COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
COMPETÊNCIA MATERIAL
CONCORRÊNCIA DESLEAL
JUÍZOS CÍVEIS
TRIBUNAL DA PROPRIEDADE INTELECTUAL
Sumário

Pertence aos Juízos Cíveis e não ao Tribunal da Propriedade Intelectual, a competência material para a preparação e julgamento de uma ação em que é formulado um pedido de indemnização por danos patrimoniais sofridos em consequência da alegada prática de atos de concorrência desleal, mas em que não está em causa a violação de direitos privativos da propriedade industrial, como é caso dos que tutelam as invenções e patentes, modelos de utilidade, modelos e desenhos industriais, marcas, nomes e insígnias de estabelecimentos e logótipos.

Texto Integral

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:
MT[1] e C, Lda.[2], intentaram a presente ação de declarativa de condenação contra NS[3] e N, Lda.[4], alegando, em síntese:
- o 1.º autor e a 1.ª ré passaram a viver em união de facto a partir de meados de 1988, tendo, em 11 de julho de 1996, na constância dessa união, constituído uma sociedade comercial, tendo com objeto social o comércio de produtos alimentares, higiene, perfumaria, brinquedos e loiças, importação, exportação e representações dos mesmos, a aqui 2.ª autora;
- ficou estabelecido entre ambos que a sociedade seria registada com uma quota em nome da 1ª ré, no valor de €73.822,09, e uma outra quota, no valor de €997,60, em nome de TG;
- o modelo de negócio e a carteira de clientes e fornecedores pertenciam a uma empresa pertença do pai do 1.º autor, com quem este sempre trabalhou, já que se tratava de uma empresa familiar;
- a 1ª Ré apenas passou a trabalhar neste tipo de negócio, em virtude de viver maritalmente com o 1.º autor;
- era o 1.º autor quem, na prática, exercia as funções de gerente da 2.ª autora, tomando as decisões relativas a contactos com os clientes e a gestão da mesma, ou seja, era ele o gerente de facto da sociedade;
- para os referidos efeitos, a 1.ª ré, no dia 20 de maio de 2009, constituiu o 1.º autor como seu procurador, com poderes gerais e especiais, para administrar os bens da seus bens, assim facilitando a gestão da 2.ª autora por parte do 1.º autor;
- assim, e até 2018, a 2.ª autora sempre foi gerida e administrada pelo 1.º autor, sendo a 1ª ré trabalhadora da sociedade, não administrando os respetivos negócios;
- a 1ª ré tinha contacto direto com os clientes e fornecedores da 2.ª autora, acedendo à carteira de clientes desta, uma vez que dominava a língua inglesa, sendo este o principal idioma para interlocução entre a sociedade e os seus clientes e fornecedores;
- em 2018 começaram a surgir desavenças na relação entre o 1.º autor e a 1.ª ré, o que teve como consequência, além do mais, a cessão da quota que esta detinha na 2.ª autora, para uma filha do 1.º, a qual, que mais tarde, em 30 de abril de 2018, a cedeu ao pai;
- para além da 2.ª autora, o 1.º autor e a 1ª ré constituíram ainda, em 15 de maio de 1995, uma outra sociedade, denominada A, Lda.[5], tendo como objeto social a importação, exportação e venda a grosso de produtos alimentares, higiene e brinquedos;
- apesar de ser sócia e gerente das duas sociedades, a 1.ª ré detinha um vínculo laboral com a A, Lda., auferindo, na data da cessação do vínculo, o salário base de 1.100,00, não obstante prestar serviços para ambas as empresas, ou seja, para a 2.ª Autora e para a A, Lda.;
- porém, não era a 1.ª ré quem, na prática, as geria e administrava, embora tivesse acesso à carteira de clientes e de fornecedores de ambas:
- o vínculo laboral da 1.ª ré com ambas as sociedades manteve-se até 7 abril de 2021;
- ainda enquanto trabalhadora daquelas duas sociedades, no dia 10 de setembro de 2018, a 1.ª ré constituiu a 2.ª ré, como o mesmo objeto social da 2.ª autora, facto de que o 1.º autor apenas teve conhecimento em meados de 2021;
- por razões de saúde, o 1.º autor viu-se forçado a afastar-se temporariamente da gestão dos negócios da 2.ª autora, altura aproveitada pela 1.ª ré para contactar clientes e fornecedores, efetuando vendas através da sua própria empresa, a aqui 2ª Ré;
- na sequência desses contactos, a 1.ª ré desviou clientes e fornecedores da 2.ª autora para a 2.ª ré, sem que o 1.º autor disso tivesse qualquer conhecimento;
- a 1.ª ré, ao encetar contactos com os clientes e fornecedores da 2.ª autora, fazia-lhes crer que a 2.ª ré era mais uma empresa do grupo C, e liderada pelo 1.º autor, criando confusão nos clientes e fornecedores que aceitavam negociar com a 2ª ré, pensando que estavam a negociar com a 2.ª autora;
- assim se aproveitando a 1.ª ré dos conhecimentos, tecnologias e know how, da 2.ª autora no seu novo negócio, para angariar clientela e fornecedores;
- as condutas das rés causaram prejuízos aos autores pelos quais estes pretendem ser ressarcidos.
Os autores concluem assim a petição inicial:
«Deverá a presente ação ser julgada procedente por provada, e, consequentemente, as Rés, pela prática de atos de concorrência desleal, serem condenadas:
a) a pagar aos Autores a quantia de €589.215,55 (...), a título de lucros cessantes, devidas pela concorrência desleal, que deverá ser considerada provada;
b) a pagar aos Autores a quantia de €22.115,40 (...), devida pela representação da Feira do Dubai, visto consubstanciar concorrência desleal, que deverá ser considerada provada;
c) a pagar aos Autores o valor que vier a ser apurado com a junção da documentação pelas Rés (faturação e prestação de contas), conforme referido e estipulado nos termos do artigo 121º da petição inicial, a liquidar em sede de execução de sentença.»
*
Na sua contestação, as rés arguem, além de outras, a exceção dilatória consistente na incompetência absoluta, em razão da matéria, do tribunal comum para a preparação e julgamento da presente ação, por considerarem ser competente para o efeito o tribunal da propriedade intelectual[6].
Alegam o seguinte:
«Os AA alegam em sede do Direito, concretamente nos art.ºs 105 a 107 que as RR praticaram actos susceptíveis de corresponder a concorrência desleal e com base no Artº 311 do Código da Propriedade Industrial.
Sem conceder, aceitar, ou confessar, a alegação referida supra determina que a questão deve ser analisada pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, ao qual cabe a competência para apreciar “acções em que a causa de pedir verse sobre a prática de actos de concorrência desleal em matéria de propriedade industrial”, conforme a previsão da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ) com a redacção instituída pela Lei n.º 46/2011, de 24 de Junho, art.º 1º, o qual aditou o art.º 89-A, cuja alínea j se transcreveu acima.
Por consequência, o presente tribunal e de acordo com o enquadramento jurídicos dos AA é materialmente incompetente para esta causa e nos termos formulados pelos própriosAA.
Por sua vez, o art.º 96 do NCPC determina como sendo um dos casos de incompetência total a “violação de normas em matéria de competência em razão da matéria”.
Já o artº 98 do NCPC determina que a alegação da incompetência absoluta é de conhecimento imediato e devendo as RR serem absolvidas da presente instância por força do artº 99 do NCPC, o que desde já se requer.»
Concluem assim:
«Do pedido
«140) Pelo exposto e no demais do Direito que V Exa doutamente suprirá, deve a presente acção improceder porque não provada.
141) Em conformidade, deve V Exa reconhecer que procedem porque provadas as seguintes excepções:
a) Incompetência absoluta em razão da matéria
(...)
142) Absolvendo V.Exa em conformidade as RR da lide e do pedido.»
*
Os autores responderam, pugnando pela improcedência da exceção.
*
Na audiência prévia a senhora juíza a quo proferiu a seguinte decisão:
«Da Incompetência Absoluta do Tribunal
Pelas rés foram arguidas na sua contestação diversas excepções, entre elas a da incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria, em suma, porque os autores alegaram terem as rés praticado actos qualificáveis como concorrência desleal invocando, aliás, em abono da sua posição o art.º 311º do Código da Propriedade Industrial. E, assim, será competente para o conhecimento da acção, de acordo com a posição das rés, o Tribunal da Concorrência Regulação e Supervisão.
Os autores responderam à matéria de excepção em réplica que apresentaram (até porque havia sido deduzido pedido reconvencional), articulado que é admissível, no qual pugnaram pela improcedência da excepção da incompetência.
Cumpre decidir.
É sabido ser o modo como o autor configura a acção, com base na respectiva causa de pedir e pedido, que lhe dá a respectiva feição, e toda a argumentação dos autores é no sentido de imputar às rés condutas enquadráveis na prática da concorrência desleal, e por isso mesmo vieram a enquadrar aquelas condutas no art.º 311 do Código da Propriedade Industrial.
Na verdade, aquele artigo invocado pelos autores, contido no Código da Propriedade Industrial aprovado pelo DL nº 110/218, de 10/12, que transpôs para a ordem jurídica nacional as directivas (UE) 2015/2436 e (UE) 2016/943, estabelece no seu n.º 1 als. a) e b) que constitui concorrência desleal todo o acto de concorrência contrário ás normas e usos honestos de qualquer ramo de actividade económica, nomeadamente: a) Os actos susceptiveis de criar confusão com a empresa, o estabelecimento, os produtos ou os serviços dos concorrentes, qualquer que seja o meio empregue; b) as falsas afirmações feitas no exercício de uma actividade económica, com o fim de desacreditar os concorrentes.
As condutas que os autores imputam ás rés quadram-se precisamente com a previsão daquele apontado art.º 311º als. a) e b) do dito Código da Propriedade Industrial.
Olhando agora á Lei da organização do sistema judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26/08, vê-se que nela o art.º 40º prevê que os Tribunais Judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Essa lei define e determina a competência em razão da matéria entre juízos dos Tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos Juízos de competência especializada e aos Tribunais de competência territorial alargada.
De acordo com o art.º 81º n.º 3 al. a) daquela mesma lei o Juízo central cível é um juízo de competência especializada, o qual, de acordo com o art.º 117º do mesmo diploma legal, tem competência para a preparação e julgamento das acções declarativas de natureza cível de processo comum de valor superior a 50.000,00€; para exercer, no âmbito das acções executivas de natureza cível de valor superior a 50 000,00, as competências previstas no código de processo civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de outro juízo ou tribunal; preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam as acções da sua competência; e exercer as demais competências conferidas por lei, assim lhe atribuindo competência residual.
Acontece que o art.º 83º nºs 2 e 3 al. a) daquela mesma Lei da organização judiciária, a propósito do Tribunal da propriedade intelectual, estabelece que este é o Tribunal de competência territorial alargada que detêm competência especializada para conhecer de matérias determinadas independentemente da forma de processo aplicável, e estas encontram-se previstas no art.º 111º daquela mesma Lei 62/2013, de cujo o nº 1 al. n) se vê que compete ao Tribunal da propriedade intelectual conhecer das questões relativas a acções em que a causa de pedir verse sobre a prática de actos de concorrência desleal ou de infracção de segredos comerciais em matéria de propriedade industrial.
Ora, como resulta do acima exposto, a presente acção versa precisamente sobre a prática de actos de concorrência desleal, sendo os factos integradores dessa forma ilícita de concorrência que constitui a causa de pedir da presente acção; donde, inevitavelmente, teremos de concluir que a competência para o conhecimento e apreciação da presente acção cabe ao Tribunal da propriedade intelectual.
Aqui chegados, sem necessidade de mais e maiores considerações, somos a concluir pela procedência da excepção da incompetência material do Tribunal, e ao abrigo das disposições conjugadas dos supra mencionados artigos bem como dos art.ºs 96º al. a) 99º n.º 1, 576º n.º 2 e 557º, al. a) do CPC, o Tribunal julga procedente a invocada excepção de incompetência do Tribunal em razão da matéria, o que determina a incompetência absoluta deste Tribunal e, em consequência, absolvem-se as rés da instância.
Custas pelos autores.»
 *
Inconformados com esta decisão, os autores interpuseram o presente recurso da apelação, concluindo assim as respetivas alegações:
«1. O Tribunal a quo julgou procedente a exceção dilatória de incompetência absoluta, por considerar competente o Tribunal da Propriedade Intelectual, nos termos do artigo 111.º, n.º 2, n) da L.O.S.J.;
2. No entanto, resulta claramente do disposto invocado que o Tribunal da Propriedade Intelectual só é competente para apreciar os atos de concorrência desleal em matéria de propriedade industrial, isto é, quando estes atos consubstanciem a violação de direitos privativos tutelados pelo Direito da Propriedade Industrial;
3. Ora, é manifesto que a ação, como configurada pelos Apelantes, tem como causa de pedir a prática de atos de concorrência desleal pelas Apeladas, porém, tais atos não consubstanciam a violação de qualquer direito privativo tutelado pelo Direito da Propriedade Industrial;
4. A saber, os Apelantes fundam o seu direito indemnizatório no desvio ilícito de clientela e fornecedores através da confusão gerada pelas Apeladas nestes, bem como nas ofensas ao bom nome dos Apelantes com vista a os desacreditar;
5. Com efeito para fundar tal direito, alegam que a Apelada, enquanto trabalhava para os Apelantes, negociou diretamente com os antigos clientes e fornecedores dos Apelantes e efetuou vendas através da sua própria sociedade, também  Apelada (Cfr., a título de exemplo, artigos 28.º a 31.º, 40.º e 42. a 49.º da Petição Inicial);
6. Fazendo, assim, crer os antigos clientes e fornecedores que estariam a negociar com mais uma empresa do Grupo C (Cfr., a título de exemplo, artigos e 57.º a 77.º, 79.º, 81.º, 83.º, 85.º e 87.º da Petição Inicial);
7. Bem como o facto que, para afastar a posição ocupada e consolidada no mercado pelos Apelantes, as Apeladas denegriram o bom nome destes junto dos seus clientes e fornecedores, para, assim, os descreditar (Cfr., a título de exemplo, artigos 42.º e 50.º da Petição Inicial);
8. É certo que os Apelantes invocam, igualmente, a utilização do seu know-how pelas Apeladas para justificar a prática de atos de concorrência desleal, porém tal know-how não configura um segredo de comércio e, muito menos, um segredo de comércio tutelado pelo Direito da Propriedade Industrial;
9. Assim sendo, mormente se pode concluir que a causa de pedir dos Apelantes não é reconduzível à situação prevista na alínea n) do n.º 2 do artigo 111.º da L.O.S.J., não sendo o Tribunal da Propriedade Intelectual materialmente competente para apreciar o litígio;
10. Não sendo este ou qualquer outro Tribunal de competência alargada materialmente competente para apreciar o litígio e atendendo ao valor da causa e à forma de processo, apenas se pode concluir que seria competente para apreciar a presente ação o Juízo Central Cível de Lisboa do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa;
11. Em conformidade com o supra exposto, deverá revogar-se o douto Despacho sob censura no seu trecho em que julga procedente a exceção dilatória de incompetência absoluta e, consequentemente, absolveu as Apeladas da instância, e substituí-lo por douta decisão que julgue materialmente competente o Juízo Central Cível de Lisboa.
A sentença sob censura violou, entre outros, os seguintes preceitos legais:
- artigos 80.º, n.º 1, 111.º, n.º 2, n) e 117.º, n.º 1 da L.O.S.J.
Nestes termos, nos mais de Direito e sempre com o douto suprimento de V.  Exas., deverá ser considerado procedente o presente recurso, devendo revogar-se o douto Despacho sob censura e substituí-lo por outro que julgue materialmente competente para apreciar o litígio o Juízo Central Cível de Lisboa, assim se fazendo a costumada
JUSTIÇA»
*
As rés contra-alegaram, concluindo assim:
«A) Os argumentos deduzidos pelas contra alegantes em resposta às alegações e conclusões do recurso interposto são os seguintes.
B) De acordo com os que próprios apelantes, o recurso interposto por estes tem como objecto o despacho que determinou a procedência da incompetência absoluta do tribunal recorrido, em razão da matéria, absolvendo por consequência as RR da instância.
C) Dizem ainda os mesmos apelantes que aquele despacho foi lhes notificado presencialmente em sede de audiência prévia, realizada a 7 de Dezembro de 2022.
D) De acordo com o registo do CITIUS, o recurso dos ora Apelantes foi recibo no tribunal recorrido em 2 de Janeiro de 2023.
E) Sucede que nos termos das disposições conjugadas dos artigos 638, nº1, e do art.º 644, nº 2, alínea b) do NCPC, o prazo para recorrer das decisões que ponham termo ao processo é de 15 dias isto porque a decisão em crise não é uma sentença.
F) Daqui resulta que em função do que dizem os próprios recorrentes o seu recurso é intempestivo porque foi expedido e recebido muito depois dos termos do prazo legal aplicável.
G) Sem embargo, dizem os ora Apelantes no introito do seu recurso que “Em suma, por um lado, os Apelantes invocam o facto que a Apelada, enquanto trabalhava para os Apelantes, negociou diretamente com os antigos clientes e fornecedores dos Apelantes e efetuou vendas através da sua própria sociedade, também Apelada (Cfr., a título de exemplo, artigos 28.º a 31.º, 40.º e 42. a 49.º da Petição Inicial). Fazendo, assim, crer os antigos clientes e fornecedores que estariam a negociar com mais uma empresa do Grupo C (Cfr., a título de exemplo, artigos e 57.º a 77.º, 79.º, 81.º, 83.º, 85.º e 87.º da Petição Inicial), situação reconduzível à alínea a) do artigo 311.º, n.º 1 do C.P.I.”.
H) Em função disso, verifica-se que as causas de pedir - alegado desvio de concorrentes - e alegado comportamento no sentido de fazer acreditar os clientes que estariam a negociar com outra empresa do Grupo C, são reconduzidas pelos próprios apelantes à suposta violação de bens jurídicos que, eles mesmo dizem serem uma “situação reconduzível à alínea a) do artigo 311.º, n.º 1 do C.P.I.”.
I) Assim e nas próprias palavras dos ora apelantes, a competência material para julgar os factos imputáveis às RR é do âmbito do Tribunal da Propriedade Industrial.
J) Como tal é mister que proceda a alegada excepção em razão da matéria do tribunal civil comum no qual foi interposta a presente lide. E dai a rectidão da decisão que absolve as RR da presente instância.
K) Ao mesmo tempo, é tão revelador quanto singular que os ora  Apelantes, certamente à mingua de argumentos, venham citar, supostamente em beneficio daqueles, jurisprudência referente a legislação revogada! Comportamento que é no mínimo insólito.
L) Para além disso, importa não esquecer que os ora Apelantes ao mesmo tempo que dizem haver situações referentes a alegadas violações da Propriedade Industrial cuja decisão seria materialmente dos tribunais cíveis, sem conceder que assim seja, são completamente incapazes de identificar que situações são essas e em que medida, a matéria dos autos, se enquadra em alguma dessas situações, isto sem conceder, aceitar ou reconhecer o entendimento dos ora Apelantes sobre tal matéria.
M) Pelo o exposto e em suma, seja pela intempestividade, seja pela total ausência de base legal que o suporte, deve o recurso objecto das presentes contra alegações improceder.
N) Em conformidade, deve ser mantida a decisão que reconhece a procedência da excepção dilatória arguida, incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria, reiterando-se por consequência, a absolvição das RR da presente lide.
O) Assim se fazendo a costumada
Justiça!»
***
II – ÂMBITO DO RECURSO:
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil[7], é pelas conclusões do recorrente que se define o objeto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.
No caso concreto, a única questão que se coloca consiste em determinar qual o tribunal materialmente competente para preparar e julgar a presente ação:
- o tribunal da propriedade intelectual, como defendem as rés, e é entendimento do tribunal a quo; ou,
- os juízos centrais cíveis de Lisboa, onde a ação foi proposta, como entendem os autores.
***
III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
A factualidade relevante para a decisão do recurso é a que consta do relatório supra.
3.2 – Fundamentação de direito:
A competência é um pressuposto processual relativo ao tribunal, constituindo, «grosso modo, a adstrição a certo tribunal, de certa categoria de processos. Vista do pelo ângulo do tribunal, a competência pertence à organização judiciária e como tal é regulada pelas leis de organização judiciária (art.ºs 37.º, n.º 1, 40.º, 41.º e 42.º, n.º 1 e 2, LOSJ) e, por vezes, pelo CPC (art.ºs 65.º e 66.º), considerada pelo ângulo do processo, a competência pertence ao processo sitricto sensu e como tal é remetida para o CPC (art.ºs 37.º, n.º 1, e 42º, n.º 3, LOSJ). Assim, por exemplo, a regra segundo a qual “o tribunal da comarca é competente para o processo de anulação de deliberações sociais” é de organização judiciária; a regra “o processo de anulação deve correr no tribunal de comarca é” é de processo stricto sensu. A competência é assim uma figura de fronteira, como, aliás, resulta do disposto no art.º 60.º, n.º 1[8].
A competência dos tribunais judiciais reparte-se, na ordem interna (isto é, no âmbito da jurisdição exercida por esses tribunais), segundo a matéria, o valor (ou melhor, o valor e a forma do processo), a hierarquia e o território (art.º 37.º, n.º 1, LOSJ); art.º 60.º, n.º 2).
(...)
(a) Na aferição da competência material, há que distinguir várias hipóteses. A hipótese mais frequente é constituída pelos chamados casos sic-non, que são aqueles em que os factos alegados pelo autor só permitem uma qualificação jurídica e em que o tribunal só é competente para se pronunciar sobre o mérito se essa qualificação couber no âmbito da sua competência material. Por exemplo: o tribunal comum só é competente se a relação alegada pelo autor puder ser qualificada como privada (e não, por hipótese, como administrativa). Os factos que relevam para a aferição da competência material do tribunal são igualmente relevantes para a apreciação do mérito da causa, ou seja, são factos duplamente relevantes; por isso, para aferir essa competência, basta pressupor a verdade desses factos, mas, se depois de realizada a sua prova, eles não forem considerados verdadeiros, a acção é julgada improcedente.
(b) Além desta hipótese mais frequente, há que contar ainda com as seguintes hipóteses:
- Casos aut-aut (alternatividade de qualificações mutuamente excludentes): o autor alega factos que permitem uma de diversas qualificações jurídicas: por exemplo: o autor invoca factos que constituem um contrato de prestação de serviço ou um contrato de trabalho; para que a acção seja admissível basta que o juízo cível ou de trabalho seja (materialmente) competente para apreciar a causa por, respectivamente, a qualificação cível ou laborai; se o tribunal não for competente para se pronunciar sobre todas as qualificações, esse órgão só pode apreciar o mérito segundo a qualificação para a qual seja competente; assim, o juízo cível ou de trabalho no qual foi instaurada a acção só pode pronunciar-se sobre o mérito (em termos de procedência ou de improcedência) no âmbito da qualificação do contrato, respectivamente, como de prestação de serviço ou de trabalho;
- Casos et-et (cumulação de qualificações compatíveis): o autor alega factos que permitem, em simultâneo, diversas qualificações jurídicas; por exemplo: o autor invoca factos que constituem, em simultâneo, responsabilidade contratual e delitual do réu; para que a acção seja admissível, basta que o tribunal seja (materialmente) competente para apreciar a acção segundo uma dessas qualificações; ainda que o tribunal da causa não seja competente para todas as qualificações, esse tribunal pode apreciar o mérito da acção, quanto à sua procedência ou improcedência, pela perspectiva de ambas as qualificações.
Também nos casos aut-aut e et-et basta a pressuposição da verdade dos factos alegados pelo autor para aferir a competência do tribunal: o que releva, para este efeito, é apenas a qualificação jurídica desses factos. Se esses factos forem suficientes para assegurar a competência do tribunal por uma das possíveis qualificações, mas forem impugnados pelo réu, cabe ao autor fazer a prova deles (art.º 342.º, n.º 1, CC).»[9].
Continuando a citar os referidos Autores:
«(...) em sede de matéria, o tribunal de comarca goza de competência residual: tem competência para todas as causas não abrangidas pela competência de outros tribunais (art.º 201º, n.º 3, CRP; art.º 80.º, n.º 1, LOSJ), ou seja, não pertencentes, nomeadamente, à competência dos tribunais de competência territorial alargada ou dos tribunais administrativos e fiscais.
(...)
Os tribunais de comarca podem ser de competência genérica ou de competência especializada (art.º 80.º, n.º 2, LOSJ), sendo a competência material distinta para os juízos centrais cíveis (art. 117.º a 129.º LOSJ) e para os juízos locais (art. 130.º, LOSJ). (...).
(a) (i) Os juízos centrais cíveis comportam juízos de competência especializada (art.º 81.º, n.ºs 1 e 3, LOSJ). Entre eles há que destacar os seguintes:
 (...);
(ii) Os juízos centrais cíveis (art.º 81.º, n.º 3, al. a), LOSJ) são, eles próprios, juízos de competência especializada. Estes juízos têm uma competência residual em relação ao juízo local cível determinada em função do valor e forma do processo (art.ºs 117.º, n.º 1, e 130º, n.º 1, LOSJ).»[10].
Continuando a citar os referidos Autores:
«Além de outros, encontram-se previstos como tribunal de competência territorial alargada o tribunal da propriedade intelectual (art.ºs 83.º, n.º 3, al. a; e 111.º LOSJ, o tribunal de concorrência, regulação e supervisão (art.ºs 83.º, n.º 3, al. b), e 112.º LOSJ) e o tribunal marítimo (art. 83.º, n.º 3, al. c), e 113.º, LOSJ).
(...)
O tribunal de propriedade industrial tem competência para conhecer das questões relativas a:
(...)
- Acções que a causa de pedir verse sobre a prática de actos de concorrência desleal em matéria de propriedade industrial (art. 111.º, n.º 1, n.º 1, al. n), LOSJ).»[11].
Continuando a citar os referidos Autores:
«Através da conjugação dos factores e regras da competência, toda a causa tem um tribunal onde deve ser proposta. Há assim entre essa causa e esse tribunal um nexo jurídico: só aquele tribunal pode julgar tal causa e esta causa só pode ser julgada naquele tribunal. A tal nexo pode chamar-se nexo de competência. Por vezes chama-se-lhe (até na lei: cf., por exemplo, art. 38.º, n.º 1, LOSJ) só competência, mas este termo deve ser reservado para o sentido que lhe foi dado atrás: a medida de jurisdição atribuída a um tribunal, o que se refere, não a uma causa só, mas a uma categoria de pleitos que a lei destina para esse tribunal.
(...)
O nexo de competência fixa-se no momento em qua a acção se propõe, em atenção quer à lei, quer à situação nesse momento dos factores atributivos de competência; em princípio, esse nexo mantém-se ainda que mude a lei ou a situação de tais factores (art.º 38.º, n.º 1, LOSJ). É o princípio da “perpetuatio iurisdictionis” ou “fori”: “semel competens, sempre competens”. (...).
Segundo a regra da “Kompetenz-Kompetenz, qualquer tribunal tem competência para apreciar a sua própria competência, ou seja, qualquer tribunal aprecia, de forma autónoma perante qualquer outro, a sua competência para a acção. Esta regra pode comportar uma excepção construída com base num princípio de prioridade: segundo este princípio, é o primeiro tribunal a apreciar a competência que fixa, na hipóteses de se considerar incompetente, qual o tribunal competente.
(...)
O nexo de competência é um pressuposto processual relativo a um dos sujeitos processuais – o tribunal. Se ele faltar, a acção proposta é inadmissível: o tribunal é incompetente, verifica-se a sua incompetência. A lei admite dois tipos de incompetência, com consequências diferentes: a incompetência absoluta (art.ºs 96.º a 101.º) e a incompetência relativa (art.ºs 102.º a 108.º).
(...)
A incompetência absoluta vem regulada nos art.ºs 96.º a 101.º. O art.º 96.º estabelece quando se verifica esta excepção dilatória: a infracção das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras de competência internacional, legal ou convencional (art.º 96.º, a)), e a preterição de tribunal arbitral, voluntário ou necessário (art.º 96.º, b)), determinam a incompetência absoluta do tribunal: a incompetência absoluta é uma excepção dilatória nominada (art.º 577.º, al. a)).
(...)
Os efeitos da procedência da excepção de incompetência absoluta são os seguintes:
- Se a incompetência absoluta foi manifesta, ou seja, se se reconhece logo em face da petição inicial do autor, esta deve ser indeferida liminarmente, antes mesmo do r ser citado (art.º 99.º, n.º 1; cf. 590.º, n.º 1);
- Se a incompetência absoluta do tribunal só for decidida depois do despacho liminar, o réu é absolvido da instância (art.º 99.º, n.º 1; cf. art.ºs 278.º, n.º 1, al. a), 576º, n.º 2, e 577.º, al. a)).»[12].
O percurso sequencial esquemático que fizemos na companhia dos dois Ilustres Processualistas que viemos citando, permite-nos agora um melhor enquadramento da questão a decidir, sem que nos olvidemos, em momento algum, que nos termos do disposto no art. 38.º, n.º 1, LOSJ, a competência se fixa:
- no momento em que a ação é proposta; e,
- à luz aos contornos que o litígio apresenta à data da propositura da ação,
o que significa que ela se afere pelo “quid disputatum” ou “quid decidendum”, em antítese com aquilo que, mais tarde, será o “quid decisum”, em consonância com o princípio da existência do tal nexo jurídico direto entre a causa e o Tribunal.
Quer isto dizer que, tal como ensinava Manuel de Andrade, na esteira de Redenti, a competência do tribunal afere-se pelo quid disputatum - quid decidendum -  em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum -  é o que se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor, tendo em conta, naturalmente, os factos articulados que lhe servem de base[13].
Como lapidarmente é afirmado no sumário do Ac. do S.T.J. de 06.05.2010, Proc. n.º 3777/08.1TBMTS.P1.S1 (Santos Bernardino), in www.dgsi.pt, «a competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica apresentada pelo autor na petição inicial, independentemente do mérito ou demérito da pretensão deduzida. É na ponderação do modo como o autor configura a acção, na sua dupla vertente do pedido e da causa de pedir, e tendo ainda em conta as demais circunstâncias disponíveis pelo tribunal que relevem sobre a exacta configuração da causa, que se deve guiar a tarefa da determinação do tribunal competente para dela conhecer.».
No mesmo sentido, veja-se o Ac. do S.T.J. de 20.02.2019, Proc. n.º 9086/18.0T8LSB-A.L1.S1 (Ribeiro Cardoso), in www.dgsi.pt: «A competência do tribunal, sendo um pressuposto processual, afere-se pelo pedido e respetivos fundamentos, nos termos em que são configurados pela A.»
Será, assim, pois, face à relação material controvertida tal como ela surge alegada pelos autores na petição inicial que irá aferir-se qual o tribunal materialmente competente para preparar e julgar a presente ação.
Ora, considerando a relação material controvertida tal como os autores a configuram, assim como o pedido pelos mesmos formulados, desde já nos adiantamos, afirmando que, em nosso entender, materialmente competente para apreciar e julgar a presente ação é o tribunal onde ela foi instaurada, o Juízo Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, como entendem os autores, e não o TPI, como entendem, quer as rés, quer o tribunal recorrido.
Vamos ver porquê!
Estamos perante uma ação de indemnização por alegados danos patrimoniais que tem como causa de pedir a alegada prática de atos ilícitos com violação das regras da concorrência.
É a partir desta certeza que se determinará qual o tribunal materialmente competente para preparar e julgar a presente ação.
Na Lei n.º 3/99, de 13.01 (Lei de Organização do Sistema Judiciário – LOFTJ), existiu, desde a sua versão original e até à entrada em vigor da Lei n.º 46/2011, de 24.06, uma norma, contida na al. f) do n.º 1 do seu art.º 89.º, com o seguinte teor: «Compete aos tribunais de comércio preparar e julgar (...) as acções de declaração em que a causa de pedir verse sobre propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial.»
A Lei n.º 46/2011, de 24.06, criou o Tribunal da Propriedade Intelectual e o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, introduzindo alterações da LOFTJ.
O art.º 1.º da Lei n.º 46/2011, de 24.06, revogou a al. f) do n.º 1 do art.º 89.º da LOFTJ.
O art.º 2.º da mesma Lei, aditou à LOFTJ, o art.º 89.º-A, cuja al. j) do seu n.º 1, dispunha o seguinte: «Compete ao tribunal da propriedade intelectual conhecer das questões relativas a (...) a acções em que a causa de pedir verse sobre a prática de actos de concorrência desleal em matéria de propriedade industrial.»
A Lei n.º 62/2013, de 26.08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário – LOSJ), revogou a LOFTJ (art.º 187.º, al. c)).
Dispunha o art.º 111.º, n.º al. j), LOSJ, na sua primeira versão, que «compete ao tribunal da propriedade intelectual conhecer das questões relativas a (...) ações em que a causa de pedir verse sobre a prática de atos de concorrência desleal em matéria de propriedade industrial.»
Este preceito foi alterado pela Lei n.º 110/2018, de 10.12 (atual Código da Propriedade Industrial).
Por via dessa alteração, a al. j) do n.º 1 do art.º 111.º, LOSJ, versão original, passou a constituir a al. n) do mesmo preceito, com a seguinte redação: «Compete ao tribunal da propriedade intelectual conhecer das questões relativas a (...) ações em que a causa de pedir verse sobre a prática de atos de concorrência desleal ou de infração de segredos comerciais em matéria de propriedade industrial.»
Como adiante se verá, este curto percurso histórico será determinante para a compreensão do atual art.º 111.º, n.º 1, al. n), LOSJ, e, consequentemente, para a decisão do recurso.
Estando em causa uma competência especializada, ela reveste caráter excecional em face da regra atributiva de competência geral aos juízos de competência genérica (art.ºs 80.º, n.º 2, e 130.º, n.ºs 1 e 2, LOSJ), pelo que, não sendo admitida a aplicação analógica da norma atributiva de competência (art. 11.º CC), o TPI só é competente para preparar e julgar as ações e recursos previstos no art.º 111.º LOSJ.
O mesmo sucedia relativamente:
- ao tribunal comércio, no âmbito da previsão da versão originária do art. 89.º LOFTJ[14];
 - relativamente ao TPI, no âmbito da previsão do art.º 89.º-A, LOFTJ, introduzido pela Lei n.º 46/2011, de 24.06,
face ao disposto no art.º 77º da referida LOFTJ.
No âmbito de vigência do art.º 89.º LOFTJ, entendia-se que para que as ações de indemnização por concorrência desleal fossem da competência do tribunal de comércio, era necessário concluir que elas eram diretamente abrangidas por aquele dispositivo legal, nomeadamente ao referir as «modalidades previstas no Código de Propriedade Industrial[15]».
Resulta dos trabalhos preparatórios da LOFTJ que foi intenção do legislador, ao criar os tribunais de comércio, atribuir-lhes «as questões mais complexas respeitantes à actividade empresarial, designadamente de direito societário, de concorrência e de propriedade industrial»[16], «fazendo-os actuar em questões para que se requer especial preparação técnica e sensibilidade»[17]
A referência, lado a lado, da concorrência e da propriedade industrial não foi feita tendo em vista as normas que, no CPI então vigente, tal como no que lhe sucedeu, tratavam, respetivamente, dos direitos privativos e da concorrência desleal.
Tratava-se, sim, quanto à concorrência, dos recursos das decisões proferidas pelo Conselho da Concorrência e, em matéria contra-ordenacional, pelo mesmo conselho e pela Direcção-Geral do Comércio e da Concorrência[18].
Não tendo os tribunais de comércio outra competência em matérias atinentes a aspetos penais e contra-ordenacionais em sede de concorrência (e nenhuma em sede penal e contra-ordenacional relativa à propriedade industrial), ficou assim estabelecida, no art. 89 LOFTJ, a competência dos tribunais de comércio, para, na parte que nos ocupa, preparar e julgar «as acções de declaração em que a causa de pedir verse sobre a propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial» (al. f) do n.º 1), bem como «as acções de nulidade e de anulação previstas no Código da Propriedade Industrial» (al. h) do n.º 1), e ainda para julgar «os recursos de decisões que, nos termos previstos no Código da Propriedade Industrial, concedam, recusem ou tenham por efeito a extinção de qualquer dos direitos privativos nele previstos» (al. a) do n.º 2).
Não subsistem dúvidas que tanto as ações de nulidade e de anulação como os recursos previstos no art.º 89.º LOFTJ, tinham por referência os direitos privativos da propriedade industrial: as primeiras, tendo em vista a declaração de nulidade (art.ºs 32.º, 120.º, 137.º e 164.º, do CPI de 1995, então vigente) ou a anulação (art.ºs 5.º, 33.º, 214.º, 226.º, 244.º e 248.º, do mesmo código) do registo de direitos privativos; os segundos, atacavam as decisões do Instituto Nacional da Propriedade Industrial no sentido de efetuar ou recusar o registo, bem como de declarar a caducidade de registo efetuado (art.ºs 36.º, 121.º, 138.º, 216.º, 227.º, 245.º, 248.º e 256.º do mesmo código) ou de anotar a renúncia a registo (cf. art.º 198 do mesmo código).
E quanto às ações declarativas (de simples apreciação, de condenação ou constitutivas) previstas na al. f) do n.º 1 do mesmo artigo?
O que deveria entender-se por «causa de pedir que verse sobre a propriedade industrial»?
E por «modalidades previstas no código da propriedade industrial»?
Versaria sobre propriedade industrial uma causa de pedir que integrasse o conceito de concorrência desleal?
Poderia esta (ou a sua repressão) ser considerada uma modalidade de propriedade industrial, acarretando a competência dos tribunais de comércio no que concerne à repressão (civil, embora não penal ou contra-ordenacional) da concorrência desleal?
José Lebre de Feitas, Autor que temos vindo a acompanhar, escreveu a este propósito:
«A disciplina da propriedade industrial forma-se na transição do sistema corporativo para o sistema liberal. Às normas corporativas não cabia, naturalmente, regular o funcionamento da concorrência, mas antes limitá-la, em benefício das corporações. Com o liberalismo, há que proceder à protecção das inovações tecnológicas, configurando novos tipos de direito absoluto, com os quais se delimitam no mercado áreas de monopólio ou exploração exclusiva. Verificado, porém, que tal não chega à irradicação da deslealdade na concorrência, surge então a disciplina da concorrência desleal, que desempenha, em relação à da propriedade industrial, “como que uma função complementar”. Ao longo do séc. XX, vai-se seguidamente assistir à progressiva autonomização do instituto da concorrência desleal em face do regime dos direitos privativos da propriedade industrial.
A Convenção da União de Paris de 20.3.1883 e os seus actos adicionais espelham os primeiros passos desta evolução. No texto originário, não havia qualquer referência à concorrência desleal, dispondo o seu art.º 1.2 apenas que “a protecção da propriedade industrial tem por objecto as patentes de invenção, os desenhos e modelos industriais, as marcas de fábrica ou de comércio, as marcas de serviço, o nome comercial e as denominações de origem”.
Pelo acto adicional de 14.12.1900 (Bruxelas), é, porém, introduzido um art.º 10 bis, garantindo a todos os nacionais dos Estados da União paridade de tratamento em matéria de concorrência desleal, e, pela Convenção de Washington de 2.6.11, é introduzida nas disposições iniciais (concretamente, no art.º 2, de onde passará em 1925 para o art.º 1-2), a garantia da repressão da concorrência desleal. É preciso, porém, esperar ainda pela revisão feita em Haia em 1925 para termos, no art.º 10 bis, a definição de acto de concorrência desleal:
“qualquer acto de concorrência contrária aos usos honestos em matéria industrial e comercial” (art.º 10 bis 2) e, em especial, “todos os actos susceptíveis de, por qualquer meio, estabelecer confusão com o estabelecimento, os produtos ou a actividade industrial ou comercial de um concorrente” e “as falsas afirmações no exercício do comércio, susceptíveis de desacreditar o estabelecimento, os produtos ou a actividade industrial ou comercial de um concorrente” (art.º 10 bis 3).
Só mais tarde, em 1958, em nova revisão, operada em Lisboa, foi acrescentado ao art.º 10 bis 3 um terceiro tipo de situação: “as indicações ou afirmações cuja utilização no exercício do comércio seja susceptível de induzir o público em erro sobre a natureza, modo de fabrico, características, probabilidades de utilização ou quantidade das mercadorias”.
Não obstante a definição genérica do acto de concorrência desleal apontar, desde logo, para a autonomia do instituto em face dos institutos relativos aos direitos privativos da propriedade industrial, a tipificação das situações de confusão entre estabelecimentos, produtos ou actividades, bem como a de falsa afirmação depreciadora do estabelecimento, dos produtos ou da actividade alheia, levava prevalentemente a doutrina a negar essa autonomia, reconduzindo a concorrência desleal ao âmbito da propriedade industrial e vendo na deslealdade do concorrente ainda um meio de violação de direitos subjectivos de propriedade industrial. Era assim possível dizer dos actos de concorrência desleal que “tendem sempre a um desvio de clientela, à violação dum direito de propriedade, de natureza imaterial, manifestada pelos indícios que reúnem essa clientela em torno dum estabelecimento industrial”, e que “a acção de concorrência desleal nos aparece, por isso, sempre como uma acção real sancionando este direito de propriedade”; ou defender, com LAURENT e GIANNINI, que “a concorrência desleal representa o abuso dum direito [o direito de liberdade] e a violação de direito de outrem” , exemplificando com a usurpação duma patente ou a contrafacção duma marca. Nomeadamente no domínio convencional, foi preciso o aditamento de 1958 para que começasse a generalizar-se a ideia de que a tutela da lealdade da concorrência era autónoma da dos direitos privativos, constituindo a norma aditada uma rotura com a concepção tradicional, ao legitimar fórmulas de tutela imediata dos consumidores e do interesse geral finalmente libertas de referenciais corporativos.
O art.º 212 do nosso CPI de 1940 (Decreto 30.769, de 24.8.40) foi claramente inspirado pela Convenção da União de Paris. No entanto, além dos actos geradores de confusão, das afirmações, referências, reclamos e indicações falsas ou não autorizadas, bem como do uso ilícito duma denominação de fantasia ou de origem e da supressão, ocultação ou alteração da denominação de origem de produto ou marca, tipificadas através de previsões legais mais amplas do que as da Convenção da União de Paris, era nele considerada acto de concorrência desleal, como tal expressamente proibido, a ilícita apropriação, utilização ou divulgação dos segredos da indústria ou comércio de outrem.
Não admira que, perante a maior amplidão da previsão de concorrência desleal, a doutrina e a jurisprudência portuguesas começassem a rejeitar a velha aproximação dos dois institutos. Assim é que, pelo menos a partir do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Novembro de 1950, bem como do estudo de JOSÉ GABRIEL PINTO COELHO[19], tem-se vindo a afirmar o entendimento de que a protecção contra os actos de concorrência desleal tem, no nosso direito, um tratamento jurídico distinto do concedido aos direitos privativos da propriedade industrial, sendo hoje pacífico que a concorrência desleal constitui um instituto autónomo.
Esta autonomia encontra-se hoje reconhecida no CPI de 2003, de cujo art.º 1 desapareceu a referência à concorrência desleal, constante do CPI de 1995, ainda na linha da versão de 1925 do art.º 1-2 da Convenção da União de Paris.
Tal não significa que entre direitos privativos e concorrência desleal não existam zonas em que os institutos são secantes, como acontece no art.º 24-1-d do CPI de 2003 (art.º 25-1 do CPI de 1995), que estabelece como fundamento de recusa da patente, depósito ou registo o reconhecimento de que o requerente pretende fazer concorrência desleal, ou de que esta é possível independentemente da sua intenção; mas a legislação actual aponta, finalmente, para a recusa duma íntima ligação entre o instituto da concorrência desleal e os direitos privativos da propriedade industrial.
Vejamos, porém, que já era assim ao tempo do CPI de 1995 e que tal resulta da diferente natureza dos dois institutos.
(...).
Dizia o art.º 1 do CPI, na sua versão de 1995, que “a propriedade industrial desempenha a função social de garantir a lealdade da concorrência pela atribuição de direitos privativos no âmbito do presente diploma, bem como pela repressão da concorrência desleal”.
Da leitura deste preceito resulta a ideia de que os direitos privativos, maxime patentes, marcas ou logotipos, e a concorrência desleal constituem realidades distintas, mas unificadas por uma função comum, que se consubstanciaria no garantir da lealdade da concorrência, ambas integrando a propriedade industrial.
Note-se que só o desempenho duma função comum permitirá, em momento subsequente, discutir se, como defende CARLOS OLAVO[20], caberá ao tribunal de comércio a competência para as acções de concorrência desleal, com base numa norma (a do art. 89-1-f LOFTJ) que mais não refere do que a propriedade industrial e as suas modalidades.
A problemática da existência desta função comum é independente da questão de saber se os âmbitos de aplicação das normas reguladoras dos direitos privativos e das que reprimem a concorrência desleal se podem sobrepor, gerando situações de cumulação real ou alternativa, ou se excluem mutuamente, mais não podendo haver do que um concurso aparente de normas[21].
Ora de função comum só pode falar-se num sentido de tal modo geral que, visando um mero enquadramento de matérias, não oferece qualquer relevância jurídica no âmbito da questão que nos ocupa. É neste sentido que REMO FRANCESCHELLI fala duma função concorrencial comum às normas que impõem e regulam a concorrência, às que sancionam a concorrência desleal, às que atribuem os direitos privativos da propriedade industrial e até às que regulam os direitos de autor, todas elas constituindo “instrumentos, expressões ou manifestações da concorrência, mesmo quando, garantindo uma esfera de monopólio, parecem ser a sua negação”.
Analisando as realidades incluídas nesta função genérica (e deixando de parte os direitos de autor e conexos), vê-se que é maior a proximidade entre as normas que impõem e regulam a concorrência e as que definem e punem a concorrência desleal do que entre estas e as que atribuem e regulam os direitos privativos da propriedade industrial. A concorrência constitui o “pano de fundo” do direito industrial, assentando nas normas que asseguram a liberdade de actuação dos agentes económicos e impedindo práticas monopolistas e outras de domínio do mercado. Mas essa liberdade há-de ser exercida com lealdade e correcção, pelo que o direito impõe um dever geral de actuação leal na concorrência , sancionando - e com isso entramos nas normas sobre concorrência desleal - os comportamentos que infringem esse dever geral de actuação leal, o que leva a falar da concorrência desleal como constituindo um abuso da liberdade de concorrer. Por sua vez, os direitos privativos constituem esferas reservadas a determinados agentes económicos, titulares de direitos subjectivos, cuja violação é, como a de qualquer outro direito, reprimida. Embora ainda explicáveis pelo fenómeno geral da concorrência e resultando, nomeadamente, da liberdade de criar assegurada pelo mercado, a sua cristalização em direito subjectivo, ainda que espacial e temporalmente circunscrito, traduz uma apropriação privada, para a qual se justifica o apelo ao conceito de direito de propriedade sobre bens incorpóreos[22].
O tratamento legal da concorrência desleal, a não ter lugar em diploma autónomo, deveria antes situar-se junto das normas garantísticas da concorrência, e não junto das que regulam os direitos privativos da propriedade industrial — o que só acontece por razões históricas derivadas do velho modelo adoptado pelos art.ºs 1-2 e 10 bis da Convenção da União de Paris e tem sido larga e acerbamente criticado.
É frequente a afirmação de que a concorrência desleal exerce uma função complementar da dos direitos privativos da propriedade industrial
Esta afirmação é aceitável, mas ela própria encaminha para a configuração de funções (stricto sensu) diversas, ainda que em alguma medida convergentes[23].
A diversidade funcional resulta da diferente natureza dos interesses protegidos no caso do direito privativo e no da concorrência desleal. No primeiro, o interesse encontra-se organizado em direito subjectivo, pelo que se qualifica de acto de violação do direito absoluto tutelado a conduta que ofenda o direito de utilização exclusiva garantido; no segundo, a lei atende, em primeiro lugar, aos interesses gerais da economia e dos consumidores (interesse no bom funcionamento da concorrência), ainda que também aos interesses individuais dos concorrentes, actuais ou potenciais, e por isso se fala de violação, não dum direito subjectivo, mas dum dever geral de correcção ou lealdade na concorrência ou de adequação aos princípios do ordenamento económico, de tal modo que certas infracções tipificadas nem sequer afectam o interesse de concorrentes determinados[24]. Por isso, a configuração da repressão da concorrência desleal como meio de tutela dum direito ao estabelecimento, considerado na sua unidade, ou do direito à clientela ou ao aviamento, estão ultrapassadas, sendo produto da tendência para tudo reduzir ao direito subjectivo (no caso, ao direito real) e não resistindo à constatação de que a concorrência postula precisamente a exclusão duma tutela geral do aviamento ou da clientela e, portanto, da configuração dum direito absoluto a um ou a outra. Por isso também, há quem contraponha à violação do direito, que ocorre quando são postos em causa os direitos privativos, a violação do dever, característica da concorrência desleal. Por isso ainda, o direito francês cinde, sem dificuldade, a competência dos tribunais para o conhecimento da acção de tutela do direito privativo e para a de repressão da concorrência desleal: a primeira é da competência do tribunal cível; a segunda, quando entre dois concorrentes, é da competência do tribunal de comércio.
Resulta do exposto que os direitos privativos da propriedade industrial e a repressão da concorrência desleal desempenham funções distintas, na medida em que através dos primeiros se procura proteger a utilização exclusiva de determinados bens incorpóreos, enquanto através da repressão da concorrência desleal se pretende sancionar a violação de deveres a observar na concorrência entre os vários agentes económicos. Na verdade, não só a concorrência desleal implica um tipo autónomo de tutela, centrada no desvalor de certas condutas independentemente da existência dum direito subjectivo (basta ter em conta a hipótese de apropriação e utilização de métodos e segredos da indústria ou comércio de outrem, ou a de falsa indicação de crédito ou reputação próprios), mas também, ao invés, pode haver violação de direito privativo sem que haja qualquer situação de concorrência. A repressão da concorrência desleal extravasa, não obstante a epígrafe do capítulo do CPI em que se insere (“Infracções contra a propriedade industrial”), a garantia da propriedade industrial, sendo oportunístico e injustificado o seu tratamento no CPI.
A função própria da repressão da concorrência desleal exerce-se, aliás, em âmbito diverso do dos direitos privativos da propriedade industrial. Segundo o art.º 2 CPI (idêntico ao do CPI de 1995), a propriedade industrial abrange “a indústria e o comércio propriamente ditos, as indústrias das pescas, agrícolas, florestais, pecuárias e extractivas, bem como todos os produtos naturais ou fabricados e os serviços”. Já quanto à concorrência desleal, ela pode, segundo o art.º 317 CPI (equivalente ao art.º 260 do CPI de 1995), abranger “qualquer ramo de actividade económica”, o que implica um âmbito de aplicação muito mais vasto do que o da propriedade industrial.
Em suma, a concorrência desleal cumpre uma função diversa da da propriedade industrial, mesmo que, discutivelmente, se pretenda o enquadramento de ambas no ramo do direito da empresa. Como bem nota OLIVEIRA ASCENSÃO, a posição do CPI de 1995 não era cientificamente defensável, uma vez que “a unificação de ambos os domínios pela função social de garantir a lealdade da concorrência, como faz [fazia] o art.º 1.º do CPI, é palavrosa e falsa: os direitos privativos asseguram posições exclusivas na concorrência, e não a lealdade na concorrência”.
(...)
Tem o tribunal de comércio, de acordo com o art.º 89-1-f LOFTJ, competência em razão da matéria para preparar e julgar as acções de declaração cuja causa de pedir “verse sobre propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial”.
Uma interpretação literal desta norma nunca levaria a considerar por ela abrangida a acção de concorrência desleal, visto que nem esta concorrência nem as normas que a reprimem podem constituir modalidade da propriedade industrial.
Modalidade significa, em português, “propriedade de ter modos; modo de existir; maneiras particulares de cada um”. Quanto à propriedade industrial, é um direito absoluto, como o de propriedade corpórea, exprimindo a relação entre o sujeito titular dum direito (propriedade vem de próprio, implicando a sujeição dum bem a um sujeito de direito) e uma coisa incorpórea. Para ser uma modalidade da propriedade industrial, a concorrência desleal, ou a sua repressão, seria, pois, um modo de ser ou de existir da propriedade industrial.
Relativamente à concorrência desleal, seria absurdo: nenhum direito de propriedade industrial poderia exprimir-se no acto de concorrência desleal. Quanto à repressão deste acto, constituiria, quando muito, meio de tutela dum direito de propriedade industrial[25], mas nunca uma modalidade deste.
Assim, só uma interpretação racional, divergente da literal, poderia levar a considerar abrangida no art.º 89-1-f LOFTJ a acção baseada na concorrência desleal. O que atrás se deixou dito demonstra que a indagação de tal interpretação não teria qualquer razão de ser; mas, mesmo que tivesse, um intérprete sem preconceitos, confrontado com os termos utilizados pela lei, só teria de procurar outro sentido depois de verificar que aquele que desses termos directamente se retira não é racionalmente aceitável, que os termos utilizados são ambíguos ou ainda que deles não se extrai qualquer sentido. Não sendo nenhum destes o caso e não havendo razão para violentar o sentido literal, é com este que a lei valerá.
Ora o termo modalidade, referido à propriedade industrial, aponta no sentido de se reportar aos diferentes direitos que dela são privativos, modos distintos de ser do direito de propriedade industrial: a marca, a insígnia, o logotipo, etc. constituem bens incorpóreos distintos e sobre eles se constituem diferentes direitos (quanto ao objecto e também quanto ao modo de aquisição e ao registo), todos eles de propriedade industrial. A propriedade industrial terá, portanto, nesta acepção literal, tantas modalidades quantos os tipos de direito privativo de que trata o Código da Propriedade Industrial.
Na sua versão de 1995, o Código não conhecia o termo “modalidades”, sendo, no seu art.º 6-1, os vários tipos de direitos privativos designados por “categorias”. Mas o termo modalidade da propriedade industrial, tal como a LOFTJ o emprega, comporta o mesmo sentido do termo categoria de direito privativo.
Dois elementos de interpretação confirmam esta interpretação literal: um elemento histórico e um elemento sistemático.
O legislador não podia desconhecer a obra de JOSÉ GABRIEL PINTO COELHO (...), que, entre nós, doutrinariamente fundou a tese da autonomia do acto de concorrência desleal em face da violação dos direitos privativos da propriedade industrial. Ora o autor mais de uma vez, nesse artigo, utiliza a expressão “modalidades da propriedade industrial” para significar qualquer dos tipos de direito privativo:
- A ps. 9 do texto, fala em “destacar destes actos que envolvam a violação do direito inerente a qualquer das modalidades da propriedade industrial o delito propriamente de concorrência desleal”;
- A ps. 12 do mesmo texto, lê-se que “o facto de a nossa legislação se ocupar da concorrência desleal no diploma especial em que se definem e regulam as diversas modalidades da propriedade industrial (...) levará naturalmente a admitir como da essência do conceito um vínculo mais ou menos estreito entre a concorrência desleal e o exercício dos diversos direitos privativos da propriedade industrial.
As modalidades da propriedade industrial são, inequivocamente, os tipos de direito tutelado pelo CPI. Considere-se agora o Decreto-Lei 15/95, de 24 de Janeiro, que regula o enquadramento dos agentes da propriedade industrial. Nos termos do art.º 20 deste diploma, o “Instituto Nacional da Propriedade Industrial fornece a informação relativa a todas as modalidades de propriedade industrial”, esclarecendo de seguida o art.º 21-1-c que “o Instituto Nacional da Propriedade Industrial disporá, obrigatoriamente, de informação organizada de modo a tornar possível a identificação e recuperação… (d)as decisões judiciais que afectam os títulos das diferentes modalidades da propriedade industrial”. Também aqui é inequívoco que o termo modalidades se reporta aos diferentes direitos privativos da propriedade industrial.
Tem sido, pois, com toda a naturalidade que a doutrina utiliza o termo “modalidades” na mesma acepção. Sirva de exemplo CARLOS OLAVO:
- A ps. 20 do seu estudo A propriedade industrial e a competência dos tribunais de comércio (ver nota 8), lê-se:
“Se a acção tiver por objecto qualquer das mencionadas pretensões (à abstenção de uma conduta lesiva, à cessação de uma conduta lesiva, à eliminação dos resultados da ilicitude praticada e à reparação dos danos sofridos), deve ser proposta em tribunal do comércio, desde que se reporte a qualquer das modalidades previstas no respectivo Código. É também no tribunal de comércio que deve ser intentada uma acção por concorrência desleal, porquanto a repressão da concorrência desleal integra a propriedade industrial”. Uma vez que a concorrência desleal é referida autonomamente pelo autor (“também”), o texto anterior a essa referência ainda não a incluía, pelo que as modalidades referidas são as correspondentes aos vários direitos privativos. Que, aliás, o termo também não se deve a lapso é confirmado pela frase seguinte: “Também as acções de reivindicação de registo se integram na competência dos tribunais de comércio”[26]
- A ps. 129 do mesmo estudo, lê-se que “há modalidades de propriedade industrial que não se encontram previstas no Código da Propriedade Industrial” e exemplifica-se com a protecção da topografia dos produtos semicondutores e com a protecção das obtenções vegetais. Modalidade significa necessariamente o mesmo que tipo ou categoria de direito de propriedade industrial, de tal modo que “as acções cuja causa de pedir verse sobre essas modalidades de propriedade industrial e os recursos das decisões que concedam, recusam ou extingam os correspondentes direitos, ficam fora da competência desses tribunais. Não há, pois, duas modalidades de propriedade industrial (a dos direitos privativos e a da repressão da concorrência desleal), mas tantas quantos os direitos protegidos.
Veja-se também a utilização do termo “modalidades” no acórdão do STJ de 21.11.50 (...): “indica o Código especificadamente para cada modalidade de registo (de invenção, de moldes de utilidade e de desenhos industriais, de marcas, de recompensas, de nomes ou insígnias de estabelecimentos, de denominação de origem) os motivos por que cada um desses registos pode ser recusado”.
A mesma acepção foi expressamente perfilhada, com naturalidade igual à da doutrina e da jurisprudência anteriores, no art.º 7-1 do novo CPI, que dispõe que “a prova dos direitos da propriedade industrial se faz por meio de títulos, correspondentes às suas diversas modalidades”.
O novo CPI é, pois, expresso ao qualificar como modalidades da propriedade industrial os vários tipos de direito privativo, e não estes em geral (como uma modalidade) e a concorrência desleal (como outra modalidade). Coexistindo com o art.º 89-1-f LOFTJ, que mantém a sua redacção, este novo preceito constitui interpretação autêntica do termo modalidade neste utilizado.
Não pode, portanto, pretender-se que, embora utilizando um termo incorrecto, o legislador pretendeu, ao referir as modalidades da propriedade industrial no art.º 89-1-f LOFTJ, aludir, por um lado, aos direitos privativos e, por outro, à concorrência desleal. Tal leitura não ofenderia apenas um cultor da elegância linguística do direito; estaria também em dissonância manifesta com o uso que, correctamente, o legislador dá, em lugares paralelos, à expressão “modalidades da propriedade industrial”.
A causa de pedir da acção da competência do tribunal de comércio tem, pois, de ser integrada com factos respeitantes a algum dos direitos privativos consagrados no CPI e, de entre todos os factos que aí são objecto de tratamento, só esses interessam a tal delimitação de competência.
Compreende-se porquê: os factos constitutivos de concorrência desleal entre empresas, ou entre uma empresa e os seus administradores ou funcionários, ou ainda entre uma empresa e um terceiro sobre o qual impenda um dever de sigilo ou confidencialidade, geram responsabilidade em virtude de normas gerais de direito civil, como as que regem a responsabilidade extra-obrigacional e as que impõem boa fé e lealdade na negociação dos contratos, que normalmente os tribunais de competência genérica aplicam, e tanto assim é que o CPI nem sequer directamente configura as respectivas causas de pedir enquanto tais, mas apenas, no art.º 317, os factos integradores de ilícitos penais, que só por via do art.º 183-1 CC constituem também ilícitos civis; ao invés, no campo próprio da propriedade industrial, há normas muito específicas e técnicas a aplicar e o legislador português optou por atribuir aos tribunais de comércio a respectiva tutela, em sintonia com a opção que fez quanto às acções referidas no Código de Registo Comercial, às de nulidade e anulação previstas no Código da Propriedade Industrial e aos recursos referidos no art.º 89-2 LOFTJ.»[27].
Foi extensa, porventura em demasia, a citação do texto de Lebre de Freitas. Ela constitui, no entanto, uma ferramenta de primordial importância para, desde logo à luz do elemento histórico de interpretação das normas, se compreender devidamente o texto contido no atual art.º 111.º, n.º 1, al. n), LOSJ.
Como se viu, a Lei n.º 46/2011, de 24.06, criou o Tribunal da Propriedade Intelectual e o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, tendo:
- o seu art.º 1.º, revogado a al. f) do n.º 1 do art.º 89.º da LOFTJ;
- o seu art.º 2.º, aditado à LOFTJ, o art.º 89.º-A.
É certo que com esta alteração legislativa passou a constar expressamente do texto da lei de organização judiciária, ou seja, da citada al. j) do n.º 1 do art.º 89.º-A, LOFTJ, na versão da Lei n.º 46/2011, de 24.06, que a competência do TPI abrange as ações, incluindo, portanto, as declarativas de condenação, cuja causa de pedir verse sobre a prática de atos de concorrência desleal.
Mas que atos de atos de concorrência desleal?
O próprio preceito respondia à questão: os atos de concorrência desleal «em matéria de propriedade industrial.»
Ora:
- dispor a al. j) do n.º 1 do art.º 89.º-A, LOFTJ, na versão da Lei n.º 46/2011, de 24.06, «em matéria de propriedade industrial»,
ou,
- dispor a al. f) do n.º 1 do art.º 89.º, LOFTJ, versão originária, «em qualquer das modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial»,
vai dar exatamente ao mesmo.
Ou seja, a expressão «em matéria de propriedade industrial» tem exatamente o mesmo significado que «em qualquer das modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial».
Quer isto dizer que a expressão «em matéria de propriedade industrial»:
- aponta no sentido de se reportar aos diferentes direitos que dela são privativos, ou, como vimos ser explicado por Lebre de Freitas, aos modos distintos de ser do direito de propriedade industrial: a marca, a insígnia, o logotipo, etc. que constituem bens incorpóreos distintos, sobre eles se constituindo diferentes direitos (quanto ao objeto e também quanto ao modo de aquisição e ao registo), todos eles de propriedade industrial;
- tem o mesmo significado de «modalidade» ou «categoria» dos direitos privativos da propriedade industrial previstos de regulados no CPI.
Tendo a expressão «em matéria de propriedade industrial» o mesmo significado que «modalidades da propriedade industrial», é inequívoco que ela se reporta também, apenas e só, aos direitos privativos da propriedade industrial, como tal qualificados no CPI.
Por conseguinte, o que a al. j) do n.º 1 do art.º 89.º-A, LOFTJ, na versão da Lei n.º 46/2011, de 24.06, veio dizer foi isto:
«Compete ao tribunal da propriedade intelectual conhecer das questões relativas a (...) a acções em que a causa de pedir verse sobre a prática de actos de concorrência desleal em matéria de direitos privativos da propriedade industrial consagrados no Código da Propriedade Intelectual.»
Como explica Lebre de Freitas, nos termos que se deixaram expostos, e aqui se recorda, compreende-se porquê: «os factos constitutivos de concorrência desleal entre empresas, ou entre uma empresa e os seus administradores ou funcionários, ou ainda entre uma empresa e um terceiro sobre o qual impenda um dever de sigilo ou confidencialidade, geram responsabilidade em virtude de normas gerais de direito civil, como as que regem a responsabilidade extra-obrigacional e as que impõem boa fé e lealdade na negociação dos contratos, que normalmente os tribunais de competência genérica aplicam», e tanto assim que:
- nem o CPI aprovado pelo Dec. Lei n.º 36/2003, de 05.03;
- nem o CPI aprovado pelo Dec. Lei n.º 110/2018, de 10.12,
diretamente configuram as respetivas causas de pedir enquanto tais, mas, apenas:
- o CPI aprovado pelo Dec. Lei n.º 36/2003, de 05.03, no seu art.º 317.º; e,
- o CPI aprovado pelo Dec. Lei n.º 110/2018, de 10.12, no seu art.º 311.º,
os factos, no dizer de Lebre de Freitas, integradores de ilícitos penais.

Artigo 317.º do CPI aprovado pelo Dec. Lei n.º 36/2003, de 05.03Artigo 311.º do CPI aprovado pelo Dec. Lei n.º 110/2018
Concorrência desleal
1 - Constitui concorrência desleal todo o acto de concorrência contrário às normas e usos honestos de qualquer ramo de actividade económica, nomeadamente:
a) Os actos susceptíveis de criar confusão com a empresa, o estabelecimento, os produtos ou os serviços dos concorrentes, qualquer que seja o meio empregue;
b) As falsas afirmações feitas no exercício de uma actividade económica, com o fim de desacreditar os concorrentes;
c) As invocações ou referências não autorizadas feitas com o fim de beneficiar do crédito ou da reputação de um nome, estabelecimento ou marca alheios;
d) As falsas indicações de crédito ou reputação próprios, respeitantes ao capital ou situação financeira da empresa ou estabelecimento, à natureza ou âmbito das suas actividades e negócios e à qualidade ou quantidade da clientela;
e) As falsas descrições ou indicações sobre a natureza, qualidade ou utilidade dos produtos ou serviços, bem como as falsas indicações de proveniência, de localidade, região ou território, de fábrica, oficina, propriedade ou estabelecimento, seja qual for o modo adoptado;
f) A supressão, ocultação ou alteração, por parte do vendedor ou de qualquer intermediário, da denominação de origem ou indicação geográfica dos produtos ou da marca registada do produtor ou fabricante em produtos destinados à venda e que não tenham sofrido modificação no seu acondicionamento.
2 - São aplicáveis, com as necessárias adaptações, as medidas previstas no artigo 338.º-I.
Concorrência desleal
1 - Constitui concorrência desleal todo o ato de concorrência contrário às normas e usos honestos de qualquer ramo de atividade económica, nomeadamente:
a) Os atos suscetíveis de criar confusão com a empresa, o estabelecimento, os produtos ou os serviços dos concorrentes, qualquer que seja o meio empregue;
b) As falsas afirmações feitas no exercício de uma atividade económica, com o fim de desacreditar os concorrentes;
c) As invocações ou referências não autorizadas feitas com o fim de beneficiar do crédito ou da reputação de um nome, estabelecimento ou marca alheios;
d) As falsas indicações de crédito ou reputação próprios, respeitantes ao capital ou situação financeira da empresa ou estabelecimento, à natureza ou âmbito das suas atividades e negócios e à qualidade ou quantidade da clientela;
e) As falsas descrições ou indicações sobre a natureza, qualidade ou utilidade dos produtos ou serviços, bem como as falsas indicações de proveniência, de localidade, região ou território, de fábrica, oficina, propriedade ou estabelecimento, seja qual for o modo adotado;
f) A supressão, ocultação ou alteração, por parte do vendedor ou de qualquer intermediário, da denominação de origem ou indicação geográfica dos produtos ou da marca registada do produtor ou fabricante em produtos destinados à venda e que não tenham sofrido modificação no seu acondicionamento.
2 - São aplicáveis, com as necessárias adaptações, as medidas previstas no artigo 345.º

Como se vê, é exatamente igual a redação de ambos os preceitos, salva, como é óbvio, a referência atualizada à norma para que remete o n.º 2 de cada um deles.
À luz da norma contida na al. f) do n.º 1 do art.º 89.º, LOFTJ, versão originária, nos termos que resultam dos ensinamentos de Lebre de Freitas, competente para preparar e julgar a presente ação, seria o tribunal onde a mesma foi instaurada.
Esse tribunal não deixaria de ser o competente:
- à luz da norma contida na al. j) do n.º 1 do art.º 89.º-A, LOFTJ, na versão da Lei n.º 46/2011, de 24.06;
- e à luz da norma contida na al. j) do n.º 1 do art.º 111.º, LOSJ, que reproduz na integra a al. j) do n.º 1 do art.º 89-ºA, na versão da Lei n.º 46/2011, de 24.06.
Veja-se:

Artigo 89.º-A, n.º 1, al. j) LOFTJ, na versão da Lei n.º 46/2011, de 24.06.Artigo 111.º, n.º 1, al. n), LOSJ, versão original
«Compete ao tribunal da propriedade intelectual conhecer das questões relativas a (...) a acções em que a causa de pedir verse sobre a prática de actos de concorrência desleal em matéria de propriedade industrial.»«Compete ao tribunal da propriedade intelectual conhecer das questões relativas a (...) ações em que a causa de pedir verse sobre a prática de atos de concorrência desleal em matéria de propriedade industrial.»

E o mesmo não pode deixar de suceder à luz da atual al. n) do n.º 1 do art.º 111.º, LOSJ, na redação introduzida pela Lei n.º 110/2018, de 10.12, que, em relação à anterior versão, se limitou a acrescentar «(...) ou de infração de segredos comerciais (...)».
Assim, tendo presente todo o excurso que antecede, o que a atual al. n) do n.º 1 do art.º 111.º, LOSJ, diz é isto:
«Compete ao tribunal da propriedade intelectual conhecer das questões relativas a (...) ações em que a causa de pedir verse sobre a prática de atos:
- de concorrência desleal; ou,
- de infração de segredos comerciais,
em ambos os casos, em matéria de propriedade industrial.»
Por isso, competente para a preparação e julgamento da presente ação é o tribunal onde a mesma foi instaurada, o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Central Cível de Lisboa (distribuída pelo Juiz-13), e não o Tribunal da Propriedade Intelectual.
A este propósito, decidiu-se no Ac. da R.C. de 24.04.2018, Proc. n.º 4228/17.6T8LRA.C1 (Luís Cravo), in www.dgsi.pt:
«Está em causa na situação vertente (...) aferir se é de considerar atribuída competência ao Tribunal da Propriedade Intelectual, por via do disposto na al. j) vinda de referir (cf. “Ações em que a causa de pedir verse sobre a prática de atos de concorrência desleal em matéria de propriedade industrial”)[28].
Será então que, no caso vertente, a causa de pedir versava sobre a prática de atos de concorrência desleal em “matéria de propriedade industrial”?
A resposta a esta primeira interrogação passa por definir se apenas constitui “matéria de propriedade industrial” os direitos privativos tutelados pelo CPI (nos seus art.ºs 51º e seguintes[29]) – isto segundo a linha de entendimento de que o Tribunal da Propriedade Intelectual não seria competente para apreciar todos os actos de concorrência desleal, sem distinção, mas só aqueles que tenham a ver com direitos privativos de propriedade industrial.
Acontece que, quanto a nós, considerando as modificações introduzidas durante o processo de produção daquela norma, o teor da redacção que passou para o texto vigente, a autonomia do instituto da concorrência desleal relativamente à propriedade industrial Atente-se que a doutrina se tem inclinado, maioritariamente, no sentido da autonomia do instituto jurídico da concorrência desleal perante o direito industrial: assim, no domínio do atual Código da Propriedade Industrial – como já referido, aprovado pelo DL nº 36/2003, de 5 de Março – já foi doutamente considerado que «O novo Código da Propriedade Industrial (CPI) (…) continua, na esteira dos CPI anteriores de 1940 e 1995, a tratar a matéria da concorrência desleal a propósito das infracções à propriedade industrial. Mantém-se, assim, por parte do legislador, uma visão redutora deste instituto, sabido como é que o mesmo é independente da existência de qualquer direito de propriedade industrial, podendo verificar-se concorrência desleal sem violação de algum direito privativo ou, ao invés, ocorrer a violação de direitos privativos sem existir concorrência desleal.» (citámos JORGE PATRÍCIO PAUL em “Breve Análise do Regime da Concorrência Desleal no Novo Código da Propriedade Industrial”, in ROA, Ano 2003 > Ano 63 - Vol. I / II - Abr. 2003 > Artigos Doutrinais)., e as razões que fundamentaram a criação do Tribunal de Propriedade Intelectual, com competência especializada Entre outras, o reforço do tratamento especializado das questões de direitos de autor, direitos conexos e de propriedade industrial…, importa concluir que na citada alínea j)[30] o legislador quis apenas incluir as situações em que a prática de actos de concorrência desleal respeitem a direitos privativos da propriedade industrial[31] (área de especialização do novo Tribunal de Propriedade Industrial, que é mais circunscrita do que a da tutela da actividade empresarial em geral), sendo pois, este, o sentido a dar à expressão “em matéria de propriedade industrial”, constante da parte final do preceito em análise. cf., neste sentido, e tecendo considerações sobre a opção do legislador, PEDRO SOUSA E SILVA, “Direito Industrial”, Coimbra Editora, 2011, a págs. 317-318, nota 640.
(...) não obstante “na lei portuguesa a conexão das matérias do Direito Industrial e Concorrência Desleal é, num ponto de vista formal, estreitíssima”, não pode deixar de se concluir por tal autonomia, considerando, por um lado, serem patentes manifestações de concorrência desleal em domínios onde não há nenhum direito privativo, sendo esse o caso, por exemplo, do art.º 317º, nº1, al. d), do anterior CPI, que tipificava como concorrência desleal “as falsas indicações de crédito ou reputação próprios, respeitantes ao capital ou situação financeira da empresa ou estabelecimento, à natureza ou âmbito das suas actividades e negócios e à qualidade ou quantidade da clientela”, como assim, também, do art.º 318º do atual CPI, donde, a conclusão de que “não há propriamente um direito intelectual ao segredo.” Cf. OLIVEIRA ASCENÇÃO, inConcorrência Desleal”, Livraria Almedina, 2002, a págs. 66 e 69-72.».
Em suma, o caso em apreço, tal como retratado pelos autores na petição inicial, configura uma daquelas situações de concorrência desleal que não envolve, não implica, manifestamente, a ofensa de direitos privativos de propriedade industrial.
Não sendo, tal como defende Oliveira Ascensão, a concorrência desleal, ela própria, em si mesma, propriedade industrial, mas «antes a sanção de formas anómalas de concorrência»[32], para a preparação e julgamento de ações fundadas em atos de concorrência desleal que não impliquem a violação de direitos privativos da propriedade industrial, como é caso dos direitos que tutelam as invenções e patentes, modelos de utilidade, modelos e desenhos industriais, marcas, nomes e insígnias de estabelecimentos e logótipos, é materialmente incompetente o TPI, tal como o eram, antes da criação deste tribunal de competência territorial alargada, os tribunais de comércio.
Assim sendo, estando em causa alegados comportamentos das rés que, embora integrando atos de concorrência desleal, extravasam os estritos direitos privativos da propriedade industrial, bem andaram os autores, no caso concreto, ao instaurarem a ação no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Central Cível de Lisboa (onde foi distribuída pelo Juiz 13), o materialmente competente para a sua preparação e julgamento, e não no Tribunal da Propriedade Intelectual, este sim, materialmente incompetente para o efeito.
Em conclusão: a decisão recorrida não pode subsistir, devendo ser revogada e substituída por outra que, em vez do TIP, declare materialmente competente para preparação e julgamento o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Central Cível de Lisboa, onde foi distribuída pelo Juiz 13.
***
IV – DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, na procedência da apelação, em revogar a decisão recorrida, declarando, em consequência:
4.1 - A incompetência material do Tribunal da Propriedade Intelectual para a preparação e julgamento da presente ação;
4.2 - Materialmente competente para o efeito, o tribunal onde a ação foi proposta, o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Central Cível de Lisboa ( aí distribuída pelo Juiz 13).
Custas do recurso, na vertente de custas de parte, a cargo das apeladas – art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6, e 663.º, n.º 2, CPC.

Lisboa, 14 de março de 2023
José Capacete
Carlos Oliveira
Diogo Ravara
_______________________________________________________
[1] Doravante referido como 1.º autor.
[2] Doravante referida como 2.ª autora.
[3] Doravante referida como 1.ª ré.
[4] Doravante referida como 2.ª ré.
[5] Doravante referida apenas como “A, Lda.”.
[6] Doravante referido apenas por “TPI".
[7] Os artigos citados sem referência a qualquer diploma legal pertencem ao Código de Processo Civil Português, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.
[8] «A competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições deste Código.»
[9] João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume I, AAFDL Editora, 2022, pp. 141-143.
[10] Manual cit., pp. 144-146.
[11] Manual cit., pp. 153-155.
[12] Manual cit., pp. 159-165.
[13] Cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, p. 91.
[14] Doravante, sempre que nos referirmos ao art.º 89.º da LOFTJ, fá-lo-emos com referência á versão desta Lei anterior à entrada em vigor da Lei n.º 46/2011, de 24.06.
[15] Doravante referido apenas por “CPI”.
[16] Palavras do então Ministro da Justiça, Vera Jardim, na apresentação da proposta de lei da LOFTJ, Diário da Assembleia da República, I Série, n.º 2, de 18 de setembro de 1998, p. 58.
[17] Exposição de motivos da proposta de lei da LOFTJ, Diário da Assembleia da República, II.ª Série-A, n.° 59, de 12 de Junho de 1998, p. 1279.
[18] Assim é que, na exposição de motivos, se referem, no ponto 6.8.1, como objeto da competência dos tribunais de comércio a criar, as “acções relativas ao contencioso das sociedades comerciais e ao contencioso da propriedade industrial”, bem como “as acções e os recursos previstos no Código do Registo Comercial e os recursos das decisões em processo de contra-ordenação no âmbito da defesa e promoção da concorrência”. Por seu lado, a afirmação do Ministro da Justiça relatada no texto surgiu na sequência de outra, em que dizia ir ser consagrada a competência dos tribunais de comércio “para todas as acções de direito societário, de propriedade industrial, para as acções respeitantes ao registo comercial, bem como para recursos, nomeadamente os interpostos das decisões do Conselho da Concorrência”. A referência era, pois, à matéria do art.º 89-2 LOFTJ.
[19] «JOSÉ GABRIEL PINTO COELHO, Conceito de concorrência desleal, Lisboa, 1964, ps. 5 a 13. O autor admite que sejam qualificados como concorrência desleal “os casos em que a concorrência é praticada mediante a usurpação ou violação directa ou frontal de um direito específico de propriedade industrial”, mas entende, contrariamente ao que “ordinariamente” faz a doutrina e a jurisprudência, que tais casos mais não representam do que “um aspecto restrito da concorrência desleal e que esta pode existir independentemente de tal infracção”, bastando-lhe uma prática fraudulenta contrária aos usos honestos do comércio. Violação de direito privativo e concorrência desleal podem, portanto, segundo o autor, coexistir (por isso discorda de MARIO ROTONDI, quando exclui do conceito de concorrência desleal os casos em que há violação de um direito específico de propriedade industrial, verificando-se contrafacção), mas a característica da concorrência desleal consiste na repressão genérica dum comportamento contrário aos usos honestos do comércio. O autor admite, porém, ainda, seguidamente, que esta contrariedade só é relevante quando o comportamento censurável interfere com o gozo dum direito privativo da propriedade industrial, ainda que por forma indirecta ou muito ténue.»
[20] Vol. I da ROA de 2005, p. 120.
[21] «O instituto da concorrência desleal é complementar e subsidiário, só a ele se podendo recorrer quando falham os pressupostos da tutela dos direitos privativos. Assim, por exemplo, em MARIO ROTONDI, Diritto industriale, Milano, Casa Editrice Ambrosiana, 1942, p. 420, BAYLOS CORROZA, cit., p. 333, ADELAIDE MENEZES LEITÃO, Imitação servil, concorrência parasitária e concorrência desleal in Direito industrial cit., I, ps. 133-135, ac. do STJ de 16.12.96, BMJ, 462, p. 448 (algo confusamente), e parecer da Procuradoria Geral da República n.° 17/57, de 3.5.57, ps. 451-452.»
[22] «É conhecida a integração da propriedade intelectual e da propriedade industrial na categoria mais vasta da propriedade sobre bens incorpóreos, oposta à propriedade sobre bens corpóreos. Defendendo ou não essa integração, há que constatar que “os direitos privativos asseguram posições exclusivas na concorrência, e não a lealdade na concorrência” (OLIVEIRA ASCENSÃO, Concorrência desleal cit., edição de 2002, p. 78). Ver o art.º 316 CPI (art. 257 do CPI de 1995), mandando aplicar à propriedade industrial as garantias estabelecidas por lei para a “propriedade em geral”.»
[23] «ADELAIDE MENEZES LEITÃO, cit., p. 132. A ideia de convergência só é aceitável na medida em que não ponha em causa a autonomia do instituto, do seu âmbito de aplicação própria e da sua função específica. Ver a mesma autora nas páginas seguintes (ps. 133 e 134), embora empregando a expressão enganosa “unidade funcional” a ps. 136.»
[24] «TULLIO ASCARELLI, Teoria della concorrenza e dei beni immateriali, Milano, Giuffrè, 1956, p. 125: “O esvaziamento da clientela alheia pode respeitar à clientela de determinado empresário ou à dum conjunto de empresários, podendo os actos de concorrência desleal distinguir-se assim em actos praticados perante determinado concorrente e actos praticados perante os concorrentes em geral”. Este último é, tipicamente, o caso da afirmação falsa sobre a natureza, o modo de fabrico, as qualidades ou a quantidade da produção própria, sobre o crédito ou reputação própria, a actividade própria ou a clientela própria ou sobre a proveniência ou localização de fábrica, oficina, propriedade ou estabelecimento próprio (n.º 3.º do art.º 10 bis 3 da Convenção da União de Paris e als. d) e e) do art.º 317 CPI, equivalentes às alíneas d), e) e f) do art.º 260 do CPI de 1995).»
[25] «Vimos que não: a repressão da concorrência desleal não constitui protecção dum direito subjectivo e, muito menos, dum direito privativo, não obstante a epígrafe do Capítulo I do título III do Código (“Infracções contra a propriedade industrial”).»
[26] «Com significado igual à palavra também, é utilizado um pouco adiante o termo ainda: “A competência dos tribunais de comércio abrange ainda as acções que tenham causa de pedir complexa”; “é ainda o caso da acção por enriquecimento sem causa, por facto atinente a uma das modalidades de propriedade industrial previstas no Código”. Não há dúvida de que as palavras “também” e “ainda” funcionam, no texto, como elementos de ligação entre os vários tipos de casos que o autor considera englobados na competência do tribunal do comércio, o primeiro dos quais, anterior ao da acção por concorrência desleal, respeita exclusivamente às acções em que se queira fazer valer um direito privativo.»
[27] José Lebre de Freitas, Incompetência do Tribunal de Comércio para as acções fundadas em concorrência desleal, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 65, Vol. III, dezembro de 2005, consultado na internet em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados-roa/ano-2005/ano-65-vol-iii-dez-2005/jurisprudencia-critica/jose-lebre-de-freitas-incompetencia-do-tribunal-de-comercio-para-as-accoes-fundadas-em-concorrencia-desleal/
[28] Reporta-se à al. j) do n.º 1 do art.º 111.º, LOSJ, versão original.
[29] Reporta-se aos art.ºs 51.º ss. do CPI aprovado pelo Dec. Lei n.º 36/2003, de 05.03, correspondentes aos art.ºs 50.º ss. do atual CPI, aprovado pelo Dec. Lei n.º 110/2018, de 10.12.
[30] Do n.º 1 do art.º 111.º, LOSJ, versão original.
[31] O destacado a negrito é da nossa autoria.
[32] Concorrência Desleal, AAFDUL, 1994, p. 266.