PROCEDIMENTO DE INJUNÇÃO
ADMISSIBILIDADE
TRANSAÇÃO COMERCIAL
CONTRATO DE EMPREITADA
COMPLEXIDADE DA CAUSA
ADEQUAÇÃO FORMAL
Sumário

I. A autora podia recorrer ao procedimento de injunção porquanto a dívida emerge de transação comercial entre duas empresas (contrato de empreitada celebrado entre duas sociedades, sendo uma nas vestes de empreiteira e outra nas de dona da obra; o contrato de empreitada é uma modalidade do contrato de prestação de serviços ex vi Artigo 1155º do Código Civil), independentemente do valor da dívida (cf. Artigo 10º, nº1, do Decreto-lei nº 62/2013, de 10.5).
II. Carece de fundamento a não admissão da utilização da injunção e do procedimento que lhe subjaz, decorrente da apresentação de oposição, a contratos que suscitem questões de resolução mais complexas (exceção dilatória inominada), designadamente porque:
i.A aferição de uma exceção dilatória inominada como a delimitada na decisão recorrida, ou de uma situação de erro na forma de processo não pode fazer-se por via do preenchimento de um conceito indeterminado de complexidade da causa;
ii.No que respeita ao regime instituído pelo DL 269/98, de 1.9, o procedimento de injunção foi pensado para permitir a obtenção de um título executivo por parte do credor de obrigações pecuniárias, de forma simples e célere, em situações em que estariam em causa baixos montantes, o que efetivamente apontava para a sua adequação a causas simples, mas tal conclusão não se impõe relativamente aos litígios abrangidos pelo campo de aplicação do DL 62/2013, na medida em que a experiência demonstra que as causas de maior valor tendem a revestir-se de maior complexidade, e que o legislador não podia ignorar tal tendência quando concebeu e aprovou o mencionado diploma;
iii.O mecanismo da adequação formal consagrado no art. 547.º, fornece as ferramentas necessárias à adequação da tramitação da causa a uma maior complexidade do litígio;
iv.O convite ao aperfeiçoamento do requerimento de injunção, e o posterior exercício do direito ao contraditório, eventualmente conjugados com as adaptações do processado tidas por convenientes, no tocante à forma dos articulados, ao momento da apresentação de provas, às provas admissíveis, e ao limite do número de testemunhas,  obviarão a todas as dificuldades decorrentes de um eventual incremento da complexidade da causa, permitindo o prosseguimento da mesma sem prejuízo das garantias de defesa da requerida.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO

TU, Lda instaurou procedimento de injunção, de acordo com o disposto no Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, contra RT, Lda, pedindo o pagamento da quantia de €6.430,35, funda a sua pretensão num contrato de empreitada.
Citada, deduziu a Requerida oposição, alegando, além do mais, execução defeituosa (do contrato de empreitada).
O tribunal a quo proferiu decisão com o seguinte dispositivo:
«Tendo em atenção as considerações expendidas e as normas legais citadas, julga‑se procedente a excepção dilatória de nulidade de todo o processo e, em consequência, decide-se absolver a Requerida da instância.»
Na fundamentação de tal decisão foi enunciado que:
«Voltando ao caso dos autos, impõe-se aferir da causa de pedir aposta no requerimento injuntivo e atentar se poderá estar em causa uma obrigação pecuniária emergente de contrato, perante as duas finalidades admitidas para as injunções.
Nas palavras do Acórdão da Relação de Lisboa de 21/04/2016 (disponível no site da dgsi), “o processo simplificado que o legislador teve em vista com a criação do regime especial da injunção, com vista a facultar ao credor de forma célere a obtenção de um título executivo, em acções que normalmente se revestem de grande simplicidade, não é adequado a decidir litígios decorrentes de contratos que revestem alguma complexidade....”
Ora, da análise da concreta questão controvertida em equação, resulta claro não estarmos, sem mais, perante o mero ou simples (in)cumprimento de uma obrigação pecuniária emergente do contrato de empreitada descrito.
Efectivamente, o litígio reporta-se à discussão do invocado contrato de empreitada quer no se refere ao seu não cumprimento ou conclusão por parte da empreiteira, não eliminação de desconformidades, pelo que urge ponderar e apreciar acerca da relação contratual existente, donde emana um complexo de direitos e deveres para ambas as partes, divergindo estas quanto à existência e amplitude do imputado mútuo (in)cumprimento.
Consequentemente, facilmente se afere que a controvérsia em equação nos presentes autos está longe do processo simplificado que o legislador teve em vista com a criação do regime especial da injunção, com vista a facultar ao credor de forma célere a obtenção de um título executivo, em acções que normalmente se revestem de grande simplicidade.
Significa, então, que estamos perante uso de forma indevida o procedimento de injunção, situação que configura uma excepção dilatória inominada, que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, nos termos dos art.ºs 576º, nº 2 e 577º do Código de Processo Civil.
Por conseguinte não há sequer possibilidade de aproveitamento do processado, uma vez que dele resultaria uma flagrante diminuição das garantias de defesa dos requeridos (cfr. art.º 193º, nº 2 do CPC), em manifesta violação do princípio da igualdade, consagrado no art.º 4º do CPC.»
*
Não se conformando com a decisão, dela apelou a requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes
«CONCLUSÕES:
A. Vem, o presente recurso, interposto da douta decisão que julgou procedente a exceção dilatória de nulidade de todo o processo invocada pela Requerida e, em consequência, decidiu absolvê-la da instância.
B. No entendimento do Tribunal a quo que “ estamos perante uso de forma indevida o procedimento de injunção, situação que configura uma excepção dilatória inominada, que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, nos termos dos art.ºs 576.º, n.º 2 e 577.º do Código de Processo Civil.”
C. Tendo ainda entendido o Tribunal que “não há sequer possibilidade de aproveitamento do processado, uma vez que dele resultaria uma flagrante diminuição das garantias de defesa dos requeridos (cfr. art.º 193.º, n.º 2 do CPC), em manifesta violação do princípio da igualdade, consagrado no art.º 4.º do CPC.”
D. Como sabemos, o procedimento de injunção apenas é permitido nas situações previstas na lei.
E. Para além disso, é entendimento da jurisprudência mais recente, nomeadamente do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 09-09-2021 (relator Arlindo Crua) que nas situações em que, mediante a apresentação de oposição, o procedimento injuntivo se transmuta em ação sob a forma de processo comum, os pressupostos de admissibilidade de recurso ao processo, podem e devem ser objeto de aferição por parte do julgador, como condições de natureza substantiva que devem verificar-se para que a injunção seja decretada.
F. Esclarecendo que, nesses casos, “transmutando-se o procedimento injuntivo em acção declarativa sob a forma de processo comum, (...) mostram-se precludidas,  atento o valor da causa superior à alçada da Relação, as questões que poderiam levar ao indeferimento da injunção”.
G. Pelo que, defende a citada jurisprudência, ainda que tal complexidade devesse, ab initio, ter obstado à utilização do procedimento de injunção, transmutando-se o procedimento injuntivo em processo comum, aquela circunstância, inicialmente obstativa, torna-se irrelevante.
H. No mesmo sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 13-04-2021 (relator Diogo Ravara) determina que “a maior ou menor complexidade das questões controvertidas não configura um pressuposto autónomo da aplicabilidade das referidas formas processuais”.
I. Sendo que, acrescenta, uma sociedade comercial que pretende demandar outra sociedade comercial, pedindo uma quantia em dinheiro que segundo alega  corresponde a parte do preço ajustado pela execução de uma empreitada que ambas ajustaram pode lançar mão do procedimento de injunção.
J. Tal solução é igualmente justificada pelo princípio de aproveitamento dos atos processuais, pois, adotada aquela forma processual, garantística dos direitos das partes, a decisão de absolvição da instância sempre se revelaria como a prática de um ato inútil e, como tal, proibido – cf., o artº. 130º, do Cód. de Processo Civil -, obrigando á propositura de uma nova ação, em clara contravenção com o dever de gestão processual legalmente inscrito no nº. 1, do artº. 6º do Cód. de Processo Civil.
k. O art.º 10º, nº. 3, do DL nº. 62/2013, ao prever a faculdade de convite às partes para aperfeiçoamento das peças processuais, de forma a atingir, por um lado, uma melhor adequação formal ao processo comum e, por outro, a assegurar um processo equitativo entre aquelas.
L. Razão pela qual devem os presentes autos seguir os seus termos sob a forma de ação de processo comum, cumprindo-se assim o disposto no artigo 547.º do CPC, o qual dispõe que o juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo.»
  *
Contra-alegou a apelada, propugnando pela improcedência da apelação.
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]
Nestes termos, a questão a decidir é a de saber se ocorrer a exceção dilatória inominada enunciada pelo tribunal a quo ou se, pelo contrário, o processo deverá prosseguir.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Além da matéria de facto provada no relatório, está também provado que:
- No requerimento que deu início ao processo, a requerente indicou que a dívida emerge de transação comercial e que o contrato não foi celebrado com consumidor.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Nos termos do Artigo 7º do Decreto-lei nº 269/98, de 1.9., «Considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro.»
Nos termos do Artigo 3º do Decreto-lei nº 62/2013, de 10.5.:
Para efeitos do presente diploma, entende-se por:
(…)
b) «Transação comercial», uma transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas destinada ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração;
(…)
d) «Empresa», uma entidade que, não sendo uma entidade pública, desenvolva uma atividade económica ou profissional autónoma, incluindo pessoas singulares;
(…)
h) «Montante devido», o montante em dívida que deveria ter sido pago no prazo indicado no contrato ou na lei, incluindo taxas, direitos ou encargos aplicáveis que constam da fatura.»


Artigo10.º
 Procedimentos especiais
1 - O atraso de pagamento em transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida.
2 - Para valores superiores a metade da alçada da Relação, a dedução de oposição e a frustração da notificação no procedimento de injunção determinam a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum.
3 - Recebidos os autos, o juiz pode convidar as partes a aperfeiçoar as peças processuais.
4 - As ações para cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, seguem os termos da ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos quando o valor do pedido não seja superior a metade da alçada da Relação.

Conforme se refere em João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. II, AAFDL, 2022, pp. 255-256:
«A injunção (…) é a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a €15.000 ou de transações comerciais, qualquer que seja o seu valor (art.º 7º RDOP; art.º 10º, nº1, DL 62/2013). (…) Para efeito de aplicação da injunção, considera-se transação comercial qualquer transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas destinada ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração (art. 3º, al. b), DL 62/2013). O fornecimento de mercadorias ou a prestação de serviços contra remuneração inclui, por exemplo, a conceção e a execução de obras públicas e trabalhos de construção ou engenharia civil (consid. (11) Direct. 2011/7/EU), bem como a entrega de impressos a uma associação por uma sociedade de artes gráficas. Em contrapartida, o empréstimo de uma quantia não pode ser considerado uma transação comercial.»
Assim, conjugando os referidos regimes, infere-se que a autora/apelante podia recorrer ao procedimento de injunção porquanto a dívida emerge de transação comercial entre duas empresas (contrato de empreitada celebrado entre duas sociedades, sendo uma nas vestes de empreiteira e outra nas de dona da obra; o contrato de empreitada é uma modalidade do contrato de prestação de serviços ex vi Artigo 1155º do Código Civil), independentemente do valor da dívida (cf. Artigo 10º, nº1, do Decreto-lei nº 62/2013, de 10.5).
Sendo o valor da dívida de €6.430,35 (inferior a metade da alçada da Relação, cf. Artigo 44º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26.8) e tendo a requerida deduzido oposição, a ação segue os termos da ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos (Artigo 10º, nº4, do Decreto-lei n 62/3013, de 10.5), sendo os autos remetidos à distribuição (Artigo 16º, nº1, do Decreto-lei nº 269/98), prosseguindo com apreciação das exceções dilatórias ou nulidades e realização de julgamento (Artigos 3º e 4º do Dcereto-lei nº 269/98), sem prejuízo da prolação de despacho de aperfeiçoamento (Artigo 17º, nº2).
Não nos revemos na análise e decisão efetuada pelo tribunal a quo. Pelo contrário, acompanhamos integralmente a análise – pertinente para o caso em apreço – feita no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25.5.2021, Diogo Ravara, 37398/20, de que extratamos o seguinte segmento:
«(…) em primeiro lugar, temos dificuldade em alcançar por que razão o Tribunal a quo considera que o vício que apelidou de exceção dilatória inominada não se enquadra no regime do erro na forma de processo (art.º 193º do CPC).
Na verdade, como refere FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA[16], tal vício ocorre “quando o autor indique para a ação uma forma processual inadequada ou desconforme aos critérios da lei, lançando mão: - de uma forma de processo comum em vez da forma especial; - de uma forma de processo especial em vez da forma comum; - de uma forma de processo especial em vez de outra forma de processo especial“.
Como salientam ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA[17], ”a idoneidade da forma de processo (…) afere-se em função do tipo de pretensão formulada pelo autor e não em referência à pretensão que devia ser por ele deduzida (aqui trata-se, não de uma inapropriedade da forma do processo, mas de uma situação de eventual manifesta improcedência da ação), ocorrendo o erro e a correspondente nulidade quando o autor usa uma via processual inadequada para fazer valer a sua pretensão”. Neste sentido cf. tb. o ac. RL 22-02-2007 (Isabel Canadas), p. 8592/2006-2.
Em sentido idêntico, ensina LEBRE DE FREITAS[18] que “este erro é aferido em face do pedido deduzido, e não perante a natureza objetiva da relação material controvertida ou da situação jurídica que serve de base à ação, sem prejuízo da adequação da forma de processo (art.º 547).
Não deve, efetivamente, confundir-se a questão de fundo com a questão de forma: se o pedido for deduzido com base num direito que o autor não tem, embora tendo outro direito em que podia ter fundado um pedido diverso que desse lugar a uma forma de processo distinta, o erro está no pedido e não na forma de processo, pelo que a consequência a tirar é a improcedência da ação”.
Não obstante, a mencionada relação de conformidade entre a pretensão, ou seja, o pedido e a forma de processo pressupõe a interpretação destes no contexto da causa de pedir, tal como o autor ou requerente a configura.
Donde nos parece que a eventual desconformidade entre a forma de processo e a finalidade a que a mesma se destina haveria de ser enquadrada no âmbito da figura do erro na forma de processo.
Seja como for, e em segundo lugar, não cremos que a matéria invocada pelo réu ou demandado possa influir na adequação da injunção à tramitação da causa, na medida em que uma tal solução poderia em última análise habilitar o réu ou demandado a “provocar” o erro na forma de processo ou, no entendimento do Tribunal a quo e dos arestos neles mencionados, a exceção dilatória inominada, ainda que tal alegação se possa ancorar em factos totalmente falsos.
Por isso, concordamos inteiramente com PAULO DUARTE TEIXEIRA[19], quando afirma que ”…. o critério de aferição da propriedade ou impropriedade da forma de processo consiste em determinar se o pedido formulado se harmoniza com o fim para o qual foi estabelecida a forma processual empregue pelo autor. Nesta perspetiva, a determinação sobre se a forma de processo adequada à obrigação pecuniária escolhida pelo autor ou requerente se adequa, ou não, à sua pretensão diz respeito apenas com a análise da petição inicial no seu todo, e já não com a controvérsia que se venha a suscitar ao longo da tramitação do procedimento, quer com os factos trazidos pela defesa quer com outros que venham a ser adquiridos ao longo do processo por força da atividade das partes”.
Em terceiro lugar, não nos parece que a aferição de uma exceção dilatória inominada como a delimitada na decisão recorrida, ou de uma situação de erro na forma de processo se possa fazer por via do preenchimento de um conceito indeterminado de complexidade da causa.
Em quarto lugar, verificamos que no caso analisado no acórdão invocado pelo Tribunal a quo as conclusões nele alcançadas poderiam ser atingidas através das delimitações dos conceitos subjacentes aos pressupostos objetivos da viabilidade da injunção, nos termos sustentados por PAULO DUARTE TEIXEIRA.
Em quinto lugar, e ainda que assim não fosse, sempre entenderíamos que considerando o alegado pelas partes no requerimento de injunção e na oposição, não se pode considerar as questões de facto e de direito em discussão na presente causa se revistam de especial complexidade, ou de complexidade incompatível com a tramitação da ação declarativa conexa com a injunção.
Na verdade, no caso vertente, são controvertidas as seguintes questões:
- se os trabalhos que constituíam o objeto da empreitada foram todos executados; e
- se o foram de acordo com o contratado e as regras técnicas que norteiam a atividade contratada. Donde, não se trata de questões de particular complexidade.
Em sexto lugar, e diversamente do sucedido nos casos analisados em alguns dos arestos supra mencionados, no caso vertente não existe qualquer dúvida quanto à qualificação do contrato dos autos como transação comercial, nem à qualificação dos intervenientes como empresas, na medida em que ambas as partes são sociedades comerciais, e o crédito invocado resulta da alegada outorga de um contrato de empreitada, que a autora celebrou no exercício da sua atividade comercial.
Finalmente, e em sétimo lugar, entendemos que muito embora se afigure persuasivo o argumento de que no que respeita ao regime instituído pelo DL 269/98, de 01-09 o procedimento de injunção foi pensado para permitir a obtenção de um título executivo por parte do credor de obrigações pecuniárias, de forma simples e célere, em situações em que estariam em causa baixos montantes, o que efetivamente apontava para a sua adequação a causas simples, não cremos que tal conclusão se imponha relativamente aos litígios abrangidos pelo campo de aplicação do DL 62/2013, na medida em que a experiência demonstra que as causas de maior valor tendem a revestir-se de maior complexidade, e que o legislador não podia ignorar tal tendência quando concebeu e aprovou o mencionado diploma.
Com efeito, quer a circunstância de aqui estarem em causa créditos comerciais, quer a inaplicabilidade de limites ao valor dos créditos invocados fazem prever a possibilidade de tais créditos se tornarem litigiosos, e de a demonstração e / ou impugnação desses créditos envolverem a discussão de questões fáctico-jurídicas de maior ou menor complexidade.
Daí que nos pareça que ao consagrar, em moldes tão generosos a aplicabilidade do regime jurídico da injunção e da conexa ação declarativa aos créditos comerciais, sem qualquer limite quanto ao valor dos créditos em discussão, o legislador prescindiu da simplicidade como princípio inspirador desse regime jurídico, o que fez em nome da celeridade do trato comercial (vd. preâmbulo do DL 62/2013).
A este propósito temos por especialmente clarificadora a posição manifestada no ac. RG 16-11-2017 (Maria João Matos), p. 68450/16.1YIPRT.G1, no qual, reportando-se ao caminho percorrido pelo legislador nacional no desenvolvimento do regime jurídico da injunção e da conexa ação declarativa, se afirmou: “Verifica-se ainda que, em nenhum momento desta sucessão legislativa, se elegeu a simplicidade ou complexidade do litígio subjacente às obrigações pecuniárias cujo cumprimento se pretendia exigir como requisito/limite de aplicação do procedimento de injunção, nomeadamente reservando-o para as ações de baixa litigiosidade.
Com efeito, se inicialmente se pressupôs que o mesmo teria nelas o seu campo preferencial de aplicação (sendo disso reflexo o limite da alçada do Tribunal de 1ª instância, num pressuposto comummente aceite de que ao menor valor corresponderá a maior simplicidade, traduzida inclusivamente em simplificada forma de ação), certo é que rapidamente se alterou esse entendimento, ao progressiva e inelutavelmente se elevarem os montantes das obrigações pecuniárias envolvidas, até se prescindir de quaisquer limites.”.
Nesta conformidade é nossa convicção que o elemento teleológico da interpretação contraria a conclusão a que chegou o Tribunal a quo, e desautoriza a interpretação restritiva que esteve na base da decisão recorrida.
Acresce que tal interpretação é igualmente contrariada pelo elemento sistemático da interpretação, na medida em que os art.ºs 10º, nº 3 do DL 62/2013 e 17º, nº 3 do RCOPEC consagram um mecanismo processual tendente a fazer face às situações em que o eventual laconismo da factualidade alegada no requerimento de injunção ou na oposição se mostrem desajustados face à complexidade do litígio.
Com efeito, consagram estes preceitos a possibilidade de, ao receber os autos, o juiz convidar as partes a aperfeiçoar as peças processuais.
Mediante o exercício deste mecanismo, o qual, mais do que mera faculdade, constitui um poder-dever[20], fica o juiz habilitado e vinculado a providenciar pela adequação da matéria de facto a discutir na audiência final à complexidade do litígio, razão pela qual carece de fundamento bastante o argumento da inadequação da forma processual injunção e subsequente ação declarativa à maior complexidade da causa.
É certo que se poderia objetar que a posição sistemática do nº 3 do art.º 10º do DL 62/2013 nos impele à conclusão de que o comando ali inserto se aplica apenas às ações emergentes de injunção que têm por objeto obrigações emergentes de transações comerciais de valor superior a metade da alçada da Relação (€ 15.000,00), dado que tal norma se situa entre o nº 2 (que se reporta expressamente a causas com esse valor), ao passo que o nº 4 refere as causas cujo valor não seja superior a metade da alçada da Relação.
Simplesmente, mesmo que assim se entendesse, sempre seria aplicável o art.º 17º, nº 3 do RCOPEC, ex vi do art.º 10º, nº 4 do DL 62/2013, o que nos conduziria ao mesmo resultado.
Por fim também não impressiona a circunstância de a tramitação consagrada nos art.ºs 3º e 4º do RCOPEC prever menores garantias de defesa dos requeridos, comparativamente com as consagradas no processo comum (v.g. em decorrência da diversidade de prazos, exigências de forma para as peças processuais apresentadas, definição do momento próprio para apresentação de prova ou o número de testemunhas admissível), na medida em que, como é sabido, pelo menos desde a revisão do CPC de 1961 efetuada em 1995-1996 (art. 265-A desse código), o mecanismo da adequação formal, reafirmado e ampliado no art. 547º do CPC2013, fornece as ferramentas necessárias à adequação da tramitação da causa a uma maior complexidade do litígio, relativamente a todos os aspetos mencionados[21].
Com efeito, como certeiramente apontam ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA E LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA[22], a necessidade de adequação formal pode fazer sentir-se em litígios particularmente complexos, e que o seu exercício “permite quer a construção, em bloco, de uma tramitação alternativa, quer a adaptação de aspetos parcelares e pontuais da tramitação legal, aqui se incluindo a dispensa da prática de atos que se revelem concretamente desnecessários ou da sua substituição por outros tidos por mais adequados às especificidades da causa”.
Neste sentido sublinha MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[23] que “o juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo (art.º 547º). Portanto, o juiz pode alterar a tramitação legal da causa – tanto prescindindo da realização de certos atos impostos pela lei, como impondo a prática de atos não previstos na lei – e pode modificar o conteúdo e forma dos atos.”
Assim, a adequação formal não tem, necessariamente que redundar na simplificação do processado, podendo conduzir ao incremento da sua complexidade, se os contornos da causa o impuserem, e na exata medida em que o imponham.
Como sublinha o mesmo autor, “(…) o tempo do procedimento não é tudo o que importa considerar na determinação pelo juiz de uma tramitação alternativa, dado que não só não se pode sacrificar a equidade processual à celeridade, como pode suceder que esta equidade exija mais tempo. O critério que deve orientar a adequação formal é um critério de proporcionalidade: o processo deve ter uma tramitação com uma estrutura proporcional à complexidade da causa, pelo que causas de menor complexidade devem ter uma tramitação mais simples do que a legalmente definida e causas de maior complexidade podem ter uma tramitação mais pesada do que aquela que se encontra estabelecida na lei. Noutras palavras: a complexidade do procedimento deve ser proporcional à complexidade da causa.”.
De todo o exposto resulta que mediante o convite ao aperfeiçoamento do requerimento de injunção, e o posterior exercício do direito ao contraditório, eventualmente conjugados com as adaptações do processado tidas por convenientes, no tocante à forma dos articulados, ao momento da apresentação de provas, às provas admissíveis, e ao limite do número de testemunhas, se obviarão a todas as dificuldades decorrentes de um eventual incremento da complexidade da causa, permitindo o prosseguimento da mesma sem prejuízo das garantias de defesa da requerida.
Note-se que, como apontou o ac. STJ 22-03-2018 (Abrantes Geraldes), p. 349/13.2TBALQ-A.L1.S3, nada obsta a que a adequação formal seja determinada pelo tribunal superior, em sede de recurso, quando tal se integre na solução do litígio.
No caso em apreço, consideramos, contudo, que não se justifica a imposição, ao Tribunal a quo, desse caminho. O que entendemos é que, tendo-o à sua disposição, não pode o Tribunal a quo abster-se de o utilizar e, simultaneamente, invocar a inadequação do processado às especificidades da causa para daí concluir pela verificação de uma exceção dilatória inominada.
O mesmo vale aliás, relativamente à utilização do poder-dever de promover o aperfeiçoamento dos articulados[24]
Confluindo com a argumentação sólida deste aresto, vejam-se ainda: Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.4.2022, José Capacete, 84273/20 “(…) carece de fundamento a não admissão da utilização da injunção e do procedimento que lhe subjaz, decorrente da apresentação de oposição, a contratos que suscitem questões de resolução mais complexas, além de que o mecanismo da adequação formal consagrado no art.º 547.º, fornece as ferramentas necessárias à adequação da tramitação da causa a uma maior complexidade do litígio.”);  Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14.12.2022, Eusébio de Almeida, 22114/22 (“Não há fundamento legal para limitar o procedimento de injunção aos casos que se entendam ser simples ou excluí-lo perante litígios que se tenham por complexos. / A maior ou menor complexidade das questões suscitadas do seguimento da oposição à injunção não é de molde a poder entender-se que se verifica erro na forma de processo ou uma exceção dilatória inominada, que fundamentem a absolvição do requerido/réu da instância.”); Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 9.11.2021, Falcão de Magalhães, 37724/19 (“Não admitir a utilização da injunção e do procedimento que acima se descreveu, decorrente da apresentação de Oposição, a contratos que suscitem questões de resolução mais complexas, consubstancia entendimento que, salvo o devido respeito, é destituído de fundamento que o conforte, quer, designadamente, por via de interpretação corretiva/restritiva, quer, por maioria de razão, mediante interpretação ab-rogativa, das normas legais citadas, alcançando, sem o apoio de elementos interpretativos idóneos a tal, um sentido normativo que se aparta de forma extrema do arquétipo que a literalidade das apontadas normas e a conjugação destas últimas definem”); Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25.11.2021, Figueiredo de Almeida, 101460/20 (“A eventual maior complexidade das questões suscitadas do seguimento da oposição à injunção, não é de molde a que se possa entender verificar-se erro na forma de processo, ou uma exceção dilatória inominada, que fundamentem uma absolvição do réu da Instância. / Carece de fundamento legal determinar a limitação da aplicação do regime das injunções às situações que mostrem ser simples ou, se se preferir, de excluir destas as situações que revelem complexidade do litígio”).
Em suma, e louvando-nos na análise abrangente, sólida e pertinente efetuada pela jurisprudência citada, a tese sustentada na decisão impugnada encontra-se desatualizada face à evolução global do quadro legal pertinente e também da própria doutrina, não podendo ser mais sustentada.
Termos em que deverá proceder a apelação.
A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art. 154º, nº1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes).

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, devendo os autos prosseguir os seus normais termos, com aplicação, se necessário for, do princípio da adequação formal.
Custas pela apelada na vertente de custas de parte (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº 2, do Código de Processo Civil).

Lisboa, 14.3.2023
Luís Filipe Sousa
José Capacete
Carlos Oliveira
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[1] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., 2022, p. 186.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., pp. 139-140.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18, de 15.12.2022, Graça Trigo, 125/20. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12).