CONTRATO DE SEGURO
CRIME
TOMADOR
RISCO
ÓNUS DA PROVA
PROVA INDICIÁRIA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
ERRO DE JULGAMENTO
Sumário


I - As nulidades da sentença/acórdão, encontram-se taxativamente previstas no art. 615.º CPC e têm a ver com vícios estruturais ou intrínsecos da sentença/acórdão também conhecidos por erros de atividade ou de construção da própria sentença/acórdão, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito.
II - Só ocorre nulidade da sentença/acórdão por vício previsto no 1.º segmento da al. c) do n.º 1 daquele preceito legal - fundamentos em oposição com a decisão - quando os fundamentos de facto e/ou de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão, ou seja, quando exista contradição entre as suas premissas, de facto e/ou de direito, e a conclusão, de tal modo que esta deveria lógica e inequivocamente alcançar um resultado diverso.
III - Quando num contrato de seguro se inclui entre os riscos por ele cobertos a prática de um determinado crime (v.g. furto, roubo, etc.) muito embora seja ao tomador do seguro/segurado que cumpra demonstrar a ocorrência do correspondente sinistro, todavia, não é lhe é exigível que faça uma prova segura/inequívoca dos factos integrantes desse ilícito criminal, equivalente àquela que se exige nos procedimentos criminais para aplicar uma pena, bastando tão só que resultem apurados factos indiciários, não contrariados, que revelem uma possibilidade razoável/séria desse crime ter ocorrido.
IV - Nesse tipo de contratos vem sendo cada vez mais frequente a utilização de exemplos padrão nas cláusulas (gerais/especiais) numa procura de melhor concretizar os eventos cobertos suscetíveis de gerar indemnização, sem que, contudo, os eventos neles descritos constituam, só por si, um circulo fechado das situações que poderão determinar a responsabilidade indemnizatória da seguradora, pois que outras circunstâncias que se apresentem com uma identidade de tipologia comum (perante a realidade do mundo da vida) a tais eventos podem igualmente ser consideradas como geradoras da responsabilidade indemnizatória da seguradora, à luz da hermenêutica interpretativa das condições/motivos que estiveram subjacentes à celebração do contrato.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I- Relatório

1. A Autora, MARINO PRESTIGE RENT A CAR, S.A., instaurou contra a Ré, CARAVELA SEGUROS, S.A., ambas com os dos demais sinais dos autos, ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo a condenação desta última a pagar-lhe a quantia de € 77.847,95, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento (calculados: sobre € 50.000,00 desde 23 de março de 2019, mostrando-se vencidos, até 14 de janeiro de 2020, € 2.847,95 e vincendos até efetivo e integral pagamento; e sobre € 25.500,00 a contar da data da citação da Ré para os termos da presente ação e até efetivo e integral pagamento).

Para o efeito, e em síntese, alegou:

Dedicar-se à atividade comercial de aluguer de veículos automóveis sem condutor.

Ter celebrado com a Ré um contrato de seguro, titulado pela Apólice nº. ...21, com início em 11/04/2017, que foi sucessivamente renovado, o qual cobria o furto ou roubo do veículo automóvel marca Mercedes – Benz, modelo ..., com a matrícula ..-PL-...

Que alugou tal veículo a um tal AA, que melhor identifica, tendo-lhe este comunicado que o referido veículo, entre as 20.00 horas do dia 17 de dezembro de 2018 e as 12.00 horas do dia seguinte, foi retirado do local onde o deixara estacionara, tendo o mesmo apresentado, nesse último dia, no Comando Distrital de ... da Policia de Segurança Pública, Divisão Policial de ..., denúncia por furto do dito veículo, e de tal dando conhecimento à A. .

Porém, a Ré vem-se recusando a pagar à A. a quantia de € 50.000,00, correspondente ao capital seguro, a que se obrigara em caso de ocorrência tal situação, e bem como ainda indemnizá-la pelos prejuízos entretanto sofridos decorrentes de ter ficado privada da faculdade de alugar tal viatura, e que se cifram em € 25.000,00.


2. Contestou a Ré, defendendo-se por impugnação e por exceção, declinando qualquer obrigação de indemnizar ou ressarcir a A., por não estar a situação ocorrida coberta pelo seguro que contratualizaram, e em particular no que concerne aos alegados danos decorrentes da privação da faculdade de locar o veículo.

Terminou pedindo a improcedência da ação, com a sua absolvição do pedido.


3. Saneado e instruído que foi o processo, seguiram os autos para audiência de discussão e julgamento.


4. Seguiu-se a prolação da sentença que, no final, julgou a ação totalmente improcedente, absolvendo a Ré do pedido.


5. Inconformada como tal decisão, dela apelou a A. .


6. Na apreciação desse recurso, a Relação de Guimarães (TRG), por acórdão de 10/03/2022, no final assim decidiu:

« (…) julgar parcialmente procedente o recurso e, consequentemente, em alterar a sentença recorrida condenando a Ré a pagar à Autora a quantia de €50.000,00 (cinquenta mil euros), acrescida de juros de mora contados desde 23 de maio de 2019, à taxa legal de 4%, sem prejuízo de ulterior alteração legislativa, confirmando no mais a sentença recorrida. »


7. Foi agora a Ré que, inconformada com tal acórdão decisório, dele interpôs recurso de revista tendo concluído as respetivas alegações nos seguintes termos (respeitando-se a ortografia):

« 1 - Os fundamentos do presente recurso de revista estribam-se no consignado no art. 674.º, n.º 1, als. a), b) e c) do CPC.

2 - Relativamente à al. c) da norma legal citada, que admite a revista com fundamento numa das nulidades previstas, designadamente, no art. 615.º, a recorrente entende que se verifica, in casu, a nulidade do art. 615.º, n.º 1, al. c), ou seja, uma contradição entre os fundamentos de facto e a decisão do Tribunal da Relação de Guimarães, ao julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela autora, condenando a ré no pagamento da quantia de 50.000,00 €, acrescida de juros de mora desde 23 de maio de 2019, à taxa de 4%.

3 - A decisão de facto tomada pelo tribunal de primeira instância manteve-se inalterada no acórdão. Assim, os fundamentos de facto invocados pelo tribunal a quo deveriam conduzir ao resultado oposto ao que foi expresso no acórdão, existindo um vício real no seu raciocínio.

4 - Não se trata aqui de um erro na apreciação da prova. Trata-se da conclusão extraída pelo acórdão ser contraditória com as premissas em que assenta e de uma errada subsunção dos factos ao direito.

5 - Com efeito, não se tendo provado, na primeira instância, o desaparecimento ilícito do veículo supostamente furtado, não pode a Relação considerar como provado o que a primeira instância deu como não provado, sem que haja alteração da decisão de facto.

6 - Os únicos factos, dados como provados, diretamente relacionados com o alegado furto do veículo, são os seguintes:

14. No dia 18 de Dezembro de 2018, AA apresentou no Comando Distrital de ... da Policia de Segurança Pública, Divisão Policial de ..., denúncia por furto - admitido por acordo das partes;

15. Disso deu posterior conhecimento à Autora, tendo ainda preenchido a declaração amigável de acidente de automóvel para que fosse remetida à Ré - admitido por acordo das partes;

7 - O único facto dado como não provado, que também releva para a apreciação desta questão de dar como provado ou não o desaparecimento ilícito do veículo, é o seguinte:

1. Que no passado dia 17 de dezembro de 2018, o dito AA, tenha estacionado o dito veículo, na Rua ..., em ..., pelas 20.00 horas, tendo, pelas 12.00 horas do dia seguinte (18/12/2018) constatado que o mesmo não se encontrava no local onde o havia estacionado.

8 - Constata-se, desta forma, que a Relação concluiu pelo desaparecimento ilícito com base nas seguintes premissas:

- O veículo estava alugado e entregue ao locatário;

- O locatário participou à autoridade policial que o mesmo foi furtado por desconhecidos; e

- O locatário comunicou a participação do furto à autora.

9 - Ora, estas premissas ou fundamentos apenas provam que o locatário participou o furto à autoridade policial e que deu conta dessa situação à autora, não sendo possível extrair daqui a conclusão de que o veículo desapareceu de facto e de forma ilícita, estando, consequentemente, a decisão em oposição com a fundamentação de facto.

10 - O tribunal a quo chega, inclusivamente, a referir que sabe que o desaparecimento se deu de uma de duas formas: ou veículo foi efetivamente levado por desconhecidos tal como denunciado; ou os factos denunciados pelo locatário não correspondem à verdade e ter-se-á de concluir pela intervenção deste no desaparecimento do veículo.

11 - Relativamente à primeira hipótese, ela revela em si mesma que não ficou dado como provado que o veículo foi levado por desconhecidos porque, se tal tivesse ficado dado como provado, tal não constituiria apenas uma hipótese.

12 - No que tange à segunda hipótese, diz a Relação que a única outra forma do veículo ter desaparecido é a de ter sido o próprio locatário a fazê-lo desaparecer. Só que tal é absolutamente contraditório com a decisão de facto que não deu como provado que o locatário fez seu o veículo. Não pode a Relação aceitar não dar como provado, na decisão de facto, que o locatário fez o veículo coisa sua e, depois, na decisão de direito, partir desse pressuposto.

13 - O raciocínio tecido pelo acórdão padece de uma verdadeira petição de princípio consistente no facto de afirmar uma tese que se pretende demonstrar verdadeira na conclusão do argumento, já partindo do princípio de que essa mesma conclusão é verdadeira. Ora, a conclusão não é verdadeira porque pura e simplesmente a premissa não resultou demonstrada.

14 - Ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, estatuído no art. 607.º, n.º 5 do CPC, o tribunal de primeira instância deu como provado um acervo de factos que foi consagrado pela Relação. A sentença proferida pela primeira instância é o corolário lógico dos factos provados. Para descredibilizar a decisão da primeira instância, fundada no referido princípio e no contacto direto com a prova, teria o tribunal de segunda instância necessariamente que alterar a decisão de facto, em sede de reapreciação da prova, tal como pretendido pela autora. Não o tendo feito, a Relação apenas consegue justificar a revogação parcial da sentença com base numa petição de princípio, integrando na conclusão do seu raciocínio algo que não faz parte das premissas.

15 - O facto do veículo não ter sido entregue à autora pode ter ficado a dever-se a várias causas, sendo certo que não ficou demonstrado que essa causa foi um desaparecimento ilícito. Há um conjunto de factos que contextualizam uma situação que tornaram duvidoso o desaparecimento ilícito do veículo. Essa explicação foi devidamente efetuada na decisão de primeira instância. Na dúvida, o tribunal terá que decidir contra a autora - art. 346.º do CC. O acórdão da Relação não tomou isto em consideração.

16 - Em suma, o acórdão elabora uma estrutura interpretativa do desaparecimento ilícito quando esse desaparecimento não foi dado como provado.

17 - Este vício de raciocínio levou a que o acórdão enveredasse por uma posição necessariamente conflituante com o objeto do seguro e o teor do clausulado do respetivo contrato, claramente redigido no que à chamada cobertura de "furto ou roubo" diz respeito, entrando-se, assim, no campo da al. a) do n.º 1 do art. 674.º do CPC.

18 - Prevê a cláusula 58.ª das Condições Gerais, juntas pela autora com a p. i., que o seguro abrangido por esta cobertura garante a indemnização dos prejuízos devidos a dano causado ao veículo seguro, em virtude de Furto ou Roubo, e a cláusula seguinte (59.ª), define furto ou roubo como o “desaparecimento, destruição ou deterioração do veículo seguro por motivo de furto, roubo ou furto de uso (tentado ou consumado).

19 - De acordo com a tese da autora, o veículo foi furtado quando o AA estacionou o veículo na Rua..., em ..., pelas 20:00, tendo, pelas 12:00 do dia seguinte (18/12/2018), constatado que o mesmo não se encontrava no local onde o havia estacionado.

20 - Ora, não resultou provado que o veículo foi estacionado no circunstancialismo de tempo e lugar referidos no número anterior, nem que o veículo foi furtado.

21 - Assim, não ficou integrada a previsão da cobertura do risco de furto, tendo o acórdão decidido contra as cláusulas 58.ª e 59.ª das Condições Gerais, e o art. 1.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), anexo ao DL n.º 72/2008, de 16/04, que dispõe que "Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente" (sublinhado nosso).

22 - O direito da autora assentaria num desaparecimento ilícito, doloso e contra a sua vontade, e, nos termos da referida cláusula 59.ª das Condições Gerais, num desaparecimento por motivo de furto, roubo ou furto de uso (tentado ou consumado) -cfr. facto provado n.º 7. Esta factualidade, que integraria o direito da recorrida em ser indemnizada, não resultou provada, sendo que competiria à autora realizar essa prova, de acordo com o disposto no art. 342.º, n.º 1 do Código Civil, norma esta não respeitada pelo douto acórdão em crise.

23 - Tomando o pulso à abundante prova documental existente nos autos e conhecendo-se o teor daquilo que foi a prova testemunhal, seria de uma injustiça tremenda obrigar a seguradora a ressarcir a autora neste insólito caso em que nem sequer o furto foi participado por esta mas sim pelo locatário, e onde inexiste qualquer chave na posse da autora que pudesse colocar o veículo em funcionamento.

24 - O ónus da prova sobre a ocorrência do sinistro compete ao segurado, enquanto titular do direito à indemnização. Não tendo cumprido o segurado este ónus, a dúvida sobre a existência do sinistro tem de ser resolvida contra si, nos termos do art. 414.º do CPC. Ao não ser cumprido este preceito processual, o tribunal a quo violou essa lei do processo, o que também constitui fundamento para o presente recurso, nos termos da al. b) do n.º 1 do art. 674.º do CPC.

25 - Não tendo resultado provada factualidade que integrasse o cometimento do crime de abuso de confiança por parte do locatário AA, é com estranheza que se regista o facto do douto acórdão recorrido ter desenvolvido a questão da figura do abuso de confiança estar coberta ou não pelas garantias do seguro.

26 - Mas, aceitando o repto, a recorrente não pode deixar de manifestar a sua discordância relativamente à posição adotada pela Relação, que foi a de considerar cobertas pelo contrato de seguro as situações de abuso de confiança.

27 - O contrato estipula claramente, na cláusula 59.ª, que o que está coberto são os casos de furto, roubo e furto de uso, tentado ou consumado, pelo que não pode haver qualquer legítima expectativa da tomadora do seguro e segurada quanto à cobertura dos casos de abuso de confiança.

28 - A ignorância da lei não escusa - cfr. art. 6.º do CC. Se o contraente ou tomador do seguro não sabe a diferença entre abuso de confiança e furto ou roubo, não pode a seguradora ser penalizada por esse facto.

29 - Apesar de nos encontrarmos perante um contrato de adesão, não se afigura que haja aqui necessidade de proceder ao chamamento das regras previstas no regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, designadamente o seu art. 11.º ("cláusulas ambíguas"), já que as noções de furto, roubo e abuso de confiança são claramente dadas pelo Código Penal, vindo, no seu art. 205.º, definido o abuso de confiança como a apropriação ilegítima de uma coisa móvel (ou animal) por quem a recebeu a título não translativo de propriedade.

30 - Ora, o abuso de confiança não faz parte do elenco de riscos cobertos pelo contrato de seguro, não havendo aqui qualquer ambiguidade quanto a isso.

31 - Em tais situações de abuso de confiança, o "furto" encontra-se facilitado já que metade do seu caminho já se encontra percorrido com a entrega do bem para as mãos do agente. É o caso dos autos em que o veículo foi natural e voluntariamente entregue ao locatário, pessoa ligada ao cometimento de crimes contra o património, como resulta do facto provado n.º 46.

32 - Caso houvesse vontade de incluir o abuso de confiança na previsão dessa cláusula, teria sido muito fácil fazer integrar essa figura do direito penal na redação da cláusula. Não se encontrando prevista a cobertura do abuso de confiança, a ocorrência de uma factualidade que se integre nessa figura não se pode considerar abrangida pela apólice em causa. É que o risco de subtração de um veículo por parte de quem já o possui (a título não translativo de propriedade), é bastante superior relativamente a quem não detém qualquer relação com o bem.

33 - É pois compreensível que o abuso de confiança não esteja previsto nas garantias da apólice. Fazer ingressar esse risco no contrato de seguro constitui uma violação do art. 1.º do RJCS, na parte em que dispõe que, no contrato de seguro, o segurador se obriga a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato.

34 - O art. 236.º do CC estatui que "a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele", e o art. 238.º, n.º 1 dispõe que "nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso". Neste contrato de seguro não está pura e simplesmente incluído o abuso de confiança, sendo absolutamente forçada a interpretação que o quer ver lá previsto. A autora não podia razoavelmente contar com a inclusão do crime de abuso de confiança nas coberturas da apólice.

35 - O douto acórdão recorrido violou os arts. 6.º, 9.º, 236.º, n.º 1, 238.º, 346.º e 392.º, n.º 1 do CC, art. 1.º do RJCS, art. 414.º do CPC e cláusulas 58.ª e 59.ª das Condições Gerais do contrato de seguro vigente entre as partes. »


8. Contra-alegou a A. pugnando pela improcedência total do recurso e pela manutenção integral do julgado.


9. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


***

II- Fundamentação



A) De facto.

Pelas instâncias foram dados como provados os seguintes factos (mantendo-se a sua numeração e ortografia):

1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica ao aluguer de veículos automóveis sem condutor – admitido por acordo das partes;

2. A Segunda Ré dedica-se à atividade seguradora, em especial no ramo de seguros não vida - admitido por acordo das partes.

3. A Autora é proprietária do veículo automóvel marca Mercedes –Benz, modelo ..., matrícula ..-PL-.. - admitido por acordo das partes;

4. Por contrato de seguro titulado pela apólice nº ...21, com início em 11/04/2017, que foi sucessivamente renovado, encontrava-se transferida para a ré a responsabilidade civil, por danos provocados a terceiros, emergente da circulação rodoviária do veículo com a matrícula ..-PL-.. - admitido por acordo das partes;

5. Tal contrato está sujeito às Condições Particulares e Condições Gerais e Especiais, que constam do documento nº 2 e do documento nº 3 juntos com a P.I., (acessível ainda para consulta em ...) - admitido por acordo das partes;

6. De entre as garantias contratadas está incluída a cobertura de furto ou roubo do veículo automóvel supra referenciado, sem qualquer franquia – cfr. documentos nºs 2 e 3, e, em especial, as cláusulas 58º e seguintes das Condições Gerais do Contrato de Seguro - admitido por acordo das partes.

7. Estando definido na clausula nº 59º, o Furto ou Roubo como o “desaparecimento, destruição ou deterioração do veículo seguro por motivo de furto, roubo ou furto de uso (tentado e consumado)” - admitido por acordo das partes.

8. No Passado dia 17 de dezembro de 2018, o veículo acima identificado encontrava-se alugado a AA, NIF ..., residente na Rua ..., em ... (...);

9. O veículo encontrava-se alugado pelo AA desde o dia 2 de janeiro de 2018.

10. O preço/dia de aluguer era de 170,00 €, sobre o qual aplicava um desconto de 60%, do que resultava o valor de 68,00 €/dia, a que acresce IVA, ou seja, 83,64 €/dia;

11. O veículo estava alugado por períodos mensais renováveis.

12. E devia ser entregue, se não fosse renovado, no dia 18 de dezembro de 2018, ou seja, no próprio dia ou no dia seguinte àquele em que ocorreu o alegado furto.

13. Durante os 350 dias em que utilizou o veículo, AA incorreu numa responsabilidade financeira, perante a autora, de cerca de 29.274,00 €, estando ainda por liquidar a importância de 4 371,08 Euros;

14. No dia 18 de dezembro de 2018, AA apresentou no Comando Distrital de ... da Policia de Segurança Pública, Divisão Policial de ..., denúncia por furto - admitido por acordo das partes.

15. Disso deu posterior conhecimento à Autora, tendo ainda preenchido a declaração amigável de acidente de automóvel para que fosse remetida à Ré - admitido por acordo das partes;

16. E a Autora, querendo usar dos direitos que a cobertura do Seguro contratado lhe confere, disso deu conhecimento à sua mediadora de seguros (Credimedia, Corretores de Seguros), que a transmitiu à Ré, em data que não se apurou.

17. Entre esse dia e o início do mês de fevereiro de 2019, a Autora não teve qualquer noticia da Ré;

18. Que, apenas nessa altura, mais concretamente a 08 e 14 de fevereiro solicitou à Autora alguns documentos e chaves – que a Autora, de imediato, lhe facultou - admitido por acordo das partes;

19. A 22 de fevereiro, segundo informação da mediadora de seguros, estaria apenas em falta o “documento das autoridades em como a viatura não apareceu”.

20. Tendo sido remetida à Ré, em 22 de março de 2019, certidão emitida pela ...ª Secção de ... do Departamento de Investigação e Ação Penal pela Procuradoria da República da Comarca ... - admitido por acordo das partes - (e do teor da qual consta o despacho, proferido em 31/01/2019 a ordenar o arquivamento dos autos de inquérito, instaurado na sequência daquela denúncia, por não ter sido possível apurar a identidade do autor, ou autores, do crime denunciado (furto) e não ter sido possível recuperar o veículo furtado). Segmento este sublinhado por nós aditado, dado tal despacho constar da referida certidão (junta fls. 50 vº e ss. dos autos) que não foi impugnada e/ou arguida a sua falsidade.

21. A 26 de março foi comunicado à Autora, através da sua mediadora de seguros, que “ainda se encontravam algumas diligências em curso, nomeadamente a leitura das chaves do veículo seguro, pelo que aguardamos pela conclusão das mesmas a fim de avançarmos com a regularização do sinistro” - admitido por acordo das partes;

22. Informação que repetiria a 3 de abril seguinte - admitido por acordo das partes.

23. Tendo, por carta datada de 30 de maio, meses decorridos desde a participação e da entrega dos elementos solicitados, informado que não consideravam o sinistro indemnizável porque “a factualidade que nos foi transmitida não se reveste de solidez suficiente que nos permita confirmar a ocorrência descrita” - admitido por acordo das partes.

24. Antes da prestação daquela informação, o perito da Ré, havia solicitado os documentos e as chaves do PL a BB, funcionária da autora;

25. Tendo sido entregues ao perito duas chaves, encontrando-se uma delas partida.

26. A chave partida foi-lhe entregue em mão, tendo sido dada a informação de que estava depositada na sede da empresa.

27. A segunda chave foi entregue dentro de um envelope A3, fechado, com janela, sendo esta a chave que alegadamente estava na posse do locatário, aquando do furto.

28. Aquando do momento de proceder à leitura das chaves, no concessionário da Mercedes "Carclasse", sito na Avenida ..., em ..., constatou-se que a chave partida não funcionava e que, portanto, a sua leitura não era possível.

29. Foi, ainda, informado ao perito que, devido aos danos da chave partida, não era possível acionar o motor do veículo a que correspondia, pelo que esta não tinha qualquer utilidade.

30. Relativamente à segunda chave entregue, os técnicos da Mercedes prestaram a seguinte informação:

• Não é uma chave fabricada na Mercedes, nem corresponde ao modelo do veículo furtado

• Não tinha qualquer leitura

• O transponder não tinha qualquer chip ou pilha

• A espadilha não tem recortes nem o símbolo da Mercedes

• A chave não tem qualquer utilidade

• Este tipo de chaves encontra-se à venda em vários sites da Internet.

31. O administrador da autora informou o perito de que a chave danificada se encontrava partida na sequência de um acidente ocorrido anteriormente, e que a outra chave seria a que estava na posse do AA.

32. Pelo AA foi declarado ao perito que entregou a chave em boas condições e que estava em funcionamento durante o tempo em que circulou com o veículo.

33. Não existindo qualquer outra chave, foram, com autorização do gerente da autora, ambas as chaves alegadamente pertencentes ao PL, entregues à Mercedes-Benz Portugal, para posteriormente serem enviadas ao fabricante D... na ..., para se pronunciar sobre as mesmas.

34. No dia 29/04/2019, a Mercedes-Benz Portugal enviou a resposta, junta como anexo 18 do doc. 3, informando que a chave partida pertence ao veículo de chassis ..., correspondente ao chassis do PL e confirmando que a segunda chave não é uma chave original Mercedes-Benz.

35. Do relatório pericial de fls. 230 e ss, constam, entre outras, as seguintes conclusões:

“A Chave 1, embora confirmada como sendo a correspondente à viatura em questão, tendo sido entregue de fábrica com a viatura, encontra-se danificada (pelo menos externamente), sendo que a sua funcionalidade de arranque da viatura teria que ser confirmada fisicamente na viatura. O exposto não invalida outros fatores que possam impedir o respetivo funcionamento da chave, conforme por exemplo o bloqueio da mesma à viatura (através do bloqueio da chave na viatura, nomeadamente em situações de furto da chave). Relativamente à chave 2, e se nenhuma alteração técnica tivesse sido realizada à viatura, muito provavelmente não colocaria a viatura em funcionamento (chave não original MB, a ausência física da componente eletrónica) (…)”.

36. Segundo informação da Seguro Direto, sobre as vicissitudes de uma apólice de seguros formalizada em 08/02/2010, relativa a uma viatura de que AA seria titular (matrícula ..-..-OT), a apólice relativa à viatura teria sido formalizada sem referir a existência de qualquer sinistro prévio, que veio a ser anulada por virtude de falsas declarações na sua formalização.

37. Consta da clausula 61º que, para ressarcimento dos danos, o tomador do seguro deve apresentar no prazo de oito dias queixa às autoridades competentes - admitido por acordo das partes;

38. E promover todas as diligências ao seu alcance conducentes à descoberta do veículo seguro e autores do crime - admitido por acordo das partes.

39. Nos termos da clausula 61º a obrigação de pagamento da indemnização devida, deve ocorrer decorridos que sejam sessenta dias sobre a data da participação da ocorrência à autoridade competente e ao Segurador, se ao fim desse período o veículo não tiver sido encontrado - admitido por acordo das partes

40. De acordo com as condições especiais e particulares aplicáveis, o valor seguro, em caso de furto ou roubo, é de €50.000,00, sem qualquer franquia;

41. De acordo com a Clausula 60.ª, n.º 2 das Cláusulas Contratuais Gerais, os lucros cessantes constituem danos expressamente excluídos do âmbito da cobertura;

42. Em 30/12/2017, AA sofreu um acidente de viação de que foi culpado, ao volante de um outro veículo, da marca e modelo BMW ...0D, com a matrícula ..-OL-.., também propriedade da aqui autora, sinistro que deu origem a uma ação de regresso, intentada pela aqui ré (seguradora) contra aquele condutor, com fundamento na condução sob o efeito de álcool;

43. Na execução entretanto apresentada pela seguradora – Processo nº 27/20...., pendente no juízo de execução ..., segundo informação do AE de 22/09/2020, não se conseguiu identificar qualquer bem, rendimento ou direito penhoráveis;

44. Segundo informação prestada nos autos pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, CC esteve preso, em cumprimento de pena, desde 16/09/2019 até 16/05/2021;

45. Segundo informação da Segurança Social, CC, terá recebido sua última remuneração em setembro de 2019, no valor de 866, 66 Euros;

46. Segundo informação do M.P. de ..., encontram-se pendentes contra CC, os seguintes processos criminais: Processo 719/14.... (Burla simples); Processo 1332/16.... (Burla simples), 1598/18...., 3516/19...., 2008/20...., 172/21.... (Burla simples), 344/21...., 1420/21....; 807/21...., 995/21...., 1869/21...., 1619/16.... (arquivado) e 1286/21....;

47. Em 28/05/2018, no período em que a viatura estava alugada ao referido CC, a viatura em causa, foi mandada reparar na Mercedes, por DD, tendo o custo da reparação ascendido a 978, 45 Euros, que terá sido paga pelo referido DD.

48. AA tem registado na Seguro Direto, apenas um veículo, que teve uma apólice por um dia, ...09 e que foi anulada por falta de pagamento. O mesmo veículo teve outra apólice no dia ...10 e que foi anulada por tentativa de fraude ou fraude.

Factos dados como não provados

1. Que no passado dia 17 de dezembro de 2018, o dito AA, tenha estacionado o dito veículo, na Rua ..., em ..., pelas 20.00 horas, tendo, pelas 12.00 horas do dia seguinte (18/12/2018) constatado que o mesmo não se encontrava no local onde o havia estacionado.


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B) De direito.

1. Do objeto do recurso.

1.1 Como é sabido, e constitui hoje entendimento pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se afere, fixa e delimita o objeto dos recursos, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, 608º, nº. 2, ex vi 679º do CPC).

Como vem, também, sendo dominantemente entendido, o vocábulo “questões” a que se reporta o citado artº. 608º, e de que o tribunal deve conhecer, não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes.

Ora, calcorreando as calcorreando as conclusões das alegações de recurso, as questões que aqui se nos impões apreciar/conhecer são as seguintes:

a) Da nulidade do acórdão;

d) Da obrigação da Ré pagar à Autora o capital seguro (no montante de € 50.000,00).


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2. Quanto à 1ª. questão.

- Da nulidade do acórdão.

Invoca a R./recorrente a nulidade do acórdão da Relação, de que recorre, imputando-lhe a violação do disposto artº. 615º, nº. 1 al. c) - 1º. segmento - do CPC, sustentando para o efeito a existência de contradição entre os seus fundamentos de facto – cfr. conclusões 2ª. 3ª. e 4ª.- (embora por vezes, de forma algo confusa ou pouca clara, pareça reportar-se também aos fundamentos de direito, ou mesmo entre aqueles e estes – cfr., por ex., conclusões 4ª. e 6ª.) – e sua decisão, e pelas razões que aduz ao longo das conclusões das suas alegações de recurso e cujo teor acima se deixou integralmente transcrito.

Contradição essa que, na essência, a recorrente reconduz ao entendimento de, à luz dos factos provados e não provados, não poder o tribunal a quo concluir, como concluiu, pelo desaparecimento (ilícito) do veículo segurado.

Contra a existência dessa invocada nulidade se pronúncia a autora/recorrida.

Apreciemos.

Como é sabido, as nulidades da sentença encontram-se taxativamente previstas no artº. 615º CPC e têm a ver com vícios estruturais ou intrínsecos da mesma, também conhecidos por erros de atividade ou de construção da própria sentença, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito.

Dispõe o artº. 615º, nº. 1 al. c), do CPC, é que “é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão inteligível.

Decorre, em primeira linha, do 1º. segmento de tal normativo (e é esse que aqui está em causa), que o vício de nulidade da sentença - fundamentos em oposição com a decisão - ocorre quando os fundamentos de facto e/ou de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão. Trata-se, pois, de um vício estrutural da sentença (leia-se aqui acórdão), por contradição entre as suas premissas, de facto e/ou de direito, e a conclusão, de tal modo que esta deveria seguir um resultado diverso. Porém, esta nulidade não abrange, como atrás já se referiu, o erro de julgamento, seja de facto ou de direito, designadamente a não conformidade da sentença decisória com o direito substantivo.

Assim, e por outras palavras, só ocorrerá essa causa de nulidade quando a construção da sentença é viciosa, isto é, quando «os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão mas a resultado oposto» (cfr. o prof. Alb. dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 141”). Ou melhor ainda, quando das premissas de facto e de direito que o julgador teve por apuradas, ele haja extraído uma conclusão oposta à que logicamente deveria ter extraído.

No mesmo sentido apontam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís de Sousa (in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2ª. Ed., Almedina, 2021, pág.763”) ao discorrerem que “A nulidade a que se reporta a 1ª parte da al. c) ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra a norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente.” (sublinhado nosso)

Posto isto, diremos que calcorreando o acórdão recorrido, não detetamos, e em particular no que concerne à sobredita questão sobre a qual a recorrente extrai a nulidade que invoca, qualquer contradição entre os seus fundamentos (de facto e/ou de direito) e a sua decisão, ou seja, afigura-se-nos que, e particularmente no que concerne à aludida questão, a fundamentação (de direito), que conduziu, a partir dos factos provados, à referida conclusão levada a efeito pelo tribunal a quo sobre o desaparecimento (ilícito) do veículo, e depois todo o subsequente desenvolvimento (jurídico) que desembocou na solução (decisão) final, se apresentam feitos através de um discurso lógico-dedutivo claramente enunciado.

Nesse discurso não vislumbramos, salvo devido respeito, nem contradição nem ilogicidade alguma. A decisão, depois de analisar, indagar e juridicamente balizar o thema decidendum, extraiu em conformidade o seu juízo jurídico-subsuntivo.

Se esse juízo extraído se mostra correto, à luz dos factos apurados e do direito aplicável, isto já são “contas de outro rosário”, que que não cumpre aqui apreciar, mas sim mais adiante, aquando da análise da questão seguinte e que tem a ver com o julgamento do mérito da causa.

Torna-se patente que a recorrente discorda do julgamento de direito (sendo aí que, em boa verdade, no fundo se centra a questão tal como é colocada e fundamentada pela recorrente) levado a efeito pelo tribunal a quo, no acórdão recorrido, mas esse eventual erro de julgamento não se enquadra, como deixámos acima referido, no âmbito do invocado vício de nulidade do acórdão.

Em conclusão: não padece o acórdão de que se recorre do apontado vício de nulidade.


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3. Quanto à 2ª. questão.

- Da obrigação da Ré pagar à Autora o capital seguro (no montante de € 50.000,00).

Como como ressalta da materialidade apurada, entre a autora (na qualidade de tomadora) e a ré (na qualidade de seguradora/segurada) foi celebrado um contrato de seguro, no ramo de danos, através do qual a primeira transferiu para a segunda, mediante o pagamento de um prémio, a responsabilidade civil, por danos provocados a terceiros, emergente da circulação rodoviária do veículo automóvel, de marca Mercedes Benz, modela ..., com a matrícula ..-PL-.., de que era proprietária, que utilizava no exercício da sua atividade comercial a que se dedica de aluguer de veículos automóveis sem condutor.

Para além desses danos, e naquilo que para aqui ora importa, o referido contrato de seguro cobria ainda, em termos de garantias, e à luz do plasmado nas conjugadas Condições Particulares, Especiais e Gerais, os danos/prejuízos decorrentes de furto ou roubo do mesmo no fixado montante de € 50.000,00.

Não se discute a existência, a validade e a caracterização desse contrato (e por isso não nos iremos perder no desenvolvimento da temática relacionada com tal figura negocial do contrato de seguro, de que as instâncias já se ocuparam, a não ser no que concerne a algum aspeto que se imponha com vista à resolução da questão controvertida).

O que se discute neste recurso, e a isso se se circunscreve o objeto do mesmo em termos de julgamento do mérito da causa, é tão somente a questão de saber se a Ré está ou não, à luz do referido contrato, constituída na obrigação de pagar à Autora aquela quantia de € 50.000,00.

Quantia indemnizatória essa que, como ressalta do exarado no Relatório, a Autora veio através da presente ação reclamar – a par do montante indemnizatório correspondente aos alegados prejuízos referentes a lucros cessantes pela perda da possibilidade de utilizar do dito veículo, que o acórdão da 2ª. instância entendeu não ter direito, desde logo por estar excluído do âmbito de cobertura desse contrato, tendo-se aquela conformado com essa decisão – como fundamento de tal veículo automóvel ter sido furtado quando se encontrava na posse de um seu cliente a quem fora alugado (locatário).

A 1ª. instância, na sentença que proferiu, julgou improcedente a ação, absolvendo a R. do pedido contra si peticionado, com o fundamento de não se ter provado a ocorrência do sinistro (o furto ou roubo da viatura) (num entendimento que, adiante-se, desde já, é perfilhado agora pela R./revistante neste seu recurso, e que é reforçado pelas razões que constam das conclusões das alegações de recurso que acima se deixaram transcritas).

Posição diferente tomou a 2ª. instância (que é comungada pela A./ora recorrida), condenando a Ré, através do seu acórdão de que ora se recorre, a pagar a esta aquela quantia (acrescida dos moratórios nos moldes ali fixados, e que aqui não se discutem), por considerar ter ocorrido/verificado o sinistro coberto, no que a tal diz respeito, pelo dito contrato de seguro.

Para o efeito, o ora tribunal a quo estribou-se na argumentação que, com a devida vénia, se deixa transcrita:

« (…) Estamos, por isso, perante um contrato de seguro que reveste uma natureza mista quanto às suas coberturas de risco: por um lado a de responsabilidade civil automóvel (seguro obrigatório) e, por outro lado, a de coberturas facultativas (seguro facultativo); assumindo, por isso, também a natureza de seguro automóvel de danos próprios abrangendo os prejuízos sofridos pelo próprio veículo seguro, ainda que o seu condutor seja responsável pelo evento, incluindo várias coberturas excluídas do âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (Decreto-Lei n.º 291/07, de 21/08), designadamente as coberturas de “Choque, colisão e/ou capotamento”, “Furto ou roubo” “Quebra isolada de vidros”, entre outras.

No caso em apreço, interessa-nos a cobertura de “Furto ou roubo”.

O tribunal a quo entendeu, não obstante ter considerado inexistirem elementos que lhe permitissem concluir pela existência de conluio entre a Autora (locadora) e o locatário, que não basta a existência da participação criminal para que o tribunal se convença da ocorrência do furto, subsistindo sérias dúvidas sobre a verificação do sinistro (o furto da viatura) pelo que deveria responder a essa matéria contra a parte a quem a prova do facto aproveita, ou seja a Autora, tendo julgado não provado que no dia 17 de dezembro de 2018, AA, locatário do veículo, o tenha estacionado, na Rua ..., em ..., pelas 20.00 horas, tendo, pelas 12.00 horas do dia seguinte (18/12/2018) constatado que o mesmo não se encontrava no local onde o havia estacionado

É contra este entendimento que se insurge a Recorrente, sustentando que fez prova da propriedade do veículo, da participação à autoridade policial do sinistro e de que este desapareceu, pelo que deve ser considerado verificado o sinistro.

Efetivamente resulta demonstrado nos autos que a Autora é proprietária do veículo automóvel de matricula ..-PL-.. (ponto 3 dos factos provados), o qual se encontrava alugado a AA (ponto 8 dos factos provados) que no dia 18 de Dezembro de 2018, apresentou no Comando Distrital de ... da Policia de Segurança Pública, Divisão Policial de ..., denuncia por furto, disso deu posterior conhecimento à Autora, tendo preenchido a declaração amigável de acidente de automóvel para que fosse remetida à Ré (pontos 14 e 15 dos factos provados) e que a Autora disso deu conhecimento à sua mediadora de seguros (..., ...), que a transmitiu à Ré (ponto 16).

Do teor da certidão que a Autora remeteu à Ré em 22 de março de 2019, emitida pela ...ª Secção de ... do Departamento de Investigação e Ação Penal pela Procuradoria da República da Comarca ... (ponto 20 dos factos provados) consta o despacho a ordenar o arquivamento dos autos de inquérito por não ter sido possível apurar a identidade do autor, ou autores do crime denunciado e não ter sido possível recuperar o veículo furtado.

Em face da matéria de facto provada entendemos que resulta efetivamente demonstrado nos autos que o veículo desapareceu e de forma ilícita, desconhecendo-se o seu paradeiro (conforme é afirmado pelo tribunal a quo na motivação da sentença recorrida).

Encontrando-se o veículo alugado e entregue ao locatário e tendo este participado à autoridade policial que o mesmo foi furtado por desconhecidos, o que comunicou à Autora, configuram-se duas situações possíveis: ou o veículo foi efetivamente levado por desconhecidos tal como denunciado ou, se o não foi, e os factos denunciados pelo locatário não correspondem à verdade, teremos de concluir pela intervenção deste no desaparecimento do veículo; em qualquer dos casos estamos perante um desaparecimento ilícito, alheio à Autora, pois que não se vislumbra nos factos provados nenhum que permita concluir que esta tem conhecimento do paradeiro do veículo, ou teve qualquer intervenção no seu desaparecimento (o que também é afirmado pelo tribunal a quo quando reconhece não existirem elementos que permitam concluir pela existência de conluio entre a Autora e o locatário), o que aliás, sempre seria ónus da Ré demonstrar (cfr. artigo 342º n.º 2 do Código Civil).

De facto, o que não resulta apurado nos autos é que o desaparecimento tenha ocorrido nos termos declarados pelo locatário, conforme denúncia efetuada à autoridade policial, ou que tenha sido este quem se apropriou da viatura ou a fez desaparecer por qualquer meio, podendo questionar-se juridicamente a qualificação do desaparecimento como furto ou abuso de confiança.

Mas, demonstrado o desaparecimento ilícito do veículo propriedade da Autora, e a existência do seguro celebrado com a Ré, o que se impõe questionar é se esse desaparecimento se mostra coberto por este seguro, se ocorreu o evento previsto no contrato de seguro, o que nos remete para a interpretação das cláusulas do contrato de seguro, em particular das cláusulas n.º 58ª e n.º 59ª, respeitante à cobertura de “Furto ou Roubo”.

Conforme decorre dos autos, de entre as garantias contratadas está incluída a cobertura de furto ou roubo do veículo automóvel, sem qualquer franquia, constando expressamente da cláusula 58ª das Condições Gerais e Especiais que o seguro garante a indemnização dos prejuízos devidos a dano causado ao veículo seguro em virtude de Furto ou Roubo; e na clausula n.º 59ª, o Furto ou Roubo mostra-se definido como o “desaparecimento, destruição ou deterioração do veículo seguro por motivo de furto, roubo ou furto de uso (tentado e consumado).”

Não tendo o legislador consagrado uma noção de contrato de seguro, estabeleceu no artigo 1º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril, e de ora em diante designado apenas por RJCS) que “[P]or efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente”.

Segundo José Vasques (Contrato de Seguro, Coimbra Editora, p. 94) o contrato de seguro é aquele pelo qual a seguradora, mediante retribuição pelo tomador de seguro, se obriga, a favor do segurado ou de terceiro, à indemnização de prejuízos resultantes, ou ao pagamento de valor pré-definido, no caso de se realizar um determinado evento futuro e incerto. Sobre o tomador do seguro recai a obrigação de pagamento do prémio convencionado e sobre a seguradora a obrigação de, verificado o risco, proceder ao pagamento de uma indemnização ou de capital.

O risco, sendo um elemento essencial do contrato de seguro, pode ser definido como o evento futuro e incerto cuja materialização constitui o sinistro (v. José Vasques (ob. cit., p. 127).

O segurador é obrigado a formalizar o contrato num instrumento escrito, que se designa por apólice de seguro, e a entregá-lo ao tomador do seguro (n.º 2 do artigo 32º do RJCS), devendo constar da apólice todo o conteúdo do acordado pelas partes, nomeadamente as condições gerais, especiais e particulares aplicáveis, e no mínimo os elementos elencados no n.º 2 do artigo 37º do RJCS, onde se encontram os riscos cobertos (alínea d), devendo ainda incluir, escritas em caracteres destacados e de maior dimensão do que os restantes: a) As cláusulas que estabeleçam causas de invalidade, de prorrogação, de suspensão ou de cessação do contrato por iniciativa de qualquer das partes; b) As cláusulas que estabeleçam o âmbito das coberturas, designadamente a sua exclusão ou limitação; c) As cláusulas que imponham ao tomador do seguro ou ao beneficiário deveres de aviso dependentes de prazo (n.º 3 do referido preceito).

Para aferição do conteúdo do contrato importa atender ao objeto do seguro e aos riscos cobertos na apólice, mas também às estipulações negociais que visam delimitar ou excluir certo tipo de riscos, passando o âmbito deste tipo contratual pela definição das garantias, dos riscos cobertos e dos riscos excluídos (v. Romano Martinez, Direito dos Seguros, páginas 91 e seguintes).

Podemos, por isso, dizer que os concretos riscos cobertos serão os que constam indicados da apólice, integrada por condições gerais, especiais e particulares, atendendo-se ainda aos riscos que ali se mostrem excluídos.

Estando em causa, na parte respeitante à cobertura de Furto ou Roubo, seguro facultativo, está o mesmo sujeito ao princípio da liberdade contratual; porém, e como já afirmamos enquadra-se nos designados contratos de adesão, pois as cláusulas contratuais gerais que o regem não são sujeitas a negociação, e consequentemente, está sujeito ao regime das cláusulas contratuais gerais, devendo ser submetido à disciplina do Decreto-Lei n.º 446/85 de 25/10.

Estes contratos contêm, por via de regra, “Cláusulas preparadas genericamente para valerem em relação a todos os contratos singulares de certo tipo que venham a ser celebrados nos moldes próprios dos chamados contratos de adesão” (Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6ª Edição, p. 75).

Não se questionando que o contrato de seguro reveste a natureza de contrato de adesão, pois as cláusulas contratuais gerais que o regem não são sujeitas a negociação, mas apresentadas como um formulário que o destinatário do seguro se limita a subscrever, entendemos ser de concluir que, quando em resultado de cláusulas, de exclusão ou limitativas, a cobertura fique aquém daquilo que o tomador ou o segurado pudessem de boa-fé contar, tais cláusulas devem ser efetivamente consideradas nulas.

In casu, contudo, não entendemos estar perante uma questão de nulidade da cláusula.

A questão que importa solucionar, reconduz-se à interpretação da referida cláusula 59ª, para o que se terá de fazer apelo ao regime geral do Código Civil (cfr. artigos 236º e seguintes), mas também às regras estabelecidas nos artigos 7º, 10º e 11º do Decreto-Lei nº 446/85 (v. sobre a interpretação do contrato de seguro Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, p. 31 e seguintes e “A interpretação e integração das lacunas do contrato de seguro”, Contrato de Seguro – Estudos, p. 115 e seguintes e José Vasques, ob. citada, p. 351 e seguintes).

Quanto à interpretação da declaração negocial estabelece o referido artigo 236.º do Código Civil que “1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. 2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida”.

A regra estabelecida no n.º 1 é a de que o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante, excetuando-se apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido, ou o de o declaratário conhecer a vontade real do declarante; consagrou-se uma “doutrina objetivista da interpretação, em que o objetivismo é temperado por uma salutar restrição de inspiração subjetivista” tendo em vista a proteção das legitimas expetativas do declaratário e a não perturbação da segurança do tráfico, conferindo-se à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efetivamente atribuir, sendo que a normalidade que a lei toma como padrão, “exprime-se não na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante” (v. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, p. 223).

Por outro lado, o artigo 10º do Decreto-Lei nº 446/85 estabelece que “[A]s cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam”, explicitando o artigo 11º deste diploma que “[A]s cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real” (n.º 1), prevalecendo na dúvida o sentido mais favorável ao aderente (n.º 2).

O sentido das cláusulas do contrato de seguro é determinado em função de um aderente (tomador de seguro) normal colocado na posição do aderente real, sendo que, em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalecerá o sentido mais favorável ao aderente (artigo 11º do Decreto-Lei nº 446/85).

In casu, ficou demonstrado que na cláusula 58ª das Condições Gerais e Especiais se estabelece que o seguro garante a indemnização dos prejuízos devidos a dano causado ao veículo seguro em virtude de Furto ou Roubo e que a cláusula 59ª define Furto ou Roubo como “desaparecimento, destruição ou deterioração do veículo seguro por motivo de furto, roubo ou furto de uso (tentado e consumado)”.

Aplicando ao caso concreto a teoria da impressão do destinatário e considerando a perspetiva de um declaratário normal, colocado na posição real da Autora, tomadora de seguro, entendemos poder afirmar-se que a Autora pretendeu acautelar o risco de desaparecimento do seu veículo, utilizado no âmbito da sua atividade de aluguer de veículos.

Na verdade, e no geral, o contrato de seguro de veículo automóvel não previne o risco do roubo, furto ou furto uso, havendo, no entanto, muitas vezes interesse, designadamente de empresas como a Autora, em cobrir tais riscos.

Entendemos, por isso, ser legitimo concluir que à Autora, tendo-se limitado a aceitar as referidas cláusulas redigidas com termos jurídicos (furto, roubo), e não tendo obrigação de compreender com rigor técnico-jurídico o seu significado, nem tendo possibilidade de os alterar, o que interessava era prevenir o risco do desaparecimento do veículo, em qualquer das hipóteses de apropriação ilícita, seja pelo locatário ou por outrem.

Como se afirma no acórdão desta Relação de 10/05/2018 (Processo n.º 6651/13.6TBBRG.G2, Relatora Desembargadora Anabela Tenreiro, disponível em www.dgsi.pt) “o aderente, mesmo sendo pessoa informada e instruída, pode não saber distinguir os casos que integram os crimes de furto, de roubo ou de abuso de confiança, pois apenas lhe interessa garantir o evento, em concreto, suscetível de determinar o pagamento de uma indemnização pela seguradora, caso se verifique”.

É ainda legitimo concluir que também a Ré pretendeu, com a celebração do contrato de seguro, cobrir o risco da perda do veículo por apropriação de outrem.

Aliás, se atentarmos na própria denominação da Autora, (“Marino Prestige Rent A Car SA”) não vemos como poderia a Ré seguradora desconhecer que a Autora exercia a atividade de aluguer de veículos, sendo expectável a preocupação da mesma em cobrir a eventualidade de perda do veículo, por apropriação ilícita, designadamente do próprio locatário.

E, na verdade, o desaparecimento de veículo por apropriação ilícita é comumente associado pela generalidade das pessoas a furto ou roubo, independentemente de a apropriação ser levada a cabo pela pessoa a quem o veículo se encontrava entregue por contrato de locação, as quais desconhecem se tal situação configura um crime de abuso de confiança.

Entendemos, por isso, que esta interpretação é aquela que melhor respeita a vontade real do tomador do seguro, que se limitou a aceitar as clausulas gerais, sem possibilidade de negociação, e a quem não é exigível a compreensão rigorosa de conceitos jurídicos, e é também a que corresponde ao sentido mais favorável ao aderente.

Assim, num contrato de seguro, em que outorgou, por adesão, uma empresa de aluguer de automóveis, a cláusula que responsabiliza a seguradora em caso de roubo, furto e furto de uso do veículo, não deve ser interpretada como abrangendo apenas os factos integrantes destes ilícitos criminais, antes permitindo abranger em tal cláusula os casos integrantes de abusos de confiança, em que alguém tomou um veículo de aluguer e o fez desaparecer (v. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/11/2020, Processo n.º 0021161, relator Desembargador Ferreira de Seabra, disponível em www.dgsi.pt), ou seja os casos em que o veículo desapareceu por apropriação ilícita, seja do locatário seja de outrem.

Retornando ao caso dos autos, e respondendo à questão inicialmente colocada, temos de concluir que efetivamente ocorreu o evento previsto no contrato de seguro, ou seja, o desaparecimento ilícito do veículo, independentemente deste sido levado a cabo por desconhecidos nos termos denunciados pelo locatário, e constantes do ponto 14 dos factos provados, ou ter sido levado a cabo pelo próprio locatário, posto que não decorre dos autos a intervenção da Autora nesse desaparecimento.

Do exposto decorre que, ao contrário do decidido pelo tribunal a quo, e ressalvado o respeito que nos merece entendimento contrário, julgamos ser de concluir que se verificou o sinistro coberto pelo seguro e que a Ré ficou obrigada a pagar uma indemnização, decorridos sessenta (60) dias sobre a data da participação da ocorrência à autoridade competente, por não ter sido encontrado o veículo, em conformidade com a cláusula 61ª (cfr. ponto 39 dos factos provados).

A Autora peticiona nos presentes autos a condenação da Ré no pagamento à Autora da quantia de €50.000,00, correspondente ao valor seguro, sem qualquer franquia, acrescida de juros de mora à taxa legal aplicável às operações comerciais desde 23 de março de 2019, até efetivo e integral pagamento, e a quantia de €25.000,00 a título de indemnização pelos danos causados em consequência da perda da possibilidade de alugar o veículo, acrescida dos juros vencidos a contar da citação até efetivo e integral pagamento.

De acordo com as condições especiais e particulares aplicáveis, o valor seguro, em caso de furto ou roubo, é de €50.000,00, sem qualquer franquia e de acordo com a Clausula 60.ª, n.º 2 das Cláusulas Contratuais Gerais, os lucros cessantes constituem danos expressamente excluídos do âmbito da cobertura (pontos 40 e 41 dos factos provados).

Assim, e quanto ao primeiro dos valores peticionados pela Autora, terá de proceder a sua pretensão quando pretende a condenação da Ré no pagamento da quantia de €50.000,00. (…) ».

Posto isto, devemos dizer que, na sua essência, nos revemos na fundamentação exaurida pelo acórdão recorrido, e, por isso para ela nos remetemos.

Porém, em seu reforço, diremos ainda o seguinte:

Nesse domínio vem prevalecendo o entendimento que quando um contrato de seguro inclui entre os riscos por ele cobertos a prática de um determinado crime (vg. furto, roubo, etc.) muito embora seja ao tomador do seguro/segurado que cumpra demonstrar a ocorrência do correspondente sinistro, todavia, não lhe é exigível que faça uma prova segura/inequívoca dos factos integrantes desse ilícito criminal, equivalente àquela que se exige nos procedimentos criminais para aplicar uma pena, bastando tão só que resultem apurados factos indiciários que revelem uma possibilidade razoável desse crime ter ocorrido (cfr. nesse sentido, o recente acórdão do STJ de 27/10/2022, proc. nº. 2939/19.0T8STRR.-E1.S1, relatado por CURA MARIANO, disponível em www.dgsi.pt. E apontando em idêntico sentido, vide ainda Acs. da RL de 22.11.2018, proc. 18262/17.2T8LSB.L1.-2, da RG de 16.05.2019, proc. 3164/17.0T8VNF.G1, da RP de 10.01.2019, proc. 1521/17, e de 10.01.2022, Proc. 6509/18, disponíveis www.dgsi.pt).

Por outro lado, neste tipo de contratos vem sendo cada vez mais frequente a utilização de exemplos padrão nas cláusulas (gerais/especiais) numa procura de melhor concretizar os eventos cobertos suscetíveis de gerar indemnização, sem que, contudo, os eventos neles descritos constituam um circulo fechado das situações que poderão determinar a responsabilidade indemnizatória da seguradora, pois que outras circunstâncias que se apresentem com uma identidade de tipologia comum (referente à idêntica realidade do mundo da vida ) a tais eventos podem igualmente gerar a responsabilidade indemnizatória da seguradora (cfr., nesse sentido, o atrás citado aresto deste STJ de 27/10/2022).

A cobertura do risco em discussão, encontra-se plasmada na acima citada cláusula 58ª das Condições Gerais e Especiais do sobredito contrato de seguro celebrado entre a A. e a R., e que assim reza: “O seguro abrangido por esta cobertura garante a indemnização dos prejuízos devidos a dano causado ao veículo seguro em virtude de Furto ou Roubo”.

Por sua vez, sob a epígrafe “Definições”, a cláusula 59ª inserida em tais Condições define o Furto ou Roubo como “desaparecimento, destruição ou deterioração do veículo seguro por motivo de furto, roubo ou furto de uso (tentado e consumado)”. (sublinhado nosso)

Ora, considerando, por um lado, o que se acabou de deixar expresso sobre os conceitos de exemplos-padrão muitas das vezes utilizados nas cláusulas gerais com o intuito de melhor concretizar eventos cobertos pelo seguro suscetíveis de gerar indemnização, sem que, contudo, representem um círculo fechado dos mesmos, e, por outro, as regras da hermenêutica interpretativa das declarações negociais consagradas quer no artº. 236º e ss. do C. Civil - donde ressalta a consagração do princípio teórico da impressão do destinatário (à luz do qual as declarações devem ser interpretadas na perspetiva de um declaratário normal colocado na posição do real declaratário, neste caso da A.) -, quer nos artºs. 10º (no qual se manda atender que a interpretação, a extrair à luz dos parâmetros estabelecidos naquele normativo legal do CC, seja feita dentro do contexto do contrato em que tais cláusulas se mostram inseridas) e 11º (que, no seu nº. 2, manda considerar que, no caso de cláusulas contratuais ambíguas, na sua interpretação deva prevalecer o sentido mais favorável ao aderente) do DL nº. 446/85, de 25/10, que aprovou o Regime/Lei das Cláusulas Contratuais Gerais (e aqui também convocável pelas razões que se deixaram expressas no acórdão recorrido, e que têm a ver como o facto de tais cláusulas se mostrarem inseridas nessa parte e no que a elas diz respeito num contrato de adesão, por não terem sido objeto de negociação), e, por fim ainda, o tipo de negócio/atividade profissional a que se dedica a A./segurada (aluguer de veículos a terceiros, sem condutor), afigura-se-nos, assim, nessa conjugada panóplia de considerandos, que, à luz das referidas cláusulas 58ª e 59ª, e na interpretação que delas deve ser feita, se encontram ainda cobertos pelo dito contrato de seguro os prejuízos que advenham para a A. decorrentes quer do furto ou do roubo do veículo, quer de qualquer outro evento ou circunstância que motivem a que a A. fique ilicitamente desapossada/privada do referido veículo objeto do seguro, e conduzam, assim, por via disso, ao seu (ilícito) desaparecimento, destruição ou deterioração.

É assim, para nós, patente que a Autora, que não domina necessariamente os conceitos jurídicos, que com aquela primeira cláusula contratual quis abranger todas as situações que envolvam o desaparecimento, a destruição ou deterioração do dito veículo automóvel por si segurado por motivos decorrentes do seu ilícito desapossamento do veículo, quer essa privação ocorra devido a furto, a roubo ou a qualquer outra forma ilícita de desapossamento do mesmo, na qual se engloba, por exemplo, a sua apropriação alheia por abuso de confiança do próprio locatário.

A propósito desta última específica forma de apropriação ilícita (vg. por abuso de confiança), como se escreve no acima citado aresto deste Supremo Tribunal (de 27/10/2022) “o facto de ocorrer antecipadamente uma entrega voluntária do bem ao agente do crime, por parte do segurado, se é certo que facilita a prática do ato de desapossamento, em comparação com os atos de furto e de roubo, não justifica que se considere que, aos olhos de um declaratário normal, colocado na posição da Autora, tal ato esteja fora da área de cobertura do sinistro, na sua delimitação positiva, uma vez que essa entrega voluntária não afasta a caraterística de estarmos perante um ato de desapossamento a que o segurado se vê sujeito, de um modo súbito e acidental, contra a sua vontade.” Repare-se que na própria definição do conceito de furto e roubo alude-se também ao furto de uso (seja ele consumado ou tentado).

Enfatizando, o que, naturalmente, se visa cobrir em tais termos de seguro são aquelas situações em que a A./segurada é, de forma ilícita, desapossada/desapropriada do veículo, sem que a mesma saiba da sua localização, e daí a expressão empregue “desaparecimento”.

Tendo presente isto e o que demais supra se deixou expendido sobre a prova desse ilícito sinistro se reconduzir a factos que indiciem a possibilidade razoável de o mesmo ter ocorrido, compulsando a matéria factual apurada dela se extrai, com relevância, que:

- O referido veículo foi alugado, no dia 2 de janeiro de 2018, pela A. a um tal AA por períodos mensais renováveis.

- No dia 18 de dezembro de 2018, o referido locatário apresentou no Comando Distrital de ... da Policia de Segurança Pública, Divisão Policial de ..., denúncia por furto do referido veículo.

- Desse facto o locatário deu posterior conhecimento à Autora, tendo ainda preenchido a declaração amigável de acidente de automóvel para que fosse remetida à Ré.

- Em 22 de março de 2019, a Autora remeteu à Ré certidão emitida pela ...ª Secção de ... do Departamento de Investigação e Ação Penal pela Procuradoria da República da Comarca ..., e do teor da qual consta o despacho a ordenar o arquivamento dos autos de inquérito, instaurado na sequência daquela denúncia, por não ter sido possível apurar a identidade do autor, ou autores, do crime denunciado e não ter sido possível recuperar o veículo furtado.

Ora, a conjugação de tais factos revela, a nosso ver, uma possibilidade razoável de o sinistro (a que se reportam as conjugadas cláusulas gerais/especiais 58ª e 59ª do contrato de seguro a que supra nos referirmos) ter ocorrido, isto é, de o veículo segurado da A. ter, contra a sua vontade, desaparecido da sua esfera jurídica, ou, por outras palavras, de esta ter sido ilicitamente dele desapossada, quer tal se tenha ficado a dever a furto praticado em relação ao mesmo por terceiro, quer a qualquer outra forma ilícita de apropriação, nomeadamente levada a efeito pelo próprio locatário (abuso de confiança), sendo certo que nada existe na materialidade factual apurada que permita concluir, ou sequer colocar uma dúvida razoável a esse respeito, que a A. tenha qualquer responsabilidade (em termos de comportamento ilicitamente censurável) no desaparecimento desse seu próprio veículo automóvel.

O facto de não terem ficado apuradas as concretas circunstâncias em que terá ocorrido o desaparecimento do veículo, e nomeadamente aquelas relacionadas com a localização do veículo de onde o mesmo terá desaparecido, nos termos em que foram alegadas, em nada, a nosso ver, interfere/influi na referida conclusão a que se chegou.

Donde não nos merecer censura a decisão proferida pelo douto acórdão da Relação de que se recorre, e daí que improceda o recurso (de revista) interposto pela R. .


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III- Decisão



Assim, em face do que se deixou exposto, acorda-se em negar provimento à revista, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.

Custas do recurso pela R./recorrente (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do CPC).


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Sumário

I- As nulidades da sentença/acórdão, encontram-se taxativamente previstas no artº. 615º CPC e têm a ver com vícios estruturais ou intrínsecos da sentença/acórdão também conhecidos por erros de atividade ou de construção da própria sentença/acórdão, que não se confundem com eventual erro de julgamento de facto e/ou de direito.

II- Só ocorre nulidade da sentença/acórdão por vício previsto no 1º. segmento da al. c) do nº. 1 daquele preceito legal - fundamentos em oposição com a decisão - quando os fundamentos de facto e/ou de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão, ou seja, quando exista contradição entre as suas premissas, de facto e/ou de direito, e a conclusão, de tal modo que esta deveria lógica e inequivocamente alcançar um resultado diverso.

III- Quando num contrato de seguro se inclui entre os riscos por ele cobertos a prática de um determinado crime (vg. furto, roubo, etc.) muito embora seja ao tomador do seguro/segurado que cumpra demonstrar a ocorrência do correspondente sinistro, todavia, não é lhe é exigível que faça uma prova segura/inequívoca dos factos integrantes desse ilícito criminal, equivalente àquela que se exige nos procedimentos criminais para aplicar uma pena, bastando tão só que resultem apurados factos indiciários, não contrariados, que revelem uma possibilidade razoável/séria desse crime ter ocorrido.

IV- Nesse tipo de contratos vem sendo cada vez mais frequente a utilização de exemplos padrão nas cláusulas (gerais/especiais) numa procura de melhor concretizar os eventos cobertos suscetíveis de gerar indemnização, sem que, contudo, os eventos neles descritos constituam, só por si, um circulo fechado das situações que poderão determinar a responsabilidade indemnizatória da seguradora, pois que outras circunstâncias que se apresentem com uma identidade de tipologia comum (perante a realidade do mundo da vida) a tais eventos podem igualmente ser consideradas como geradoras da responsabilidade indemnizatória da seguradora, à luz da hermenêutica interpretativa das condições/motivos que estiveram subjacentes à celebração do contrato.


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Lisboa, 2023/02/28


Segue-se a declaração de voto de vencido do exmo. sr. conselheiro Aguiar Pereira (que intervém com 1.º adjunto):

DECLARAÇÃO DE VOTO

Não subscrevo inteiramente a fundamentação do acórdão recorrido que conduziu à revogação da sentença proferida em primeira instância e parcialmente incorporada na fundamentação do presente acórdão.

Se concedo que o enquadramento de situações de facto susceptíveis de ser qualificadas como crime de abuso de confiança podem estar cobertas pelo contrato de seguro celebrado entre as partes, face ao disposto no artigo 236.º do Código Civil, como explicado na fundamentação, não vejo como face aos factos apurados em primeira instância – e mantidos em segunda instância – seja possível concluir o que quer que seja sobre o alegado desaparecimento ilícito do veículo seguro por uma das formas previstas nas cláusulas 58.º e 59.º das Condições Gerais do contrato de seguro celebrado.

Sendo o desaparecimento por furto ou roubo (ou mesmo abuso de confiança) facto constitutivo do direito à indemnização reclamada a prova do sinistro gerador do direito à reclamada indemnização cabe à autora ainda que, pela própria natureza do facto não lhe seja exigível que faça uma prova segura dos factos tipicamente integradores do crime – equivalente à que seria necessária para aplicar uma pena em processo penal.

Sucede que o único facto provado nos autos sobre o desaparecimento do veículo seguro se refere à apresentação de uma participação num posto policial por furto, não tendo sequer ficado provado que o locatário teria estacionado o veículo num determinado local onde não o encontrou no dia seguinte.

Tal participação não torna certo o desaparecimento do veículo seguro, não prova a ocorrência de qualquer crime ou do sinistro objecto do contrato de seguro nem faz inverter automaticamente o ónus da prova sobre a matéria.

Seria suficiente para a procedência da pretensão da autora que dos factos apurados resultasse uma probabilidade séria de se ter verificado o desaparecimento do veículo por facto ilícito de terceiro sem que se demonstrassem quaisquer outros factos que suscitassem dúvidas sobre a matéria.

O que, salvo melhor opinião, não se verifica no caso presente.

Diferentemente do apurado nestes autos, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de outubro de 2022, citado em arrimo da correcção da posição que fez maioria, os factos apurados na sequência da participação criminal por abuso de confiança deram origem a uma acusação formal contra a pessoa a quem foram entregues os bens objecto do contrato de seguro.

Ora, salvo melhor opinião, os factos apurados não suportam a afirmação, com o necessário grau de segurança, que se tenha verificado a ocorrência do sinistro traduzida no desaparecimento ilícito por acção de terceiros do veículo seguro.

Admitir que com base nos factos apurados que o veículo seguro desapareceu por furto, roubo ou abuso de confiança – sinistro coberto pelo contrato de seguro celebrado entre as partes – seria recorrer a uma presunção judicial que os factos apurados, salvo melhor opinião, não consentem.

Daria, pelo exposto, provimento à revista e revogaria em conformidade o acórdão recorrido, repondo a sentença de primeira instância.


Relator: Cons. Isaías Pádua

Adjuntos:

Cons. Aguiar Pereira

Cons. Maria Clara Sottomayor