VÍCIOS DA SENTENÇA
CONHECIMENTO
ERRO DE JULGAMENTO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PROVA INDICIÁRIA
DECLARAÇÕES DE CO-ARGUIDO
VALORAÇÃO
Sumário

I– A alegada contradição da fundamentação está prevista como um dos vícios do art. 410º, nº 2, do CPP, o qual não implica qualquer sindicância à prova produzida no tribunal de 1ª instância. Apenas envolve o texto da decisão recorrida, na sua globalidade, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, ainda que constem do processo. Em face do teor do texto da decisão, apenas as regras de experiência comum podem, se necessário, servir de critério de aferição da existência, ou não, de tais vícios.

II– Estando afastado este vício (de alegada contradição) se for perceptível, pela simples leitura do texto da decisão, que houve manifesto erro/lapso de escrita e/ou ambiguidade da redacção susceptível de ser suprido/eliminado pelo tribunal de recurso, através do expediente previsto no art. 380º do CPP. E, aliás, correcção esta que o tribunal “ad quem” pode e deve efectuar para deixar de persistir tal contradição.

III– O erro de julgamento quanto a matéria de facto está previsto no art. 412º, nºs 3 a 6, do CPP, destinando-se à fiscalização das provas e da forma como o Tribunal recorrido formou a sua convicção a partir delas, visando a reapreciação da actividade probatória realizada pelo Tribunal da 1ª instância, da prova dela resultante e da respectiva decisão que esse Tribunal tomou quanto à matéria de facto respectiva.
Mas, esta impugnação da matéria de facto tem alguns limites, na medida em que não importa a feitura de um novo julgamento pelo Tribunal de recurso, estando condicionada ao cumprimento dos deveres aí consignados para o recorrente aquando da motivação e das conclusões de recurso.
Sendo necessário que o recorrente demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum e/ou uma patentemente errada utilização de presunções naturais.
Em suma, que demonstre não só a possível incorrecção decisória, mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.

III– Neste caso (como em muitos outros em que, por exemplo, todos os arguidos se remetam ao silêncio) o recurso à prova indiciária é um meio de racionalmente analisar e ordenar o acervo probatório.
Pois, neste tipo de crimes, muitas são as situações em que o julgador não tem ao seu dispor a chamada prova directa, importando recorrer à prova indirecta ou indiciária para, sobre ela, sustentada que esteja em origens diversas e mostrando-se os vários indícios concordantes de modo a reflectirem um conjunto coerente e natural, fazer actuar presunções que, apelando a juízos da experiência e de normalidade, possibilitem a formação do grau de convicção exigível quanto à efectiva ocorrência dos factos criminosos.

IV– O arguido recorrente olvida que ao tomar a decisão de falar sobre os factos (apesar de lhe assistir o direito ao silêncio) não significa que lhe assista o direito de mentir.
Tão pouco lhe assiste o direito de pretender vincular o Tribunal a acreditar na sua versão relativamente aos factos sobre os quais pretendeu prestar declarações.
E, face à descredibilização da sua versão (perante os olhos atentos do Tribunal), muito menos lhe assiste o direito de impedir o Tribunal de avaliar e apreciar tais declarações para incriminar o próprio arguido declarante e recorrente.
Essas suas declarações do arguido recorrente, prestadas durante a audiência, podem ser livremente apreciadas pelo Tribunal e servir de suporte para a sua condenação, não existindo qualquer violação ao princípio da não auto-incriminação.
Não se pode comungar da pretendida concepção de privilégio por não auto-incriminação em que apenas poderiam ser valoradas as declarações prestadas por este arguido recorrente que lhe fossem favoráveis.

IV– Através do art. 345º do CPP o nosso legislador permite que, durante a audiência de julgamento, qualquer arguido se remeta ao silêncio quanto às perguntas sobre os factos.
Mas, caso um arguido opte, em qualquer momento da audiência, por prestar declarações quanto aos factos em prejuízo de outro coarguido (incriminando-o) e, depois, aquele se recuse (no exercício do direito ao silêncio) a responder a todas ou a alguma das perguntas formuladas a instâncias do outro coarguido (por ele incriminado), então, tais declarações não podem valer como meio de prova contra o outro coarguido incriminado por não ter havido o exercício do contraditório pleno(só podendo valer contra o próprio coarguido incriminador ao abrigo do direito deste à sua própria auto-incriminação).

V– O Tribunal Colectivo recorrido observou (e muito bem) esta limitação legal e perante a recusa dos coarguidos A e B em responderem às perguntas formuladas a instâncias do coarguido C, numa das sessões da audiência de discussão e julgamento deste processo, esse Julgador coletivo não atentou ao teor incriminatório contido nas declarações daqueles relativamente a este sem sujeição ao contraditório pleno – sob pena de que seria uma prova ilegal/proibida nos termos conjugados daquela ressalva contida no art. 345º, nº 4, do CPP (a propósito das declarações incriminatórias dos arguidos em audiência de julgamento) e do disposto no art. 125º do CPP (a propósito das provas em processo penal e segundo o qual: «Só são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei»).

VI– A proibição ressalvada nestes preceitos legais não se compadece com o espartilhamento pretendido pela Digna Procuradora do Ministério Público/recorrente a propósito das declarações prestadas pelos coarguidos A e B aquando de uma (no dia 23/6/2022) das sessões da audiência de discussão e julgamento da presente lide e da recusa de declarações por parte destes mesmos coarguidos aquando de uma outra (no dia 7/7/2022) sessão da audiência de discussão e julgamento da presente lide.
Pois, a proibição contida no nº 4 do art. 345º do CPP abrange todas e quaisquer declarações de um coarguido que incriminando outro coarguido se recuse a responder a quaisquer perguntas formuladas a instâncias deste coarguido incriminado - independentemente de tais declarações terem sido prestadas numa só ocasião ou em várias ocasiões, nenhuma delas pode ser valorada.
Pois, independentemente do número de sessões que tenha uma audiência de discussão de um processo criminal, isto é, mesmo que o seu início e o seu termo não ocorram numa mesma ocasião temporal, essa audiência é sempre unitária/uma só audiência de discussão e julgamento desde a sua abertura até ao seu encerramento (cfr. os arts. 338º a 361º do CPP).
Por isso, depois de efectuadas as declarações incriminatórias de algum co-arguido, sempre assistira ao coarguido incriminado o direito de, até ao encerramento da audiência de discussão desse mesmo processo, solicitar a formulação de questões e/ou esclarecimentos aos arguidos incriminadores.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:


RELATÓRIO


No âmbito do Processo Comum nº 32/21.5PJVFX do Juízo Central Criminal de Lisboa – J8, com intervenção de Tribunal Coletivo, foram julgados os arguidos A, B, C e D e (em 9/9/2022) proferida e depositada sentença, decidindo nos seguintes termos:
- Absolver a arguida D da prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo art. 21º, nº 1, do D.L. nº 15/93;
- Absolver os arguidos A, B e C da prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo art. 21°, n° 1 do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às Tabelas I-B e I-C anexas a tal diploma;
- Proceder à convolação da qualificação jurídica constante do despacho de pronúncia e condenar os arguidos A e B pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punível pelo art. 25.°, alínea a) do Decreto Lei n° 15/93 de 22 de Janeiro (conjugado com o art. 21.°, n° 1 do mesmo diploma legal, por referência às Tabelas I-13 e I-C Anexas ao mesmo diploma), na pena de 3 anos de prisão, cuja execução foi suspensa por igual período de tempo, com sujeição a regime de prova a gizar pela DGRSP;
- Proceder à convolação da qualificação jurídica constante do despacho de pronúncia e condenar o arguido C pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punível pelo art. 25.°, alínea a) do Decreto Lei n° 15/93 de 22 de Janeiro (conjugado com o art.° 21.°, n° 1 do mesmo diploma legal, por referência às Tabelas I-13 e I-C Anexas ao mesmo diploma), na pena de prisão de 3 anos e 6 meses.
*

A Digna Procuradora do Ministério Público veio interpor recurso (em 7/10/2022) relativamente ao arguido C, nos termos e com os fundamentos que constam dos autos (que se dão por reproduzidos), terminando com a formulação das seguintes conclusões:
«1. O Tribunal a quo decidiu não valorar as declarações prestadas pelos arguidos A e B, por entender em síntese que, no caso ora em apreço, sopesado o facto de os co-arguidos A e B se terem recusado a responder a questões colocadas pelo Il. Mandatário do co-arguido C não podem as declarações ser valoradas na parte em que imputam a este último a aquisição e posterior entrega do produto estupefaciente aos mesmos para transporte. “. (...).
2.  E, consequentemente, não valorando as declarações destes co – arguidos, deu o tribunal como não provado os factos b) e i) constantes no ponto 3.2 . Factualidade considerada como não provada.
3.  Salvo Superior entendimento, não podemos concordar com este segmento da decisão.
4.  Senão vejamos:
5. Na secção de julgamento do dia 23.06.2022, os arguidos prestaram declarações, encontrando-se as mesmas gravadas, concretamente:
6. As declarações do arguido B encontram-se gravadas em 20220623112752_20347748_2871045, minuto 00:00 e concretamente ao minuto 12:32 começa a responder a instância do ilustre mandatário do co - arguido C e termina a instância ao minuto 22:34 dizendo expressamente “ É tudo Mm.' Juiz”.
7. Após ter terminado a instância do ilustre mandatário do arguido C, o arguido continua a responder a perguntas formulada pela Mm.ª Juiz e ao minuto 23:16 passa a responder às perguntas do seu ilustre mandatário e da Mmªa Juiz terminando o interrogatório ao minuto 29:39.
8. As declarações do arguido A, encontram-se gravadas em 20220623112752_20347748_2871045, ao minuto 29:42 começa a prestar declarações, que continuam no registo 20220623120552_20347748_2871045 e ao minuto 06:30 até ao minuto 13:05 responde a todas as perguntas efetuadas pelo ilustre mandatário do arguido C, o qual termina dizendo “Muito bem , é tudo Mm.' Juiz.”.
9.  Após ter terminado a instância do ilustre mandatário do arguido C, o arguido passa a responder às perguntas do seu ilustre mandatário.
10.  Terminados os interrogatórios dos arguidos, ao minuto 18:39 o ilustre mandatário do arguido C requereu o seguinte: “ na sequência destas declarações o meu cliente fez-me agora sinal que quer prestar declarações, mas eu quero que ele não as preste antes de falar com ele”.
11.  Na sequência deste requerimento o Tribunal designou o dia 07.07.2022 para continuação do julgamento e declarações ao arguido C, encontrando-se gravadas em 20220707114310_20347748_2871045 minutos 00.00 ao minuto 37:18.
12. Nas declarações que prestou, o arguido C apresentou uma versão dos factos inverosímil e nada credível, como aliás se pode ler na fundamentação do douto acórdão.
13. De facto, os arguidos A e B, depois de terem prestarem as suas declarações no dia 23.06.2022 e acima referidas, com total respeito pelo principio do contraditório, posteriormente não quiseram responder a mais perguntas em instâncias do ilustre mandatário de co- arguido C.
14. Entendemos assim, que as declarações prestadas pelos co - arguidos, deveriam ser valoradas pelo Tribunal, porque foram prestadas de forma livre com observância e total respeito do principio do contraditório.
15.  Assim, o Tribunal valorando as declarações dos co – arguidos as quais se mostram credíveis e consentâneas com a restante prova produzida, que foi exaustivamente e minuciosamente analisada pelo Tribunal e com a qual concordamos na integra, deveria o tribunal ter dado como provado os pontos b) e i) dos factos dados como não provados, ou seja que as passagens aéreas respeitantes à viagem a que se alude em 5. da factualidade considerada como provada foram adquiridas pelo arguido C e foi também este que adquiriu e entregou o produto estupefaciente que foi apreendido aos arguidos A e B para que o transportassem para Ponta Delgada, local onde lhe entregariam.
16.  O acórdão proferido nos presentes autos, convolou o crime de trafico de estupefaciente p. e p. pelo artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro, que vinha imputado aos arguidos para o crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelos artºs.21º, nº.1 e 25º, al. a) do Decreto lei 15/93, de 22.1.
17. A nossa discordância é limitada a duas questões, uma relativa à qualificação jurídica do crime imputado ao arguido C e outra com a medida concreta da pena.
18. Assim, dando-se como provados os factos impugnados, a discordância com a decisão do Tribunal a quo ocorre, por este subsumir a atividade do arguido dada como provada como um tráfico de menor gravidade p. e p. pelo artigo 25.º al. ) do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro.
19.  Considerando que houve uma errada subsunção dos factos ao direito aplicável, pois o crime que lhe deve ser imputado é o previsto pelo artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro.
20.  O acórdão recorrido violou, o disposto no artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro, já que, atenta a matéria de facto dada e a ser dada como provada era neste tipo que deveria ter enquadrado a atuação do arguido, e não no artigo 25º al. a) do mesmo diploma legal.
21. Por tudo o que foi dito pelo Tribunal a quo em sede de fundamentação, a ilicitude do facto não se mostra consideravelmente diminuída.
22. No caso concreto, a conduta do arguido C não pode ser integrada no artigo 25.º (tráfico de menor gravidade).
23. Com efeito, na presente situação estamos perante um facto típico que tutela o bem jurídico - saúde pública, cujo grau de ilicitude se situa num grau elevado (basta considerar a destruição de famílias derivado ao consumo de drogas). Não devemos esquecer que com a punição do tráfico se pretende proteger a sociedade, a saúde física e psíquica e a liberdade dos virtuais consumidores, afetada pelo resultado da atuação dos que fomentam o consumo e traficam droga.
24. O arguido C foi o responsável pela aquisição da cocaína apreendida nos autos e foi este que a entregou aos co-arguidos A e B, por terem aceite, a troco de dinheiro, efetuar o transporte da cocaína para a Ilha de São Miguel.
25. Foi igualmente este o responsável pela aquisição das passagens aéreas e estada nos Açores, local onde iria entregar o produto estupefaciente transportado pelos “correios“ e o produto de corte que este transportava.
26. A conduta do arguido C, quer atendendo à quantidade e qualidade do produto estupefaciente deve ser considerada, em nosso entendimento, que já tem uma dimensão considerável, em escalão superior ao da media, o que se induz de uma evidente logística e organização em meios económicos e humanos, sendo este o supervisor, liderando todo o processo, ou seja, quem obtinha o estupefaciente, quem contratava e pagava aos “ correios” que iam efetuar o transporte, quem organizava e custeava as passagens aéreas e estada na ilha de São Miguel, quem tinha a responsabilidade de comercializar a cocaína e produto de corte apreendidos.
27. Pelo que não nos parece que o arguido, deva beneficiar de uma considerável diminuição de ilicitude, porquanto a ilicitude do facto não se mostra consideravelmente diminuída face aos meios utilizados e a modalidade e as circunstâncias da ação. Para que o arguido fosse punido apenas pelo crime p. e p. nos termos do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro, era necessário que a ilicitude dos factos se mostrasse consideravelmente diminuída, o que não é o caso.
28. Acresce que, o tráfico de estupefacientes que efetuava destinava-se a obter proventos económicos relevantes.
29.  No âmbito de uma atividade já com uma certa organização que desenvolvia, com terceiros, visava obter fáceis e imerecidos lucros.
30. Assim, a factualidade, dada como provada, revela que a atuação do arguido não se enquadra numa ilicitude consideravelmente diminuída.
31. Pelo que fica dito, os factos praticados pelo arguido C só podiam enquadrar-se na previsão do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro (tráfico e outras atividades ilícitas).
32. Por conseguinte, deve o recurso ser julgado provido, devendo o arguido ser condenado pela prática de um crime de trafico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro, com referencia à tabela I- B , anexa ao mesmo diploma legal.
33. Também quanto à pena em que foi condenado nos parece que a mesma peca pela benevolência, mesmo tendo em conta que foi condenado pelo artº 25º e não pelo artº21º, com o que não nos conformamos.
34. O arguido C foi condenado pela prática do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artº25º do Dec. Lei nº15/93, de 22 de Janeiro, cuja moldura penal, abstratamente aplicável, é de um a cinco anos de prisão, nas pena de três (3) anos e de seis (6) anos de prisão.
35. Esta medida concreta da pena situa próximo e abaixo da média legal, o que, tendo em conta as circunstâncias apuradas, tipo de estupefacientes transacionados, cocaína, considerada uma das mais prejudiciais à saúde dos consumidores, pelo que estamos no âmbito de uma ilicitude e culpa médias, tais penas parecem-nos pecar pela extrema benevolência, em violação do artº71º do Código Penal.
36. Por isso, mesmo no âmbito do artº25º do Dec. Lei nº15/93, estas penas deverão ser aumentadas.
37. Afigura-se-nos adequada à culpa e às exigências e prevenção que o arguido C seja condenado, pela prática de um crime de tráfico do art.º21º, em pena não inferior a cinco anos e seis meses de prisão.
Porém, Vossas Excelências, apreciando, farão a costumada JUSTIÇA!»
*

O arguido C veio interpor recurso (em 10/10/2022), nos termos e com os fundamentos que constam dos autos (que se dão por reproduzidos), terminando com a formulação das seguintes conclusões e respectivo pedido:
« 1.ª Entende, o arguido, ressalvando o devido respeito por melhor entendimento, que o Acórdão reclama a superior correção de Vossas Excelências porque:
i)-   Padece da nulidade prevista na al. b) do n.° 2 do art.° 410° do Cód. do Processo Penal – Contradição insanável da Fundamentação;
ii)- Não fez uma correta interpretação da prova globalmente considerada – da pré-adquirida e da produzida em julgamento – assentando matéria que não resulta demonstrável com os elementos probatórios que se coligiram nos autos e, bem assim, desconsiderou elementos probatórios constantes nos autos com pertinência para a formação do juízo probatório; e
iii)-  Alicerçou a sua decisão num juízo de inferência proibido, de prova indireta sobre prova indireta, pelo que tais factos afetados pelo segundo grau de inferência não poderão ser valorados.
2.ª Resulta do Acórdão recorrido uma contradição insanável da fundamentação, nos termos do n.° 2 do art. 410° do Código de Processo Penal, mais concretamente entre os factos 16) dado como provado e o facto j) dado como não provado, que aqui se transcrevem:
[ponto 16]
A fenacetina apreendida ao arguido C seria, posteriormente, utilizada no “corte” da cocaína que os arguidos A e B transportavam.
[ponto j)]
A fenacetina apreendida fosse utilizada pelos arguidos A; B e C no “corte” do produto estupefaciente que os dois primeiros transportavam na data, hora e circunstâncias a que se alude na factualidade considerada como provada.
3.ª Esta contradição insanável, acerca da provável utilização da substância fenacetina, impacta diretamente na preparação da defesa do arguido, pelo que desde já se arguiu a sua nulidade, nos termos da al. b) do n." 2 do art. 410" do Código de Processo Penal.
4.ª No cumprimento e para efeitos do preceituado no artigo 412" n." 3 alínea a) do Código de Processo Penal, o arguido, ora recorrente, considera terem sido incorretamente julgados os pontos 1 a 8 e 14 a 18 matéria de facto tida como provada no douto acórdão recorrido, que aqui se transcrevem:
1) Em data não concretamente apurada, mas anterior a 25 de Junho de 2021, o arguido C planeou transportar cocaína, por via aérea, de Lisboa para o Arquipélago dos Açores para, uma vez aí, ser distribuída a terceiros, em troca de contrapartidas monetárias;
2) Para concretização do plano a que se alude em 1. o arguido C deslocar-se-ia ao Arquipélago dos Açores;
3) No transporte do produto a que se alude em 1., de molde a não ser detectada a actividade por si desenvolvida, o arguido C necessitava que outros indivíduos o realizassem pagando-lhes, para tal, as passagens aéreas, indivíduos estes a quem expunha o plano por si gizado e que, de imediato o aceitavam, como sucedeu com os co-arguidos A e B;
4) Em data não concretamente apurada mas anterior a 25 de Junho de 2021 os arguidos B e A aderiram ao plano a que se alude em 1., fazendo-o seu;
5)  No dia 25 de Junho de 2021, na prossecução do plano a que se alude em 1., os arguidos A, B e C viajariam para Ponta Delgada, no Arquipélago dos Açores, acompanhados pela arguida D;
6) O arguido C procedeu à distribuição das passagens aéreas necessárias para a viagem a que se alude em 5. aos arguidos A e B;
7) Os arguidos A; B e C receberam, de forma não concretamente apurada, o produto estupefaciente a que se alude em infra em 10. a 12.;
8)No dia 25 de Junho de 2021, pelas 21 horas, os arguidos deslocaram-se, conjuntamente, para o Aeroporto Humberto Delgado, sito em Lisboa, transportando os arguidos A; B e C as substâncias que lhes vieram a ser apreendidas e a que se alude infra em 11. a 13.;
14) Os arguidos A; B e C agiram em comunhão de esforços e intentos, com o propósito de receber cocaína e transportá-la para o Arquipélago dos Açores onde seria distribuída a terceiros, bem conhecendo os mesmos as características e natureza estupefaciente do produto que detinham;
15) Os arguidos Tiago ; B e C bem sabiam que a aquisição, detenção e venda de produtos estupefacientes é proibida e punida por Lei;
16) A fenacetina apreendida ao arguido C seria, posteriormente, utilizada no “corte” da cocaina que os arguidos A e B transportavam;
17) Os telemóveis e cartões telefónicos apreendidos aos arguidos A; B e C eram por estes utilizados nos contactos entre eles e nos necessários à venda do produto estupefaciente apreendido à ordem dos presentes autos;
18) Em toda a actuação supra descrita os arguidos A; B e C agiram de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as respectivas condutas são proibidas e punidas por Lei;
5.ª No cumprimento do preceituado no artigo 412° n.° 3 alínea b) do Código de Processo Penal, na ótica do arguido ora recorrente, todo o acervo probatório carreado e descrito no Acórdão recorrido, não se apresenta capaz de sustentar o entendimento de que aquele produto estupefaciente apreendido era propriedade dos três e objeto de um plano delineado e executado em comunhão de esforços.
6.ª Da análise quer isolada quer conjuntamente de todos os elementos probatórios elencados no Acórdão recorrido, não resulta a demonstração direta e evidente de que o arguido esteve envolvido na prática do crime em apreço, pelo que, a sua condenação, parece-nos, ter-se alicerçado num longo trabalho de deduções e presunções, balizado pelas regras da normalidade e experiência comum.
7.ª Porem, não sendo o Acórdão recorrido suficientemente esclarecedor acerca do ponto de partida do seu desenvolvimento intelectual de inferência, cumpre-nos admitir dois caminhos que nos parecem serem possíveis para sustentar a condenação do arguido:
i)-o Tribunal a quo inferiu, primeiramente, a utilização da fenacetina como produto de corte e daí alcançou a envolvência do arguido no plano; ou
ii)-o Tribunal partiu da presunção da participação conjunta do arguido com os coarguidos e chegou posteriormente ao entendimento de que fenacetina seria destinada ao corte.
8.ª Ora, admitindo que o caminho percorrido pelo Tribunal a quo foi o descrito em i), sempre se dirá que, dessa forma a sua condenação assentou numa base probatória proibida, porquanto a visão que o Tribunal a quo faz para alcançar, presumidamente, a coautoria do crime, assenta numa anterior inferência acerca da utilização ilícita da fenacetina apreendida ao arguido, resultando num duplo grau de inferência.
9.ª O Tribunal a quo, analisando o acerto probatório e lançando mão das regras da experiência e normalidade, presumiu que a posse da fenacetina apreendida ao arguido, teria como finalidade a sua utilização como produto de “corte”. Dado como assente tal factualidade, o Tribunal a quo, convencido da sua utilização ilícita e baseado nesta prova indireta, porquanto já́ presumida, parte dali para inferir que, dessa forma, os arguidos agiam em comunhão de esforços, porquanto dois deles transportavam o produto estupefaciente e o arguido transportava o produto de corte.
10.ª O Tribunal a quo, sustenta os factos constantes dos pontos 1 a 8 e 14, 15 e 17 e 18 da matéria de facto provada, em presunções, percorrendo um caminho completamente proibido e reprovável de prova indireta sob prova indireta, pois estes factos não emergem de um facto direto conhecido, mas sim surgem em consequência de uma anterior presunção – a utilização de fenacetina como produto de corte– pelo que, parece-nos que deste exercício não poderá́ resultar a prova de qualquer facto, nomeadamente a coautoria do crime.
11.ª Não é a prova indireta que no nosso ordenamento jurídico está proibida, pois desde que assente em prova direta e auxiliada pelas regras da ciência, da experiência e da normalidade, é perfeitamente legitimo ao julgador, ponderando um juízo de probabilidades, presumir a sequencia logica de determinado acontecimento. O que se encontra completamente vedado e proibido, foi exatamente aquele caminho que o Tribunal a quo trilhou, de admitir como prova factos oriundos de presunções, ou seja, presunções em cima de presunções.
12.ª Pelo que, resultando dos factos 1 a 8 e 14, 15 e 17 e 18 de um juízo de inferência de segundo grau, não poderão os mesmo serem valorados, pelo que terá o arguido de ser absolvido do crime que lhe vem a ser imputado.
13.ª Contudo, admitindo que possamos estar a interpretar erroneamente aquele que foi o  entendimento do Tribunal a quo, crendo que assim, o caminho percorrido tenha sido o inverso, isto é, o Tribunal inferiu numa primeira linha a coautoria, e posteriormente alcançou assente nesse facto já presumido, a utilização como produto ilícito da fenacetina, então sempre se diria que os elementos probatórios recolhidos, mesmo socorridos pelas regras da experiência e normalidade, não têm força suficiente para sustentar um juízo de inferência tão significativo que leve à condenação.
14.ª Ora:
i)-não resultam dos autos quaisquer escutas telefónicas ou sequer mensagens trocadas entre todos onde demonstre que os arguidos combinaram entre si transportar droga;
ii)-o arguido, contrariamente aos coarguidos, encontrava-se empregado;
iii)-contrariamente ao entendimento do Tribunal a quo, as declarações do arguido deveriam ter sido valoradas, uma vez que foram prestadas de forma clara, concisa e objetivas e comprovadas pelos depoimentos das testemunhas;
iv)-o facto de ter sido a ex-namorada do arguido, aqui recorrente, a comprar as passagens área não evidencia que o arguido sabia e ainda colaborou no transporte de estupefacientes que os seus coarguidos possuíam, pois se assim fosse esse facto também tinha de implicar e estender-se à coarguida Catarina, o que não sucedeu e faz levantar uma certa discrepância acerca da exata valoração dos factos;
v)-no primeiro momento em que o Tribunal inicia o seu desenvolvimento intelectual, não existia qualquer inferência ou juízo acerca da substância fenacetina, sendo que, assim, naquele exato momento, a única finalidade da substância era para efeitos analgésicos e antipiréticos; e
vi)-o facto da droga apreendida revelar-se com diferentes e significativos graus de pureza e modos de acondicionamento terá de operar, afinal, como contraindício dessa presunção;
15.ª Pelo que, com todo o devido respeito, não logrando, o Tribunal a quo atingir um nível mínimo de certeza acerca da coautoria do recorrente naquele crime, ilidindo a presunção da inocência, pois a verdade é que, nada de substancial ao nível probatório coloca o arguido a agir em plena comunhão de esforços com os restantes arguidos, nas mencionadas circunstâncias de tempo, modo e lugar, terão de se considerar como não provados os factos 1 a 8 e 14, 15 e 17 e 18 da matéria de facto assente e, claro está, absolve-lo do crime em causa, sendo que no limite, parece-nos que o Tribunal deveria ter-se situado na duvida e em cumprimento do principio in dúbio pro reo, determinar a sua absolvição.
Pelo exposto e ressalvado o doutíssimo suprimento de Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores deste Tribunal da Relação de Lisboa, deverá:
A) Ser declarada, a contradição insanável da fundamentação, nos termos da al. b) do n.° 2 do art.° 410° do Cód. do Processo Penal e ordenada a reelaboração do Acórdão;
e, caso assim não entendam,
B) Ser revogado a Decisão condenatória proferida por um Acórdão que absolva o arguido da prática do crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 25°, alínea a) do Decreto-Lei n.° 15/93 de 22 de janeiro, pelo qual foi condenado.
Porquanto, só assim farão a costumada Justiça!.
*
                       
O Procuradora do Ministério Público veio responder a este recurso apresentado pelo arguido C, nos termos constantes dos autos (aqui dados por reproduzidos), terminando com as seguintes conclusões:
«1. Quanto à nulidade prevista na al. b) do n.º 2 do art.º 410º do Cód. do Processo Penal – Contradição insanável da Fundamentação : - De facto, do texto do acórdão verifica-se que existe contradição entre o facto 16 dos factos dados como provados e o facto j) dos factos dados como não provados.
2. Todavia, contrariamente ao defendido pelo recorrente, a aludida contradição não é insanável.
3. Ora, para que se verifique o alegado vício é necessário que a contradição seja insanável. Citando o acórdão do STJ processo 502/08.0GEALR.E1.S1 – 3.ª Secção, publicado em www.dgsi.pt “ Quanto ao vício previsto pela alínea b) do n.º 2 do mesmo preceito legal, verifica-se contradição insanável – a que não possa ser ultrapassada ainda que com recurso ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum – da fundamentação - quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios, e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão.
4. Especificamente quanto ao vício da contradição insanável, a que alude a alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, refere-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 12 de março de 2015, Proc. n.º 418/11.3GAACB.C1.S1 - 3.ª Secção, que «[o] vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão verifica-se quando no texto da decisão constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respetivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito».
5. Assim, pode afirmar-se que há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto.
6. A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, por sua vez, ocorrerá quando, também através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo da decisão (...)»
7. Tecidas estas considerações e retornando ao caso em apreço, constata-se que a referida contradição é sanável e deve-se a lapso.
8. Pois, da simples leitura da decisão recorrida no seu todo e especificamente na fundamentação, na análise das declarações prestadas pelo arguido, ora recorrente, permite a nosso ver concluir com toda a certeza que o Tribunal considerou como facto como provado o facto constante no ponto 16) da fundamentação de facto, ou seja que a fenacetina apreendida ao arguido C seria, posteriormente, utilizada no “corte” da cocaína que os arguidos A e B transportavam e o ponto j) da fundamentação dos factos não provados deve-se a mero lapso.
9. Vejamos o acórdão em crise, e, de onde a nosso ver resulta claro o manifesto lapso que permite concluir que a contradição não é insanável “Sem prejuízo de o arguido C negar, peremptoriamente, ter sido o próprio a solicitar aos arguidos A e B o transporte para o arquipélago dos Açores, a troco de quantia monetária, do produto estupefaciente que lhes veio a ser apreendido e, bem assim, ter-lhes entregue aquele o certo é que o mesmo não logrou convencer o Tribunal da versão por si apresentada.
10. Desde logo, as explicações por si aduzidas, seja para a viagem previamente efectuada ao arquipélago dos Açores, seja para aqueloutra a efectuar no dia em que foram detidos não nos merecem qualquer credibilidade. (..)
11. Mais se refira que ao arguido C foi apreendida não só cannabis que referiu destinar apenas ao seu consumo pessoal mas também fenacetina substância que diz ter adquirido no ginásio que frequenta para as suas articulações e que misturaria nos batidos que faz desconhecendo, em absoluto, que a mesma seja utilizada como produto de corte. (..).
12. Lançando mão das regras da experiência comum e da normalidade, apenas podemos concluir que o não fez porque pretendia ocultar tal substância das autoridades pois bem sabia que a mesma, embora não sendo produto estupefaciente, é utilizada para efectuar o corte de produto estupefaciente, designadamente, cocaína a qual era transportada pelos co-arguidos A e B. (...).
13.  Assim, perante o exposto é em nosso entender que não se verifica o invocado vício, previsto na al. b) do nº 2 do art.º 410º do CPP.
14. Trata-se, sim, de uma contradição sanável e como tal suscetível de correção.
15. E consequentemente deverá ser determinada a correção da decisão no sentido de ser dado por não escrito o ponto j) da fundamentação de facto.
16. Quanto aos demais vícios invocados, importa referir que, o Ministério Público, também não se conformou com a decisão proferida nos autos, razão pela qual também interpôs recurso, dando-se aqui por reproduzidos, por razões de economia processual, os fundamentos da discordância invocados e relativos à interpretação e valoração da prova, à qualificação jurídica e pena aplicada ao arguido, ora recorrente.
17. Pelo que se pugna pela condenação do arguido, ora recorrente, pela pratica de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21.º do Dec. Lei 15/93 de22 de janeiro, em pena não inferior a cinco anos e 6 meses de prisão.
Porém, VOSSAS EXCELÊNCIAS, decidindo, farão como sempre a costumada JUSTIÇA!»
*
 
O arguido C veio responder ao recurso apresentado pelo Ministério Público, terminando com as seguintes conclusões:
«1.ª Entende o Ministério Publico que o Acórdão recorrido reclama correção na medida em que:
(i)- Não valorou as declarações prestadas pelos co-arguidos A e B;
(ii)- Procedeu à convolação da qualificação jurídica, condenando o ora arguido na prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25°, aliena a) do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de janeiro; bem como
(iii)- Determinou a aplicação de uma pena muito benevolente.
2.ª Sucede que, o arguido jamais poderá acompanhar tal entendimento, porquanto:
(i)- não foi exercício um contraditório pleno, pelo que não poderão ser valoradas as declarações prestadas pelos co-arguidos A e B; e
(ii)-  tendo em conta as concretas circunstâncias, denota-se uma ilicitude consideravelmente diminuída, pelo que deverá manter-se a qualificação legal na previsão do artigo 25° do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de janeiro, bem como a pena concretamente aplicada.
3.ª Desde logo, o exercício de uma defesa cabal e do cumprimento do contraditório terá de ser pleno isto é, o arguido declarante ter-se-á de sujeitar a todos os esclarecimentos, obviamente dentro do objeto do processo, que o defensor do co-arguido achar por pertinentes e relevantes, não só no único momento em que se predispõe a prestar declarações, mas em qualquer momento ao longo do julgamento, sempre que, tendo em conta o decorrer do mesmo, se entender por conveniente.
4.ª Pelo que, não tendo os co-arguidos permitido que fosse exercido esse contraditório exímio, recusando-se a responder às questões suscitadas pelo mandatário do arguido incriminado, não poderão ser valoradas, nos termos do disposto no artigo 345°, n.° 4 do Código de Processo Penal.
5.ª Para alem disso, de todo o circunstancialismo apurado vislumbra-se uma globalidade consideravelmente diminuta, perfeitamente enquadrável na letra do artigo 25° do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 janeiro.
6.ª A atividade criminosa restringiu-se a um único episodio, não se tempo apurado o seu desenvolvimento há mais de um ano, pelo que o fator tempo, neste nosso caso em discussão, não só não impõe o afastamento da qualificação da alegada atividade de tráfico como tráfico de menor gravidade, como, pelo contrário, a sugere.
7.ª No que concerne à organização, não se conseguiu apurar qualquer estrutura organizativa entre os arguidos, desconhecendo-se por completo a quem eles adquiriram a droga e a quem iriam vender, bem como os exatos contornos do plano.
8.ª Relativamente às quantidade e espécie do produto, teremos de chamar à colação o entendimento do Tribunal a quo que apesar da posse pelos arguidos do produto estupefacientes a verdade é que estes não lograram introduzir o produto no mercado para o venderem a terceiros que os procurassem para tal ou entrega-lo a outro ou outros que o fizessem não se tendo chegado a atingir a saúde publica.
9.ª Apesar de se tratar de cocaína – as chamadas drogas duras - acompanhando a Doutrina e Jurisprudência dominantes, que, como neste nosso caso concreto, se uma determinada atividade de tráfico de estupefacientes apresentar em toda a sua globalidade uma ilicitude consideravelmente diminuída, não é o facto de o produto em causa pertencer ao grupo dos mais tóxicos - como ocorre com a cocaina - que acentua o nível de ilicitude de tal atividade, em moldes tais que já não nos seja permitido defender tratar-se de tráfico de estupefacientes de menor gravidade.
10.ª Igualmente, cingindo-se a um único momento, não se verifica a obtenção de qualquer lucro, alias, muito menos se sabe se aquelas quantidades eram todas destinadas à venda ou se, pelo contrário, eram igualmente para o consumo dos próprios e qual o preço pelo qual iriam ser vendidas, bem como a quem.
11.ª  Tendo em conta todo este circunstancialismo, admitindo, por mera cautela e dever de patrocínio, o enquadramento da conduta do arguido na tipificação do artigo 25º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, parece-nos que a pena concretamente aplicada dá cabal resposta aos fins das penas, salvaguardando as necessidades de prevenção geral e especial.
12.ª Por tudo isto, não deverá merecer qualquer provimento o recurso interposto pelo Ministério Publico, devendo manter-se, ponderando a improcedência do recurso apresentado pelo aqui arguido, integralmente o Acórdão recorrido.
Pelo exposto e ressalvado o doutíssimo suprimento de Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores deste Tribunal da Relação de Lisboa, deverá improceder o recurso interposto pelo Ministério Publico, mantendo-se, integralmente o Acórdão recorrido.
Porquanto, só assim farão a costumada Justiça!»
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O Digno Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal proferiu parecer relativamente a ambos os recursos, nos termos constantes dos autos (aqui dados por reproduzidos) e terminou dizendo que:
« Confrontados os fundamentos de ambos os recursos e o acórdão recorrido, acompanhamos o completo e bem fundamentado recurso instaurado pela Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância, e bem assim, a resposta pela mesma apresentada.
Em conformidade, sou de parecer que ao recurso interposto pelo arguido C deve ser negado provimento, julgando-o improcedente, devendo ser dado provimento ao recurso instaurado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO.»
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Não houve resposta a este parecer e, colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
Importa proferir decisão.

Delimitação do objecto do recurso
É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito de um recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar (face à disciplina contida nos arts. 412º, nº 1, e 417º,nº 3, do Código de Processo Penal, doravante, designado, abreviadamente, como CPP) , sem prejuízo das de conhecimento oficioso (designadamente dos vícios indicados no art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP) - neste sentido e a título de exemplo, Paulo Pinto de Albuquerque (em “Comentário do Código de Processo Penal”, 3ª Edição Actualizada, UCE, 2009, págs. 1027/1028), António Henriques Gaspar e outros (em “Código de Processo Penal Comentado”, 3ª Edição Revista, Almedina, 2021, pág. 1265) e Acórdão de fixação de jurisprudência n.° 7/95 (em DR-I, de 28/12/1995).

Questões a decidir
Assim sendo, no presente caso enunciam-se as seguintes questões que importa decidir:

Do recurso do arguido C
1ª– Há contradição insanável da fundamentação ?
2ª– Há factos incorrectamente julgados ?

Do recurso do Ministério Público
1ª– Há factos incorrectamente julgados ?
2ª– Face a isso há erradas incriminação e sanção quanto ao arguido C ?

FUNDAMENTAÇÃO
Por se mostrar relevante para a decisão das questões suscitadas pelos recorrentes, por enquanto, iremos transcrever o acórdão recorrido na parte relativa aos respectivos factos e à respetiva motivação:
«III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
Da audiência de julgamento, documentos e exames periciais juntos aos autos e com relevância para a decisão da presente causa:
3.1. Factualidade considerada como provada:
3.1.1. No que concerne à culpabilidade:
1)Em data não concretamente apurada mas anterior a 25 de Junho de 2021, o arguido C planeou transportar cocaína, por via aérea, de Lisboa para o Arquipélago dos Açores para, uma vez aí, ser distribuída a terceiros, em troca de contrapartidas monetárias;
2)Para concretização do plano a que se alude em 1. o arguido C deslocar-se-ia ao Arquipélago dos Açores;
3) No transporte do produto a que se alude em 1., de molde a não ser detectada a actividade por si desenvolvida, o arguido C necessitava que outros indivíduos o realizassem pagando-lhes, para tal, as passagens aéreas, indivíduos estes a quem expunha o plano por si gizado e que, de imediato o aceitavam, como sucedeu com os co-arguidos A e B;
4) Em data não concretamente apurada mas anterior a 25 de Junho de 2021 os arguidos B e A aderiram ao plano a que se alude em 1., fazendo-o seu;
5) No dia 25 de Junho de 2021, na prossecução do plano a que se alude em 1., os arguidos A, B e C viajariam para Ponta Delgada, no Arquipélago dos Açores, acompanhados pela arguida D;
6) O arguido C procedeu à distribuição das passagens aéreas necessárias para a viagem a que se alude em 5. aos arguidos A e B;
7) Os arguidos A; B e C receberam, de forma não concretamente apurada, o produto estupefaciente a que se alude em infra em 10. a 12.;
8)- No dia 25 de Junho de 2021, pelas 21 horas, os arguidos deslocaram-se, conjuntamente, para o Aeroporto Humberto Delgado, sito em Lisboa, transportando os arguidos A; B e C as substâncias que lhes vieram a ser apreendidas e a que se alude infra em 11. a 13.;
9)- Uma vez ali chegados, os arguidos deambularam pela zona de restauração e, após, deslocaram-se para a porta de embarque do voo para o qual detinham passagem aérea;
10)- Após a passagem na área de raio-X ali existente todos os arguidos foram abordados pelas autoridades policiais e, nessa sequência, todos eles sujeitos a revista;
11)- Na sequência da revista a que se alude e 10. o arguido C tinha na sua posse:
- 1 (uma) embalagem de cannabis (resina) com o peso líquido de 1,546 gramas,
grau de pureza de 23,7% e sendo equivalente a 7 doses de consumo;
- 1 (uma) embalagem de cannabis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas) com o peso líquido de 1,299 gramas, grau de pureza de 12,8% e sendo equivalente a 3 doses de consumo;
- um saco contendo fenacetina, com o peso de 70,204 gramas;
- um telemóvel de marca “Samsung”, de cor preta, com o IMEI ....
12) Na sequência da revista a que se alude e 10. o arguido B tinha na sua posse:
-1 (uma) embalagem de cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 201,403 gramas, grau de pureza de 61,1% e sendo o equivalente a 615 doses de consumo;
-1 (uma) embalagem de cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 2,828 gramas, grau de pureza de 23,7% e sendo o equivalente a 3 doses de consumo e, no bolso direito traseiro das calças e no interior da roupa interior que trajava:
- um telemóvel de marca e modelo “Samsung Galaxy J4”, de cor preta, com o IMEI 355866101171234;
13) Na sequência da revista a que se alude e 10. o arguido A tinha na sua posse:
- 1 (uma) embalagem de cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 99,824 gramas, grau de pureza de 50,5% e sendo o equivalente a 252 doses de consumo, o qual guardava dentro da roupa interior que trajava;
- um telemóvel de marca “Samsung”, de cor dourada, com o IMEI ....
14) Os arguidos A; B e C agiram em comunhão de esforços e intentos, com o propósito de receber cocaína e transportá-la para o Arquipélago dos Açores onde seria distribuída a terceiros, bem conhecendo os mesmos as características e natureza estupefaciente do produto que detinham;
15) Os arguidos Tiago; B e C bem sabiam que a aquisição, detenção e venda de produtos estupefacientes é proibida e punida por Lei;
16) A fenacetina apreendida ao arguido C seria, posteriormente, utilizada no “corte” da cocaína que os arguidos A e B transportavam;
17) Os telemóveis e cartões telefónicos apreendidos aos arguidos A; B e C eram por estes utilizados nos contactos entre eles e nos necessários à venda do produto estupefaciente apreendido à ordem dos presentes autos;
18) Em toda a actuação supra descrita os arguidos A; B e C agiram de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as respectivas condutas são proibidas e punidas por Lei;
3.1.2. Mais se provou que:
19) As passagens aéreas (bilhetes electrónicos) a que se alude em 5. foram adquiridas pela arguida D na véspera da data a que se alude em 7., a solicitação do arguido C com o qual mantinha, à data, um relacionamento amoroso desde Fevereiro de 2021 e por força daquele não possuir conta bancária;
20) Entre o mês de Maio e a data a que se alude em 7. o arguido C deslocou-se ao Arquipélago dos Açores, por via aérea, por duas vezes, uma delas na companhia da arguida D e outra delas na companhia do arguido A sendo que as passagens aéreas respeitantes a tais viagens foram por aquela adquiridas, a solicitação do arguido C sendo que, posteriormente, este último e A pagaram àquela o valor correspondente às mesmas;
21) Os arguidos A e C são vizinhos e amigos pelo menos desde o ano de 2013 sendo que este último considera aquele como seu irmão;
22) O arguido A e B, uma vez no Arquipélago dos Açores, receberiam, respectivamente, a quantia de € 500 e de € 1 000 como contrapartida monetária por efectuarem o transporte do produto estupefaciente que lhes foi apreendido nos presentes autos e a que se alude em 12. e 13.;
23) Os arguidos B e A ocultavam o produto estupefaciente a que se alude, respectivamente, em 12. e 13. aquele, uma parte dele num bolso das calças que trajava e outra parte na zona pélvica por dentro dos dois pares de boxers que trajava e, este último, na zona pélvica, por dentro dos boxers que trajava;
24) O arguido C ao ser revistado sumariamente nas instalações do Aeroporto Humberto Delgado foi-lhe detectado o produto estupefaciente a que se alude em 11. na roupa que trajava e apenas posteriormente ao despir-se na unidade hospitalar a que foi transportado veio a cair ao solo a embalagem contendo a fenacetina a que ali se alude;
(…)
3.2. Factualidade considerada como não provada
Da discussão da causa não resultou provado que:
a)  A arguida D tivesse aderido ao plano a que se alude em 1. e 2. da factualidade considerada como provada fazendo-o seu;
b) As passagens aéreas respeitantes à viagem a que se alude em 5. da factualidade considerada como provada tenham sido adquiridas pelo arguido C e que este tenha adquirido e entregue o produto estupefaciente que aos arguidos A e B foi apreendido;
c) A arguida D tenha agido em comunhão de esforços e intentos com os demais co-arguidos, com o propósito de receber cocaína e cannabis e transportar tais substâncias para o Arquipélago dos Açores para, uma vez aí, distribuí-las por terceiros;
d) A arguida D conhecesse as características e natureza estupefaciente dos produtos apreendidos nos presentes autos;
e) A arguida D soubesse que a aquisição, detenção e comercialização de produtos estupefacientes é proibida e punida por Lei;
f) A arguida D tenha agido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por Lei;
g) O arguido C tenha planeado adquirir cannabis e transportá-la, por via aérea, de Lisboa para o Arquipélago dos Açores para, uma vez aí, ser distribuída a terceiros, em troca de contrapartidas monetárias;
h) Os arguidos A e B, ao aderirem ao plano a que se alude em 1. e 2. da factualidade considerada como provada, acedessem a transportar, por via aérea, cannabis de Lisboa para o Arquipélago dos Açores;
i) O arguido C tenha procedido à aquisição da cocaína a que se alude em 12. e 13. da factualidade considerada como provada e, bem assim, das passagens aéreas a que se alude em 6. daquela;
j) A fenacetina apreendida fosse utilizada pelos arguidos Tiago ; B e C no “corte” do produto estupefaciente que os dois primeiros transportavam na data, hora e circunstâncias a que se alude na factualidade considerada como provada;
k) Os telemóveis e cartões telefónicos apreendidos aos arguidos tenham sido adquiridos com proventos resultantes da venda de produtos estupefacientes;
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3.3. Motivação da decisão de facto
No apuramento da factualidade considerada como provada o Tribunal formou a sua convicção com base na valoração conjunta e crítica do acervo probatório carreado para os autos, conjugado com o teor da prova produzida em sede de audiência de julgamento, designadamente:
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- Prova por declarações dos arguidos:
O arguido C referiu manter em Junho de 2021 um relacionamento amoroso com a co-arguida D a qual referiu não ter qualquer relação com a factualidade objecto dos presentes autos pois que a mesma não consome produtos estupefacientes. No mais, referiu que o arguido B é seu primo e o arguido A é seu vizinho, amigo e confidente considerando-o como verdadeiro irmão.
Mais referiu que decidiu adquirir um canídeo a um criador do arquipélago dos Açores que apenas conhece por Bernardo e que trata por “ma man”, pelo que, ali se deslocou, ao que julga no início do mês de Maio de 2021, na companhia da co-arguida D, para o escolher e sinalizar.
Posteriormente, referiu que na companhia do co-arguido A deslocou-se, uma vez mais, a tal arquipélago com o intuito de ir buscar o canídeo, sendo que as passagens aéreas de ambos foram adquiridas pela co-arguida D porque tem no seu telemóvel uma aplicação com voos baratos e o próprio não possui conta bancária. Porém, referiu não o conseguir trazer por força de o mesmo se encontrar sem chip e sem as vacinas ministradas.
Esclareceu que na véspera de todos eles serem detidos jantaram juntos e que foi nessa noite que a arguida D adquiriu as passagens aéreas para todos eles, a solicitação sua, sendo que aquela não terá ficado agradada com tal ideia pois que desejava um fim de semana romântico a dois consigo. Mais referiu que, posteriormente, cada um deles pagaria à co-arguida o valor da respectiva passagem aérea.
Na data da detenção refere que todos os arguidos se encontraram num café e, a partir daí, deslocaram-se todos juntos para o aeroporto Humberto Delgado desconhecendo que os arguidos A e B transportassem com eles o produto estupefaciente que lhes foi apreendido.
No mais, esclareceu que o produto estupefaciente que lhe foi apreendido o destinava apenas e tão só ao seu consumo pessoal e que a fenacetina era por si utilizada para as articulações tendo-a adquirido no ginásio que frequenta e utilizando-a nos batidos que faz referindo desconhecer que a mesma pode ser utilizada como produto de corte.
Por fim, negou peremptoriamente que o produto estupefaciente apreendido aos arguidos A e B tivesse sido por si entregue aos mesmos e que lhes tenha solicitado o transporte daquele para o arquipélago dos Açores a troco do pagamento aos mesmos de quantias monetárias.
Mais referiu que jamais o arguido A iria a sua casa pois que apenas os co-arguidos B e Catarina a frequentavam sendo que, certamente, estes teriam consigo o produto estupefaciente desde o café onde se encontraram previamente à ida para o aeroporto Humberto Delgado.
Acrescentou que a ida anterior ao arquipélago dos Açores na companhia do arguido A foi para diligenciar por trazer o canídeo que havia adquirido para Portugal continental sendo que acabaram por ali ficar mais tempo por força de aquele ter perdido o seu cartão de cidadão e ter desaparecido por dois dias sem que soubesse do seu paradeiro sendo certo que este teria compromissos e conhecimentos em tal arquipélago.
Por fim, referiu que o co-arguido A é que lhe pediu para o acompanhar ao arquipélago dos Açores aquando da viagem agendada para 25.06.2022.
*

A arguida D confirmou ter mantido um relacionamento amoroso com o arguido C de Fevereiro a Setembro de 2021 e, bem assim, ter-se deslocado ao arquipélago dos Açores uma vez, na companhia daquele para que escolhesse um canídeo.
Mais referiu que sabe que o co-arguido C viajou, uma outra vez, para tal arquipélago na companhia do co-arguido A para irem ver o canídeo tendo sido ela própria quem adquiriu as passagens aéreas daqueles a solicitação do arguido C que não possuía conta bancária.
Esclareceu que foi a própria quem adquiriu as passagens aéreas para todos os arguidos, a solicitação do arguido C sendo que, posteriormente, todos eles haveriam de lhe restituir a quantia por si despendida na compra daquelas dando nota de que tal viagem seria de reconciliação com aquele.
No mais, negou peremptoriamente ter conhecimento que os co-arguidos detivessem consigo produto estupefaciente e fenacetina na data em que foram detidos.
*

O arguido A, em sede de declarações perante JIC referiu que na data em que foi detido se encontrava desempregado há cerca de dois meses, conhecer o co-arguido B apenas há cerca de três semanas (por referência a tal data) e o arguido C desde o ano de 2013.
Mais referiu que, a solicitação do arguido C, na data em que foi detido transportaria produto estupefaciente para o arquipélago dos Açores e que, uma vez ali, receberia € 500 a pagar não sabe por quem.
Mais referiu que bem sabia que o co-arguido B também ele transportava produto estupefaciente consigo na data em que foram detidos.
Em sede de audiência de julgamento num primeiro momento lançou mão do direito legalmente consagrado ao silencia e, finda a produção de prova, prestou declarações tendo referido que, cerca de duas semanas antes da data em que foram detidos, o co-arguido C o convidou a acompanhá-lo ao arquipélago dos Açores tendo-lhe pago as passagens aéreas sendo que, uma vez aí, aquele esteve com um criador de canídeos.
Mais referiu que o co-arguido C lhe solicitou que transportasse produto estupefaciente para o arquipélago dos Açores o que aceitou a troco do pagamento da quantia de € 500 pois que tinha diversas dívidas a solver.
Esclareceu que as passagens aéreas de todos eles foram adquiridas por D a solicitação do co-arguido C tendo sido este quem lhe entregou o seu bilhete electrónico.
Acrescentou que o produto estupefaciente que foi apreendido, cujas características bem conhecia, foi-lhe entregue a si e, bem assim, ao co-arguido B, acondicionada em sacos de plástico, pelo co-arguido C, em casa deste, sem que a co-arguida D se tenha de tal apercebido e que, após, seguiram todos eles para o aeroporto Humberto Delgado. Mais referiu que à data em que aceitou efectuar o aludido transporte de produto estupefaciente se encontrava fragilizado tendo sentido afinidade com o co-arguido C, motivo pelo acedeu ao por aquele proposto.
Deu, ainda, nota de que, uma vez chegados ao arquipélago dos Açores o produto estupefaciente seria para entregar ao co-arguido C.
*

O arguido B, em sede de audiência de julgamento, num primeiro momento lançou mão do direito legalmente consagrado ao silêncio e, finda a produção de prova, prestou declarações tendo referido que, cerca de duas semanas antes da data em que foram detidos o arguido C questionou-o sobre se estaria disponível para levar cocaína, entre 100/200 grs, para o arquipélago dos Açores a troco de € 1000, a receber no destino, referindo-lhe que não haveria qualquer problema pois que o havia já feito anteriormente e tudo tinha corrido bem.
Referiu que à data se encontrava sem exercer qualquer actividade laboral por causa da pandemia de SARS COV2 e que aceitou tal proposta por estar necessitado de obter dinheiro.
Esclareceu que a co-arguida D adquiriu as passagens aéreas de todos eles a solicitação do co-arguido C e que seria este quem pagaria a sua estadia numa residencial ou hostel tendo ficado com dúvidas sobre se aquela iria porque aborrecida ao aperceber-se de que a viagem não seria a dois (a própria e C).
Na véspera da data em que foram detidos o co-arguido C disse-lhe a si e ao arguido A que a viagem seria no dia seguinte e que se encontrariam na residência daquele.
Assim, tal como combinado, no dia 25.06.2021 todos os arguidos se encontraram em casa do co-arguido C e, uma vez ali, aquele entregou-lhe a si e ao co-arguido A as embalagens contendo produto estupefaciente, cujas características bem conhecia, sem que de tal se apercebesse a co-arguida.
Referiu que aquando da sua detenção detinha o produto estupefaciente que lhe foi apreendido uma parte para consumo próprio e a embalagem maior dissimulada nos boxers que trajava.
Mais referiu que o co-arguido C lhe deu nota de que o próprio transportaria produto de corte e que, de igual modo, também ele receberia € 1000 uma vez no destino e caso tudo corresse conforme planeado.
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- Prova testemunhal:
- O depoimento da testemunha F, Agente da PSP, o qual de forma clara, objectiva e serena merecendo-nos, pois, toda a credibilidade deu nota ao Tribunal que no dia 25.06.2021, na sequência de uma denúncia anónima, tiveram conhecimento de que o arguido C tinha viagem agendada para tal data com destino ao arquipélago dos Açores transportando produto estupefaciente e que, nessa sequência, coordenou dispositivo de detecção do mesmo e dos indivíduos que o acompanhassem no Aeroporto Humberto Delgado.
Mais referiu que localizaram os arguidos no sobredito aeroporto e que, após os mesmos passarem o detector de metais, os abordaram e encaminharam para gabinetes com vista a ser efectuada revista a cada um deles.
Por fim, referiu que o arguido B se mostrou colaborante tendo-lhe sido apreendido produto estupefaciente fraccionado sendo um pedaço pequeno no bolso das calças que trajava e uma embalagem maior dissimulada nos boxers que trajava.
- O depoimento da testemunha G, Agente da PSP, o qual de forma clara, objectiva e serena merecendo-nos, pois, toda a credibilidade deu nota ao Tribunal que no dia 25.06.2021, na sequência de uma denúncia anónima, tiveram conhecimento de que o arguido C tinha viagem agendada para tal data com destino ao arquipélago dos Açores transportando produto estupefaciente.
Mais referiu que localizaram os arguidos no aeroporto Humberto Delgado e que, após os mesmos passarem o detector de metais, os abordaram e encaminharam para gabinetes com vista a ser efectuada revista a cada um deles.
Por fim, referiu que o arguido C se mostrou colaborante tendo-lhe sido apreendido ainda nas instalações do sobredito aeroporto uma pequena quantidade de haxixe e que apenas quando aquele se despiu na unidade hospitalar veio a cair ao solo, sem que se tenha apercebido onde se encontraria escondida, a fenacetina apreendida à ordem dos presentes autos.
- O depoimento da testemunha H, Agente da PSP, o qual de forma clara, objectiva e serena merecendo-nos, pois, toda a credibilidade deu nota ao Tribunal que no dia 25.06.2021, na sequência de uma denúncia anónima, tiveram conhecimento de que o arguido C tinha viagem agendada para tal data com destino ao arquipélago dos Açores, na companhia dos demais co-arguidos, transportando produto estupefaciente sendo que as passagens aéreas haviam sido adquiridas pela arguida D.
Mais referiu que localizaram os arguidos no aeroporto Humberto Delgado e, após os mesmos passarem o detector de metais, os abordaram e encaminharam para gabinetes com vista a ser efectuada revista a cada um deles.
Por fim, referiu que os arguidos B e A tinham produto estupefaciente dissimulado na zona pélvica e o arguido H tinha no bolso das calas que trajava haxixe tendo-lhe, ainda, sido apreendido uma outra substância que desde logo suspeitaram ser produto de corte.
- O depoimento da testemunha I, Agente da PSP, o qual de forma clara, objectiva e serena merecendo-nos, pois, toda a credibilidade deu nota ao Tribunal que no dia 25.06.2021, na sequência de uma denúncia anónima, tiveram conhecimento de que o arguido C tinha viagem agendada para tal data para o arquipélago dos Açores transportando produto estupefaciente e que, nessa sequência, localizaram todos os arguidos no sobredito aeroporto e que, após os mesmos passarem o detector de metais, os abordaram e encaminharam para gabinetes com vista a ser efectuada revista a cada um deles. Por fim, referiu que o arguido B se mostrou colaborante tendo-lhe sido apreendido produto estupefaciente fraccionado sendo um pedaço pequeno no bolso das calças que trajava e uma embalagem maior dissimulada nos boxers que trajava.
- O depoimento da testemunha J, Agente da PSP, o qual de forma clara, objectiva e serena merecendo-nos, pois, toda a credibilidade deu nota ao Tribunal que no dia 25.06.2021, na sequência de uma denúncia anónima, tiveram conhecimento de que o arguido C tinha viagem agendada para tal data para o arquipélago dos Açores transportando produto estupefaciente e que, nessa sequência, após verificação das bagagens foram todos os arguidos abordados pelas autoridades policiais e encaminhados para gabinetes com vista a ser efectuada revista a cada um deles.
Por fim, referiu que ao arguido A foi apreendido produto estupefaciente dissimulado nos boxers que trajava.
- O depoimento da testemunha L, escriturário, irmão do arguido B, o qual de forma clara, objectiva e serena merecendo-nos, pois, toda a credibilidade deu nota ao Tribunal que na data em que aquele foi detido o mesmo trabalhava e habitava com a sua mãe e padrasto sendo que aquele teria dívidas resultantes do consumo de produtos estupefacientes.
Mais referiu que o próprio pagou já algumas dívidas daquele e que, actualmente, o seu irmão já não consome produtos estupefacientes sendo que a família o apoia incondicionalmente.
Por fim, qualificou o seu irmão como humilde, educado, respeitoso e que será fácil o mesmo arranjar actividade laboral porque é muito trabalhador.
- O depoimento da testemunha M, informático, amigo do arguido C, o qual de forma clara, objectiva e serena merecendo-nos, pois, toda a credibilidade deu nota ao Tribunal que conheceu o arguido C através de amigos em comum e que é visita da casa do mesmo sendo que sempre o conheceu a trabalhar sendo que, à sua frente, nunca aquele consumiu produtos estupefacientes.
Mais referiu que D foi namorada daquele não sabendo precisar em que período o foi.
- O depoimento da testemunha N, empregada de escritório, amiga do arguido C, a qual de forma clara, objectiva e serena merecendo-nos, pois, toda a credibilidade deu nota ao Tribunal que conhece aquele desde que frequentavam o ensino secundário sendo que os filhos de ambos são amigos e colegas de escola.
Mais referiu que ao que sabe aquele habitava em casa dos pais aquando da sua detenção levando uma vida que reputa de normal, sem sinais exteriores de riqueza, considerando-o um bom amigo e com um grande coração.
Por fim, referiu que aquando da detenção daquele tratou de um dos seus cães sendo que o mesmo faz criação de canídeos.
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- Prova documental:
- Auto de notícia de fls. 02 a 06;
- Autos de apreensão de fls. 19; 21; 23 e 25;
- Auto de exame e avaliação de fls. 27;
- Declarações de consentimento de fls. 31; 33; 35 e 37;
- Notas de alta de fls. 42 a 45;
- Guia de entrega de produto suspeito de ser estupefaciente de fls. 46; 48; 50 e 52;
- Teste rápidos de fls. 47; 49; 51 e 53;
- Fotogramas de fls. 54 a 59 e 60 a 63;
- Termo de entrega de fls. 179;
- Guia de entrega de objectos de fls. 192;
- Aditamento de fls. 329;
- Guia de entrega de CD de fls. 336;
No mais, no tocante aos antecedentes criminais dos arguidos e às suas condições pessoais, económicas, pessoais, familiares, profissionais e sociais o Tribunal valorou e teve em consideração o teor dos CRC´s juntos aos autos em 05.05.2022 e 11.05.2022 (não se fazendo alusão a fls. por força da desmaterialização dos presentes autos) e dos Relatórios sociais juntos em 27.05.2022; 01.06.2022; 02.06.2022 e 26.08.2022 (não se fazendo alusão a fls. por força da desmaterialização dos presentes autos);
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- Prova Pericial:
- Relatórios de exames de toxicologia do LPC da PJ de fls. 497; 499; 553; 576 e 691.
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Cotejada a prova produzida em sede de audiência de julgamento, conjugada com aqueloutra carreada para os autos é nosso entendimento que os arguidos C; A e B, efectivamente, praticaram os factos vertidos na factualidade considerada como provada em comunhão de esforços e intentos.
Vejamos, senão, porquê.
Sem prejuízo de o arguido C negar, peremptoriamente, ter sido o próprio a solicitar aos arguidos A e B o transporte para o arquipélago dos Açores, a troco de quantia monetária, do produto estupefaciente que lhes veio a ser apreendido e, bem assim, ter-lhes entregue aquele o certo é que o mesmo não logrou convencer o Tribunal da versão por si apresentada.
Desde logo, as explicações por si aduzidas, seja para a viagem previamente efectuada ao arquipélago dos Açores, seja para aqueloutra a efectuar no dia em que foram detidos não nos merecem qualquer credibilidade.
Assinala-se que nenhum dos arguidos é pessoa abastada, à data os arguidos A e B encontravam-se desempregados não sendo credível que despendam os seus recursos, certamente escassos, o primeiro deles e o arguido C em duas viagens, em meses consecutivos, ao arquipélago dos Açores uma delas para irem ver um canídeo - no que diz respeito aos arguidos C e A - e outra para acompanharem aquele e a namorada em passeio num fim de semana que deveria ser, fazendo fé nas declarações do arguido C, de reconciliação deste com a co-arguida D.
Ainda que relativamente ao arguido C se possa admitir, em abstracto, que o pudesse fazer para ir buscar o canídeo que sinalizara já não se pode dizer o mesmo relativamente ao arguido A.
Acresce que, ainda que as viagens fossem por causa do aludido canídeo, é bom de ver que se àquele ainda não tivesse sido implantado o chip e ministradas as vacinas conforme se exige, certamente o criador avisaria o comprador, o arguido C, de molde a obstar a que o mesmo viajasse em vão para o aludido arquipélago e, bem assim, poderia este último ter junto aos autos documentos que, de algum modo, comprovassem o por si alegado, designadamente, documentos emitidos pelo criador que apenas conhece por Bernardo e trata por “ma man” que atestassem o sinal pago pelo canídeo e que, na data acordada para o ir buscar e trazer para Portugal continental o mesmo não tinha, ainda, as vacinas ministradas nem o chip de identificação colocado, o que não sucedeu.
Mais se refira que ao arguido C foi apreendida não só cannabis que referiu destinar apenas ao seu consumo pessoal mas também fenacetina substância que diz ter adquirido no ginásio que frequenta para as suas articulações e que misturaria nos batidos que faz desconhecendo, em absoluto, que a mesma seja utilizada como produto de corte.
Ora, não podemos olvidar que tal substância foi um dos primeiros não-opiáceos analgésicos sem propriedades anti-inflamatórias a ser comercializado tendo acção antipirética e analgésica e sendo frequentemente utilizado como produto de corte da cocaína. Acresce que o produto estupefaciente transportado pelos arguidos A e B era cocaína, ou seja, precisamente o produto estupefaciente para o qual tal substância de corte é utilizada.
Acresce que a viagem que iriam fazer era de quinta-feira à noite até domingo não se compreendendo por que motivo aquele haveria de levar consigo um saco contendo 70,204 gramas de fenacetina para uma estada tão curta.
Assim, caso a tivesse adquirido num ginásio e admitindo como possível a sua venda livre haveria a mesma de vir acondicionada nos moldes em que comummente tal sucede, ou seja, em embalagens com rótulo específico e/ou nomenclatura comercial o que não sucedeu conforme se extrai do Fotograma de fls. 59 antes se apresentando aquela substância como comummente se apresentam as diversas substâncias utilizadas no corte de produtos estupefacientes, a saber, acondicionada num saco de plástico.
Por fim, se tal substância fosse, apenas e tão só, por si utilizada para o fim por si avançado sempre nos questionamos por que motivo não a entregou voluntariamente no aeroporto Humberto Delgado aos agentes de autoridade que o abordaram e procederam à sua revista e, ao invés, aquela veio a cair ao solo na unidade hospitalar onde se veio a despir apenas tendo sido apreendida nessa sequência?
Lançando mão das regras da experiência comum e da normalidade, apenas podemos concluir que o não fez porque pretendia ocultar tal substância das autoridades pois bem sabia que a mesma, embora não sendo produto estupefaciente, é utilizada para efectuar o corte de produto estupefaciente, designadamente, cocaína a qual era transportada pelos co-arguidos A e B.
Nem se refira que o facto de o modo de acondicionamento e grau de pureza do produto estupefaciente apreendido aos arguidos A e B ser diverso conforme se extrai do teor dos fotogramas e exames periciais supra aludidos demonstra que aqueles não estariam a agir em comunhão de esforços e intentos e, por consequência, também o não estaria o arguido C.
Desde logo, inúmeras explicações se podem avançar para tal, sendo a mais lógica o facto de o produto estupefaciente apreendido a cada um deles ter sido adquirido a diferentes fornecedores e, por força de tal, não ser acondiconado da mesma forma, nem possuir o mesmo grau de pureza.
Todavia, tal facto, em nosso entender, em nada colide com a prossecução do plano a que todos os arguidos do sexo masculino aderiram de transporte de produto estupefaciente para o arquipélago dos Açores.
Aqui chegados, estamos em crer que conjugado o facto de o arguido C se encontrar na posse, para além de cannabis, de fenacetina - utilizada como produto de corte de cocaína e que não entregou, de imediato, às autoridades como fez com a cannabis que transportava -; ter sido a sua à data namorada, a co-arguida D, a adquirir as passagens aéreas para o arquipélago dos Açores para todos os arguidos a solicitação sua e os arguidos A e B transportarem consigo cocaína não sendo credível que fossem, todos eles juntos, de fim de semana para o aludido arquipélago quando os arguidos C e D o destinariam a recuperar a sua relação, nos levam a concluir que os arguidos do sexo masculino, conhecedores das características das substâncias que cada um deles detinha, em comunhão de esforços e intentos, pretendiam transportá-las para o arquipélago dos Açores conforme previamente acordado entre todos eles.
Por que motivo?
Porque todos eles buscavam benefício económico frisando-se que dois dos arguidos se encontravam à data desempregados, um deles com dívidas para solver, a saber, o arguido A.
Não olvidemos que, fazendo fé nas declarações do arguido C, a viagem em causa para os arguidos C e D era suposto ser de reconciliação não sendo, de todo, expectável que se levem amigos em viagens com tal desiderato a menos que se queira, à partida, gorar o fim daquela. Por fim, refira-se que as substâncias (estupefaciente e de corte) detidas pelos arguidos do sexo masculino se encontravam repartidas entre os três certamente de molde a obstar a que, caso um deles fosse detectado pelas autoridades, fossem todas aquelas apreendidas e pudesse um ou vários deles prosseguir viagem.
De notar que tivemos o cuidado de não tomar em consideração as declarações dos co-arguidos A e B na parte em que implicavam o co-arguido C como sendo a pessoa que adquiriu e lhes entregou a cocaína que cada um deles transportava pois que tal facto apenas resultaria das declarações daqueles, não tendo sido corroborado por qualquer outro meio de prova e não tendo o contraditório sido plenamente exercido pelo arguido C na medida em que os sobreditos arguidos apenas responderam a algumas das perguntas colocadas pelo Il. Mandatário daquele, recusando-se a responder às demais que aquele pretendia colocar-lhes conforme resulta da Acta de audiência de julgamento.
No que concerne aos arguidos A e B os mesmos admitiram a prática dos factos que a cada um deles diz respeito tal como vertidos na factualidade considerada como provada, pelo que, foi a mesma assim considerada e, bem assim, expuseram os motivos pelos quais praticaram.
À guisa de conclusão, conjugadas as declarações dos arguidos C; A e B somos a concluir que todos eles agiram em comunhão de esforços e intentos com o fito de transportarem de Lisboa para o arquipélago dos Açores produto estupefaciente, a saber, cocaína e, bem assim, produto de corte (fenacetina).
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No que concerne à factualidade considerada como não provada foi a mesma assim considerada pelos motivos que passamos a aduzir.
Por um lado, os factos vertidos nas als. a.; c.; d.; e. e f. foram assim considerados por força de não ter sido produzida, em sede de audiência de julgamento, qualquer prova que, de algum modo, os corroborasse permitindo concluir pela veracidade da versão dos factos plasmada no despacho de pronúncia, pelo que, não resultou contrariada a versão dos factos sustentada em juízo pela arguida.
De notar que são realidades distintas a verdade processual (judiciária) e a verdade material (histórica): aquela haverá, necessariamente, de ser (re)construída com recurso à prova produzida em audiência de julgamento, caminhando-se da prova para a convicção - e não pela forma inversa.
Acresce que, eventuais dúvidas sobre o modo como os factos ora em apreço terão ocorrido, sempre teriam de militar em benefício da arguida D por força do princípio da presunção da inocência traduzido pelo brocardo in dubio pro reo impondo-se, pois, concluir pela sua consequente absolvição.
Por outro, no que concerne aos factos vertidos na 1ª parte da al. b. foi o mesmo assim considerado porque tanto o arguido C quanto a arguida D explicitaram que foi esta última quem adquiriu as passagens aéreas de todos os arguidos, a solicitação daquele.
Mais se refira que no que concerne aos factos vertidos na 2ª parte da al. b. foi o mesmo assim considerado, sem prejuízo das declarações dos co-arguidos A e B, porquanto aquelas não foram corroboradas por nenhum outro meio de prova e, em bom rigor, o arguido C não pode, relativamente àquelas, exercer plenamente o contraditório na medida em que os sobreditos arguidos se recusaram a responder a todas as questões colocadas pelo Il. Mandatário daquele.
Chamamos aqui à colação o Ac. do STJ de 12.03.2008, relatado pelo Exmo Sr Conselheiro Santos Cabral disponível em www.dgsi.pt onde se pode ler “(...)Relativamente à evolução da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça em relação a esta matéria nos dá noticia o Acórdão de 27 de Novembro de 2007 (1) (2)
O eixo do posicionamento jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça radica na ideia de que, fundamentalmente, o que está em causa é a posição interessada do arguido, que, assumido o seu impedimento para depor como testemunha, não obsta a que preste declarações, nomeadamente para esclarecer o tribunal sobre a sua responsabilidade criminal numa postura de colaboração na procura da verdade material. Sendo um meio de prova legal cuja admissibilidade se inscreve no artigo 125 do Código de Processo Penal as declarações do co-arguido podem, e devem, ser valoradas no processo.
Como referem Leal Henriques e Simas Santos (3) "Parece-nos, contudo, que a interpretação correcta deverá repousar na consideração de que o arguido, só porque o é, não estará sem mais impedido de prestar declarações no próprio processo em que se encontra envolvido. O legislador pretendeu, em primeira linha, construir no Código a figura do arguido, assegurando-lhe todos os meios de defesa mesmo através de si próprio, pelo que, se o entender necessário à sua defesa, poderá usar o amplo direito que lhe assiste a ser ouvido. E a defesa desta posição leva a que o arguido ou co-arguido não possam ser ouvidos no mesmo processo ou processos conexos como testemunhas, ou seja como intervenientes que não só são obrigados a prestar declarações, como a fazê-lo com verdade (art.° 91.°) por tal ser incompatível com a sua posição de interessados no desfecho do processo e com o seu direito ao silêncio. De notar que no mesmo n.° 1 deste artigo, nas als. b) e c), e por identidade (parcial) de razões, também os assistentes e as partes civis estão impedidos de depor como testemunhas, interessados que também são no mesmo desfecho.
É assim a especial posição do arguido que dita o impedimento do mesmo a depor como testemunha dado o seu estatuto especial, nada porém obstando a que preste declarações, nomeadamente para se desonerar ou atenuar a sua responsabilidade (4).
D.
Subscrevemos tal entendimento adiantando ainda que, em nosso entender, importa precisar alguma confusão que está subjacente á cruzada empreendida contra o arguido que produz depoimento incriminatório. Na verdade uma coisa são proibições de prova que são verdadeiros limites á descoberta da verdade, barreiras colocadas á determinação dos factos que constituem objecto do processo e outra, totalmente distinta a valoração da prova. Nesta ultima está implícita uma apreciação da credibilidade da prova produzida em termos legais.
Portanto a questão que se coloca é tão só, e singelamente, saber se é válida processualmente a admissibilidade do depoimento do arguido que incrimina os restantes coarguidos.A resposta é, quanto a nós, frontalmente afirmativa e dimana desde logo da regra do artigo 125 do Código Penal que dispõe que são admitidas as provas que não forem proibidas por lei; por outro lado não se sente qualquer apoio numa interpretação rebuscada da Constituição que aponte a inconstitucionalidade de uma tal interpretação.
Bem pelo contrário, a consideração de que o depoimento do arguido que é, antes do mais, um cidadão no pleno uso dos seus direitos, reveste á partida de uma “capitis diminutio” só pelo facto de ser arguido ofende o principio da igualdade dos cidadãos. Portanto a questão que se coloca neste caso é, como em relação a todos os meios de prova, uma questão de credibilidade do depoimento do coarguido.
Esta credibilidade, como adiante precisaremos, só pode ser apreciada em concreto face ás circunstâncias em que é produzida. O que não é admissível é a criação de regras abstractas de apreciação da credibilidade retornando ao sistema da prova tarifada, opção desejada pelo sistema inquisitorial. Assim, dizer em abstracto e genericamente que o depoimento do coarguido só é válido se for acompanhado de outro meio de prova é uma subversão das regras da produção de prova sem qualquer apoio na letra ou no espírito da lei.
*Na verdade, conforme refere o Prof. Figueiredo Dias, o processo penal não pode existir validamente se não for presidido por uma directa intenção ou aspiração de justiça e de verdade. O que é tanto mais evidente quanto se recorde que por detrás da imposição de uma pena está uma finalidade de prevenção geral de integração e, portanto, uma exigência de verdade e de justiça na aplicação da sanção.
Por outro lado, não obstante a descoberta da verdade material ser uma finalidade do processo penal não pode ela ser admitida a todo o custo, antes havendo que exigir da decisão que ela tenha sido lograda de modo processual válido e admissível e, portanto, com o integral respeito dos direitos fundamentais das pessoas que no processo se vêem envolvidas, A protecção perante o Estado dos direitos fundamentais das pessoas surge, assim, também ela, como finalidade do processo penal. Afirmá-lo é também proteger o interesse da comunidade de que o processo penal decorra segundo as regras do Estado de Direito. São precisamente estas regras do Estado de Direito - que se prendem com os direitos fundamentais das pessoas e que exigem que a decisão final tenha sido lograda de um modo processualmente válido - que vão impedir, em certas situações, a obtenção da verdade material. Isto pode ocorrer, em concreto e p. ex., com a proibição da valoração das provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em gera/, ofensa da integridade física ou moral das pessoas
*

Se isto é assim, também é, no entanto, verdade que aquela que foi historicamente a arma do Estado de Direito a persistência na convicção de que, em todas as circunstancias, os direitos de cada pessoa de vem ser defendidos e a sua liberdade salvaguardada - tem vindo a ser relativizada: o Estado de Direito não exige apenas a tutela dos interesses das pessoas e o reconhecimento dos limites inultrapassáveis, dali decorrentes, à prossecução do interesse oficial na perseguição e punição dos criminosos. Ele exige também a protecção das suas instituições e a viabilização de uma eficaz administração da justiça pena/, já que pretende ir ao encontro da verdade material. (5)
E
Assim, e vendo agora as coisas sob um outro prisma, em certas circunstâncias, para que os interesses assinalados se concretizem, necessário se torna pôr em causa direitos fundamentais das pessoas. O remédio para esta impossibilidade de harmonização integral das finalidades do processo penal, adianta o referido Mestre, estará numa tarefa - infinitamente penosa e delicada - de operar a concordância prática das finalidades em conflito. Tal tarefa implica, relativamente a cada problema concreto uma mútua compressão das finalidades em conflito, de forma a atribuir a cada uma a máxima eficácia possível: de cada finalidade há-de salvar-se, em cada situação, o máximo conteúdo possível, optimizando-se os ganhos e minimizando-se as perdas axiológicas e funcionais.
Se o critério geral reside assim, não na validação da finalidade preponderante à custa da de menor hierarquia ao estilo da teoria do direito de necessidade jurídico-penal - mas sim numa optimização das finalidades em conflito, situações há no entanto em que se torna necessário eleger uma só das finalidades, por nelas estar em causa a intocável dignidade da pessoa humana.
Do que se trata então é do princípio axiológico que preside à ordem jurídica de um Estado de Direito material: o principio da dignidade do homem, da sua intocabilidade e da consequente obrigação de a respeitar e proteger
Mas será que tal núcleo fundamental estará por alguma forma violado quando se admite como válido o depoimento incriminatório do arguido e em relação aos restantes arguidos. Será que os direitos de defesa dos seus companheiros no banco dos arguidos são minimamente atingidos se forem observadas as regras processuais de produção de prova? Será que o arguido que opta pelo direito ao silêncio adquire ope legis um direito de veto á produção de outra prova que não aquela aquela que lhe convém? O direito de não se auto incriminar do arguido é conflitual como a colaboração do coarguido na procura da verdade material?
Estamos em crer que a resposta tem de ser necessariamente negativa.
*
F
A admissibilidade do depoimento do arguido como meio de prova em relação aos demais coarguidos não colide minimamente com o catálogo de direitos que integram o estatuto inerente àquela situação e está adequada á prossecução de legítimos e relevantes objectivos de política criminal nomeadamente no que toca á luta contra criminalidade organizada.
Como refere o Professor Costa Andrade é evidente que ninguém coloca em causa o principio do “nemo tenetur se ipsum accusare” que deriva desde logo da tutela jurídico constitucional de valores ou direitos fundamentais como a dignidade humana, a liberdade de acção e a presunção de inocência em geral referenciados como a matriz jurídico constitucional do principio. A lei processual penal portuguesa contém uma malha desenvolvida e articulada de normas através das quais se assegura acolhimento expresso às mais significativas exigências do princípio “nemo tenetur”. A começar e em se tratando de factos pertinentes à culpabilidade ou medida da pena, o Código de Processo Penal garante ao arguido um total e absoluto direito ao silêncio (art. 61, , nº l, al. c). Um direito em relação ao qual o legislador quis deliberadamente prevenir a possibilidade de se converter num indesejável e perverso prlvilegium odiosum, proibindo a sua valorado contra o arguido. E tanto em se tratando de silêncio total (art. 343 nº1) como em se tratando de silêncio parcial (art. 345° nº 1). Para garantir a eficácia e reforçar a consistência do conteúdo material do princípio “nemo tenetur” a lei impõe às autoridades judiciárias ou órgãos de policia criminal, perante os quais o arguido é chamado a prestar declarações, o dever de esclarecimento ou advertência sobre os direitos decorrentes daquele principio (confr a v. g. arts. 58 nº2,. 61 nº1, aI. a); 141 nº 4. 343 nº1).
A eficácia de tais normas é contrefacticamente assegurada através da sanção da proibição de valoração. Porém, a proibição de valoração incide sobre o silêncio que o arguido adoptou como a melhor estratégia processual e, como é evidente, não poderá repercutir-se na prova produzida por qualquer meio legal e que venha a precisar e demonstrar a responsabilizar criminalmente o arguido.
Seria necessária uma visão fundamentalista, e unilateral do processo penal, defender que o exercício do direito ao silêncio tivesse potencialidade para inquinar todo o meio de prova que, não obstante a sua regularidade, viesse a demonstrar a falência de tal estratégia de silêncio.
É evidente que tal argumentação não é aceite para quem, nos processos de grande criminalidade organizada, aposta a defesa dos arguidos no seu silêncio conjunto por uma questão de estratégia processual. Porém, não são tais visões parcelares e parciais que irão contribuir para elucidar a questão em apreço. Bem ao contrário daquela perspectiva, estamos em crer que o eixo fundamental da mesma questão reside no fado de o depoimento incriminatório estar sujeito ás mesmas regras de outro e qualquer meio de prova, ou seja, a sua sujeição á regra da investigação; da livre apreciação e do princípio in dubio pro reo, Assegurado que esteja o funcionamento de tais princípios e o exercício do contraditório, nos termos preconizados pelo artigo 32 da Constituição nenhum argumento subsiste á validade de tal meio de prova.
Aliás, a partir do momento em que o arguido depõe no exercício do seu direito de defesa é evidente que as suas palavras têm uma dupla conotação. sendo emergentes de um inviolável direito de defesa elas são também um meio de prova. Não é possível, em termos práticos, separar aquela realidade concreta que é o depoimento do arguido considerando ora como um exercício legítimo de um direito ora como meio de prova. Tal visão, para além de um inequívoco maniqueísmo, esquece que o processo penal visa a descoberta da verdade material e não de tantas realidades quanto aquelas que interessam aos diversos sujeitos processuais. (6)
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G
Um dos eixos argumentativos aduzidos em favor da inadmissibilidade do referido depoimento situa-se num eventual direito á mentira que constaria da colectânea de direitos dos arguidos. Assim, argumenta-se, como credibilizar um depoimento produzido por alguém que tem o direito de mentir?
- A respeito de tal argumentação é importante esclarecer que uma mentira não é verdade pelo facto de ser repetida até á exaustão e que tal pressuposto é agora, como sempre foi, falso. Nenhum Estado de Direito digno desse nome outorga aos seus cidadãos o direito de mentir em qualquer circunstância e muito menos num processo penal.
Já em 1974 Figueiredo Dias se pronunciava sobre um invocado direito a mentir repudiando-o decididamente. Afirmava o mesmo Professor que nada existe na lei, com efeito, que possa fazer supor o reconhecimento de um tal direito. As soluções legais em matéria de silêncio e de cessação do de ver de colaboração explicam-se perfeitamente pela oposição que assim, se quer fazer à velha e odiosa ideia inquisitória, segundo a qual o arguido, enquanto meio de prova, poderia ser obrigado, inclusivamente através de meios de coacção física e psíquica, sem excluir a própria tortura, à prestação de declarações que o incriminassem. E sabe-se como todo o processo penal reformado fez de uma tal oposição um dos seus propósitos mais salientes.
Mas sendo assim, poderia pensar-se (e não faltam autores a lançarem-se, mais ou menos profundamente, nesta via de compreensão das soluções legais) que, podendo o arguido optar livremente entre o silêncio ou o prestar declarações, caso escolhesse esta segunda possibilidade continuaria a recair sobre ele um dever de verdade, ou como mero dever moral, ou mesmo como verdadeiro dever jurídico. A verdade, porém, é que do reconhecimento de um tal dever não ressaltam quaisquer consequências práticas para o arguido que minta, uma vez que tal mentira não deve ser valorada contra ele, quer ao nível substantivo autónomo das falsas declarações, quer ao nível dos direitos processuais daquele.
Conclui-se, então, que não existe, por certo, um direito a mentir que sirva como causa justificativa da falsidade. O que sucede simplesmente é ter a lei entendido, ser inexigível dos arguidos o cumprimento do dever de verdade, razão por que renunciou nestes casos a impô-lo.
Porém, uma coisa é a inexigibilidade do cumprimento do dever de verdade pelo arguido, reconduzindo-o a uma mero dever moral, e outra, totalmente distinta, é a inscrição de um direito a mentir do arguido que é inadmissível num Estado de Direito. Mas sendo assim não existe fundamento legal para a menorização do depoimento do arguido a qual, na realidade, não é mais do que uma intolerável presunção de não cidadania ou seja de que colocado perante a possibilidade de escolha o arguido mente.
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H.
É evidente que, tal como em relação ao depoimento da vítima, é preciso ser muito cauteloso no momento de pronunciar uma condenação baseado somente na declaração do coarguido porque este pode ser impulsionado por razões aparentemente suspeitas tal como o anseio de obter um trato policial ou judicial favorável, o animo de vingança, ódio ou ressentimento ou o interesse em auto exculpar-se mediante a incriminação de outro ou outros acusados. Para dissipar qualquer dessas suspeitas objectivas é razoável que o coarguido transmita algum dado externo que corrobore objectivamente a sua manifestação incriminatória com o que deixará de ser uma imputação meramente verbal e se converte numa declaração objectivada e superadora de uma eventual suspeita inicial que pesa contra a mesma. Assim, estamos em crer que é importante, em sede de credibilização do depoimento que o mesmo seja corroborado objectivamente.
Não se trata de á partida de criar, em termos abstractos, uma exigência adicional ao depoimento do coarguido incriminatório dos restantes arguidos em termos de admissibilidade como meio de prova, entrando, como já se afirmou, num zona de uma inadmissível prova tarifada, mas sim de uma questão de credibilidade daquele depoimento em concreto. Não se pode deixar de referir que numa posição de menor exigência se situa Viegas Torres quando, em relação ao sistema judicial espanhol, refere que o valor probatório da declaração incriminatória de um coimputado tem sido discutido alegando-se que estes testemunhos são, em geral interessados e pouco ou nada objectivos. Frente a tais afirmações, afirma, a jurisprudência afirmou, com carácter geral a validade probatória das declarações de coimputados.A jurisprudência parece considerar que não é regra geral a presença de factores que tirem a necessária objectividade ao testemunho do coimputado pelo que não há razões para negar valor probatório ao dito testemunho. A excepcional concorrência de circunstâncias que podem afectar a fiabilidade da declaração incriminatória de um coimputado terá de apreciar-se caso por caso O depoimento do coarguido pode destruir a presunção de inocência dos restantes desde que o tribunal se convença de que o mesmo é credível.
Será, pois, a nível de valoração em concreto do depoimento produzido que se coloca a questão da relevância do depoimento do arguido. Como refere Carlos Clement Duran a imputação que um coacusado realiza contra outro coacusado tem o grande atractivo de que a faz quem aparece como um directo conhecedor do facto em juízo e incluso nada perde ou ganha ao incriminar o coacusado porque, assim, está a assumir a sua própria responsabilidade penal. Porém pelo seu próprio peso específico já que as possibilidades defensivas do incriminado são reduzidas importa um juízo crítico rigoroso sobre o valor de tal imputação e que permita concluir que a incriminação que a mesma contem não corresponde a um interesse espúrio. Compreende-se, assim, a importância que se atribui ao facto de tais manifestações incriminatórlas estarem acompanhadas de algum dado ou elemento de carácter objectivo que lhes dê credibilidade e devam ser uniformes e reiteradas, evidenciando a credibilidade do acusado que as realiza.
Na esteira do Autor citado entendemos que a credibilidade do depoimento incriminatório do coarguido está na razão directa da ausência de motivos de incredibilidade subjectiva o que, na maioria dos casos, se reconduz á inexistência de motivos espúrios e á existência de uma auto inculpação. Igualmente assume uma real importância a concorrência de corroborações periféricas objectivas que demonstrem a verosimilhança da incriminação.
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H
Ao entendermos por esta forma situamo-nos no seguimento daquela que foi afirmada como a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça.
A questão prende-se, em ultima análise, com as próprias finalidades do processo penal que se materializam com a realização da Justiça e a descoberta da verdade material.
As considerações inerentes á especialidade do estatuto do arguido estão presentes na jurisprudência do Tribunal Constitucional quando avalia da relevância do seu depoimento em relação aos coarguidos e ao catálogo de direitos que a estes assiste entre os quais avulta o de exercício do contraditório.
É assim que o mesmo Tribunal professou o entendimento de que é inconstitucional, por violação do art. 32,º, n.º 5, da CRP, a norma extraída com referência aos art.º' 133.º, 343.º e 345.º do CPP, no sentido em que confere valor de prova às declarações proferidas por um co-arguido em prejuízo do outro co-arguido quando, a instâncias deste outro co-arguido, o primeiro se recusa a responder, no exercício do direito ao silêncio (7).
Por igual forma se pronunciou este Supremo Tribunal de Justiça considerando que está vedado ao tribunal valorar as declarações de um co-arguido, proferidas em prejuízo de outro coarguido quando, a instâncias deste, o primeiro se recusa a responder, no exercício do direito ao silêncio, sob pena de violação do art. 32º, n.º 5 da CRP." (8). Cfr. ainda o Ac. do STJ de 7-2-01 (proc. n.º 4/00-3) quando refere que "As declarações que os arguidos prestem estão tuteladas na sua produção e no seu âmbito pelo estatuto próprio do arguido, devendo ser sujeitas ao princípio do contraditório na medida em que afectem o co-arguido, não valendo contra este se esse contraditório não puder ser estabelecido, mormente pela oposição do arguido produtor da prova”
É exactamente esse o sentido da alteração introduzida pelo nº4 do artigo 345 do Código de Processo Penal quando proíbe a utilização com meio de prova das declarações de um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando aquele declarante se recusar a responder ás perguntas que lhe forem feitas pelo juiz ou jurados ou pelo presidente do tribunal a instâncias do Ministério Público; advogado do assistente ou do defensor oficioso.
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I.
Afirma-se na decisão recorrida ao invalidar o depoimento do arguido MM que as declarações não valem como prova já que, embora o arguido não se tenha recusado a prestar declarações, não as tendo prestado por estar ausente, a situação é equiparável por ser essa a ratio da norma.
Estamos em crer que a decisão recorrida incorre em manifesto lapso equiparando aquilo que não é equiparável. Na verdade, o que está em causa é o exercício do contraditório pelo coarguido que se remeteu ao silêncio em relação áquele que entendeu colaborar e auxiliar a pretensão punitiva do Estado.
Em última análise o que está em causa é análise do exercício do princípio do contraditório interpretado no sentido último da sua função teleológica por contraposição a uma interpretação fundamentalista e radical do dos direitos do arguido. Inquestionável na sua dignidade constitucional-artigo 20 da Constituição da República- o principio do contraditório tem subjacente uma concepção inerente ao principio de audiência, consubstanciando a oportunidade conferida a todo o participante processual de influir, através da sua audição pelo tribunal, no decurso do processo.
Na busca de uma resposta cabal à pergunta pelo fundamento e sentido do princípio ou direito de audiência, na esteira de Figueiredo Dias (9) teremos que arrancar do principio de que só apreenderemos verdadeiramente o fundamento e sentido que buscamos quando tomarmos por base a ideia de que, nem relativamente à sentença, nem relativamente a qualquer outra decisão que tenha de tomar no decurso do processo, encontra o juiz o sentido dela previamente inscrito e fixado na lei. Mais ainda: não se trata, na obtenção de qualquer daquelas decisões, de uma concretização lógica de normas jurídicas abstractas aplicáveis, mas, verdadeiramente, de um desenvolvimento normativo de tais normas e de uma comprovação autónoma da sua aplicabilidade ao caso concreto; nisto se traduz exactamente a declaração do direito do caso penal concreto e o processo criador através do qual se efectiva.
Por outro lado a finalidade do Estado-de-direito social reside na criação e manutenção, pela comunidade, de uma situação jurídica permissiva da realização livre da personalidade ética de cada membro, Por isso mesmo o esclarecimento da situação jurídica material em caso de conflito supõe, não só a garantia formal da preservação do direito de cada um nos processos judiciais, mas a comprovação objectiva de todas as circunstâncias, de facto e de direito, do caso concreto - comprovação inalcançável sem uma audiência esgotante de todos os participantes processuais. Isto significa que a actual compreensão do processo penal, à luz das concepções do Homem, do Direito e do Estado que nos regem, implica que a declaração do direito do caso penal concreto não seja apenas uma tarefa do juiz ou do tribunal (concepção carismática do processo), mas tenha de ser tarefa de todos os que participam no processo (concepção democrática do processo) e se encontrem em situação de influir naquela declaração do direito, de acordo com a posição e função processuais que cada um assuma.
Agora se compreenderá por que não basta apelar para a função processual da máxima audiatur et altera pars (princípio do contraditório), para a exigência de descoberta da verdade material, ou mesmo para a indispensabilidade de um íntegro direito de defesa, para que do mesmo passo se alcance o fundamento e sentido do princípio da audiência. O que, mesmo no fundo deste, está em causa é nada menos que a relação entre a Pessoa e o Direito, mais particularmente, a relação entre a pessoa e o “seu” direito. O direito de audiência é a expressão necessária do direito do cidadão à concessão de justiça, das exigências comunitárias inscritas no Estado-de-direito, da essência do Direito como tarefa do homem e, finalmente, do espírito do Processo como “com-participação” de todos os interessados na criação da decisão.
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Do exposto, e seguindo, ainda, o ensinamento do Mestre, derivarão duas consequências que haveremos de ter em mente sempre que se trate de analisar as concretas manifestações do direito de audiência em todo o decurso do processo. Diz respeito ao que podemos chamar a dupla natureza que o princípio da audiência encerra. Ele comporta as notas de um direito subjectivo para o seu titular: de um direito subjectivo público, contra o Estado, a ser ouvido perante um tribunal.
Não só estas notas, todavia, mas também as constitutivas de uma norma objectiva, para a condução do processo perante o tribunal. Norma que há-de assegurar ao titular do direito uma eficaz e, efectiva possibilidade de expor as suas próprias razões e de, por este modo, influir na declaração do direito do seu caso.
Respeita a outra consequência ao âmbito dos titulares do direito de audiência. Legitimado ao seu exercício, na verdade, não deverá estar só o arguido, mas todo aquele participante no processo (seja qual for a veste em que intervenha) relativamente ao qual deva o juiz tomar qualquer decisão que o afecte. Só quando o direito de audiência couber a todos os participantes processuais que possam ser juridicamente afectados na esfera dos seus direitos de qualquer um dos seus direitos, com compreensível e especial relevo para os direitos de personalidade- por uma decisão a tomar em juízo estará assegurada ás pessoas a sua participação constitutiva na declaração do direito do caso e, através dela, na conformação da sua situação jurídica futura.
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No que concerne ao âmbito da incidência do princípio o mesmo terá uma maior ou menor amplitude de acordo com a própria fase processual em que se insere. Em toda a sua latitude compreenderá ele a possibilidade de o interessado na decisão a tomar se pronunciar sobre a respectiva base fáctica da decisão, a apresentação de provas, o pedido de novas diligências, as provas recolhidas e, enfim, a questão de direito. Na sua forma mais limitada abarcará, ao menos a possibilidade de tomar posição através de memoriais e requerimentos.
Significa o exposto que a dimensão do princípio terá uma dimensão variável de acordo com a necessidade concreta de salvaguarda do direito de audição do interveniente processual. Na fase de julgamento em que pontifica a oralidade e mediação o exercício de contraditório pressupõe a possibilidade de o arguido, por intermédio do seu defensor, sugerir as perguntas necessárias para aquilatar da credibilidade do depoimento que se presta e infirmá-lo caso tal seja adequado
Assim, adquirido que, na fase de julgamento, o defensor do arguido exerce os direitos que a lei reconhece a este, podendo e devendo exercer o contraditório sobre os meios de prova produzidos da forma mais abrangente e global-artigo 63 e 345 e seguintes do Código de Processo Penal- não se vislumbra como é que se pode afirmar que da ausência do arguido resulta necessariamente a invalidade do depoimento do coarguido no que lhe respeita. Na verdade, tal ausência não afecta o exercício do direito do contraditório a exercer pelo respectivo defensor.
A equiparação feita pela decisão recorrida, e contrariamente àquilo que afirma como pressuposto, não assenta numa interpretação literal e muito menos na “ratio legis” pois que a teleologia da norma reside numa afirmação do exercício do contraditório que foi garantido no caso vertente.
Questão distinta seria a da recusa do mesmo coarguido MM a depor sobre as perguntas efectuadas pelo tribunal e as sugeridas pelo defensor ou pelo Ministério Público. Porém, tal não aconteceu no caso vertente”.
Ora, o artº 125º do CPPenal estabelece o princípio de que em processo penal são admissíveis quaisquer provas que não sejam proibidas por lei e do elenco constante do artº 126º do CPPenal (métodos proibidos de prova) não fazem parte as declarações dos co-arguidos, pelo que, inexiste qualquer impedimento legal a que as declarações de arguidos ou co-arguidos sejam valoradas como meio de prova. De notar que os arguidos podem prestar declarações no exercício do direito que lhes assiste de o fazerem em qualquer altura do processo podendo aquelas ser prestadas sobre factos de que possuam conhecimento directo e que constituam objecto de prova, sejam eles factos que só a eles digam directamente respeito ou sejam eles factos que respeitem a outro ou outros dos co-arguidos. Assim inexiste qualquer impedimento do co-arguido a, nessa qualidade, prestar declarações contra os co-arguidos no mesmo processo e, consequentemente, de valoração da prova feita por um co-arguido contra os seus co-arguidos.
Todavia, com uma limitação pois que, nos termos do nº 4 do artº 345º do CPPenal não podem valer como meio de prova as declarações de um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando, a instâncias deste outro co-arguido, o primeiro se recusar a responder no exercício do direito ao silêncio. Do que se trata, aqui, é de retirar valor probatório a declarações total ou parcialmente subtraídas ao exercício do direito ao contraditório.
Como refere o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 133/2010, de 14 de Abril “seguramente que, submetidas a estas exigências de exame crítico e fundamentação acrescidas, as declarações de co-arguido são meio de prova idóneo de um processo penal de uma sociedade democrática. O processo penal destina-se à realização da justiça penal e seria comunitariamente insuportável negar valor probatório a declarações provindas de quem tem com os factos em discussão maior proximidade apenas pela circunstância de ser seu autor um dos arguidos quando essas declarações são emitidas livremente e, num escrutínio particularmente exigente, se conclui não haver razão para duvidar da sua correspondência à realidade”.
Revertendo ao caso ora em apreço, sopesado o facto de os co-arguidos A e B se terem recusado a responder a questões colocadas pelo Il. Mandatário do co-arguido C não podem as declarações ser valoradas na parte em que imputam a este último a aquisição e posterior entrega do produto estupefaciente aos mesmos para transporte.
No que concerne à factualidade vertida nas als. g. e h. foi a mesma assim considerada atenta a total ausência de prova que a fundamentasse conjugada com o facto de o arguido C ter referido que tal substância e destinava apenas e tão só ao seu consumo pessoal.
No que concerne à factualidade considerada como provada sob a al. i. foi a mesma assim considerada no que concerne à 1ª parte porquanto não se produziu qualquer prova que, de algum modo, a corroborasse e à 2ª parte porquanto se produziu prova que expressamente a infirmou, a saber, as declarações da arguida D que explicitou ter sido a própria a adquiri-las a solicitação do arguido C, conjugadas com as declarações deste último.
No que concerne à factualidade considerada como provada sob as als. j. e i. foi a mesma assim considerada atenta a total ausência de prova que, de algum modo, a fundamentasse.»
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Apreciando os recursos

Recurso do arguido C
1ª questão – Há contradição insanável da fundamentação ?
O arguido recorrente alega haver (nos termos do art. 410º, nº 2, al. b), do CPP) uma contradição insanável entre o facto nº 16 dado como provado e o facto dado como não provado na alínea j).
O Ministério Público considera haver uma contradição sanável, pugnando pela correcção da decisão no sentido de se considerar como não escrito o ponto j) da fundamentação de facto.
Cumpre apreciar e decidir.
Como sabemos, a alegada contradição da fundamentação está prevista como um dos vícios do art. 410º, nº 2, do CPP, segundo o qual:
«2- Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:(…)
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;»
A propósito deste preceito tem sido pacífico o entendimento (da doutrina e da jurisprudência) no sentido de considerarem que a apreciação deste vício não implica qualquer sindicância à prova produzida no tribunal de 1ª instância – estando excluída qualquer tarefa de valoração da prova produzida em audiência ou fora dela, tal como a valoração de depoimentos gravados, de documentos ou outro tipo de provas -. Apenas envolve o texto da decisão recorrida, na sua globalidade, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, ainda que constem do processo. Em face do teor do texto da decisão, apenas as regras de experiência comum podem, se necessário, servir de critério de aferição da existência, ou não, de tais vícios.
Sendo de salientar o retrato feito no Acórdão do STJ de 15/12/2011 do relator Raúl Borges (no processo 17/09.0TELSB.L1.S1 em www.dgsi): “(...)Os vícios do art. 410º, nº 2, do CPP, são vícios da lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei (…)  O objecto da apreciação será sempre a decisão e não o julgamento”.
Também sendo de salientar os seguintes ensinamentos doutrinais feitos por Simas Santos e Leal Henriques (“Recursos em Processo Penal”, 6ª edição, págs. 69 e segs.), por Simas Santos e Leal Henriques (“Código de Processo Penal Anotado” volume II, 2ª edição, págs. 739 e segs) e por Pereira Madeira (“Código de Processo Penal Comentado”, 3ª edição revista, págs. 1290 e segs) a propósito deste vício: Contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão = ocorre quando se constata existir a afirmação simultânea de uma coisa e do seu contrário e que seja insanável/irredutível, não podendo ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras de experiência, impondo que se decrete a renovação da prova para sanar tal contradição interna/intrínseca da própria decisão.
Estando afastado este vício (de contradição) se for perceptível, pela simples leitura do texto da decisão, que houve manifesto erro susceptível de ser suprido/eliminado pelo tribunal de recurso, através do expediente previsto no art. 380º do CPP. E, aliás, correcção esta que o tribunal “ad quem” pode e deve efectuar para deixar de persistir tal contradição.

Ora, apreciando o texto do acórdão proferido pelo tribunal de 1ª instância  detecta-se que há, apenas,  lapso/erro de escrita no final da página 52 do acórdão recorrido a propósito dos itens i) e j) e uma ambiguidade na redação da alínea j) dos factos não provados constante da página 24 do acórdão recorrido e esta última é geradora de uma, apenas, aparente contradição relativamente ao facto provado sob o item 16.
Sendo tais lapsos/erros de escrita e tal ambiguidade sanáveis e cuja correcção respectiva pode e deve ser feita por este Tribunal de recurso ao abrigo do disposto nos arts. 249º e 295º do Código Civil e no art. 380º, nº 1, al. b), e nº 2, do CPP  - neste sentido veja-se o decidido pelo STJ nos seus acórdãos de 5/11/2009 no processo 4800/05.TBAMD-A, de 3/2/2011 no processo 190-A/1999, de 26/4/2012 no processo 289/10.7TBPTB e de 20/3/2014 no processo nº 392/10.3TBBRG (todos em dgsi).
Vejamos.
Os arts. 249º e 295º do Código Civil (doravante com a abreviatura CC) estipulam, respectivamente:
«O simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à rectificação desta.»;
«Aos actos jurídicos que não sejam negócios jurídicos são aplicáveis, na medida em que a analogia das situações o justifique, as disposições do capítulo precedente.»
O art. 380º do CPP prevê expressamente (na parte com interesse para o caso em apreço)que:
«1- O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença quando:(…)
b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.
2- Se já tiver subido recurso da sentença, a correcção é feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer o recurso.» 

Ora, analisando o texto quer da fundamentação de facto quer da respectiva motivação do acórdão supra transcrito (aqui dado por reproduzido nessa parte) constata-se que:
Por um lado, tais alíneas i) e j) são relativas aos factos não provados e que, por mero lapso/erro de escrita, na parte final da motivação, quando se refere a estes factos [nos dois últimos parágrafos da página 52 do acórdão recorrido], o Tribunal de 1ª instância escreveu “no que concerne à factualidade considerada como provada sob a al.i. (…)sob als. j. e i. …” quando é certo e óbvio que queria ter escrito “não provada” =» por isso, impõe-se corrigir/rectificar em conformidade (sem que tal importe modificação essencial do acórdão recorrido que doravante deve ler-se), intercalando no início desses dois últimos parágrafos da página 52 o vocábulo “não” antes do vocábulo “…provada…”, passando neles a constar o segmento “..não provada..”;  
Por outro lado, o Tribunal de 1ª instância quis dar e deu como provado o facto nº 16 cujo teor é o seguinte: “A fenacetina apreendida ao arguido C seria, posteriormente, utilizada no “corte” da cocaína que os arguidos A e B transportavam”;
Para além disso, o Tribunal de 1ª instância quis dar e deu como não provado sob a alínea j) o facto de que tal substância tenha sido utilizada por estes três arguidos no “corte” dos estupefacientes que os arguidos A e B transportavam.
Pois (à semelhança da antecedente alínea i) dos factos não provados), conforme consta da respectiva motivação conjunta a propósito de ambos esses factos constantes das alíneas j) e i): “..foi a mesma assim considerada atenta a total ausência de prova que, de algum modo, a fundamentasse”.
 Isto é, seguindo o raciocínio aí exposto pelo Tribunal recorrido e no contexto do teor declarado do mesmo, não fora feita qualquer prova que permitisse a esse Tribunal considerar como provado (quem havia adquirido tal cocaína e tais passagens aéreas e) e que essa fenacetina tivesse sido utilizada por algum dos arguidos para o “corte” da cocaína apreendida nos autos =» por isso, impõe-se sanar tal ambiguidade em conformidade (sem que tal importe modificação essencial do acórdão recorrido que doravante deve ler-se) na alínea j) dos factos não provados constante da sua página 24 substituir o vocábulo “…fosse…”(dada a manifesta ambiguidade que este gerava), passando nela a constar os vocábulos “..tivesse sido..”;
Apesar de o arguido H ter na sua posse a substância fenacetina e apesar de os arguidos Tiago e Paulo terem na sua posse cocaína com distintos graus de pureza [uma embalagem contendo 201,403 gramas de cocaína com grau de pureza de 61,1%, uma embalagem contendo 2,828 gramas de cocaína em estado de pureza de 23,7% e uma embalagem contendo 99,824 gramas de cocaína com grau de pureza de 50,5%] não se logrou apurar se (antes de chegarem ao aeroporto) algum dos arguidos tivesse efectuado “corte” da/na pureza da cocaína constante de alguma dessas embalagens, utilizando tal substância apreendida.
Em suma, apenas havendo tais erros/lapsos de escrita e tal ambiguidade naquele dizer escrito que importa corrigir/sanar/eliminar, sem que tal implique qualquer alteração essencial do acórdão em apreço.
A apreciação feita pelo Tribunal colectivo de 1ª instância, nos termos exarados no texto do acórdão recorrido (supra transcritos e aqui dados por reproduzidos), não padece da alegada contradição na sua fundamentação.
Tal fundamentação é lógica, clara, inteligível a  propósito quer do apuramento da pretendida (futura)utilização da fenacetina pelos arguidos no “corte” da cocaína apreendida e quer a propósito do não apuramento sobre se (anteriormente) haviam utilizado, ou não, os arguidos tal substância para efectuar “corte” na cocaína que veio a ser apreendida.
Em suma, fazendo a sobredita sindicância ao respectivo texto da sentença em apreço, constatamos que aquele Tribunal coletivo de 1ª instância expressou de forma clara, inteligível e sem contradição, as razões pelas quais se convenceu e o sentido da decisão que tomou quanto àquela factualidade dada como provada sob o item 16 e a razão pela qual não logrou convencer-se quanto à factualidade constante dos factos não provados sob a alínea j).
Inexistindo a alegada contradição insanável da fundamentação, não merece provimento tal questão suscitada pelo arguido recorrente.

2ª questão – Há factos incorrectamente julgados ?
O arguido recorrente alega terem sido incorrectamente julgados (nos termos do art. 412º, nº 3, als. a) e b), do CPP)os factos dos itens 1 a 8 e 14 a 18 que deviam ter sido dados como não provados.
O Ministério Público considera infundada tal alegação.
Cumpre apreciar e decidir.
O erro de julgamento está previsto no art. 412º, nºs 3 a 6, do CPP, segundo o qual:
«3- Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4-Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
5-Havendo recursos retidos, o recorrente especifica obrigatoriamente, nas conclusões, quais os que mantêm interesse.
6-No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.»
Este normativo reporta-se ao modo de impugnação da matéria de facto por alegado erro de julgamento da mesma. Destinando-se à fiscalização das provas e da forma como o Tribunal recorrido formou a sua convicção a partir delas, visando a reapreciação da actividade probatória realizada pelo Tribunal da 1ª instância, da prova dela resultante e da respectiva decisão que esse Tribunal tomou quanto à matéria de facto respectiva.
Sendo exemplo deste tipo de erro de julgamento quando o Tribunal tenha dado como provado um facto acerca do qual não tenha sido produzida prova e que, por isso, deveria ter sido dado como não provado ou, então, a sua situação inversa.
Mas [conforme explicitam os ensinamentos doutrinais de Paulo Pinto de Albuquerque (em “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª edição, pág. 1144) e de Paulo Saragoça da Mata (em “A Livre Apreciação da prova e o Dever de Fundamentação da Sentença” nas Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, edição Almedina Coimbra 2004, pág. 253) e os ensinamentos jurisprudenciais constantes dos acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 59/2006 e 312/2012 (em dgsi.pt), do acórdão de uniformização de jurisprudência nº 10/2005 de 20/10/2005 (em Diário da República I-A de 7-12-2005) e do acórdão do STJ de 3/2012, de fixação de jurisprudência, de 8/3/2012 (em Diário da República 1ª série, nº 77 de 18/4/2012]: Esta impugnação da matéria de facto (conhecida como impugnação ampla da matéria de facto) tem alguns limites, na medida em que não importa a feitura de um novo julgamento pelo Tribunal de recurso, estando condicionada ao cumprimento por parte do recorrente dos seguintes deveres aquando da motivação e das conclusões de recurso:
. a especificação dos concretos pontos de facto que considere incorrectamente julgados e como concretamente deveriam ser modificados, apresentando a respectiva versão factual;
. a especificação das concretas provas que imponham decisão diversa relativamente a cada um dos respectivos pontos impugnados da decisão recorrida e com indicação concreta e individualizada das particulares passagens/excertos da gravação da audiência nas quais ficaram as frases (dos depoimentos e/ou das declarações) que se referem ao respectivo facto impugnado e em que alicerça a divergência -  não bastando a mera referência às rotações correspondentes ao início e ao fim da respectiva gravação consignada em acta -. Apresentando não só a sua versão probatória factual, como também o conteúdo específico de cada meio de prova transcrito na parte que imponha decisão diversa da recorrida, correlacionando comparativamente com o facto individualizado que considere erradamente julgado;
. se for caso disso, a especificação de provas que devam ser renovadas e com indicação concreta das passagens da gravação da audiência por referência ao consignado na acta.

Voltando ao caso em apreço, o arguido recorrente (C) considera que não foi produzido qualquer meio de prova que permitisse, directamente, ao Tribunal recorrido dar como provada tal factualidade no tocante a si, isto é, a propósito da sua envolvência com os arguidos A e B no plano pré-acordado considerado nos autos ou a propósito de qualquer outro plano pré-acordado entre os três arguidos. Mais considera o arguido recorrente que, para o efeito, não basta estar demonstrado que todos se encontravam no aeroporto de Lisboa com intentos de viajar e que, após um alerta policial quanto a uma possível transacção ilícita de estupefacientes para os Açores, tenham as testemunhas policiais feito a intervenção policial e descrito em Tribunal as demais diligências efectuadas. Não tendo essas testemunhas, nem quaisquer outras feito qualquer referência a uma possível ligação do arguido recorrente aos demais co-arguidos A e B. Mais acrescenta que as declarações destes arguidos Tiago e A não mereceram e não merecem qualquer valoração (conforme certeiramente o Tribunal recorrido referiu), porquanto os mesmo impediram que fosse realizado um contraditório pleno (ao recusarem responder às perguntas formuladas pelo mandatário do arguido recorrente).
Ora, efectivamente, o Tribunal recorrido não valorou as declarações dos coarguidos na parte em que incriminaram o arguido recorrente, porque tal lhe estava vedado face à ressalva expressamente contida no art. 345º, nº 4, do CPP, segundo o qual: «Não podem valer como meio de prova as declarações de um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando o declarante se recusar às preguntas formuladas nos termos dos nºs 1 e 2».
Desta forma, o legislador permite que qualquer arguido se remeta ao silêncio, durante a audiência de discussão e julgamento, quanto às perguntas sobre os factos.
Mas, caso opte por prestar declarações quanto aos factos em prejuízo de outro coarguido (incriminando-o) e depois se recuse (no exercício do direito ao silêncio) a responder às perguntas formuladas a instâncias desse outro coarguido (por ele incriminado), então, tais declarações não podem valer como meio de prova contra esse outro coarguido por não ter havido o exercício do contraditório – sendo inúmera a Jurisprudência quer do Tribunal Constitucional quer do Supremo Tribunal de Justiça a este propósito e constantes da anotação a esse artigo feita por Oliveira Mendes (em “Código de Processo Penal Comentado”, 3ª edição revista, págs.1074 a 1077)e por Paulo Pinto de Albuquerque (em “Comentário ao Código de Processo Penal”, 4ª edição actualizada, págs. 894 a 896).  
Pois bem, no caso em apreço, o Tribunal Colectivo recorrido observou (e muito bem) esta limitação legal e (perante a recusa dos coarguidos A e B em responderem às perguntas formuladas a instâncias do coarguido C), não atentou ao teor incriminatório contido nas declarações daqueles relativamente a este sem sujeição ao contraditório – sob pena de que seria uma prova ilegal/proibida nos termos conjugados daquela ressalva contida no art. 345º, nº 4, e do disposto no art. 125º, ambos do CPP.
Porém, o Tribunal coletivo recorrido atentou à conjugação de toda a demais prova produzida nos autos, cuja apreciação crítica e conjugada esse Tribunal efectuou, à luz das regras de experiência comum, de verosimilhança dos factos, de lógica, nos termos expressamente mencionados, tanto mais beneficiando esse mesmo Tribunal dos princípios da oralidade e da imediação da prova, e que o levou a formular a convicção sobre a veracidade da respectiva factualidade dada como assente.
O Tribunal colectivo da 1ª instância explicitou, de forma clara e detalhada, quais os concretos meios probatórios e os motivos pelos quais valorou as provas naquele sentido e lhes atribuiu aquele significado global e não outro. 
Aliás, se fosse atendida a argumentação do arguido recorrente não seria legítimo o recurso à prova indirecta, ainda que conjugada com outros meios probatórios - sem incluir declarações dos coarguidos que (no exercício de um legítimo direito) se remeteram ao silêncio às perguntas a instâncias do arguido recorrente.
Ao contrário do que parece entender o arguido recorrente, a prova dos factos tanto pode resultar da prova directa dos mesmos, como também pode resultar de prova indirecta ou indiciária, a qual, devidamente valorada, permite fundamentar uma condenação.
Aliás, neste caso (como em muitos outros em que, por exemplo, todos os arguidos se remetam ao silêncio) o recurso à prova indiciária é um meio de racionalmente analisar e ordenar o acervo probatório.
Pois, neste tipo de crimes, muitas são as situações em que o julgador não tem ao seu dispor a chamada prova directa, importando recorrer à prova indirecta ou indiciária para, sobre ela, sustentada que esteja em origens diversas e mostrando-se os vários indícios concordantes de modo a reflectirem um conjunto coerente e natural, fazer actuar presunções que, apelando a juízos da experiência e de normalidade, possibilitem a formação do grau de convicção exigível quanto à efectiva ocorrência dos factos criminosos.
A jurisprudência dos Tribunais Superiores mostra-se firme relativamente à admissibilidade da prova indirecta e aponta o percurso que deve seguir o tribunal no caminho da busca da verdade através da análise de diversos indícios à luz das regras de experiência da vida.
Como se refere no Acórdão do STJ de 27/5/2010 no Proc. 86/08.0GBPRD.P1.S1 (em dgsi.pt): encontra-se universalmente consagrado o entendimento, desde logo quanto à prova dos factos integradores do crime, de que a realidade das coisas nem sempre tem de ser directa e imediatamente percepcionada, sob pena de se promover a frustração da própria administração da justiça. Deve procurar-se aceder, pela via do raciocínio lógico e da adopção de uma adequada coordenação de dados, sob o domínio de cauteloso método indutivo, a tudo quanto decorra, à luz das regras da experiência comum, categoricamente, do conjunto anterior circunstancial. Pois que, sendo admissíveis, em processo penal, as provas que não foram proibidas pela lei (cf. art. 125.º do CPP), nelas se devem ter por incluídas as presunções judiciais (cf. art. 349º do CC).
Conforme refere o Acórdão do STJ no Proc. 86/08.0GBPRD.P1.S1 (em dgsi.pt): As presunções judiciais consistem em procedimento típico de prova indirecta, mediante o qual o julgador adquire a percepção de um facto diverso daquele que é objecto directo imediato de prova, sendo exactamente através deste que, uma vez determinado, usando do seu raciocínio e das máximas da experiência de vida, sem contrariar o princípio da livre apreciação da prova, intenta formar a sua convicção sobre o facto desconhecido (acessória ou sequencialmente objecto de prova).
A noção de presunção (noção geral, prestável como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos, e por isso válida também, no processo penal) consta do artigo 349.º do Código Civil: «presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido».
Importam, neste âmbito, as chamadas presunções naturais ou “hominis” que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido.
As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência: o juiz, valendo-se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto.
Conforme os ensinamentos de Vaz Serra (em “Direito Probatório Material”, BMJ, n.º 112, pág. 190): Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência […] ou de uma prova de primeira aparência. Em formulação doutrinariamente bem marcada e soldada pelo tempo, as presunções devem ser graves, precisas e concordantes. São graves, quando as relações do facto desconhecido com o facto conhecido são tais, que a existência de um estabelece, por indução necessária, a existência do outro. São precisas, quando as induções, resultando do facto conhecido, tendem a estabelecer, directa e particularmente, o facto desconhecido e contestado. São concordantes, quando, tendo todas uma origem comum ou diferente, tendem, pelo conjunto e harmonia, a firmar o facto que se quer provar.
Deste modo, a presunção permite que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente, certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do “id quod” e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção.

Ora, voltando ao caso concreto, o arguido recorrente pode discordar  (no legítimo exercício de um direito que lhe assiste) da valoração feita pelo tribunal “a quo” relativamente à prova indiciária.
Mas, não pode nem deve aquele (como é um erro comum na prática judiciária dos nossos tribunais) renegar qualquer outra prova que não a directa, ignorando ou pretendendo ignorar que a prova indirecta ou indiciária pode assumir exactamente o mesmo valor, senão superior. E esta divergência de perspectivas entre o arguido recorrente e o Tribunal recorrido não significa (nem pode significar) que houve um erro de julgamento factual.
Conforme resulta da factualidade apurada (nos termos supra transcritos e aqui dados por reproduzidos), os três arguidos C, A e B haviam efectuado um plano criminoso e na execução do mesmo foram encontrados no aeroporto de Lisboa com intenção de viajarem até aos Açores, onde se propunham vender cocaína que os arguidos A e B transportavam consigo e que seria “cortada” com a fenacetina que o arguido C transportava consigo.
E só não concretizaram tais intentos por facto totalmente alheio à vontade dos mesmos – face ao alerta anónimo recebido pelas autoridades policias e à revista efectuada por estas aos arguidos Tiago e Paulo com apreensão da cocaína que estes traziam consigo e à apreensão da canabis que o arguido Hugo tinha consigo e de um saco contendo fenacetina que o arguido Hugo trazia consigo e que lhe caíra ao chão quando se despia na unidade hospitalar à qual fora conduzido após aquela intervenção policial.
Todos eles assim agiram sabendo da natureza estupefaciente daqueles produtos (cocaína e canábis) e que tais condutas eram proibidas e punidas por lei.
Ora, conforme resulta explicitado na motivação decisória (supra transcrita e aqui dada por reproduzida) o Tribunal recorrido formou a sua convicção com base na valoração conjunta e crítica do acervo probatório constante dos autos (nomeadamente: do auto de notícia; dos autos de apreensão; dos autos de exame e avaliação; dos fotogramas; dos relatórios dos exames de toxicologia do Laboratório de Polícia Científica da PJ) e da prova produzida em audiência de julgamento(nomeadamente: as declarações do arguido C, as declarações da arguida D e das testemunhas agentes da PSP).
Também resulta explicitado nessa motivação decisória, a apreciação dos respectivos meios probatórios a propósito da formação da sua convicção, com grande detalhe e clareza (nomeadamente: as razões pelas quais não mereceu credibilidade a versão do arguido Hugo quer a propósito das deslocações aos Açores na companhia dos demais arguidos, quer a propósito da detenção da canábis e da fenacetina; a valoração da parte das declarações deste arguido a propósito da relação amorosa com a arguida, da relação familiar com o arguido Paulo e da grande amizade com o arguido Tiago, da sua antecedente viagem aos Açores o arguido Tiago e da viagem conjunta dos 4 arguidos aos Açores, da compra pela arguida a seu pedido, do encontro conjunto na véspera quer no próprio dia; as razões pelas quais mereceram credibilidade as declarações da arguida a propósito da compra da viagem aérea para os 4 em conjunto a pedido do arguido Hugo e o depoimento daquelas testemunhas agentes policiais; as regras da normalidade e da experiência comum a propósito quer da respectiva motivação, quer da dispersão dos vários produtos pelos três arguidos de sexo masculino, quer da utilização dada à fenacetina).

O arguido recorrente olvida a validade e o respectivo  valor probatório dessa apreciação conjugada e crítica feita pelo Tribunal Coletivo recorrido, incluindo com recurso à prova indirecta.
Afigurando-se-nos como perfeitamente razoável todo esse processo de formação dessa convicção do Tribunal colectivo recorrido – irrelevando que o arguido recorrente (fazendo  tábua rasa de toda aquela sobredita apreciação) pretenda substituir-se àquele (que teve de o julgar) pretendendo que aquele não tivesse formado tal convicção.
Sendo certo que o Tribunal “a quo” alcançou a sua convicção ponderando de forma conjugada e crítica o conjunto da prova produzida (nos termos supra-transcritos e aqui dados por reproduzidos), a qual se mostrou devidamente fundamentada, expondo de forma clara e segura as razões que fundamentam a sua opção, justificando os motivos que levaram a dar credibilidade à versão dos factos descrita na pronuncia e permitindo aos sujeitos processuais e a este Tribunal de recurso proceder ao exame do processo lógico ou racional que esteve subjacente à convicção do julgador coletivo da 1ª instância.
Através da motivação da decisão da matéria de facto constante da decisão recorrida fica-se ciente do percurso efectuado pelo Tribunal “a quo” onde seguramente a racionalidade se impõe, mas onde a livre convicção se afirma com apelo ao que a imediação e a oralidade, e só elas, conseguem conceber, espelhando aquela decisão o confronto crítico das versões dos factos, explicitando o resultado desse confronto e justificando a convicção formada quanto à matéria em causa, de forma lógica e de acordo com as regras da experiência comum que indica e não foram contrariadas pela argumentação do arguido recorrente.
Assim, não se evidenciando qualquer afrontamento às regras da experiência comum, ou qualquer apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis, nenhuma censura pode merecer o juízo valorativo (conjunto, lógico e detalhado) acolhido em 1ª instância.
Conforme tão cristalinamente refere o Acórdão do STJ de 12/3/2008 do Exmo relator Santos Cabral (em dgsi): “O direito ao silêncio não pode ser valorado contra o arguido. Porém, a proibição de valoração incide apenas sobre o silêncio que o arguido adoptou como estratégia processual, não podendo repercutir-se na prova produzida por qualquer meio legal, designadamente a que venha a precisar e demonstrar a responsabilidade criminal do arguido, revelando a falência daquela estratégia.(…) Inexiste no nosso ordenamento jurídico um direito a mentir; a lei admite, simplesmente, ser inexigível dos arguidos o cumprimento do dever de verdade. Contudo, uma coisa é a inexigibilidade do cumprimento do dever de verdade e outra é a inscrição de um direito do arguido a mentir, inadmissível num Estado de Direito.

O arguido recorrente olvida que ao tomar a decisão de falar sobre os factos (apesar de lhe assistir o direito ao silêncio) não significa que lhe assista o direito de mentir.
Tão pouco lhe assiste o direito de pretender vincular o Tribunal a acreditar na sua versão relativamente aos factos sobre os quais pretendeu prestar declarações.
E, face à descredibilização da sua versão (perante os olhos atentos do Tribunal), muito menos lhe assiste o direito de impedir o Tribunal de avaliar e apreciar tais declarações para incriminar o próprio arguido declarante e recorrente.
Essas suas declarações do arguido recorrente, prestadas durante a audiência, podem ser livremente apreciadas pelo Tribunal e servir de suporte para a sua condenação, não existindo qualquer violação ao princípio da não auto-incriminação.
Não se pode comungar da pretendida concepção de privilégio por não auto-incriminação em que apenas poderiam ser valoradas as declarações prestadas por este arguido recorrente que lhe fossem favoráveis – aliás, tal não tem o mínimo suporte legal e poderia, no limite, levar a uma proibição absoluta da valoração da confissão.

O arguido recorrente, também, olvida que para a prática de um crime em co-autoria não é necessário que todos os coarguidos pratiquem os mesmos actos materiais - foi isso mesmo que sucedeu no caso em apreço.
Como sabemos, a este respeito prevê o art. 26º do Código Penal: «É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução
Desta forma, dada a contribuição de cada um dos co-autores, o legislador pretendeu que tais comportamentos proibidos sejam punidos como se fossem integralmente realizados por um único agente.
Caso contrário, não poderia ser punido pela prática daquele tipo de crime, por exemplo, o agente que apenas tivesse prestado auxílio ao seu cometimento ou que tivesse, em colaboração com outro ou outros e por acordo com eles, realizado uma parte da conduta típica e os restantes praticando os demais actos necessários à consumação do crime.
Conforme escreveram, em anotação ao art. 26° do Código Penal, Leal Henriques e Simas Santos (edição 1991,vol.1, págs. 190-197): "…para incorrer na co-autoria de um crime precedido de um plano, quando nele participaram vários agentes, não é necessário que todos eles tenham tido intervenção na elaboração desse plano. Basta que vários agentes participem na execução de actos que integrem a conduta criminosa, não sendo, contudo, necessário que intervenha em todos eles, desde que actue conjugadamente e em comunhão de esforços, no sentido de alcançar o objectivo criminoso…".

Voltando ao caso em apreço, está indiciado o facto de o arguido recorrente saber da natureza e características estupefacientes dos produtos em apreço, que a mera detenção, venda ou cedência de tais produtos era proibida, configurando uma prática criminosa e tal modo de actuação deliberado e concertado deste arguido, em conjunto com os demais dois arguidos, dividindo tarefas entre si, conforme veio a suceder, com o objectivo de lograrem transportar para o arquipélago dos Açores a cocaína recebida para aí ser distribuída e que só não veio a suceder por facto alheio à vontade dos arguidos, configura o imputado tráfico de estupefacientes.
Não sendo pelo mero facto de o arguido recorrente ter rejeitado tal versão e de não ter sido encontrado na posse de qualquer cocaína (nas apuradas circunstâncias de tempo, modo e lugar) que, por si só, o Tribunal estava impedido de o considerar como co-autor dos arguidos que transportavam a cocaína (nas apuradas circunstâncias de tempo, modo e lugar).

O arguido recorrente olvida, também, que para a procedência do alegado vício decisório factual não bastaria que a sua (subjectiva) versão dos factos fosse possível e fosse consentânea ao (seu pretendido) não apuramento dos imputados factos.
Conforme já vimos, nesta sede recursiva sobre a matéria de facto, este Tribunal Superior não efectua um novo julgamento sobre o objecto do processo, sendo a impugnação da matéria de facto um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros “in judicando” ou “in procedendo”, que um recorrente deve expressamente indicar, daí que se lhe imponha a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação (nos termos do art. 412º, nº 3, do CPP).
Não bastando, pois, que um recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção “era possível”.
Sempre sendo imperiosa a demonstração de que as provas indicadas impõem uma outra convicção. Torna-se necessário que o recorrente demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais. Em suma, que demonstre não só a possível incorrecção decisória,  mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.
Tudo isto vem para se dizer que o trabalho que cabe ao Tribunal da Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1ª. instância, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado.
O Tribunal da Relação só pode/deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.
Conforme tão sugestivamente refere o Acórdão do STJ de 18/1/2018 no processo 563/14.3TABRG.S1 (em dgsi): A utilização do termo “impor” no artigo 412.º do Código de Processo Penal “…revela que para o legislador essa alteração terá de ter um grau de exigência elevado, ou seja, que ela só ocorrerá se a prova invocada for suficientemente forte não só para colocar algumas dúvidas, mas para determinar sem lugar a dúvidas razoáveis uma decisão diferente. Se o tribunal de recurso concluir somente que as provas admitem outra solução não haverá lugar à alteração dos factos.

Posto isto, resta referir que – contrariamente ao entendimento do arguido recorrente – não se afigura que tal apreciação feita por esse Tribunal colectivo recorrido  tenha atentado contra o princípio da livre apreciação da prova (previsto no art. 127º do CPP), nem tão pouco contra o princípio da não presunção de culpa (previsto no art. 32º, nº 2, da CRP).
O princípio da livre apreciação da prova significa que prova é apreciada, pelo julgador (singular ou coletivo) em busca da verdade material, segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, mas sem que isso signifique ou equivalha a uma apreciação infundamentada, arbitrária ou abusiva.
Apenas e tão só o legislador quis realçar que (em regra) inexistem regras legais que atribuam valor específico, valor pré-determinado às provas ou que estabeleçam uma hierarquia entre as provas [com excepção: da confissão integral e sem reservas (nos termos do art. 344º, nº 2, do CPP), da prova pericial (nos termos do art. 163º, nº 1, do CPP) e da prova documental autêntica e autenticada (nos termos do art. 169º do CPP)] e  que todos os meios de prova não proibidos (nos termos do art. 126º do CPP e do art. 32º, nº 8, da CRP) são admissíveis (nos termos do art. 125º do CPP) – a este propósito confira as unânimes doutrina e jurisprudência constantes do já citado “Código de Processo Penal Comentado” (por Exmo Juiz Conselheiro Santos Cabral, págs. 418 a 434 da 3ª Edição Revista).
Quer isto dizer que se trata de uma liberdade (do julgador singular ou coletivo) com um dever: o dever de perseguir a verdade material de cada caso concreto. Verdade esta obtida pelo conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos e que não tem de ser absoluta, pois, tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano. E, assim, a lei o faz reflectir quando menciona expressamente (no art. 127º do CPP) que a prova é apreciada segundo as regras da experiência humana.
E no cumprimento deste dever ou princípio da persecução da verdade material, a apreciação e convicção (singular ou coletiva) do julgador, perante os meios probatórios de cada caso concreto (e as sobreditas regras legais quanto aos mesmos), é sempre uma convicção objectivada e motivada.
E na formação dessa convicção, perante a produção da prova em audiência de julgamento, a apreciação do julgador (singular ou coletivo) - condicionada pelo princípio da persecução da verdade material -, assenta na verdade prático-jurídica humana: em que se inclui não só uma actividade puramente cognitiva; mas também se incluem elementos racionalmente não explicáveis, tais como a experiência, a emoção e a intuição que permitem ao julgador (singular ou colectivo) aperceber-se da personalidade de certo declarante e/ou depoente e/ou de traços denunciadores da isenção (ou falta dela), de imparcialidade (ou falta dela) e de certeza (ou falta dela), então revelados e com a inerente credibilidade concedida (ou não) ao respectivo declarante e/ou depoente – como, por exemplo, pela voz, por gestos, por comoções/emoções, por expressões faciais, por hesitações, por pausas - tudo melhor captado com a imediação e a oralidade da audiência.
Assim se obtendo a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis) – cfr. a este propósito os ensinamentos doutrinais de Figueiredo Dias (em “Lições de Direito Processual Penal”, págs. 135 e segs. ou em “Direito Processual Penal”, 1º. Vol., págs. 203-205).
Em suma, a prova tem como função a demonstração da realidade dos factos (nos termos do art. 341º, nº 1, do Código Civil), sem que ela pressuponha uma certeza absoluta ou lógico-matemática, bastando que ela permita alcançar um grau de certeza tal que é capaz de afastar toda a dúvida razoável - não qualquer dúvida, mas só a dúvida fundada em razões adequadas.
sendo, por isso, aplicável o princípio “in dubio pro reo”  quando haja uma dúvida razoável geradora de um estado de incerteza quanto aos factos integradores de um crime imputado a um arguido.
Este princípio é limite normativo daquele outro  princípio (da livre apreciação da prova) na medida em que impõe ao tribunal (singular ou colectivo) que decida em favor do arguido se [em face daquela livre apreciação e prossecução da verdade material,  nessa sua missão de julgar], ficar com uma dúvida razoável.

Voltando ao caso em apreço, não se nos afigura que a apreciação do Tribunal colectivo recorrido tivesse sido infundamentada, arbitrária ou abusiva e/ou que os Exmos Juízes de 1ª instância, no seu percurso lógico-dedutivo, motivado e objectivado tivessem tido uma dúvida razoável sobre a veracidade dos factos imputados ao co-arguido C, tivessem persistido um “non liquet”/estado de incerteza e que, em vez de presumirem a inocência deste co-arguido, tenham presumido a sua culpa e que, agora, por isso e sem margem para dúvidas razoáveis, se impusesse uma decisão diversa quanto a este arguido recorrente.
Sendo de notar que - contrariamente à visão ou perspectiva  subjectiva deste co-arguido (parte no processo) -, o Tribunal colectivo de 1ª instância (Julgador no processo) esforça-se, objectivamente, para alcançar a verdade material, em face da prova constante dos autos, imprimindo “à prova a marca da razoabilidade ou racionalidade objectiva” – usando as palavras expressivas de Cristina Líbano Monteiro (em “Perigosidade de Inimputáveis e «In Dubio Pro Reo», Coimbra Editora, 1997, págs. 51-53).
Pelo que, o sistema de livre apreciação da prova (genericamente consagrado no art. 127º do CPP) assenta na liberdade do/a Julgador/a, perante a inexistência de valor específico pré-determinado das provas ou que estabeleça alguma hierarquia entre elas [com excepção da confissão integral e sem reservas do arguido; da prova pericial e dos documentos autênticos, cujo valor probatório se encontra legalmente pré-estabelecido], na admissibilidade de todos os meios de prova em geral [de que decorre a equiparação da prova directa à prova indirecta ou por presunções judiciais], desde que não incluídos na previsão do art. 126º do CPP.  Sem que esta apreciação livre seja (nem podendo ser) uma apreciação arbitrária da prova constante dos autos.
Em suma, não se descortinando o alegado erro de julgamento, não merece provimento tal questão suscitada pelo arguido recorrente.


Do recurso do Ministério Público

1ª– Há factos incorrectamente julgados ?
O Ministério Público considera ter havido erro de julgamento relativamente aos factos constantes das alíneas b) e i) dos factos não provados (nos termos previstos pelo art. 412º, nº 3, do CPP), alegando que tais factos deviam de ter sido dados como provados face ao teor das declarações que os coarguidos A e B haviam prestado numa sessão da audiência com respeito do princípio do contraditório.
O arguido C refuta tal, considerando que tais declarações não fora nem podem ser valoradas por não ter sido exercido um contraditório pleno face à recusa desses coarguidos, numa outra sessão da audiência, a responderem a instância do arguido recorrente.
Cumpre apreciar e decidir.
Conforme já vimos, o erro de julgamento da matéria de facto  está previsto no art. 412º, nºs 3 a 6, do CPP, segundo o qual:
«3- Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4- Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
5- Havendo recursos retidos, o recorrente especifica obrigatoriamente, nas conclusões, quais os que mantêm interesse.
6- No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa
Este normativo reporta-se ao modo de impugnação da matéria de facto por alegado erro de julgamento da mesma. Destinando-se à fiscalização das provas e da forma como o Tribunal recorrido formou a sua convicção a partir delas, visando a reapreciação da actividade probatória realizada pelo Tribunal da 1ª instância, da prova dela resultante e da respectiva decisão que esse Tribunal tomou quanto à matéria de facto respectiva.
Sendo exemplo deste tipo de erro de julgamento quando o Tribunal tenha dado como não provado um facto acerca do qual tenha sido produzida prova e que, por isso, deveria ter sido dado como provado ou, então, a sua situação inversa.
Mas [conforme explicitam os ensinamentos doutrinais de Paulo Pinto de Albuquerque (em “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª edição, pág. 1144) e de Paulo Saragoça da Mata (em “A Livre Apreciação da prova e o Dever de Fundamentação da Sentença” nas Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, edição Almedina Coimbra 2004, pág. 253) e os ensinamentos jurisprudenciais constantes dos acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 59/2006 e 312/2012 (em dgsi.pt), do acórdão de uniformização de jurisprudência nº 10/2005 de 20/10/2005 (em Diário da República I-A de 7-12-2005) e do acórdão do STJ de 3/2012, de fixação de jurisprudência, de 8/3/2012 (em Diário da República 1ª série, nº 77 de 18/4/2012]: Esta impugnação da matéria de facto (conhecida como impugnação ampla da matéria de facto) tem alguns limites, na medida em que não importa a feitura de um novo julgamento pelo Tribunal de recurso, estando condicionada ao cumprimento por parte do recorrente dos seguintes deveres aquando da motivação e das conclusões de recurso:
. a especificação dos concretos pontos de facto que considere incorrectamente julgados e como concretamente deveriam ser modificados, apresentando a respectiva versão factual;
. a especificação das concretas provas que imponham decisão diversa relativamente a cada um dos respectivos pontos impugnados da decisão recorrida e com indicação concreta e individualizada das particulares passagens/excertos da gravação da audiência nas quais ficaram as frases (dos depoimentos e/ou das declarações) que se referem ao respectivo facto impugnado e em que alicerça a divergência -  não bastando a mera referência às rotações correspondentes ao início e ao fim da respectiva gravação consignada em acta -. Apresentando não só a sua versão probatória factual, como também o conteúdo específico de cada meio de prova transcrito na parte que imponha decisão diversa da recorrida, correlacionando comparativamente com o facto individualizado que considere erradamente julgado;
. se for caso disso, a especificação de provas que devam ser renovadas e com indicação concreta das passagens da gravação da audiência por referência ao consignado na acta.
    
No caso em apreço, o Digno Ministério Público recorrente veio invocar tal erro de julgamento factual, alegando que os factos dados como não provados sob as alíneas b) e i) deviam de ter sido dados como provados face ao teor das gravadas declarações dos coarguidos Paulo e Tiago, numa das sessões da audiência, as quais comprovam a pretendida incriminação do coarguido Hugo e que este exercera o respectivo contraditório nessa sessão da audiência.
Mas, para o efeito este Digno recorrente não fez uma indicação concreta e individualizada das exactas passagens/excertos da gravação da audiência, nem concretamente transcrevendo quais as frases das respectivas declarações dos coarguidos que se referem aos respectivos factos por si impugnados, apenas fazendo referência aos minutos do início e do termo da respectiva gravação.
Para além disso, esta impugnação factual está (apenas) sustentada em provas proibidas, mais concretamente, baseando-se nas declarações dos coarguidos A e B, incriminando o coarguido C aquando de uma das sessões da audiência de discussão e julgamento.
Pois, conforme já vimos, as declarações dos coarguidos A e B incriminando o coarguido Nuno não foram atendidas, nem valoradas pelo Tribunal colectivo recorrido e não o podiam ser porque tal lhe estava vedado face à ressalva expressamente contida no art. 345º, nº 4, do CPP.
Vejamos este preceito legal:
«Artigo 345º - Perguntas sobre os factos
1-Se o arguido se dispuser a prestar declarações, cada um dos juízes e dos jurados pode fazer-lhe perguntas sobre os factos que lhe sejam imputados e solicitar-lhe esclarecimentos sobre as declarações prestadas. O arguido pode, espontaneamente ou a recomendação do defensor, recusar a resposta a algumas ou a todas as perguntas, sem que isso o possa desfavorecer.
2-O Ministério Público, o advogado do assistente e o defensor podem solicitar ao presidente que formule ao arguido perguntas, nos termos do número anterior.
3-Podem ser mostrados ao arguido quaisquer pessoas, documentos ou objectos relacionados com o tema da prova, bem como peças anteriores do processo, sem prejuízo do disposto nos artigos 356.º e 357.º
4-Não podem valer como meio de prova as declarações de um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando o declarante se recusar às preguntas formuladas nos termos dos nºs 1 e 2».

Através deste preceito legal, o nosso legislador permite que, durante a audiência de julgamento, qualquer arguido se remeta ao silêncio quanto às perguntas sobre os factos.
Mas, caso um arguido opte, em qualquer momento da audiência, por prestar declarações quanto aos factos em prejuízo de outro coarguido (incriminando-o) e, depois, aquele se recuse (no exercício do direito ao silêncio) a responder a todas ou a alguma das perguntas formuladas a instâncias do outro coarguido (por ele incriminado), então, tais declarações não podem valer como meio de prova contra o outro coarguido incriminado por não ter havido o exercício do contraditório (só podendo valer contra o próprio coarguido incriminador ao abrigo do direito deste à sua própria auto-incriminação) – sendo inúmera a Jurisprudência quer do Tribunal Constitucional quer do Supremo Tribunal de Justiça a este propósito e constante da anotação a esse artigo feita por Oliveira Mendes (em “Código de Processo Penal Comentado”, 3ª edição revista, págs.1074 a 1077) e por Paulo Pinto de Albuquerque (em “Comentário ao Código de Processo Penal”, 4ª edição actualizada, págs. 894 a 896).
  
Regressando ao caso em apreço, o Tribunal Colectivo recorrido observou (e muito bem) esta limitação legal e perante a recusa dos coarguidos A e B em responderem às perguntas formuladas a instâncias do coarguido C, numa das sessões da audiência de discussão e julgamento deste processo, esse Julgador coletivo não atentou ao teor incriminatório contido nas declarações daqueles relativamente a este sem sujeição ao contraditório pleno – sob pena de que seria uma prova ilegal/proibida nos termos conjugados daquela ressalva contida no art. 345º, nº 4, do CPP (a propósito das declarações incriminatórias dos arguidos em audiência de julgamento) e do disposto no art. 125º do CPP (a propósito das provas em processo penal e segundo o qual: «Só são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei»).
A proibição ressalvada nestes preceitos legais não se compadece com o espartilhamento pretendido pela Digna Procuradora do Ministério Público/recorrente a propósito das declarações prestadas pelos coarguidos A e B aquando de uma (no dia 23/6/2022) das sessões da audiência de discussão e julgamento da presente lide e da recusa de declarações por parte destes mesmos coarguidos aquando de uma outra (no dia 7/7/2022) sessão da audiência de discussão e julgamento da presente lide.

Pois, a proibição contida no nº 4 do art. 345º do CPP [que foi aditada ao CPP pela Lei nº 48/2007, de 29-8 na sequência da reconhecida inconstitucionalidade - nomeadamente no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 524/97, de 14-7-1997-, por violação do artigo 32.º,n.° 5, da CRP, com referência aos artigos 133º, 343º e 345º, do CPP] abrange todas e quaisquer declarações de um coarguido que incriminando outro coarguido se recuse a responder a quaisquer perguntas formuladas a instâncias deste coarguido incriminado - independentemente de tais declarações terem sido prestadas numa só ocasião ou em várias ocasiões, nenhuma delas pode ser valorada.
Aliás, compreende-se esta opção do legislador em exigir o contraditório (pleno) relativamente aos coarguidos incriminadores que escolhem prestar declarações (em qualquer momento da audiência).
Pois, independentemente do número de sessões que tenha uma audiência de discussão de um processo criminal, isto é, mesmo que o seu início e o seu termo não ocorram numa mesma ocasião temporal, essa audiência é sempre unitária/uma só audiência de discussão e julgamento desde a sua abertura até ao seu encerramento (cfr. os arts. 338º a 361º do CPP).
Por isso, depois de efectuadas as declarações incriminatórias de algum co-arguido, sempre assistira ao coarguido incriminado o direito de, até ao encerramento da audiência de discussão desse mesmo processo, solicitar a formulação de questões e/ou esclarecimentos aos arguidos incriminadores.

Voltando ao caso concreto destes autos e até ao encerramento da audiência de discussão desta lide criminal, sempre assistira ao coarguido incriminado (Hugo) o direito de questionar os coarguidos incriminadores (Tiago e Paul) e/ou o direito de solicitar-lhes esclarecimentos, em qualquer momento da audiência e sobre qualquer uma das declarações incriminatórias destes.
Por isso, as declarações dos coarguidos incriminadores não se podiam cindir (conforme bem julgou o Exmo Tribunal recorrido), nem se poderão cindir (contrariamente à pretensão da Exma Procuradora do Ministério Público recorrente) em prejuízo do coarguido incriminado que não exerceu, plenamente, o direito ao contraditório perante a referida recusa daqueles, numa das sessões da audiência de discussão, impedindo-o de submetê-las ao contraditório (que é um direito constitucionalmente consagrado no art. 32º, nº 5, da CRP) – cfr. a este propósito Germano Marques da Silva (em “Curso de Processo Penal II, Noções Gerais, Elementos do processo penal”,6ª edição pág. 534), o Acórdão do STJ de 12-3-2008 do Exmo relator Santos Cabral e o Acórdão do STJ de 15/4/2015 da Exma relatora Isabel Pais Martins (acessíveis na dgsi).
Por conseguinte, sendo negativa a resposta à questão em apreço, fica prejudicada a questão subsequente que a Digna Procuradora do Ministério Público havia suscitado porque dependente de uma resposta afirmativa a esta sua primeira questão (que não mereceu provimento).

DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em :
I–Determinar as seguintes correcções no acórdão:
- No início dos dois últimos parágrafos da sua página 52 intercalar o vocábulo “não” antes do vocábulo “…provada…”, passando neles a constar o segmento “..não provada..” (dado tratarem-se de manifestos lapsos/erros de escrita);  
- Na alínea j) dos factos não provados constante da sua página 24 substituir o vocábulo “…fosse…”, passando nela a constar os vocábulos“..tivesse sido..” (dada a manifesta ambiguidade que aquele gerava);

IIJulgar improcedentes os recursos em apreço que haviam sido interpostos pelo arguido C e pelo Ministério Público, mantendo-se o acórdão recorrido sem prejuízo das sobreditas correcções.
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Custas a cargo do recorrente C no tocante ao decaimento total quanto ao seu recurso (art. 513º, nº1, do CPP).
Sem custas a cargo do Ministério Público atenta a sua isenção (art. 522º do CPP). 
Notifique.
D.n.

(Texto elaborado pela relatora, revisto pelos signatários e com assinatura digital de todos)


                                               
Lisboa,09 de março de 2023 


                             
A Juiz Desembargadora Relatora
Paula de Sousa Novais Penha
O Juiz Desembargador Adjunto   
Carlos da Cunha Coutinho
A Juiz Desembargadora Adjunta
Raquel Correia de Lima