União.
O pedido é completamente injustificado. Está apenas em causa a discordância sobre o julgamento de direito efectuado na primeira instância, à semelhança de inúmeros recursos decididos pelo Tribunal da Relação, onde questões aparentadas têm sido decididas. Não se coloca dúvida sobre a interpretação de tratados, nem sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União, nem se afigura necessário ao julgamento da causa uma decisão desse órgão.

I.I.I. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida - 87º do CPT e 663º do CPC.
Custas a cargo da autora (sem prejuízo do apoio judiciário concedido).
Notifique.
16-03-2023

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Francisco Sousa Pereira
Antero Dinis Ramos Veiga