DESCOBERTA DA VERDADE MATERIAL
PROVA TESTEMUNHAL
APRESENTAÇÃO DE NOVAS TESTEMUNHAS DURANTE O JULGAMENTO
ARTIGO 340º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário


I – O fim último do processo penal é a descoberta da verdade material.
II – O tribunal está incumbido de esclarecer e instruir autonomamente, mesmo para além das contribuições da acusação e da defesa, o facto sujeito a julgamento, criando aquele mesmo as bases necessárias à sua decisão.
III – Não obstante se mostrar ultrapassado o momento para a apresentação formal do rol de testemunhas e respectivos aditamentos, o arguido tem o direito de requerer a produção de prova até às alegações finais desde que consiga convencer sobre a sua necessidade para a descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
IV– Esta necessidade tem de ser aferida à face dos elementos probatórios já constantes dos autos.
V – Em princípio, a descoberta da verdade beneficiará da audição das vítimas e das pessoas cuja presença no local da comissão dos factos resulta da própria acusação ou das declarações e depoimentos já prestados no julgamento em curso.

Texto Integral


Acordam os juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

1. Decisões recorridas

1.1. No âmbito do processo n.º 3006/20...., que corre os seus termos no Juízo Local Criminal ..., a arguida/demandada AA foi condenada, por sentença datada de 15 de Junho de 2022:
a) na pena de 45 dias de multa à taxa diária de € 6,00, pela prática de um crime de injúria simples, p. e p. pelo art. 181.º, n.º 1, do Código Penal;
b) e na obrigação de pagar à demandante BB a importância de € 400, acrescida de juros de mora, a título de indemnização dos danos não patrimoniais causados pela prática do referido crime.

1.2. Anteriormente, durante a primeira e única sessão de julgamento realizada no dia 9 de Junho de 2022, a referida arguida requerera, ao abrigo do disposto no art. 340.º do Código de Processo, a inquirição de duas testemunhas, o que foi objecto de despacho de indeferimento proferido naquela sessão.

2. Recursos

2.1. Inconformada com o referido despacho, datado de 9 de Junho de 2022, a arguida recorreu da mesma, tendo concluído a respectiva motivação nos seguintes termos (transcrição):

(…)
I- O indeferimento de um meio probatório requerido ao abrigo do artigo 340.º do CPP impõe
que a decisão sobre o mesmo seja devidamente fundamentada.
II- Ao indeferir a inquirição de testemunhas que efetivamente presenciaram os factos com base na alegada repetição das mesmas – que por sinal os depoimentos haviam sido marcados pela disparidade – leva a que o Tribunal a quo incorra numa nulidade relativa ao abrigo do artigo 120.º do CPP.
III - O Tribunal não tem poderes de adivinhação daquilo que as testemunhas apresentadas podem ou não dizer, sendo que se existiam testemunhas que presenciaram os factos, o Tribunal, em nome da presunção de inocência e da descoberta da verdade material e boa decisão da causa, tem o poder-dever de as ouvir, por forma a sustentar e fundamentar devidamente a sua convicção e a sua decisão final.
IV - É nula a decisão de indeferimento de meios de prova com base em juízos de prognose
discricionários.
V - Ao indeferir meios de prova essenciais, o Tribunal a quo leva a que o despacho recorrido deve ser revogado, e assim reaberta a sessão de julgamento.
VI - É nula a sentença proferida com base em violação da presunção de inocência prevista no artigo 32.º da CRP.
VII - Com a sentença proferida o Tribunal a quo violou os artigos 340.º do CPP, 120.º do CPP, 410.º do CPP, 32.º do CRP e art.6.º, § 2.º da CEDH.
TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO,
Se requer muito respeitosamente a V/ Exa. que julgue o presente recurso totalmente procedente por provado e, em consequência, revogue a decisão recorrida, substituindo-a por outra que ordene a repetição do julgamento para a produção de prova ora requerida, fazendo, assim, Vossas Excelências a inteira e habitual JUSTIÇA!!!
(…)”.

2.2. Inconformada com a referida sentença, datada de 15 de Junho de 2022, a arguida recorreu, igualmente, da mesma, tendo concluído a respectiva motivação nos seguintes termos (transcrição):

(…)
II - A Recorrente não se conforma com o teor da decisão proferida por entender que a prova produzida se demonstra insuficiente pata determinar a sua condenação, pelo que ao nível da decisão sobre a matéria de facto a mesma deverá ser alterada e, em termos de enquadramento jurídico, a decisão de direito também deverá ser diversa no sentido da absolvição.
III - A prova produzida em julgamento é manifestamente insuficiente para a condenação gizada.
IV - As testemunhas não ouviram os insultos serem diretos à Ofendida, bem como destacam que o “ladrona” foi suportado com a necessidade de recurso a tribunal.
V - Por conseguinte, constatada a fragilidade e insuficiência da prova produzida e alterada a
decisão ao nível da matéria de facto, impõe-se uma outra decisão de direito que se sustente nos factos apurados e não se revele desconforme com os mesmos.
VI - Os factos reportados na sentença não têm, sequer, relação com a Ofendida. São, sim, com o pai desta. Nessa medida, a sentença proferida encontra-se viciada, pelo que deverá ser revogada por outra que absolva, sem mais, a Arguida, por violação da fundamentação que qualquer sentença deverá conter.
VII - a), 374.º nº2 e 122.º, ambos do Código de Processo Penal.
VIII - Ora, o Tribunal a quo considerou provados praticamente todos os factos da acusação e ainda outros, indicando que a fundamentação da sua decisão se baseou em depoimentos de ouvi dizer, naturalmente comprometidos e com uma clamorosa violação da igualdade: a Arguida não obteve uma posição igualitária nos presentes autos, tendo visto ser-lhe negada a produção probatória que de tão essencial se reveste, o que motivou e sustentou o anterior recurso.
IX - A Arguida não tem qualquer registo criminal contra si e, naturalmente, a produção probatória permitir-lhe-ia uma defesa igualitária nos presentes autos.
X - Portanto, a absoluta insuficiência probatória para a decisão da matéria de facto provada, levam a que deva ser o julgamento repetido, a fim de se possibilitar a defesa à ora Arguida.
XI - O Tribunal a quo indica que sustenta a sua decisão na prova produzida em julgamento teve como base o depoimento da Arguida e da Ofendida e, ainda, duas testemunhas que, conforme veremos, em nada poderiam ter contribuído para uma condenação como a que se veio a verificar, nomeadamente testemunha CC.
XII - A sentença apresenta insuficiência para a matéria de facto dada como provada.
XIII - Com base nos depoimentos das testemunhas CC de minutos 01:36 a 03:00, minutos 08:47 a 11:05 e depoimento de DD, de minutos 02:32 a 11:52, deverão ser dados como não provados os factos 4, 5, 6, 7.
XIV - Quanto aos factos do PIC, 10, 11, 12 e 13, não existe nenhum suporte nem testemunhal nem documental, ou mesmo pericial, que permita a sua valoração.
XV - O crime de injúria em que veio a ser condenada a Arguida não está preenchido no seu tipo p. no artigo 181.º do CP.
XVI - No que diz respeito ao tipo subjectivo, estamos perante uma infracção necessariamente dolosa, nos termos do artigo 13º do Código Penal. O elemento subjectivo do tipo traduz-se, assim, na consciência de que a aludida imputação ou palavras são de molde a ofender a pessoa visada na sua honra ou consideração, o que, no caso, não se encontra preenchido.
XVII - A Ofendida chamou ladrona na ótica de referência à usurpação indevida de terras, o que não ofendia, mas constatava um facto.
XVIII - Em todo o caso, seria sempre de aplicar o instituto da dispensa de pena p. no artigo
186.º do CP.
XIX - Ora, não tendo sido possível apurar de forma satisfatória as circunstâncias em que os factos imputados à Recorrente se desenvolveram e, principalmente, não se tendo conseguido afastar a dúvida quanto ao agente da prática do tipo legal de crime, o Tribunal a quo estava vinculado a decidir pro reo.
XX - Não o tendo feito, a douta decisão recorrida é atentatória de princípios estruturantes do direito processual penal e com consagração constitucional no artigo 32º n.º 2 da Lei Fundamental, tais como o princípio da presunção da inocência e o princípio in dubio pro reo.
XXI - A convicção do Tribunal a quo assentou exclusivamente na versão apresentada pela Recorrida, que tem interesse numa decisão condenatória.
XXII - Mediante isto não parece razoável que, após uma ponderação global da prova, resulte a formação de uma convicção segura quanto à prática do crime, ou seja, que a prova é suficientemente coesa e forte para afastar a presunção da inocência de que a Recorrente beneficia.
XXIII - Mantendo-se a dúvida quanto à ocorrência dos factos nos moldes em que a Recorrente vinha acusada, o Tribunal teria obrigatoriamente que decidir pela absolvição por prova insuficiente para enquadrar a situação concreta na previsão legal do artigo 181º n.º 1 do Código Penal.
XXIV - O que significa que os elementos do tipo não se encontram preenchidos no caso concreto e, por isso, à Recorrente não poderá ser imputada responsabilidade jurídico-criminal.
XXV - Com a sentença proferida o Tribunal a quo violou os artigos 340.º do CPP, 120.º do CPP, 410.º do CPP, 32.º do CRP, 186.º do CP e art.6.º, § 2.º da CEDH.

*
TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO, Se requer muito respeitosamente a V/ Exa. Que julgue o presente recurso totalmente procedente por provado e, em consequência, revogue a decisão recorrida, substituindo-a por outra que ordene a repetição do julgamento para a produção de prova ora requerida, fazendo, assim, Vossas Excelências a inteira e habitual JUSTIÇA!!!
(…)”.

3. Resposta aos recursos

Após a admissão dos referidos recursos, o Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu aos mesmos, concluindo (transcrição):
(…)

I. Do recurso do despacho que indeferiu a produção de prova

Foi a arguida acusada pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1 do
Código Penal.
Notificada para o efeito, a arguida deduziu contestação, sem, porém, oferecer qualquer meio de prova.
Em sede de audiência de julgamento, imediatamente após ter prestado declarações, a Arguida requereu, ao abrigo do disposto no artigo 340.º do Código de Processo Penal, a inquirição de duas testemunhas que, alegadamente, presenciaram os factos.
O Ministério Público e a Assistente opuseram-se ao pretendido, por extemporaneidade.
O Tribunal relegou a apreciação do requerimento para momento posterior à produção de prova, vindo, a final, a indeferi-lo, por não ter sido alegado qualquer motivo ou conhecimento especial que as testemunhas teriam acerca dos factos, para além da prova entretanto produzida.
O Tribunal julgou, pois, as provas requeridas irrelevantes, de forma suficientemente fundamentada, sendo claro o raciocínio ali explanado.
Ao contrário do que vem defendido pela recorrente, as provas requeridas não se afiguraram necessárias à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, atenta a demais prova produzida.
As testemunhas cujo depoimento foi requerido terão presenciado os factos, assim como duas das testemunhas inquiridas em julgamento e cujo depoimento foi esclarecedor para o
Tribunal.
Aliás, conforme resulta do despacho proferido, não foi alegada qualquer circunstância que determinasse o Tribunal a julgar tal prova necessária, relativamente a toda a demais prova dos autos.
Não se verificando, pois, a invocada nulidade.
De resto, o indeferimento da produção de prova, nos termos em que foi requerida, tampouco consubstancia qualquer violação de qualquer princípio fundamental dos direitos do arguido, como sejam os princípios de presunção de inocência e in dubio pro reo.
O Tribunal a quo ofereceu igual tratamento a todos os sujeitos processuais e, em momento algum, conforme bem resulta da fundamentação de facto da decisão proferida, se confrontou com qualquer dúvida, muito menos de qualquer dúvida inultrapassável que determinasse que decidisse em favor da recorrente, conforme adiante melhor se explanará.

II. Do recurso da sentença condenatória

Entende a recorrente que o Tribunal a quo fez um errado julgamento da matéria de facto dada como provada e não provada.
Nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal, a decisão recorrida só poderá ser alterada no que respeita à matéria de facto quando existam provas que imponham decisão diversa da recorrida.
O que, em nossa opinião, não é manifestamente o caso dos autos.
Não existe qualquer prova que imponha decisão diversa.
Na verdade, aquilo que existe é uma discordância da recorrente quanto ao julgamento da matéria de facto.
Da leitura da sentença ora posta em crise, retira-se que toda a prova produzida foi valorada à luz das regras da experiência comum e da lógica, beneficiando o Julgador a quo da imediação e da oralidade.
O Tribunal a quo fez uma análise conjunta da prova produzida e fez um desenho perfeito do
motivo de crer e não crer em cada uma das versões opostas que foram apresentadas.
Razão pela qual se nos afigura prejudicada a apreciação do recurso, quanto ao efectivo preenchimento dos elementos objectivo e subjectivo do tipo penal e à ponderação da dispensa de pena – pois que assentam no pressuposto da alteração da matéria de facto provada e não provada.
Umbilicalmente ligada à impugnação que o recorrente faz da matéria de facto, eis que surge a invocação da violação do princípio in dubio pro reo.
Segundo este princípio – que se impõe ao Julgador com dignidade constitucional, como fruto que é do princípio de presunção de inocência consagrado no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa – a dúvida séria e inultrapassável deve ser decidida a favor do arguido.
Ou seja, sempre que, após o Julgador apreciar a prova, à luz do princípio da livre apreciação da prova e das regras da lógica e da experiência comum, concluir pela incerteza de determinado facto, impõe-se que o dê como não provado.
É, pois, uma imposição a que a livre apreciação da prova e a margem de discricionariedade que lhe é inerente estão sujeitas.
Mas, no caso que ora se discute, o Tribunal a quo não se viu confrontado com qualquer dúvida séria e inultrapassável.
O processo de formação da convicção do Julgado a quo – cujo percurso lógico se acompanha da leitura do texto da decisão recorrida – não foi acometido de dúvidas.
Vale isto por dizer que, inexistindo dúvida, inexiste violação deste mesmo princípio.
Termos em que, não concedendo provimento ao presente recurso e confirmando a decisão proferida, fará este Tribunal, como sempre, JUSTIÇA.
(…)”.

4. Tramitação subsequente

Recebidos os autos nesta Relação, o processo foi com vista à Digníssima Procuradora-Geral Adjunta, a qual emitiu parecer pugnando pela improcedência do recurso interposto pelo arguido, excepto na parte relativa à falta de prova relativamente
à expressão “
não tens onde cair morta” dada como provada, sem qualquer influência no decidido.

Este parecer foi notificado para efeito de eventual contraditório e não foi apresentada qualquer resposta pelo recorrente.

Efectuado o exame preliminar, foi determinado que o(s) recurso(s) fosse(m) julgado(s) em conferência.

Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
*
II – FUNDAMENTAÇÃO

A) Objecto do recurso

Em conformidade com o disposto no art.º 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro de 1995, o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Assim sendo, importa apreciar as seguintes questões:

· Indeferimento da inquirição das testemunhas requerida pela arguida no julgamento
· Erro de julgamento
· Atipicidade da conduta da arguida
· Aplicação da dispensa de pena

B) Apreciação do recurso

1. Decisões recorridas

1.1. No início da sessão de julgamento realizada no dia 9 de Junho de 2022, a arguida prestou logo declarações e, findas estas, requereu, através do seu Ilustre Mandatário, o seguinte (transcrição):
Por se revelarem pessoas que estiveram presentes na data dos factos, do depoimento da arguida, nomeadamente o Sr. EE e o Sr. FF, vem a arguida requerer, muito respeitosamente, ao abrigo do art. 340.º do Código de Processo Penal, que seja admitida a sua inquirição das testemunhas no presente processo.

O Mmo. Juiz de Direito a quo relegou o conhecimento desta pretensão para momento posterior à produção de prova e, após a inquirição das quatro testemunhas exclusivamente arroladas na acusação particular – integralmente acompanhada pelo Ministério Publico –, proferiu o seguinte despacho antes da passagem às alegações finais (transcrição):    

“A arguida requereu a audição de duas testemunhas alegando que estiveram presentes no local e data dos factos.
O Ministério Público e a assistente opuseram-se à sua audição.
Na verdade, não foi adiantado qualquer motivo ou conhecimento especial desta testemunhas, para além do que já foi referido na prova produzida no julgamento, pelo que eventualmente, prestariam depoimentos idênticos aos já prestados, tornando-se prova repetitiva.
Assim sendo e ao abrigo do disposto no art.º 340.º, n.º 4 al. b) do C.P.Penal, indefere-se o
requerido”.

1.2. Por seu turno, a sentença recorrida datada de 15 de Junho de 2022 apresenta, na parte que interessa, o seguinte teor (transcrição):
“(…)

II – Fundamentação:

1. Factos Provados:

Da discussão da causa e produção da prova vieram a resultar provados os seguintes factos com interesse para a boa decisão da causa:

1. Em 23 de novembro de 2020, pelas 14h, a assistente foi chamada pela caseira dos seus pais, CC, para vir em auxílio destes, na sequência de um desentendimento relativo à propriedade de uma pequena parcela de terreno localizada no cruzamento da Rua ..., Rua ... e Rua ..., entre seu pai e a Arguida e seu marido.
2. Aí chegada, encontrou a arguida a brandir no ar uma sachola (e o marido desta, um pau), ambos de forma ameaçadora, ao mesmo tempo que ela gritava para seu pai, acusando-o de “Ladrão. Filho da puta”, entre outros epítetos e palavras.
3. Ao aperceber-se da forma injuriosa e ameaçadora com que ambos se dirigiam a seu idoso pai (87 anos), totalmente indefeso, de imediato a assistente se viu obrigada a intervir, questionando a arguida a quem se dirigiam aquelas palavras injuriosas e ameaças.
4. Acto contínuo, a arguida, dirigindo-se à assistente, gritou, em alto e bom som e para quem quisesse ouvir, o seguinte: “É o teu pai e tu, sua ladrona. Tu és outra ladrona como ele. Não tens onde cair morta, sua filha da puta”
5. Tais expressões de “ladrona e filha da puta”, foram repetidas na presença de todas as pessoas que aí se encontravam a tentar apaziguar os ânimos da arguida e seu marido, concretamente, das testemunhas, DD e CC, aí vizinhos.
6. Só ao aperceber-se da possibilidade da autoridade policial, chamada pela advogada da assistente, comparecer no local, a arguida entendeu retirar-se, juntamente com seu marido, continuando, no entanto, a injuriar, de forma gritada e insistente, a assistente de “ladrões. Filhos da puta. Não têm nada. Roubam tudo”.
7. Tal conduta da arguida, revela-se altamente atentatória da honra, dignidade e bom nome da assistente.
8. A arguida de actuou de forma consciente e voluntária, com o propósito de ofender e de atingir o bom nome e a reputação da arguida (e da sua família), bem sabendo que tal não correspondia à verdade e com intenções claras de, lançando a dúvida sobre a sua idoneidade moral e honestidade, o que logrou conseguir, bem sabendo que o seu comportamento merece, para além do mais, censura criminal.
9. A arguida não demonstrou arrependimento na audiência de julgamento. 10. A demandante sentiu-se profundamente ofendida com as expressões que a demandada lhe proferiu, ficando inclusivamente, angustiada e com um sentimento de enorme injustiça, já que sempre pautou o seu comportamento pela máxima correção e honestidade, quer para com a arguida e sua família, quer para com qualquer pessoa com quem se cruzasse na vida.
11. É e sempre foi conhecida e respeitada no meio onde reside, como pessoa de bem, educada e honesta.
12. E em virtude do sucedido, passou a evitar deslocar-se a locais públicos que costumava frequentar, com receio dos olhares e eventuais comentários acerca da sua autoridade moral.
13. Angustiada com tais ofensas, nos dias a seguir e por ser pessoa extremamente sensível, passou a ter dificuldade em adormecer, o que a levou, inclusivamente, a recorrer a medicação para dormir.
14. A arguida encontra-se reformada, auferindo cerca de €350,00 mensais.
15. Vive com o marido que é reformado e aufere cerca de €358,00 mensais, e uma filha bancária, e outra que trabalha como operadora de caixa de um posto de combustível.
16. Vivem em casa própria da filha, a qual paga uma prestação ao banco.
17. Frequentou a escola até à 4ª classe.
18. A arguida não tem antecedentes criminais.
***
2. Factos não Provados, com relevo para a decisão:

a. A vizinha da arguida foi chamá-la e disse que o pai da ofendida estava com uma sachola na mão a ameaçar o seu marido.
b. Por isso foi ao local, tendo chamado aquele apenas “rouba terrenos”, e ainda lhe disse “se ele desse ela também dava”.
c. A ofendida chegou, saiu do carro com um pau na mão e levantou-o.
d. E a arguida disse “dás e levas também”, e disse-lhe ainda “és boa como o teu pai”.
e. O aludido nos factos provados, motivou até depressão na demandante que a afastou de amigos e familiares com quem convivia habitualmente.
f. Todas estas circunstâncias criaram na demandante uma forte e estigmatizante perturbação do equilíbrio socio-psíquico-emocional.
***
Da discussão da causa e produção da prova não vieram a resultar outros factos não provados com interesse para a boa decisão da causa.
***
III – Motivação da decisão de facto:

O tribunal formou a sua convicção com base na valoração da prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, designadamente:

- nas declarações da arguida, a qual, em suma, referiu que nas circunstâncias de tempo e lugar aludidas na acusação, o seu marido estava a tirar um esteio, colocado pelo pai da ofendida na entrada do prédio. A sua vizinha foi chamá-la e disse que o pai da ofendida estava com uma sachola na mão a ameaçar o seu marido, e por isso foi ao local, tendo chamado aquele apenas “rouba terrenos”, e ainda lhe disse “se ele desse ela também dava”.
A ofendida chegou, saiu do carro com um pau na mão e levantou-o, e a arguida disse “dás e levas também”, e disse-lhe ainda “és boa como o teu pai”.
O terreno onde o pai da ofendida colocou o esteio é seu.
Nega ter dito as expressões que constam da acusação à ofendida.
- nos depoimentos das testemunhas:
- CC, a qual prestou um depoimento que se revelou imparcial e verosímil por si e
 entre si e quando conjugado com a demais prova, referindo, em síntese, que viu o GG (marido da arguida) a passar, e depois barulho, e viu-o a meter um esteio abaixo, e ouviu a dizer “rouba terrenos”, e o marido da arguida a dizer “mato-te”.
Foi chamar a ofendida, e quando esta chegou ao local, a arguida disse-lhe “minha puta, minha vaca, rouba terrenos, és outra rouba terrenos como o teu pai, ladrona”. Então disse à arguida para ter calma e esta respondeu-lhe “calma o caralho”, a qual tinha uma sachola na mão.
O pai da ofendida tem mais de 80 anos e anda devagarinho e com a ajuda de uma bengala.
A ofendida não trazia nenhum pau na mão quando saiu do carro.
A ofendida ficou triste e disse que não voltava à casa do seu pai.
- DD, a qual prestou um depoimento que se revelou verosímil por si e entre si e quando conjugado com a demais prova, referiu, em síntese, que estava a almoçar e ouviu discutir, e passado um bocado foi ver o que se passava. Ouviu uma troca de palavras entre a ofendida e a arguida, sendo que esta disse “ladrona”, e a ofendida respondeu que “ela ia ter que provar o que estás a dizer”.
Foi a sua mãe que lhe disse para telefonar à ofendida.
O marido da arguida ameaçava bater no pai da ofendida.
Depois veio o presidente da junta de freguesia e as coisas acalmaram.
A ofendida não é pessoa conflituosa, e é até conceituada no meio e perante os vizinhos.
A ofendida costumava ir ao café, mas deixou de a ver lá. O marido disse que ela tinha deixado de comer.
A discussão foi por causa de um poste, e a propriedade do terreno.
A arguida trazia uma sachola na mão.
A ofendida não trazia nada na mão.
- HH, a qual prestou um depoimento que se revelou coerente por si e entre si e quando conjugado com a demais prova, referindo, em suma, que não assistiu aos factos.
Quando chegou a casa a ofendida chorava e dizia que tinha sido maltratada, que a arguida “a tinha tratado do piorio”.
Ela começou a tomar comprimidos para dormir, e não queria sair de casa, nem foi visitar o pai durante um mês. Tinha vergonha das pessoas.
A ofendida dá-se bem com toda a gente.
- II, a qual prestou um depoimento que se revelou coerente por si e entre si e quando conjugado com a demais prova, referindo, em suma, que não assistiu á discussão, mas esteve com a ofendida no mesmo dia, e ela estava mal e chorou. Acha que até foi acompanhada por especialistas.
A ofendida deixou de ir visitar o pai.
*
Feita esta breve súmula da prova produzida em audiência de julgamento, há que concluir que merecem resposta positiva os factos dados como provados. Na verdade, toda a prova por declarações e testemunhal vai no sentido de que a arguida, nas circunstâncias de tempo e lugar injuriou a ofendida nos termos dados como provados. E é assim, porquanto a própria arguida admitiu que o seu marido estava a retirar um esteio (colocado pelo pai da ofendida) do terreno, que diz ser de sua propriedade, e que nesse contexto de conflito logo chamou ao pai da ofendida “rouba terrenos”. E mais admitiu que quando viu a ofendida a chegar também lhe disse “és boa como o teu pai”. Ora, atento o clima de conflito sobre a propriedade de terreno relatado no julgamento, e vivido entre as partes, bastará fazer apelo a juízos de experiência comum e normal acontecer, para se concluir que nunca foram só estas as expressões que foram ditas pela arguida. Foi exatamente o que narrou ao tribunal a testemunha CC, a qual prestou um depoimento totalmente imparcial (fala com ambas) e sincero, por si e entre si, e quando conjugado com a demais prova, nomeadamente que ouviu a arguida a dizer as expressões injuriosas (sendo certo que tendo em conta o tempo já passado e a quantidade do que é dito numa discussão, poderá haver diferenças de pormenor, quer na sequência do que é dito, quer nas próprias palavras) à ofendida, e por várias vezes, ao mesmo tempo que tinha uma sachola na mão, e que apesar dos seus apelos à calma dizia “calma o caralho”. Ademais, o próprio marido da arguida ameaçava de morte o pai da ofendida.
E foi por causa da gravidade da situação, que ela pediu à testemunha DD, seu filho, que telefonasse à ofendida para que viesse ao local. Já esta testemunha assistiu a parte dos factos, como relatou ao tribunal estava a almoçar e já ouvia barulho, e só mais tarde foi ver o que se estava a passar, e viu o marido da arguida a ameaçar que batia no pai da ofendida, e a arguida a chamar “ladrona” à ofendida.
A corroborar também esta versão, os depoimentos das testemunhas HH e II, as quais apesar de não terem assistido à discussão, esclareceram que a ofendida logo lhes contou o ocorrido, nomeadamente que foi maltratada pela arguida “como disse a testemunha DD: “a tinha tratado do piorio”, e chorava.
Neste jaez o tribunal ficou convencido que a versão da assistente, efectivamente, aconteceu, porquanto se mostrou credível a prova produzida nesse sentido, por si e quando conjugada com juízos de experiência comum e normal acontecer.
Já no que concerne ao aspecto subjectivo da conduta, ponderou-se o iter criminis da arguida, ou seja a acção objectiva apurada, apreciada à luz de critérios de razoabilidade e bom senso e das regras de experiência da qual se extrai a sua intenção, sendo certo que não foi produzida qualquer prova susceptível de contrariar tal entendimento.
As consequências da conduta da arguida/demandada, estão explanadas de forma clarividente nos depoimentos das testemunhas CC, HH e II quanto aos danos não patrimoniais, nomeadamente da vergonha e humilhação que sentiu a demandante, o que decorre, também, do normal acontecer e juízos de experiência comum, sem prejuízo do exagero da alegação.
A factualidade não provada mereceu resposta negativa, atento que apenas assente nas declarações inverosímeis da arguida e contrariadas pela demais prova, pelo que a versão trazida por esta não mereceu qualquer credibilidade. Na verdade, a arguida tentou imputar à ofendida e seu pai, exatamente a conduta de que ela própria foi agente. Atente-se que disse que era o pai da ofendida que ameaçava o seu marido, mas as testemunhas disseram que era ao contrário; disse que o pai da ofendida trazia uma sachola na mão, quando na verdade as testemunhas disseram que ela é que tinha uma sachola na mão, e ele apenas uma bengala por ser pessoa idosa e dificuldades de locomoção; disse que a ofendida saiu do carro com um pau na mão, mas logo desmentida pelas testemunhas. Como supra se expos as declarações da arguida mais não visaram tentar a sua desresponsabilização, e por isso sem credibilidade.
A arguida também não demonstrou qualquer arrependimento em julgamento, quer através de actos ou palavras, mostrando antes uma atitude de desculpabilização sobre o acontecido. Vide Ac. TRG nº Acórdão de 2017-12-04 (Processo n.º 127/16.7PBRG.G1), publicado em DRE, 2017-12-04 “O mesmo se diga do arrependimento, que no caso se consubstanciou em mera declaração verbal proferida em audiência de julgamento, perante o Tribunal, mas sem apresentação de qualquer gesto ou conduta do arguido em que o propalado arrependimento se tivesse materializado.”
As condições pessoais e económicas da arguida, resultaram das declarações da mesma.
A inexistência de antecedentes criminais, resultaram do CRC junto aos autos.
(…)”.

2. Indeferimento da inquirição das testemunhas requerida pela arguida no julgamento

2.1. Dispõe o art. 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), que “o processo criminal assegura toda as garantias de defesa, incluindo o recurso”.

Sobre o alcance desta garantia fundamental dos cidadãos, explica GERMANO MARQUES DA SILVA (in “Constituição Portuguesa Anotada”, JORGE MIRANDA – RUI MEDEIROS, Tomo I, Coimbra, 2005, p. 354 ) no excerto que se passa a transcrever:
A fórmula da primeira parte do n. 1 não traduz uma norma meramente programática a desenvolver pela lei; significa antes que há-de ser perante as circunstâncias concretas de casa caso que se hão-de estabelecer os concretos conteúdos dos direitos de defesa, no quadro dos princípios estabelecidos por lei. Todas as garantias de defesa não são as garantias que a lei formalmente concede, mas no quadro dessas garantias e dos princípios estabelecidos pela Constituição e pelas leis, todos os meios que em concreto se mostrem necessários para que o arguido se faça ouvir pelo juiz sobre as provas e razões que apresenta em ordem a defender-se da acusação que lhe é movida.
O preceito deve ser interpretado à luz do denominado processo equitativo, na designação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos ou do due process of law, na fórmula da jurisprudência norte-americana, envolvendo como aspectos fundamentais a consideração do arguido como sujeito processual a quem devem ser asseguradas todas as possibilidades de contrariar a acusação, a independência e imparcialidade do juiz ou tribunal e a lealdade do procedimento.
Os direitos a uma ampla e efectiva defesa não respeitam apenas à decisão final, mas a todas as que impliquem restrições de direitos ou possam condicionar a solução definitiva do caso”.

O legislador ordinário densificou esta garantia fundamental de defesa no plano da prova em vários preceitos legais infraconstitucionais com relevância para o caso concreto.

Desde logo, o art. 61.º, n.º 1, al. g), do Código de Processo Penal (CPP), dispõe que “o arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as exceções da lei, dos direitos de: a) (…); g) intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurem necessárias”.          

Tendo a o processo avançado para a fase de julgamento, o art. 315.º, do CPP, na redacção da Lei n.º 1/2018, preceitua:

1 - O arguido, em 20 dias a contar da notificação do despacho que designa dia para a audiência, apresenta, querendo, a contestação, acompanhada do rol de testemunhas. É aplicável o disposto no n.º 14 do artigo 113.º
2 – (…).
3 - Juntamente com o rol de testemunhas, o arguido indica os peritos e consultores técnicos que devem ser notificados para a audiência.
4 – (…)”.

Contudo, em matéria de prova, o processo penal português não é caracterizado exclusivamente pelo princípio do dispositivo e pelos contributos probatórios da acusação e da defesa.

Efectivamente, como o fim último do processo penal é a descoberta da verdade material, o tribunal está incumbido de “esclarecer e instruir autonomamente, mesmo para além das contribuições da acusação e da defesa, o facto sujeito a julgamento, criando aquele mesmo as bases necessárias à sua decisão” (FIGUEIREDO DIAS, “Direito Processual Penal”, Coimbra, 1974, p. 148).

Este princípio da verdade material encontra-se igualmente consagrado na lei adjectiva.

A respeito da produção de prova durante o julgamento, o art. 340.º, do CPP, na redacção da Lei n.º 94/2021, dispõe:

1- O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
2 - Se o tribunal considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação, dá disso conhecimento, com a antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá-lo constar da acta.
3 - Sem prejuízo do disposto no artigo 328.º n.º 3, os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova ou o respectivo meio forem legalmente inadmissíveis.
4 - Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que:
a) (Revogada.);
b) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas;
c) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou
d) O requerimento tem finalidade meramente dilatória.”  

Ainda que se possa dizer que a acusação tem um ónus objectivo de produzir meios de prova e de persuadir o tribunal de que as provas são bastantes para a acusação do arguido, é inequívoco que o tribunal intervém activamente na busca da verdade material, não se limitando a simplesmente a sopesar a versão onerada contra a versão privilegiada.

Cientes das incontornáveis garantias de defesa do arguido e do poder-dever da  busca da verdade material pelo Tribunal, vejamos, então, o que sucedeu neste autos.

2.2. Nunca tendo constituído advogado durante a fase de inquérito, a arguida e ora recorrente foi notificada da nomeação do seu Defensor em simultâneo com a notificação da acusação particular contra si deduzida com a imputação de um crime de injúria simples.

Nesta acusação é narrado, além do mais, que o marido da arguida – EE – a acompanhava na ocasião em que esta alegadamente cometeu os factos a julgar.  

Posteriormente, o seu Ilustre Defensor viria a apresentar contestação escrita, sem requerer a produção de qualquer prova, nomeadamente testemunhal.

No início do julgamento, a arguida constituiu Mandatário para a assistir, tendo aquele Defensor cessado então a respectiva intervenção.

Consequentemente, o julgamento começou sem que a arguida tivesse requerido a produção de qualquer prova.

A arguida viria a prestar declarações no início do julgamento, tendo então negado que tivesse proferido e dirigido à assistente as expressões que lhe são concretamente imputadas na acusação particular.

Contudo, viria a confirmar que o seu marido – EE – esteve presente naquela ocasião e acrescentou ainda que estiveram então presentes outras pessoas, incluindo FF (FF).

Findas estas declarações, o Ilustre Mandatário da arguida formulou a pretensão acima transcrita de inquirição do marido da arguida e do referido FF.

O tribunal a quo auscultou o Ministério Público e a assistente – os quais se pronunciaram em uníssono pela extemporaneidade e pelo consequente indeferimento desta pretensão – e relegou a apreciação sobre a necessidade de ouvir estas testemunhas para momento posterior.

Foram ouvidas as quatro testemunhas arroladas na acusação particular e no pedido de indemnização civil – as quais corroboram o essencial da versão alegada pela assistente, sendo que algumas delas também confirmaram a presença de EE e FF no mesmo local e ocasião – e, findas estas inquirições o tribunal a quo proferiu então despacho recorrido acima transcrito e determinou a passagem imediata a alegações finais.

Vejamos então a bondade do decidido.

2.3. No início deste julgamento, o Tribunal a quo estava na presença de uma arguida que, tendo prestado declarações, não confessou os factos descritos na acusação particular e que não arrolara até então qualquer testemunha para fazer contraprova dos mesmos.

Imediatamente após ser interrogada pelo juiz do julgamento, esta arguida formula a pretensão de serem ouvidas duas pessoas que alegadamente estiveram presentes na mesma ocasião, sendo que isso resulta ab initio do texto da própria acusação particular e também das declarações acabadas de prestar pela própria arguida e dos depoimentos que viriam a ser prestados pelas testemunhas CC e DD.

Neste circunstancialismo, o Tribunal a quo decidiu indeferir a inquirição destas testemunhas ao abrigo do disposto no art. 340.º, n.º 4, al. b), do CPP, ou seja, porque terá concluído que era notório que as inquirições requeridas seriam irrelevantes ou supérfluas.
 
Para tanto, foi avançada a seguinte fundamentação: “A arguida requereu a audição de duas testemunhas alegando que estiveram presentes no local e data dos factos. O Ministério Público e a assistente opuseram-se à sua audição. Na verdade, não foi adiantado qualquer motivo ou conhecimento especial desta testemunhas, para além do que já foi referido na prova produzida no julgamento, pelo que eventualmente, prestariam depoimentos idênticos aos já prestados, tornando-se prova repetitiva.”

A arguida negou no julgamento a prática dos factos narrados na acusação particular e vê a sua pretensão de inquirição de duas testemunhas indeferida pelo juiz porque foi presumido que as mesmas iriam prestar depoimentos idênticos aos já prestados pelas testemunhas arroladas pela assistente.

Ora, existindo duas versões diferentes dos factos, como é possível presumir que as (únicas) testemunhas arroladas pela arguida virão confirmar a versão da assistente e das quatro testemunhas por esta arroladas e já ouvidas no julgamento?

Antes pelo contrário, existindo duas versões diferentes dos factos, será de presumir, segundo as regras da experiência comum, que as testemunhas arroladas pela arguida virão, em princípio, confirmar total ou parcialmente a versão desta última e, consequentemente, não se verifica o fundamento concretamente invocado no despacho de indeferimento ora sob recurso.

Tal seria suficiente para revogar o despacho recorrido.

Acresce que, não obstante se mostrar ultrapassado o momento para a apresentação formal do rol de testemunhas e respectivos aditamentos, a arguida tem o direito de requerer a produção de prova até às alegações finais desde que consiga convencer sobre a sua necessidade para a descoberta da verdade e à boa decisão da causa (art. 340.º, n.º 1, do CPP).

Esta necessidade tem de ser aferida sempre à face dos elementos probatórios já constantes dos autos.

Aqui reside o cerne deste recurso.

Será possível descobrir a verdade e decidir bem a causa deste processo relativo a crime de injúrias negadas pela arguida sem ouvir o marido desta – EE – o qual, segundo a própria acusação particular, acompanhava a arguida?

E, para além disso, será  possível encerrar o julgamento sem permitir que esta arguida tenha a possibilidade de indicar e fazer ouvir, pelo menos, FF, uma pessoa pretensamente alheia aos litígios sobre a propriedade da parcela de terreno onde os factos típicos tiveram lugar, cuja presença também não foi colocada em crise pelas testemunhas arroladas pela assistente (a qual até se apresentou em tribunal no dia do julgamento e, em princípio, não carecia de ser convocada para nova sessão – declaração de presença com a referência CITIUS ...33)?   

Aliás, ainda que não integre o objecto deste recurso, importa notar, igualmente, que o julgamento foi declarado encerrado sem ouvir sequer a vítima do crime de injúrias sob julgamento (a qual se apresentou em julgamento e até foi identificada, mas cujas declarações não tiveram lugar porque as mesmas não tinham sido indicadas na prova a produzir).

Ora, recuperando o que se disse acima sobre a necessidade de assegurar em concreto as garantias de defesa de uma arguida que chegou ao julgamento sem uma única testemunha arrolada, bem como reconhecendo a necessidade concreta da inquirição das duas testemunhas indicadas pela arguida para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, impõe-se, logicamente, ir além da mera revogação do despacho recorrido por ter sido exercido fora do condicionalismo legal.

Ao invés do decidido, entendemos que as inquirições em apreço deveriam ter sido deferidas, por se mostrarem, no caso concreto, necessárias para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.

Na verdade, a decisão recorrida violou igualmente o preceituado no art. 340.º, n.º 1, do CPP, e, consequentemente, impõe-se a sua revogação, com a consequente invalidação da sentença proferida (art. 122.º, n.º 1, do CPP).

Naturalmente, mercê desta anulação, fica prejudicado o conhecimento do recurso relativo à sentença condenatória.
  
III – DECISÃO

Em função do exposto, acordam os Juízes desta Relação em:

a) Revogar o despacho recorrido de indeferimento de prova testemunhal e anular a sentença subsequente;
b) Determinar que seja reaberta a audiência para inquirição, como testemunhas, das pessoas indicadas pela arguida, sem prejuízo da realização  de outras diligências que se entenda necessárias para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, após o que deverá ser proferida nova sentença pelo mesmo juiz;
c) e, consequentemente, julgar prejudicado o conhecimento do recurso relativo à sentença condenatória ora anulada.

Sem tributação.
*
Guimarães, 6 de Março de 2023
(Texto elaborado em computador pelo relator e integralmente revisto pelos signatários)


(Paulo Almeida Cunha - Relator )
(Helena Lamas – 1.ª Adjunta)
(Cruz Bucho – 2.º Adjunto)