CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
Sumário

I.–Em processo por crime de violência doméstica, a produção antecipada de prova não tem tanto a ver com o perigo adveniente da impossibilidade de produção na própria audiência de julgamento, mas antes com a protecção da própria vítima, por forma a minimizar a vitimização secundária, direito que é garantido à vítima pela Lei n.º 112/2009 (Lei da Violência Doméstica) e pela Lei n.º 130/2015 (Estatuto da Vítima), permitindo que ela encerre o episódio de que foi vítima, já que só será prestado novo depoimento em casos excepcionais.

II.–De acordo com o artigo 33.º da Lei n.º 112/2009, não se impõe ao juiz de instrução a obrigatoriedade de proceder à inquirição de uma vítima para memória futura, nem se estabelece os critérios em que deve assentar essa decisão. Porém, é aconselhável que o faça neste tipo de crime, em que deve evitar-se a exposição da vítima em julgamento, em função da sua fragilidade ou da sua idade, mas, sobretudo, da relação que esta tem com o arguido.

III.–Desde que a testemunha tenha capacidade para depor, nos termos do artigo 131.º do Código de Processo Penal, o depoimento antecipado deve ser deferido ou indeferido consoante o juízo que se fizer sobre a conveniência da antecipação para o bem-estar da vítima, que é protegido tanto pelo artigo 24.º do Estatuto da Vítima (Lei n.º 130/2015), como pelo artigo 33.º da Lei da Violência Doméstica (Lei n.º 112/2009), e para a prova.

IV.–Em se tratando de menor, vítima de violência doméstica, que tenderá a esquecer o que vivenciou tendo em conta a sua tenra idade, e que continua a viver com a alegada agressora e, portanto, sob a sua influência, a produção antecipada das suas declarações pode evitar uma eventual contaminação do seu depoimento e a perda de memória dos factos que a mesma vivenciou, além de que evita que a menor volte a ser sujeita a estar presente em tribunal e a reviver a situação, minimizando a vitimização secundária.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–Relatório


1. No âmbito do processo de inquérito supra identificado foi proferido, a 24.10.2022, pela Sra. juíza de instrução, o seguinte despacho: (transcrição)

«Veio o Ministério Público requerer a tomada de declarações para memória futura da menor A.
Conforme decorre dos autos tal requerimento tinha sido já formulado anteriormente e indeferido com os fundamentos constantes do despacho de fls. 106 a 108 dos autos.
Desde então constata-se que a menor foi inquirida pelo Ministério Público e tendo-se procedido à audição de tal inquirição facilmente se verifica que a menor não logra manter um comportamento adequado no decurso de tal inquirição, evidenciando o que fora já relatado no relatório de perícia médico-legal que lhe foi efectuada: humor distímico e instável, postura inquieta e agitação psicomotora, observa-se um bloqueio no seu desenvolvimento psíquico associado a um quadro clínico grave, com conteúdos bizarros e de natureza completamente disruptiva e de registo psicótico, dinâmica esta que não é confundível com hipotética imaginação fértil, pelo contrário, estes conteúdos são vivenciados e relatados com naturalidade e sem qualquer crítica e sério compromisso da sua capacidade para analisar as efectivas vivências intersubjectivas…
Continuam a verificar-se os fundamentos que fundaram a decisão anterior no que respeita à capacidade da menor em questão para testemunhar de um modo relevante e processualmente útil, pelo que uma vez se indefere o requerido.
Notifique.»

2. O Ministério Público interpôs recurso desse despacho nos termos da motivação constante dos autos da qual extrai as seguintes conclusões (transcrição):
I- As declarações para memória futura servem para recolher elementos probatórios, junto da vítima, nomeadamente a forma de atuação e as consequências dessa atuação pelo autor do crime.
II- A Mma. Juíza do Tribunal a quo entendeu que “se verifica que a menor não logra manter um comportamento adequado no decurso de tal inquirição... ”
III- Desconhecemos o que é considerado como “comportamento adequado”.
IV- A ofendida A, nasceu em 16 de setembro de 2016, tendo a esta data seis anos de idade.
V- O art.º 56°, n° 2 da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, aprovado por Resolução da assembleia da República n° 4/2021, de 21 de janeiro, veio consagrar que uma criança vítima de violência deve beneficiar de medidas de proteção especial, sendo uma dessas medidas a possibilidade de prestar declarações para memória futura, num ambiente informal e reservado, evitando dessa maneira que seja compelida a prestar depoimento em audiência de julgamento.
VI- Nos presentes autos figuram como arguidas a progenitora de A e a sua avó materna, revelando-se essencial à descoberta da verdade material as declarações da menor sobre o que vivenciou, evitando-se uma revitimização da menor vítima, atendendo à natureza do crime, à sua idade, à sua elevada fragilidade emocional e especial vulnerabilidade.

3. O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo e ao mesmo responderam as arguidas, pedindo a improcedência do recurso e tendo assim concluído:
«Em face da decisão tomada pela Juiz a quo relativa ao indeferimento da tomada de declarações da menor, A neste inquérito, tendo esta já prestado declarações perante o MP em julho de 2022, considera-se que bem andou a Juiz a quo na sua decisão de não permitir que uma criança de tenra idade com seis anos de idade seja sujeita e objecto de um conflito entre progenitores, que, por não ser sério, verdadeiro e responsável por quem o instruiu e despoletou, põe em causa a estabilidade, o bem-estar e estado anímico da menor nas suas presentes e futuras relações parentais com os familiares visados.
Deste modo e sufragando a decisão da Juiz a quo, considera- se adequada e prudente não voltar a expor a menor a mais nenhuma tomada de declarações para memória futura, não nos merecendo a decisão tomada qualquer censura.»

4. Neste Tribunal da Relação, o Ministério Público, no âmbito do art.º 416.º, do Código de Processo Penal, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

5. Procedeu-se a exame preliminar no qual se determinou a remessa dos autos à conferência, após vistos legais, a fim de o recurso aí ser julgado, nos termos do art.º 419º do CPP, cumprindo agora decidir.

II–Fundamentação

Está em causa o indeferimento da prestação de declarações para memória futura por parte de uma menor – de 6 anos de idade – no âmbito de uma investigação por crime de violência domestica, em que a menor é ofendida e são arguidas a mãe da menor e a sua avó materna.

O Ministério Público fundamentou o seu pedido, de ouvir a menor em declarações para memória futura, numa Directiva interna da Procuradoria-Geral da República (n.º5/2009), que estabelece orientações de actuação uniforme para os magistrados do Ministério Público no âmbito da investigação por crimes de violência doméstica, designadamente o seu ponto IV. B e A., respeitante às situações de requerimento obrigatório de declarações para memória futura da vítima, sempre que estejam envolvidas crianças, e ainda no disposto no artigo 33.º, n.º1 da lei 112/2009, de 16 de Setembro.

A Sra. Juíza de instrução recusou a obtenção de tal meio de prova porque já anteriormente fora indeferido tal pedido e, desde então se verificar, a partir da inquirição da menor efectuada entretanto pelo Ministério Público, que aquela não logra manter um comportamento adequado no decurso de inquirição, e de, por isso, se continuarem a verificar os fundamentos do despacho anterior no que respeita à capacidade da menor em questão para testemunhar de um modo relevante e processualmente útil.

Vejamos:
As declarações para memória futura constituem uma produção antecipada de prova, um meio cautelar de prova, que tem em vista assegurar a obtenção e conservação de determinada prova pessoal, com vista ao respectivo aproveitamento em sede de julgamento – pelo perigo adveniente da impossibilidade de produção na própria audiência de julgamento – artigo 271.º do Código de Processo Penal.

Estando em causa a investigação de um crime de violência doméstica, como é o caso dos autos, a Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à protecção e assistência às suas vítimas, prevê no seu artigo 33.º a possibilidade de o juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.

Igual previsão está estabelecida no Estatuto da Vítima aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro, quanto à vítima especialmente vulnerável (artigo 24:º).

Nestes casos, a produção antecipada de prova não tem tanto a ver com o perigo adveniente da impossibilidade de produção na própria audiência de julgamento, mas antes com a protecção da própria vítima, por forma a minimizar a vitimização secundária, direito que é garantido à vítima por aquelas leis (artigo 22.º da Lei n.º 112/2009 e artigo 17.º da Lei 130/2015), permitindo assim que ela encerre o episódio de que foi vítima, já que só será prestado novo depoimento, em casos excepcionais (nº7 do artigo 33.º da mesma Lei).

De acordo com o artigo 33.º da Lei n.º 112/2009, não se impõe ao juiz de instrução a obrigatoriedade de proceder à inquirição de uma vítima para memória futura, nem se estabelece os critérios em que deve assentar essa decisão. Porém, é aconselhável que o faça neste tipo de crime em função da fragilidade das vítimas ou da sua idade, mas, sobretudo, da relação que têm com o arguido, em que deve evitar-se a exposição da vítima em julgamento.

O que está em causa nos presentes autos é a questão de saber se o depoimento da menor, alegadamente vítima de violência doméstica por parte da sua mãe e avó, deve ser prestado antecipadamente e não se a vítima tem ou não capacidade para depor, como parece estar subjacente ao despacho recorrido.

Desde que a testemunha tenha capacidade para depor, nos termos do artigo 131.º do Código de Processo Penal, o depoimento antecipado deve ser deferido ou indeferido consoante o juízo que se fizer sobre a conveniência da antecipação para o bem-estar da vítima, que é protegida, tanto pelo artigo 24.º do Estatuto da Vítima (Lei n.º 130/2015), como pelo artigo 33.º da Lei da Violência Doméstica (Lei n.º 112/2009), e para a prova.

No caso dos autos a menor, de 6 anos, tem a qualidade de vítima nos termos do artigo 67.º- A do Código de Processo Penal e tem capacidade para depor, nos termos do artigo 131.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, pois não resulta do relatório, que se refere no despacho recorrido, qualquer incapacidade para a menor poder prestar depoimento e ser ouvida.

A valoração do depoimento que vier a ser prestado pela menor será feita pelo tribunal de julgamento na altura própria e, por isso, não pode o tribunal recorrido estar a antecipar que a menor não pode testemunhar de modo relevante e processualmente útil, para indeferir a prestação do seu depoimento antecipado.

A prestação antecipada de declarações pela menor, que tenderá a esquecer o que vivenciou, tendo em conta a sua tenra idade, e que continua a viver com a alegada agressora e, portanto, sob a sua influência, pode evitar uma eventual contaminação do seu depoimento e a perda de memória dos factos que a mesma vivenciou, com a precisão e rigor necessários à investigação e, sobretudo, à descoberta da verdade material, além de que evita que a menor volte a ser sujeita a estar presente em tribunal e a reviver a situação, minimizando a vitimização secundária.

Face ao exposto, entendemos que o despacho recorrido não pode ser mantido.

III–Decisão

Nestes termos, acordam, os Juízes da 5ª Secção desta Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, em revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que admita a inquirição para memória futura da menor, que foi requerida pelo Ministério Público.
Sem tributação.



Lisboa, 7 de Março de 2023


(texto elaborado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2, do C.P.P.)


(Maria José Costa Machado - relatora)
(Carlos Espírito Santo - 1.º adjunto)
(Paulo Duarte Barreto Ferreira - 2.º adjunto)