CRIME DE ABUSO SEXUAL DE INCAPAZ DE RESISTÊNCIA
CAPACIDADE E DEVER DE TESTEMUNHAR
CONCURSO DE CRIMES
TRATO SUCESSIVO
Sumário


I – Actualmente, face ao disposto no Artº 131º do C.P.Penal, qualquer pessoa tem capacidade para ser testemunha, apenas se exigindo que a mesma tenha aptidão mental para depor sobre os factos que constituam objeto da prova, e que o tribunal verifique a aptidão física ou mental de qualquer pessoa para prestar testemunho, quando isso for necessário para avaliar da sua credibilidade e puder ser feito sem retardamento da marcha normal do processo.
II – Constitui atualmente jurisprudência pacífica a rejeição da aplicação do designado “trato sucessivo” aos crimes contra liberdade e autodeterminação sexual, como é o caso dos crimes de abuso sexual de incapaz de resistência, p. e p. pelo Artº 165º do Código Penal, em que estão em causa bens eminentemente pessoais.
III - Consequentemente, cada agressão singular, repetida sucessivamente, independentemente do tempo que entre elas medeia, preenchendo todos os elementos do mesmo tipo (objetivos e subjetivos), constitui um crime autónomo, estabelecendo entre si uma relação de concurso real ou efetivo de crimes, como tal devendo ser punida.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO
           
1. No âmbito do Processo Comum Colectivo nº 925/19...., do Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., foi submetido a julgamento o arguido:

AA, casado, reformado, filho de BB e de CC, natural da freguesia ..., concelho ..., nascido a .../.../1950,  residente na Rua ..., na freguesia ..., concelho ..., portador do documento de identificação civil nº ...29 zy7.

*
2. Em 20/05/2022 foi proferido o acórdão que consta de fls. 328/337, depositado no mesmo dia, do qual se extrai o seguinte dispositivo (transcrição [1]):
“Nos termos expostos e em consequência os juízes que integram este tribunal colectivo acordam em:
I. Condenar o arguido AA como autor, na forma consumada, de 36 crimes de abuso sexual de incapaz de resistência, p. p. pelo art. 165º nº 1 e nº 2 do CP na pena de 2 anos e 6 meses para cada um e na pena acessória do 69.º-C nº 1 pelo período de 2 anos para cada um.
II. Em cúmulo jurídico condenar o arguido na pena única de 7 anos de prisão e 7 anos de pena acessória - art. 69.º-C nº 1   CP.
III. Julgar parcialmente procedente o pedido cível e condenar o demandado a pagar à demandante a quantia de € 3.500,00 a título de danos não patrimoniais, com juros à taxa de 4% a contar da presente data até integral pagamento – portaria 291/2003 de 08.04.
IV. Condenar o arguido nas custas, com 2 UC de taxa de justiça.
V. Custas do pedido cível por demandante e demandado na proporção do respectivo decaimento.
(...)”.
*
3. Inconformado com tal decisão, dela veio o arguido interpor o presente recurso, nos termos da peça processual que consta de fls. 339/382, cuja motivação é rematada pelas seguintes conclusões [2] e petitório (transcrição):

“1º
Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão que condenou o arguido como autor, na forma consumada, de 36 crimes de abuso sexual de incapaz de resistência, p.p. pelo art.º 165º, n.ºs 1 e 2 do CP, na pena de 2 anos e seis meses para cada um e na pena acessória do 69º-C n.º 1, pelo período de dois anos cada um, em cúmulo numa pena única de 7 anos de prisão e 7 anos de pena acessória – art.º 69º-C do CP, e que julgou parcialmente procedente o pedido cível e condenou o arguido a pagar à demandante a quantia de € 3.500,00 a título de danos não patrimoniais, com juros à taxa legal de 4% a contar da data da prolação da Acórdão e até integral pagamento, em custas em 2 UC de taxa de justiça e do pedido cível da demandante na proporção do respetivo decaimento.

Para o efeito, considerou-se provada a factualidade vertida nos pontos, 4., 5., 6., 7., 8., 9., 10., e 11. do douto Acórdão, que o Recorrente considera mal julgados.

O arguido entende que os factos constantes dos pontos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 11 dos factos provados foram indevidamente apreciados pelo Tribunal recorrido, pois entende que os esmos deveriam ter sido dados como não provados.

Concretamente, o arguido entende que os factos constantes dos pontos 4 e 5 dos factos provados foram indevidamente apreciados pelo Tribunal recorrido, pois entende que os mesmos deveriam ter sido dados como não provados.

Os meios de prova que impunham a prolação de decisão diversa são o depoimento prestado pela Assistente na sessão de 12/05/2022 da audiência de discussão e julgamento, no excerto de minutos 1.01 a 9:57 da gravação, o depoimento prestado pela Assistente na sessão de 12/05/2022 da audiência de discussão e julgamento, no excerto de minutos 10.50 a 20:25 da gravação, o relatório de perícia de natureza sexual em processo penal datado de 02/07/2019 e o relatório de perícia médico-legal (relatório psicológico) datado de 28/02/2020.

Entende também o Recorrente que o facto constante do ponto 6 dos factos provados foi indevidamente apreciado pelo Tribunal recorrido, pois deveria ter sido dado como não provado.

Os meios de prova que impunham a prolação de decisão diversa são o depoimento prestado pela Assistente na sessão de 12/05/2022 da audiência de discussão e julgamento, no excerto de minutos 1.01 a 9:57 da gravação, o depoimento prestado pela Assistente na sessão de 12/05/2022 da audiência de discussão e julgamento, no excerto de minutos 10.50 a 20:25 da gravação, o relatório de perícia de natureza sexual em processo penal datado de 02/07/2019, o relatório de perícia médico-legal (relatório psicológico) datado de 28/02/2020 e o relatório pericial de criminalística biológica de fls. 239, datado de 06/01/2021.

O facto constante do ponto 7 dos factos provados foi indevidamente apreciado pelo Tribunal recorrido, pois deveria ter sido dado como não provado.

Os meios de prova que impunham a prolação de decisão diversa são o depoimento prestado pela Assistente na sessão de 12/05/2022 da audiência de discussão e julgamento, no excerto de minutos 1.01 a 9:57 da gravação, o depoimento prestado pela Assistente na sessão de 12/05/2022 da audiência de discussão e julgamento, no excerto de minutos 10.50 a 20:25 da gravação, o relatório de perícia de natureza sexual em processo penal datado de 02/07/2019, o relatório de perícia médico-legal (relatório psicológico) datado de 28/02/2020 e o relatório pericial de criminalística biológica de fls. 239, datado de 06/01/2021.
10º
O ponto 8 dos factos provados foi indevidamente apreciado pelo Tribunal recorrido, pois tal facto deveria ter sido dado como não provado.
11º
Os meios de prova que impunham a prolação de decisão diversa são o depoimento prestado pela Assistente na sessão de 12/05/2022 da audiência de discussão e julgamento, no excerto de minutos 1.01 a 9:57 da gravação, o depoimento prestado pela Assistente na sessão de 12/05/2022 da audiência de discussão e julgamento, no excerto de minutos 10.50 a 20:25 da gravação, o relatório de perícia de natureza sexual em processo penal datado de 02/07/2019, o relatório de perícia médico-legal (relatório psicológico) datado de 28/02/2020 e o relatório pericial de criminalística biológica de fls. 239, datado de 06/01/2021.
12º
O arguido entende que o facto constante do ponto 9 dos factos provados foi indevidamente apreciado pelo Tribunal recorrido, pois entende que o mesmo deveria ter sido dado como não provado.
13º
Os meios de prova que impunham a prolação de decisão diversa são o depoimento prestado pela Assistente na sessão de 12/05/2022 da audiência de discussão e julgamento, no excerto de minutos 1.01 a 9:57 da gravação, o depoimento prestado pela Assistente na sessão de 12/05/2022 da audiência de discussão e julgamento, no excerto de minutos 10.50 a 20:25 da gravação, o relatório de perícia de natureza sexual em processo penal datado de 02/07/2019, o relatório de perícia médico-legal (relatório psicológico) datado de 28/02/2020 e o relatório pericial de criminalística biológica de fls. 239, datado de 06/01/2021.
14º
O arguido entende ainda que o facto constante do ponto 10 dos factos provados foi indevidamente apreciado pelo Tribunal recorrido, pois entende que o mesmo deveria ter sido dado como não provado.
15º
Os meios de prova que impunham a prolação de decisão diversa são o depoimento prestado pela Assistente na sessão de 12/05/2022 da audiência de discussão e julgamento, no excerto de minutos 1.01 a 9:57 da gravação, o depoimento prestado pela Assistente na sessão de 12/05/2022 da audiência de discussão e julgamento, no excerto de minutos 10.50 a 20:25 da gravação, o relatório de perícia de natureza sexual em processo penal datado de 02/07/2019, o relatório de perícia médico-legal (relatório psicológico) datado de 28/02/2020 e o relatório pericial de criminalística biológica de fls. 239, datado de 06/01/2021.
16º
O arguido entende, por fim, que o facto constante do ponto 11 dos factos provados foi indevidamente apreciado pelo Tribunal recorrido, pois entende que o mesmo deveria ter sido dado como não provado.
17º
Os meios de prova que impunham a prolação de decisão diversa são o depoimento prestado pela Assistente na sessão de 12/05/2022 da audiência de discussão e julgamento, no excerto de minutos 1.01 a 9:57 da gravação, o depoimento prestado pela Assistente na sessão de 12/05/2022 da audiência de discussão e julgamento, no excerto de minutos 10.50 a 20:25 da gravação, o relatório de perícia de natureza sexual em processo penal datado de 02/07/2019, o relatório de perícia médico-legal (relatório psicológico) datado de 28/02/2020 e o relatório pericial de criminalística biológica de fls. 239, datado de 06/01/2021.
18º
Daí que se requeira a V. Exas. Se dignem julgar procedente o recurso, com a consequente alteração da decisão da matéria de facto, de modo a que os pontos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 11 dos factos provados sejam alterados, passando a ser dados como não provados.
19º
O Douto Acórdão recorrido padece de vários vícios, concretamente: a) a insuficiência da prova para a matéria de facto dada como provada; b) sobrevalorização do depoimento da vítima, constituindo-se como a ÚNICA prova que sustenta a condenação; c) a determinabilidade dos factos provados num juízo puramente inferencial, tendo por base elementos ambíguos, indeterminados e genéricos, que não circunstanciam, com suficiência, as circunstâncias de tempo, modo e lugar do(s) facto(s), anulando qualquer latitude para o contraditório do arguido; d) a nulidade dos depoimentos indiretos em que a fonte não foi convocada a vir prestar declarações; e) a ausência de perícia que traduza completa incapacidade da vítima em contrair relações sexuais consentidas, com apreensão parcial ou total da decisão; f) a necessária aplicação do princípio do trato sucessivo caso de admita margem de punibilidade e condenação, salvaguardando uma unidade de resolução criminosa; g) a necessária aplicação do regime de prova em caso de condenação tendo por base o quadro familiar do arguido, que favorece, inquestionavelmente, a operância deste regime alternativo, subordinado a um regime de prova; h) a errónea apreciação da prova produzida/impugnação da matéria de facto - vícios, que necessariamente acarretam a consequência necessária de serem dado como não provados os factos constantes dos pontos 4., 5., 6., 7., 8., 9., 10. e 11. do douto Acórdão recorrido.
20º
Quanto à insuficiência dos meios de prova para a decisão de facto proferida, critica-se o tribunal por ter dado como provado factos sem prova suficiente. 22. Os vícios da matéria de facto fixada no Acórdão, a que se refere art.º 410.º, n.º 2, têm de resultar da decisão recorrida na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a quaisquer elementos externos à acórdão , ainda que constem do processo.
21º
Entende o recorrente que foi feita uma errónea valoração do depoimento indireto.
22º
O depoimento das testemunhas DD e EE, em que assentou a convicção do Tribunal, é um depoimento indireto e consubstancia-se em prova proibida.
23º
Atenta a fragilidade da prova indireta, a mesma possui natureza excecional, nos termos do art.º 129.º do Código Processo Penal (doravante CPP), a mesma reproduz dimensões factuais [relevantes] que se subsumem, grosso modo, ao relato prestado pela vítima à mãe e desta última a uma prima.
24º
Ora, o depoimento indireto é suscetível de valoração desde que a fonte, a origem dos factos, seja pessoa determinada, e ela seja instada a vir depor.
25º
O depoimento indireto só pode ser valorado como meio de prova, se o juiz proceder à sua confirmação através da audição das pessoas a quem a testemunha ouviu dizer e apenas assim não será quando não for possível proceder à confirmação, seja por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de ser encontrada da pessoa a quem a testemunha ouviu dizer.
26º
Validamente produzido, a sua valoração é feita segundo o princípio geral previsto no art.º 127º do C. Processo Penal, devendo ser avaliado conjuntamente com a demais prova produzida, incluindo o respetivo depoimento direto, quando prestado, tudo conforme a livre apreciação e as regras da experiência comum.
27º
No entanto, quando o depoimento indireto não tenha obedecido aos pressupostos enunciados, o art.º 129º, n.º 2 do CPP interdita a sua utilização como meio de prova, estabelecendo portanto, uma proibição de prova.
28º
Extraindo-se da motivação do Acórdão recorrido o não cumprimento dos pressupostos enunciados no art.º 129º, os depoimentos indiretos em que se estribou, nomeadamente das testemunhas DD e EE, os mesmos não poderiam ser utilizados como meio de prova por se tratar de prova proibida, pelo que os factos constantes dos pontos 4., 5., 6., 7., 8., 9., 10. e 11., devem estes ser excluídos da matéria de facto provada e passar a constar da matéria de facto não provada.
29º
Por outro lado, pelo facto da convicção do Coletivo a quo quanto a estes factos que considerou provados se ter fundado no depoimento de duas testemunhas que sobre eles, objetiva e diretamente, não poderiam (e não tiveram) conhecimento, e de uma ilação sobre a ocorrência de factos com base em presunções não legais, levam a que o douto Acórdão proferido padeça do vício de nulidade, que aqui expressamente se argúi com todas as legais consequências.
30º
A interpretação gizada pelo Coletivo está também inquinada por ultrapassar as fronteiras da livre apreciação do julgador prevista no art.º 125.º e 127.º do CPP, tendo-se socorrido, para sustentar a condenação, de critérios indeterminados ou em deduções inferenciais, quando obrigatoriamente teria de o fazer com base em elementos prova suficientemente concludentes, isolada ou articuladamente, que permitam sustentar, com convicção, o cometimento do facto e o seu agente –ao invés do que o Coletivo aqui faz, que é PRESUMIR o número de factos relevantes com base no número de garrafas de cerveja encontradas no local, assente puramente no relato da mãe da vítima que não encontra paralelismo no número de garrafas recolhidas pela PJ.
31º
O Coletivo obvia a ausência de elementos que determinem com exatidão e suficiência a ocorrência dos factos, nomeadamente o dia, a hora e os intervenientes, baseando-se num exercício puramente especulativo para sedimentar a sua posição, conforme resulta à evidência na fundamentação do douto Acórdão recorrido.
32º
Este desfecho atropela todo arquétipo constitucional de um Direito Penal do Facto, que deve assentar as suas decisões na desconstrução e demonstração fáctica e contrafática duma cadeia de eventos, obnubilando grosseiramente o princípio da presunção de inocência do arguido, tudo porque afunilou a sua crença em dimensões puramente emocionais e especulativas.
33º
Assim, a insuficiência dos meios de prova para a decisão de facto proferida e do erro notório na apreciação da prova, que levam necessariamente a que se dêem como não provados os factos indicados nos pontos 4., 5., 6., 7., 8., 9., 10. e 11. da matéria dada como provada.
34º
Considera também o recorrente que existiu erro notório da apreciação da prova produzida, ao desconsiderar a desconformidade dos depoimentos relativos ao número de garrafas e a imprecisão da vítima quanto ao número de vezes em que os atos foram alegadamente praticados, tendo referido apenas “muitas”, e não tendo sido posta em causa a credibilidade de qualquer destas testemunhas, não poderia o Tribunal ter considerado como provados os factos constantes do ponto 6. e 7. do douto Acórdão, nem na sua motivação sustenta porque razão conferiu maior credibilidade à tese das 72 garrafas em detrimento das 20 ou 30 ou até 10, indicadas pelo Especialista da PJ ou pela testemunha EE, a que acresce a imprecisão da própria vítima quanto ao número de vezes, violadora do princípio da igualdade ínsito no art.º 13º da CRP.
35º
Não se extrai das declarações da vítima, nem daí pode extrair o que delas não resulta, o momento (quando) da prática dos atos, as circunstâncias em que os mesmos ocorreram, o número de vezes em que ocorreram e se opôs ou não pretendeu (ou sequer manifestou se tinha ou não capacidade de se autodeterminar).
36º
Ora, sendo esta a suposta única prova direta dos factos é manifestamente insuficiente para que o arguido possa ser condenado, por ser de tal forma genérica e imprecisa que nem sequer lhe permite o cabal exercício do direito ao contraditório.
37º
O arguido entende como insuficiente, mal julgada, valorada e apreciada a prova produzida em julgamento, nomeadamente no que concerne às declarações da vítima FF, por serem a única prova que permitiu ao Tribunal a quo concluir pela existência de factos suscetíveis de integrar um (ou vários) crimes, dado que a demais prova da alegada prática dos factos (apenas testemunhal e indireta), de per si, é insuficiente para sustentar qualquer condenação.
38º
E nenhuma razão há para valorar as declarações da vítima, quase manietada e dirigida, nada expontânea e concreta, antes pelo contrário.
39º
Conforme se extrai do disposto no art.131.º, n.º1 CPP, qualquer pessoa possui capacidade para ser testemunha, desde que não se encontre interdita por anomalia psíquica.
40º
A vítima, à data do seu depoimento, já havia sido objeto de medida de acompanhamento, para representação geral em todos os atos, em virtude de anomalia psíquica, pelo que o mesmo não poderia ter sido considerado, nomeadamente para prova dos factos constantes da acusação, por se tratar de prova proibida.
41º
No entanto, ainda que o mesmo fosse admissível, sempre se diga que nos termos do artigo 126.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Cód. Proc. Penal, são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante ofensa à integridade moral das pessoas e como tal (ofensivas da integridade moral) são as provas obtidas através da utilização de métodos enganosos – sendo que a utilização de perguntas sugestivas a pessoa incapaz podem ser consideradas como meio enganoso, atenta a vulnerabilidade das mesmas e a tendência natural para confirmar o que lhe foi perguntado.
42º
As declarações da vítima foram orientadas por forma que delas resultasse de acordo com as circunstâncias de tempo e local constantes da acusação proferida contra o arguido nos presentes autos”, tendo sido indicados, expressamente, quais os factos que as mesmas devia ou não, declarar, ou até simplesmente confirmar, pelo que não podem ser valoradas com força probatória plena, ao abrigo de um princípio de livre apreciação da prova para considerar os factos constantes dos pontos 4., 5., 6., 7., 8., 9., 10 e 11 como provados.
43º
Padecendo essa prova do vício da nulidade, nenhum efeito pode decorrer dessa mesma prova para a sentença a proferir, pelo que devem ser considerados como não provados os factos constantes dos pontos 4., 5., 6., 7., 8., 9., 10 e 11 dos factos provados.
44º
E a nulidade da prova proibida utilizada na fundamentação da decisão afecta a validade da própria sentença, tornando-a nula, nulidade que aqui expressamente se argúi com todas as legais consequências.
45º
O Coletivo vem então condenar o arguido, como já vimos, na prática de 36 crimes de Abuso Sexual de pessoa incapaz, assentando todo o seu juízo de condenação no depoimento da vítima, sendo ela elemento essencial para o preenchimento do tipo incriminador, dada a sua condição vulnerável, de aproveitamento da sua situação de especial permeabilidade a ímpetos de terceiros, sem a capacidade de exercer resistência por incompreensão da real amplitude do ato.
46º
Ora, daqui sobressai um claro e flagrante paradoxo, desde logo, porque é na aparente capacidade da vítima em decidir de forma autónoma e esclarecida que o Tribunal se baseia para admitir o preenchimento do crime, fazendo depender a condenação desse mesmo relato [frágil].
47º
Não resulta claro que a liberdade de autodeterminação da vítima estivesse de tal forma contraída que não permitisse a esta compreender [totalmente] o ato e as implicações.
48º
Não existe nos autos uma caracterização plena da deficiência mental e grau de que padece a vítima, de forma a impedi-la, sem margem de dúvida, para a compreensão do ato.
49º
Este elemento reveste especial centralidade, sendo condição sine qua non para que se alcance a verificação de um elemento típico decisivo do crime, designadamente a incapacidade de resistência ao ato sexual.
50º
É que não basta que se assuma genérica e empiricamente que uma pessoa que padeça de deficiência mental, se encontra incapaz de perceber o ato sexual, ou pior, se encontra totalmente subtraída da capacidade de se determinar a este nível, perdendo direitos de personalidade.
51º
É por isso que não se revela bastante a existência de uma qualificação médica abstrata de uma doença ou de uma anomalia para que se considere preenchido o crime, sendo certo que apenas foi decretado o acompanhamento da vítima e designada acompanhante sua mãe, por sentença de 23 de abril de 2021, (conforme resulta do ponto 3. dos factos dados como provados), e que é posterior à data da última ocorrência dos factos de que o arguido vinha acusado, sendo que das medidas aplicadas não resulta a inibição do direito à autodeterminação sexual da vítima.
52º
Não está pois afastado o direito à sexualidade por parte de sujeitos incapazes, pelo que não se deverá [mais uma vez] presumir que a existência de uma deficiência mental conduz, sem mais, a uma passividade natural em resistir, ou melhor, em compreender o ato.
53º
O Acórdão, de forma incipiente e pouco profusa, alude ao diagnóstico de deficiência mental moderada, sem no entanto precaver-se de análise atual relevante para a assunção inquestionável de que a vítima não detinha capacidade para resistir à data dos alegados factos, concluindo, sem suficiente sustentação, pela verificação da mesma.
54º
Ao mesmo tempo que credibiliza todo o seu testemunho em desfavor do arguido, ainda que se considere que a mesma não “fosse capaz de dizer que sim, mas sobretudo (…) dizer que não” cf. fl. 12 do Acórdão, permitindo-lhe formular um juízo condenatório, ao arrepio das garantias de defesa do arguido, assumindo, à cabeça, que houve um indiscutível aproveitamento por parte do arguido da alegada [e não demonstrada] incapacidade TOTAL da vítima.
55º
Não estando demonstrado, que “a pessoa só será incapaz de ser opor ao ato sexual quanto apresentar uma quase total diminuição da sua capacidade para avaliar o sentido e alcance de tal tipo de ato”, tal não pode resultar provado (o que nem é sustentado ou fundamentado na motivação do Acórdão recorrido).
56º
Não se encontrando sustentada em qualquer prova tal como resulta da motivação, necessário se torna dar como não provada a factualidade constante dos pontos 5., 7., 8. e 9. da matéria dada como provada.
57º
O recorrente não sufraga também o entendimento do Tribunal recorrido ao condená-lo na prática de 36 crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência.
58º
Caso se admita, ainda assim, a existência de crime, em sede de uma inevitável revisão/reformatio da sentença dados vícios inultrapassáveis da sentença, já citados, deverá a mesma ter em linha de conta a figura do trato sucessivo, englobador de várias condutas [não concretizáveis] numa singular unidade de resolução criminosa.
59º
Esta já poderia ser uma solução para ultrapassar a incapacidade de delimitação temporal, bem alguma insuficiência resolutiva não relevante para efeitos de integração típica e substantiva do crime, permitindo-lhe a condenação do agente num único crime - aliás, esta linha de interpretação não só não põe em causa o princípio do in dubio po reo, como, pelo contrário, o privilegia.
60º
Por isso, não resultando da matéria de facto provada (nomeadamente dos pontos 6. e 7. do douto Acórdão recorrido) o exato número de vezes em que os atos alegadamente ocorreram (veja-se que do ponto 7. resulta “pelo menos 36 vezes” – o que é impreciso), o arguido em atenção ao princípio in dubio pro reo, deveria apenas ter sido punido por um único crime e não na prática de 36 crimes.
61º
E quanto à medida da pena, que o recorrente considera como manifestamente exagerada e desproporcional, tal acarretaria consequências necessárias, impondo-se uma pena inferior.
62º
Aliás, a condenação do Coletivo, condenando o arguido numa pena elevada de 7 anos de prisão, desconsiderando a ausência de histórico no sistema judicial e os seus já longos 70 anos de idade, o que pode equivaler, na prática, a uma pena de prisão até ao seu decesso.
63º
Entende o recorrente, caso ainda assim, depois da excursão argumentativa que antecede, se mantenha a condenação, o mesmo apenas deverá ser condenado num facto único, e que a pena efetivamente aplicada não vá além dos 5 (cinco) anos, e que possa ser suspensa na sua execução, tendo por base os princípios de prevenção geral, mas sobretudo de prevenção especial, considerando-se sofrível e adequada a pena subordinada a um regime de prova, com imposição de regras de conduta tendentes a salvaguardar relapsos ou recidivas.
64º
É o próprio Tribunal que o admite in casu, referindo que o arguido apresenta um passado limpo, de trabalho honesto, integrado familiarmente, e perfeitamente inserido na comunidade, não tendo havido recolha de quaisquer menções de desvalor sobre o seu comportamento pretérito.
65º
É por isso que adscreve inclusive que “se a pena concretamente aplicada o permitir, o arguido reúne condições para a execução de uma medida na comunidade, parecendo-nos que as ações de reinserção social a implementar deverão decorrer de um processo de avaliação clinicamente especializado, a que o arguido deverá submeter-se, com o objetivo de diagnosticar necessidade de intervenção no âmbito da sexualidade”.
66º
O facto do arguido estar societariamente integrado, ter suporte familiar e uma vida estabilizada dada a sua condição de aposentado, e ainda a ausência de quaisquer condenações anteriores ou processos criminais em curso, são fatores que concorrem para a possibilidade da condenação assentar num regime de prova, sendo a pena de prisão suspensa na sua execução, nos termos legalmente consagrados do art.º 50.º do CP, sendo o arguido sujeito, inter alia, a normas de conduta específicas, a um acompanhamento médico que certifique a sua completa reabilitação e, no limite, pelo pagamento indemnizatório que cubra, em parte, os danos pessoais causados à vítima, acautelando, com efeito, as finalidades da punição no quadro da prevenção especial, quer negativa quer positiva.
67º
Quanto ao pedido de indemnização civil, por todos as razões expendidas que levam à inelutável conclusão da absolvição do arguido, sendo indeterminável a prática, o seu agente e as consequências dos factos, a condenação do arguido no pagamento de qualquer indemnização à vítima, terá necessariamente de decair na sua totalidade, devendo este ser absolvido, in totum, do pedido contra si formulado.
68º
Mas ainda que assim não o fosse, para fixação do montante indemnizatório, o Tribunal considerou apenas como provados os factos constantes dos pontos 43., 44. e 45. do douto Acórdão.
69º
Contudo, os factos dados como provados são meramente conclusivos, pois dizer-se nos pontos 43. e 44. que perturbou e perturba o quotidiano da vida da vítima e que o assunto é motivo de conversa na freguesia, não concretiza em que medida e quais as consequências dos atos praticados pelo arguido a nível psicológico ou físico para a vítima – não se sabendo em que medida, não se poderá retirar qualquer consequência jurídica.
70º
Por isso, por não serem factos, mas meras conclusões, não podem ser considerados provados os pontos 43. e 44., e, ainda que assim se não entendesse, também não consta da motivação da decisão qual a prova em que se sustentou.
71º
Acresce ainda quanto ao dano patrimonial – ponto 45. dos factos dados como provados, não se encontra qualquer referência na motivação à prova em que assentou a sua consideração, sendo que o valor alegado de € 500,00 de despesas de deslocação, na total ausência de suporte documental, número de vezes, quilómetros percorridos ou até a que locais (veja-se, o ponto 45. termina com reticências no elenco dos locais), é insuficiente para considerar como certo tal valor.
72º
Assim, os factos dados como provados nos pontos 43., 44. e 45. do douto Acórdão recorrido não podem ter qualquer consequência jurídica na fixação do montante indemnizatório, porque não concretizados.
73º
Violou assim, o douto Acórdão recorrido, o principio do in dúbio pro reo, o princípio da presunção de inocência do arguido, os art.ºs 13º, 32º, n.º 1 da CRP, 30º, n.º 3 do CP, 4º, 125º, 127º, 129º, 410º, n.º 2 do CPP, tendo feito uma errónea apreciação da prova produzida e sendo insuficiente a prova, pelo que revogando-se o douto Acórdão recorrido e substituindo-se por outro que considere como não provados os factos constantes dos pontos 4., 5., 6., 7., 8., 9., 10 e 11. do Acórdão recorrido, se fará a costumada justiça, absolvendo-se, consequentemente o recorrente da prática dos crimes em que foi condenado.

Termos em que, por se ter procedido a uma má valoração da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, e por a douta sentença proferida violar nomeadamente o disposto principio do in dúbio pro reo, o princípio da presunção de inocência do arguido, os art.ºs 13º, 32º, n.º 1 da CRP, 30º, n.º 3 do CP, 4º, 125º, 127º, 129º, 410º, n.º 2 do CPP, pelo que revogando-se o douto Acórdão recorrido e substituindo-se por outro que considere como não provados os factos constantes dos pontos 4., 5., 6., 7., 8., 9., 10 e 11. do Acórdão recorrido, se fará a costumada justiça, absolvendo-se, consequentemente o Recorrente da prática, dos crimes de que veio acusado e em que foi condenado
se fará JUSTIÇA.”.
*
4. Na 1ª instância respondeu ao recurso o Ministério Público, nos termos que constam de fls. 385 / 389 Vº, pugnando a Exma. Procuradora da República subscritora pela manutenção, na íntegra, do acórdão recorrido.
*
5.  A Exmo. Procuradora-Geral Adjunta junto deste tribunal da Relação emitiu o parecer que consta de fls. 4087409.

Sustentando, em síntese, que o acórdão recorrido padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o Artº 410º, nº 2, al. a), do C.P.Penal, quer porque há dúvidas quanto ao número de crimes praticado pelo arguido, quer porque não está devidamente esclarecido se as limitações cognitivas de que sofre a ofendida, e que existiam à data dos factos, a impediam de compreender o significado e o alcance do acto sexual e de resistir à respectiva prática por banda do arguido.
Preconizando, assim, “o reenvio do processo para novo julgamento, parcial, restrito à matéria factual que se prende com o número de crimes praticado pelo arguido e a (in)capacidade da ofendida de opor resistência ao ato sexual, ficando, no demais, prejudicada a apreciação do recurso.”.
*
6. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, do C.P.Penal [3], apresentou o arguido a resposta que consta de fls. 411/412, sufragando o entendimento exposto pela Exma. PGA no seu parecer.
*
7. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois conhecer e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

1. É hoje pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal [4].

1.1. No caso vertente, da leitura e análise das conclusões apresentadas pelo recorrente, este coloca a este Tribunal as seguintes questões essenciais que importa decidir:

- Saber se se verificam os vícios a que alude o Artº 410º, nº 2, als. b) e c), do C.P.Penal;
- Saber se existe erro de julgamento quanto aos factos constantes dos pontos 4 a 11, dados como provados;
- Saber se foram violados os princípios da livre apreciação da prova, da presunção de inocência e do in dubio pro reo;
- Saber se os depoimentos das testemunhas DD e EE configuram depoimentos indiretos e, concomitantemente, prova proibida;
- Saber se a ofendida tinha capacidade para prestar declarações, e bem assim se a prova das mesmas resultante deve ser considerada nula, por ter sido obtida através de meios enganosos;
- Saber se os factos dados como assentes permitem a aplicação da figura do “trato sucessivo”;
- Saber se se mostra exagerada e desproporcional a pena aplicada, e designadamente se lhe deve ser cominada pena não superior a cinco anos de prisão, suspensa na sua execução, com sujeição ao regime de prova; e
- Saber se o arguido deve ser absolvido da prática dos crimes que lhe foram imputados, bem como da condenação no pagamento da indemnização à vítima.
*
2. Mas, para uma melhor compreensão das questões colocadas e uma visão exacta do que está em causa, vejamos, antes de mais, quais os factos que o Tribunal a quo deu como provados e não provados, e bem assim a fundamentação acerca de tal factualidade.

2.1. O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):

“1. FF nasceu em .../.../1973, é solteira, sempre residiu com os pais e, após a morte do pai, apenas com a mãe, DD, na Rua ..., na freguesia ..., concelho ....
2. A FF apresenta, por via do quadro de meningite que sofreu  quando tinha 8 meses de idade, deficiência mental moderada, facto que é do conhecimento de todas as pessoas que com ela convivem, nomeadamente dos vizinhos, e que é imediatamente perceptível em função do seu comportamento e do modo como se exprime, apresentando, nomeadamente, comunicação e linguagem lacunares – recorre a palavras soltas –, dificuldades ao nível da linguagem compreensiva, sendo que nem sempre é perceptível o que diz; não sabe dizer a sua idade, a data do seu nascimento, não consegue concretizar a morada onde reside, sabendo apenas indicar que é em ..., não tem noção do tempo, embora tenha noção da sucessão dos dias, não conhece o dinheiro nem o valor económico das coisas, e apenas é capaz de se deslocar sozinha em casa e nas imediações, sendo que, por via da deficiência de que padece, necessita do apoio de terceira pessoa na generalidade das actividades do dia-a-dia, nomeadamente no tocante à confecção da alimentação, escolha de roupa adequada ao tempo, e administração da pensão que aufere.
3. Foi decretado o seu acompanhamento e designada como acompanhante a sua mãe, por sentença de 23 de Abril de 2021, proferida pelo Juízo Local Cível ..., nos termos da qual foram determinadas as medidas de acompanhamento: representação geral para todos os actos da vida corrente, sem prejuízo dos actos que careçam de autorização judicial, administração total de bens, limitação do exercício de direitos pessoais, condicionada à intervenção da acompanhante e à eventual autorização do tribunal.
4. O arguido AA, conhecido por “GG”, é vizinho de FF, e conhecedor das limitações cognitivas de que a mesma padece.
5. Por força da deficiência mental de que padece, a FF não tem capacidade para avaliar, em toda a sua extensão, o sentido e significado do relacionamento sexual e suas consequências, nem tem capacidade para se opor a actos sexuais praticados sobre si, por terceiros, factos de que o arguido, pelos contactos que mantinha com a FF, tinha perfeito conhecimento.
6. Não obstante tal conhecimento, durante pelo menos os 3 meses que antecederam a queixa, a hora não concretamente apurada, mas normalmente de manhã, quando FF ia dar de comer às galinhas, o arguido,  conhecedor das rotinas daquela, nomeadamente do horário em que ela se deslocava ao galinheiro  e de que a mesma gostava de cerveja, deslocava-se para uma casa em ruínas existente nas imediações do galinheiro e, uma vez ali, acenava-lhe com a mão, fazendo-lhe sinal para que se aproximasse dele, o que ela fazia.
7. Ali, o arguido, pelo menos por 36 vezes, no período referido em 6), aproveitando-se das limitações cognitivas de FF e sabendo que, por via delas, ela não era capaz de se opor aos seus actos, e após ambos beberem a garrafa de cerveja que ele sempre levava consigo, desapertava o cinto e baixava as suas próprias calças e cuecas.
8. Acto contínuo, o arguido desapertava as calças da FF, baixava-lhe as calças e as cuecas, afastava-lhe as pernas e, de seguida, em pé, introduzia o seu pénis erecto, sem preservativo, na vagina da FF, aí o friccionando em movimentos de vaivém, ejaculando.
9. Com os comportamentos supra descritos, o arguido agiu, em cada uma das vezes, de forma livre, deliberada e consciente, na concretização de decisões e determinações que, em cada uma daquelas vezes previamente tomou, com o propósito, concretizado, de se satisfazer sexualmente, ciente e aproveitando-se do facto de a FF, em razão da sua anomalia psíquica, não possuir a capacidade e o discernimento necessários para avaliar o sentido e significado do relacionamento sexual, bem como de não ser capaz de se defender e de se opor, de forma eficaz, aos seus actos.
10. Mais sabia o arguido que, com cada uma das suas condutas, molestava a integridade psicológica e emocional da FF, prejudicava gravemente a sua autonomia e liberdade sexual, o que conseguiu, quis e fez pela forma enunciada.
11. Mais sabia que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
(...)
12. AA é natural da freguesia ..., com pertença a um agregado familiar constituído pelos pais e cinco descendentes, dos quais é o segundo mais velho da ....
13. Neste contexto beneficiou de uma condição de vida modesta, assente no trabalho dos progenitores, o pai na agricultura de subsistência e na prestação de trabalhos agrícolas ao jornal.
14. A mãe assumia as lides domésticas e dedicava-se também à agricultura de subsistência.
15. A dinâmica intrafamiliar vivida à época é descrita pelo arguido como coesa e pautada por estreita vinculação afectiva.
16. O arguido ingressou no ensino básico em idade adequada, vindo a concluir o 3º ano, sem registo de retenções. Não prosseguiu com os estudos, alegadamente pela necessidade que à época existia de auxiliar os progenitores na realização dos trabalhos agrícolas, mantendo essa condição até perfazer 16 anos de idade.
17. Ao nível laboral, AA começou a trabalhar aos 16 anos como servente de pedreiro.
18. Aos 18 anos de idade, ingressou no exército tendo cumprido 36 meses de serviço militar em quartel situado na cidade ....
19. Durante este período o arguido concluiu o quarto ano de escolaridade.
20. Após o regresso à vida civil, retomou a actividade profissional de servente de pedreiro.
21. Pelo ano de 1981, o arguido emigrou para a ... onde durante 10 anos trabalhou na construção civil.
22. Sobre este período reporta-se tristeza e desilusão, nomeadamente pelo facto de não ter conseguido cumprir o objectivo primordial que se baseava em fomentar as finanças familiares.
23. De regresso a Portugal, o arguido retomou a actividade profissional com servente de pedreiro, actividade que manteve até atingir a idade de reforma que terá ocorrido há cerca de cinco anos atrás.
24. AA constituiu agregado próprio vai há cerca de 50 anos, nascendo desta união os quatro filhos do casal.
25. Estabeleceram lar naquela que é a actual habitação, em .... Trata-se de uma habitação de família da esposa que ao longo dos anos foram reabilitando por forma a garantirem as necessárias condições de habitabilidade.
26. Na vertente da saúde, são descritos pelo arguido problemas de psoríase, colesterol e de próstata, com interferência na vida íntima do casal, informação não corroborada pela esposa.
27. Este é o primeiro contacto do arguido com o sistema de justiça penal.
28. AA por referência à data dos factos, tal como no presente, vive com a esposa (70 anos, casada, 3ª ano de escolaridade, reformada).
29. A dinâmica intrafamiliar é descrita pelo arguido como coesa e afectivamente gratificante, perspectiva corroborada pelas suas filhas que destacam a manutenção regular de convívio familiar e a solidariedade na resolução dos problemas familiares como formas de apoio ao mesmo.
30. Os filhos do casal encontram-se autonomizados, sendo que, dois deles estão emigrados e dois residem no concelho .... Mantém vinculação próxima com a filha HH que reside na mesma freguesia a qual auxilia, nomeadamente na manutenção da horta e prestação de cuidados a animais.
31. O agregado ocupa casa própria, uma moradia independente, constituída por um ... e ... andar, dotada de boas condições de habitabilidade.
32. No casal, ambos se encontram reformados. O arguido mantém um quotidiano assente na realização de pequenos trabalhos agrícolas em horta anexa à habitação, criação de aves para consumo doméstico e auxílio ao agregado familiar da filha na realização de tarefas similares.
33. A condição económica é modesta. O arguido aufere de pensão por velhice no valor de 400.00€ mensais e a esposa aufere de pensão de cerca de 200.00€ mensais. Totaliza um rendimento mensal no valor de 600.00€. Apresentam encargos com consumos de água, luz e gás (num total aproximado de 150.00€); O restante disponível é gasto em despesas com alimentação e compra de medicação.
34. Na vertente da saúde, AA é acompanhado regularmente em consultas de urologia e dermatologia no Hospital ... e no âmbito da medicina geral familiar na Unidade Local de Saúde ....
35. Na comunidade de pertença nada consta em desabono da conduta do arguido. É um indivíduo que é de imediato identificado, interagindo com um vasto leque de conhecidos, não só por ser natural da freguesia, mas também pela frequência de estabelecimentos comerciais locais, beneficiando da confiança dos seus conterrâneos.
36. Ao nível familiar, é notório o impacto da situação processual do arguido na própria estabilidade emocional da esposa, que se mostra fragilizada e identifica a necessidade de recurso a consultas de psiquiatria.
37. AA indica que, apesar de sentir o apoio dos seus filhos e esposa, percepciona algum afastamento dos mesmos ao longo do desenvolvimento do presente processo. Por sua vez a esposa e filhas, indicam que viveram com apreensão o momento em que tomaram conhecimento da condição processual de AA, no entanto, a dinâmica familiar retomou a normalidade
38. O arguido verbaliza reconhecer a ilicitude de crimes da mesma natureza dos subjacentes aos presentes autos, o dano e o impacto causado nas vítimas, tendendo, no entanto, a legitimá-los apresentando crenças de que os ofensores poderão actuar por provocação /sedução das vítimas.
39. AA não se revê no teor da acusação, estando expectante quanto a um desfecho processual favorável, considerando extemporâneo pronunciar-se sobre a sua adesão, na eventualidade de condenação, a medidas de execução na comunidade.
40. No meio residencial, a condição processual de AA é conhecida, no entanto, a imagem social do arguido não se vê afectada. Não obstante, são denotados, por parte do arguido, comportamentos de evitamento de frequência em espaços públicos da freguesia e contactos fora da esfera familiar.
41. A presente situação processual impactou negativamente na estabilidade emocional da esposa que se mostra fragilizada. Não obstante, continua a beneficiar do apoio da mesma, assim como, dos filhos do casal.
42. Se a pena concretamente aplicada o permitir, o arguido reúne condições para a execução de uma medida na comunidade, parecendo-nos que as acções de reinserção social a implementar deverão decorrer de um processo de avaliação clínica/terapêutica especializada, a que o arguido deverá submeter-se, com o objectivo de diagnosticar necessidades de intervenção no âmbito da sexualidade.
(...)
43. a actuação do arguido perturbou e abalou o quotidiano da vida de FF
44. O assunto é motivo de conversa na freguesia.
45. A mãe de FF teve despesas na ordem dos € 500,00 em deslocações ao Hospital, Tribunal, Segurança Social…
*
2.2. Considerou não provados os seguintes factos (transcrição):

“a) que o referido em 6 ocorresse diariamente, a hora não concretamente apurada, mas situada entre o final da tarde/princípio da noite, no período compreendido entre 19 de Abril (Páscoa) e 23 de Junho de 2019.”.
*
2.3. E motivou essa decisão de facto nos seguintes moldes (transcrição):

“O tribunal fundou a sua convicção no que toca aos factos provados e não provados, no depoimento de FF, da sua mãe, DD, de EE, II, JJ, II, relatórios periciais contantes dos autos e demais documentos.

O arguido não quis prestar declarações.
O tribunal começou por ouvir DD, mãe da FF, tendo a mesma explicado de que modo soube que a filha tinha vindo a ter relações sexuais com o arguido.
DD diz que há vários anos a filha ficou grávida, tendo afirmado à médica de família que o pai era o “...” (nome pelo qual é conhecido o arguido) e que não queria ter o bebé.
DD diz que, à data, confrontou o arguido tendo este dito qualquer coisa como “nunca mais, nunca mais, eu pago o que for preciso…”, mas nunca negou que tivesse sido ele o responsável pela gravidez.
Reportado ao tempo dos factos, diz que começou a achar a filha “estranha”, “um pouco alterada”.
Mesmo antes de ter descoberto, já desconfiava do arguido.
No dia em que descobriu foi alertada por uma vizinha para a existência de uma grande quantidade de garrafas de cervejas espalhadas pelo chão de um prédio vizinho.
Diz que apanhou 72 garrafas e as meteu num saco.
Confrontou a filha e esta disse-lhe o que estava a acontecer – que ia deitar comida às galinhas, que o arguido chamava por ela e que se despiam da cinta para baixo e tinham relações sexuais.
A filha disse-lhe que o “...” lhe dava uma cerveja antes e outra depois. Nunca contou nada porque ele ameaçava matar a mãe.
Esclarece que quando foi do aborto não contou a ninguém, mas agora, toda a freguesia sabe desta situação.
A mulher do arguido não fala com DD, mas “é o dever dela”.
FF, uma criança num corpo de 49 anos, de forma muito envergonhada, mas auxiliada pela Sr. Psicóloga que já havia feito a perícia, relatou com detalhe como se desenrolavam os encontros com o arguido, o local (que confirmou com o recurso às fotografias juntas ao processo), a circunstância deste lhe dar a beber uma cerveja (que bebiam a meias) no início e no fim de terem relações sexuais. FF diz que tal acontecia sempre e que o arguido as “botava “fora (às garrafas).
FF diz que ia ter com o arguido quando este a chamava porque tinha medo, negando querer ter relações com este. Não soube quantificar o número de vezes, dizendo que foram “muitas”.
A Sr.ª Psicóloga que acompanhou este depoimento, havia já efectuado o relatório de perícia médico-legal junto a fls. 132 a 138.
O tribunal com o depoimento do médico, Dr. KK, conseguiu perceber o significado do registo clínico de fls. 111. Aquele médico, em questão, nunca teve contacto com alguma gravidez da incapaz. Quando começou a ser sua doente aquela já usava um método contraceptivo subcutâneo.
Dos elementos solicitados à ULSAM e agora juntos aos autos resulta que FF esteve grávida em 2008 e efectuou um esvaziamento uterino em 2008. Pelo relato da mãe de FF, o arguido teria sido o responsável pela gravidez. Porém, não obstante estes elementos passados circunstanciarem os factos actuais, não estão, agora, a ser alvo de julgamento.
No local dos factos a Polícia Judiciária havia recolhido algumas garrafas de cerveja para análise de vestígios biológicos.
Como nos explicou o Especialista em Perícia científica ouvido em audiência, logo no local, ele verifica se existem vestígios lofoscópicos. Foi o que aconteceu, não tendo conseguido recolher nenhum vestígio.
As garrafas foram para análise do material genético, cujo resultado consta a fls. 239 a 240, tendo concluído pela ausência de qualquer perfil genético, o que é perfeitamente consentâneo com a circunstância das garrafas terem estado expostas ao ar, frio, chuva.
Uma vez que o nome da testemunha tinha sido avançado durante o julgamento e esta se encontrava presente no tribunal foi ouvida EE, sobrinha de DD, a qual veio trazer para o processo algumas informações relevantes.
Diz que cerca de 2 meses antes de se ter descoberto o que estava a acontecer a irmã da FF disse-lhe que tinha que a levar ao ginecologista porque aquela lhe dizia que tinha “dores no pipi”.
A testemunha viu, igualmente, as garrafas espalhadas pelo chão, no local já indicado anteriormente.
A testemunha diz que FF gosta de beber. Se não lhe fecharem a bebida, ela bebe. Na ideia dela, o facto do arguido lhe dar cerveja era um “chamariz” para ela ir ter com ele e terem relações sexuais. A testemunha afirma “o desejo de beber é que a fazia suportar as relações. Ela não ia com prazer”.
II, prima afastada do arguido, teve um depoimento, no mínimo, confrangedor. A testemunha chegou a dizer que a FF “se fazia de deficiente” e “andava atrás de toda a gente”.
JJ, sobrinho do arguido, diz que este é muito bem-conceituado na freguesia. Relativamente à FF, esta anda pela freguesia sozinha, vai comprar pão, café…
II é filha do arguido e, no mesmo sentido destes depoimentos, diz que a FF chega a andar 3 km sozinha. Ela é livre a anda por todo o lado. Ela provoca, chama a atenção.
O rumo destes últimos depoimentos, pese embora já não criarem estupefacção no tribunal dado os vários julgamentos em que a ideia se repete, não deixa, porém, de continuar a ser incompreensível. Então, temos uma incapaz que sofre de debilidade mental, tem relações com um homem adulto, este no gozo das suas capacidades e existem pessoas que conseguem colocar o assento negativo da conduta na circunstância da incapaz “ser uma oferecida”, “provocadora”, “não resguardada pela mãe”…....
Convenhamos que esta postura coloca o agressor num nível muito baixo, de alguém que não pode ser provocado, tentado, sob pena de “coitado”, “cair na tentação”.
O tribunal, em face da prova produzida e designadamente do depoimento de FF, da mãe desta e do relatório pericial e esclarecimentos, não ficou com dúvidas nenhumas quanto à existência de relações sexuais entre o arguido e a FF, tendo aquele aproveitado a diminuição da sua capacidade mental, para o conseguir.
Resta-nos responder à questão – quando, durante quanto tempo e quantas vezes aconteceu?
DD efectuou a participação em 24.06.2019 quando soube dos factos.
EE afirmou que irmã da incapaz, cerca de 2 meses antes, em conversa, disse que tinha que levar FF ao ginecologista porque se queixava de dores na vagina.
FF afirmou que antes de ter relações sexuais com o arguido bebia metade de uma cerveja e outra no fim.
Só a mãe da incapaz meteu num saco 72 garrafas vazias.
O Especialista da Polícia Judiciária diz que no local, além daquelas, haveria cerca de 20 ou 30 garrafas, EE, cerca de 10 garrafas.
Podemos ter como seguro que LL levou 72 garrafas. A mesma fez questão de o frisar várias vezes.
Podíamos considerar, além das 72 garrafas recolhidas pela mãe da incapaz, aquelas que foram vistas pelo Especialista da Polícia Judiciária, ou por EE.
Porém, retirando estas últimas garrafas, uma quantidade que já permite uma grande margem erro, o tribunal entende, com o grau de certeza que o Direito Penal exige que, o arguido teve com FF, no mínimo, relações sexuais por 36 vezes.
Esta conclusão é retirada da afirmação, reiterada, da incapaz, de que bebiam (ela e o arguido) de cada vez que tinham relações sexuais duas garrafas de cerveja.
A localização temporal advém das queixas da incapaz à irmã cerca de 2 meses antes e a afirmação da mãe desta no sentido de uns meses antes, ter visto a filha “alterada”.
O tribunal teve ainda em conta o teor do relatório social e certificado de registo criminal.”.
*
3. Posto isto, passemos, então, à análise das questões suscitadas pelo recorrente, começando por aquela(s) supra enunciadas em quarto e quinto lugares, de índole intrinsecamente processual, atinentes à suscitada invalidade dos depoimentos das testemunhas DD, EE e das declarações da ofendida/assistente FF, já que a eventual procedência de alguma dessas questões poderá prejudicar o conhecimento da parte substantiva do recurso [o Artº 608º, nº 1, do C.P.Civil, aqui aplicável ex-vi Artº 4º do C.P.Penal, estabelece o conhecimento das questões submetidas à apreciação do tribunal segundo a sua precedência lógica]. 
*
3.1. Dos (alegados) depoimentos indirectos

Como se viu, neste segmento do seu recurso sustenta o recorrente, em síntese, que o depoimento das testemunhas DD e EE, em que assentou a convicção do Tribunal, é um depoimento indirecto, consubstanciando prova proibida.

Vejamos.
Estatui o Artº 128º, nº 1, do C.P.Penal, que a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova.

Sucede que, não obstante esta regra, a lei não arreda o comummente designado testemunho de “ouvir dizer”, como se alcança do Artº 129º, do C.P.Penal, que sob a epígrafe “Depoimento indirecto”, estatui:

“1. Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.
(...)”.
O depoimento indirecto é, pois, uma excepção, só podendo ser valorado nos estritos termos previstos nesta norma.
Muito se tem discutido acerca da distinção entre depoimento directo e depoimento indirecto.
Acerca da distinção entre depoimento directo e depoimento indirecto, esclarece o Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processual Penal”, Volume II - 5ª Edição Revista e actualizada, Verbo 2011, págs. 221/222:
Conhecimento directo dos factos é aquele que a testemunha adquire por se ter apercebido imediatamente deles através dos seus próprios sentidos. No testemunho indirecto a testemunha refere meios de prova, aquilo de que se apercebeu foi de outros meios de prova relativos aos factos, mas não imediatamente dos próprios factos”.
Na mesma senda se pronunciando o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24/09/2008, proferido no âmbito do Proc. nº 0843468, disponível in www.dgsi.pt., no qual lapidarmente se afirma:
“O critério operativo da distinção entre depoimento directo e indirecto é o da vivência da realidade que se relata: se o depoente viveu e assistiu a essa realidade o seu depoimento é directo, se não, é indirecto.”.
Nesta perspectiva, podendo dizer-se que o depoimento indirecto é a comunicação de um facto de que o sujeito teve conhecimento por um terceiro, afigura-se-nos que não constitui depoimento indirecto aquele que é prestado por uma testemunha que relata o que ouviu dizer do arguido ou do ofendido, pois versa sobre factos de que directamente teve conhecimento na conversa que com eles estabeleceu.
Ora, na situação em apreço, e no que tange à testemunha DD, mãe da ofendida FF, constata-se que o seu depoimento não configura, de todo, um depoimento indirecto, sendo perfeitamente valorável, à luz do disposto nos Artºs. 125º e 127º do C.P.Penal.
Para tanto bastando atentar na fundamentação que a propósito o tribunal a quo expendeu, e que ora se recorda:
“O tribunal começou por ouvir DD, mãe da FF, tendo a mesma explicado de que modo soube que a filha tinha vindo a ter relações sexuais com o arguido.
DD diz que há vários anos a filha ficou grávida, tendo afirmado à médica de família que o pai era o “...” (nome pelo qual é conhecido o arguido) e que não queria ter o bebé.
DD diz que, à data, confrontou o arguido tendo este dito qualquer coisa como “nunca mais, nunca mais, eu pago o que for preciso…”, mas nunca negou que tivesse sido ele o responsável pela gravidez.
Reportado ao tempo dos factos, diz que começou a achar a filha “estranha”, “um pouco alterada”.
Mesmo antes de ter descoberto, já desconfiava do arguido.
No dia em que descobriu foi alertada por uma vizinha para a existência de uma grande quantidade de garrafas de cervejas espalhadas pelo chão de um prédio vizinho.
Diz que apanhou 72 garrafas e as meteu num saco.
Confrontou a filha e esta disse-lhe o que estava a acontecer – que ia deitar comida às galinhas, que o arguido chamava por ela e que se despiam da cinta para baixo e tinham relações sexuais.
A filha disse-lhe que o “...” lhe dava uma cerveja antes e outra depois. Nunca contou nada porque ele ameaçava matar a mãe.
Esclarece que quando foi do aborto não contou a ninguém, mas agora, toda a freguesia sabe desta situação.
A mulher do arguido não fala com DD, mas “é o dever dela”.”.
Do exposto decorre, claramente, que a testemunha em causa não só relatou ao tribunal factos que vivenciou pessoalmente, como fez alusão a uma conversa que teve com a própria filha, a ofendida FF acerca das relações sexuais que tivera com o arguido, ofendida essa que esteve presente na audiência de discussão e julgamento e que foi confrontada com a temática em causa.
Inexiste, pois, qualquer violação do Artº 129º, do C.P.Penal, quanto a tal depoimento.
E quanto à testemunha EE?
Recordemos o que acerca do seu depoimento consta do acórdão recorrido, na parte da fundamentação da matéria de facto:
“Uma vez que o nome da testemunha tinha sido avançado durante o julgamento e esta se encontrava presente no tribunal foi ouvida EE, sobrinha de DD, a qual veio trazer para o processo algumas informações relevantes.
Diz que cerca de 2 meses antes de se ter descoberto o que estava a acontecer a irmã da FF disse-lhe que tinha que a levar ao ginecologista porque aquela lhe dizia que tinha “dores no pipi”.
A testemunha viu, igualmente, as garrafas espalhadas pelo chão, no local já indicado anteriormente.
A testemunha diz que FF gosta de beber. Se não lhe fecharem a bebida, ela bebe. Na ideia dela, o facto do arguido lhe dar cerveja era um “chamariz” para ela ir ter com ele e terem relações sexuais. A testemunha afirma “o desejo de beber é que a fazia suportar as relações. Ela não ia com prazer”.
Ora, analisando tal fundamentação, concede-se que, no rigor dos princípios, no primeiro segmento da mesma, na parte em que se refere que a mencionada testemunha disse que “cerca de 2 meses antes de se ter descoberto o que estava a acontecer a irmã da FF disse-lhe que tinha que a levar ao ginecologista porque aquela lhe dizia que tinha “dores no pipi”, está em causa a valoração de um depoimento indirecto, sendo certo que a dita irmã da ofendida não foi chamada a depor.
Porém, quando ao demais, o depoimento da testemunha EE consubstancia inelutavelmente um depoimento directo, não obstante temperado por considerações de índole subjectiva, maxime na parte em que refere que, “Na ideia dela, o facto do arguido lhe dar cerveja era um “chamariz” para ela ir ter com ele e terem relações sexuais.”.
Consequentemente, e com excepção do aludido estrito segmento do depoimento desta testemunha, que deverá considerar-se inválido [5] [6], não se vislumbra qualquer interdição na sua utilização como meio de prova, como aduz o recorrente, sendo o mesmo valorável à luz do princípio da livre apreciação da prova plasmado no Artº 127º do C.P.Penal.
Pelo que, sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, e com a aludida precisão, soçobra o recurso, nesta parte.
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3.2. Da (in)validade das declarações da ofendida FF

Nesta vertente recursória, sustenta o recorrente, em síntese, que:

- As declarações da vítima FF são a única prova que permitiu ao Tribunal a quo concluir pela existência de factos suscetíveis de integrar um (ou vários) crimes, dado que a demais prova da alegada prática dos factos (apenas testemunhal e indirecta), de per si, é insuficiente para sustentar qualquer condenação;
- Nenhuma razão há para valorar as declarações da vítima, quase manietada e dirigida, nada espontânea e concreta, antes pelo contrário;
- Conforme se extrai do disposto no Artº 131º, nº 1, do C.P.Penal, qualquer pessoa possui capacidade para ser testemunha, desde que não se encontre interdita por anomalia psíquica;
- A vítima, à data do seu depoimento, já havia sido objeto de medida de acompanhamento, para representação geral em todos os actos, em virtude de anomalia psíquica, pelo que o mesmo não poderia ter sido considerado, nomeadamente para prova dos factos constantes da acusação, por se tratar de prova proibida;
- No entanto, ainda que o mesmo fosse admissível, sempre se diga que, nos termos do Artº 126º, n.ºs. 1 e 2, al. a), do C.P.Penal, são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante ofensa à integridade moral das pessoas e como tal (ofensivas da integridade moral) são as provas obtidas através da utilização de métodos enganosos – sendo que a utilização de perguntas sugestivas a pessoa incapaz podem ser consideradas como meio enganoso, atenta a vulnerabilidade das mesmas e a tendência natural para confirmar o que lhe foi perguntado; e
- As declarações da vítima foram orientadas por forma a que delas resultassem respostas de acordo com as circunstâncias de tempo e local constantes da acusação proferida contra o arguido nos presentes autos, tendo sido indicados, expressamente, quais os factos que a mesma devia ou não, declarar, ou até simplesmente confirmar, pelo que não podem ser valoradas com força probatória plena, padecendo essa prova do vício da nulidade, nenhum efeito podendo decorrer da mesma para a sentença a proferir.

Apreciando, desde já se adianta que esta questão está totalmente votada ao insucesso.
Vejamos.
Como emana dos autos, e como foi dado como provado nos pontos 1 a 3 da matéria dada como assente pelo tribunal a quo no acórdão recorrido, não impugnados pelo recorrente, constata-se que a ofendida FF nasceu em .../.../1973, sendo solteira, tendo residido sempre com os pais e, após a morte do pai, apenas com a mãe, DD, na Rua ..., na freguesia ..., concelho ....
Mais se constata que a FF apresenta, por via do quadro de meningite que sofreu quando tinha 8 meses de idade, deficiência mental moderada, facto que é do conhecimento de todas as pessoas que com ela convivem, nomeadamente dos vizinhos, e que é imediatamente perceptível em função do seu comportamento e do modo como se exprime, apresentando, nomeadamente, comunicação e linguagem lacunares – recorre a palavras soltas –, dificuldades ao nível da linguagem compreensiva, sendo que nem sempre é perceptível o que diz; não sabe dizer a sua idade, a data do seu nascimento, não consegue concretizar a morada onde reside, sabendo apenas indicar que é em ..., não tem noção do tempo, embora tenha noção da sucessão dos dias, não conhece o dinheiro nem o valor económico das coisas, e apenas é capaz de se deslocar sozinha em casa e nas imediações, sendo que, por via da deficiência de que padece, necessita do apoio de terceira pessoa na generalidade das actividades do dia-a-dia, nomeadamente no tocante à confecção da alimentação, escolha de roupa adequada ao tempo, e administração da pensão que aufere.
E que, por sentença de 23/04/2021, proferida pelo Juízo Local Cível ..., foi decretado o seu acompanhamento e designada como acompanhante a sua mãe, nos termos da qual foram determinadas as medidas de acompanhamento: representação geral para todos os actos da vida corrente, sem prejuízo dos actos que careçam de autorização judicial, administração total de bens, limitação do exercício de direitos pessoais, condicionada à intervenção da acompanhante e à eventual autorização do tribunal.
Ora, tendo certamente em mente este quadro fáctico, alega o recorrente que, estatuindo o Artº 131º, nº 1, do C.P.Penal, que “qualquer pessoa possui capacidade para ser testemunha, desde que não se encontre interdita por anomalia psíquica”, e que tendo a ofendida sido “objeto de medida de acompanhamento, para representação geral em todos os atos, em virtude de anomalia psíquica”, situação que se verificava à data do seu depoimento, tal depoimento não poderia ter sido considerado, nomeadamente para prova dos factos constantes da acusação, por se tratar de prova proibida.
Salvo o devido respeito, o recorrente incorre num manifesto equívoco, pois que convoca uma norma legal cuja redacção não está em vigor, dado que foi alterada pela Lei nº 49/2018, de 14 de Agosto, com entrada em vigor em 10/02/2019.

Com efeito, sob a epígrafe “Capacidade e dever de testemunhar”, prescreve actualmente, o citado Artº 131º, do C.P.Penal:

“1 - Qualquer pessoa tem capacidade para ser testemunha desde que tenha aptidão mental para depor sobre os factos que constituam objeto da prova e só pode recusar-se nos casos previstos na lei.
2 - A autoridade judiciária verifica a aptidão física ou mental de qualquer pessoa para prestar testemunho, quando isso for necessário para avaliar da sua credibilidade e puder ser feito sem retardamento da marcha normal do processo.
3 - Tratando-se de depoimento de menor de 18 anos em crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores, pode ter lugar perícia sobre a personalidade.
4 - As indagações, referidas nos números anteriores, ordenadas anteriormente ao depoimento, não impedem que este se produza.”.
Nessas circunstâncias, torna-se manifesto e evidente que, actualmente, qualquer pessoa tem capacidade para ser testemunha, apenas se exigindo que a mesma tenha aptidão mental para depor sobre os factos que constituam objeto da prova, e que o tribunal verifique a aptidão física ou mental de qualquer pessoa para prestar testemunho, quando isso for necessário para avaliar da sua credibilidade e puder ser feito sem retardamento da marcha normal do processo.

Sucede que, no caso sub-judice, tal aptidão mental da ofendida, para este efeito, está cabalmente comprovada através do relatório da perícia médico-legal datado de 27/11/2019, junto a fls. 197 / 202 Vº, levado a cabo pelo Gabinete Médico-Legal e Forense do Minho-Lima, Serviço de Clínica e Patologia Forenses, Unidade Funcional de Clínica Forense, ainda na fase de inquérito, a solicitação do Ministério Público, como se alcança do ofício de 06/11/2019, constante de fls. 81, e cujas conclusões se transcrevem, na parte em que ora interessa considerar:
“A examinada apresenta um quadro de deficiência intelectual moderada que lhe condiciona muitas dificuldades na compreensão de várias situações do seu quotidiano.
De notar que se trata de uma pessoa que em termos biológicos e hormonais tem um desenvolvimento normativo não tendo, no entanto, noção do que implica ter contactos sexuais ou “filtro” no sentido de ser capaz de se proteger devidamente em relação a investidas, sendo uma pessoa com especial vulnerabilidade.
A examinada quando fala do que aconteceu com o sujeito que identifica como “...” não mostra qualquer noção de desadequação dos contactos nem mostra ter noção do teor dos factos em causa nos autos.
(...)
A examinada apresenta um quadro de deficiência mental moderada mas se as perguntas forem formuladas de forma correta mostra capacidade para distinguir a realidade da fantasia e para responder adequadamente. No entanto, estas perguntas deverão ser formuladas como se tratasse de um menor de tenra idade dando preferência a perguntas abertas e simples, evitar perguntas mais complexas ou tendenciosas, falar de modo simples, com contacto ocular, chamando a examinada pelo nome, utilizar os vocábulos que a examinada usa, no dia a dia, nomeadamente, no que concerne a descrições sexuais.
A examinada usa um vocabulário muito lacunar mas perceptível. Nos relatos disponíveis nos autos constata-se que o seu discurso mantém os aspetos centrais intactos. A examinada descreve uma cópula de forma compatível com o seu nível e funcionamento cognitivo. A FF descreve os factos de forma tranquila sem qualquer noção do impacto dos mesmos.
(...)”.
Ora, perante a evidência e a clareza de tais conclusões periciais, cuja bondade ou “validade” o arguido jamais questionou, não se compreende que, nesta sede recursória, e trazendo até à liça um instituto jurídico (interdição) que já foi eliminado do nosso ordenamento jurídico [precisamente por via das alterações legislativas levadas a cabo pela supra citada Lei nº 49/2018, de 14 de Agosto], venha invocar que o depoimento ou as declarações da ofendida constituem prova proibida.
Estando, pois, claramente demonstrada a aptidão mental da ofendida para prestar o seu depoimento ou as suas declarações acerca dos factos em causa, soçobra a pretensão do recorrente no sentido de ver invalidada a prova daí resultante, não havendo qualquer violação do que a propósito se prescreve no Artº 131º, nº 1, do C.P.Penal.
Outrossim carecendo de sustentação bastante a alegação do recorrente quando aduz que o depoimento ou as declarações da ofendida foram obtidas através da utilização de meios enganosos, já que orientadas por forma a que delas resultassem respostas de acordo com as circunstâncias de tempo e local constantes da acusação contra ele proferida nos presentes autos, tendo sido indicados, expressamente, quais os factos que a mesma devia ou não, declarar, ou até simplesmente confirmar, pelo que não podem ser valoradas com força probatória plena, padecendo essa prova do vício da nulidade, nenhum efeito podendo decorrer da mesma para a sentença a proferir.
Na verdade, não é isso que decorre da audição que este tribunal fez do depoimento ou das declarações prestadas pela ofendida na audiência de discussão e julgamento [audição essa que, aliás, não se limitou ao depoimento/declarações da ofendida, mas a toda a audiência, como mais adiante melhor explicitaremos], constatando-se que a Mmª Juiz Presidente foi formulando as pertinentes e necessárias perguntas à ofendida de um modo simples, directo, informal e “amigável”, interpelando-a pelo seu nome abreviado (São), como habitualmente é tratada, utilizando uma linguagem e um vocabulário que a mesma usa e que mais facilmente entende e percepciona, designadamente no que tange a descrições sexuais, tal como era preconizado no relatório pericial supra aludido, constante dos autos.

Sendo de sublinhar, ademais, que uma boa parte das questões foram-lhe colocadas através da Dra. MM, Perita em Psicologia Forense, e que é a subscritora do relatório pericial em causa, a qual acompanhou a ofendida durante toda a prestação do seu depoimento, e que ao próprio arguido (através do seu Ilustre Mandatário, obviamente) foi dada a total liberdade de solicitar à ofendida os esclarecimentos que tivesse por pertinentes, tendo o mesmo inclusivamente chegado a sugerir, a certa altura, que as perguntas fossem colocadas através da supra identificada Perita, para melhor compreensão da vítima.

Por isso, e salvo o devido respeito, não faz qualquer sentido vir invocar a utilização de “métodos enganosos” na prestação do depoimento ou das declarações da ofendida, nos termos do disposto no Artº 126º, nºs. 1 e 2, al. a), do C.P.Penal, que manifestamente não se verificam, e que “nenhuma razão há para valorar as declarações da vítima, quase manietada e dirigida, nada espontânea e concreta...”.
Não se compreendendo, também, que apenas nesta sede recursória o recorrente suscite tal questão, quando no decurso da audiência de discussão e julgamento não esboçou qualquer reparo, não fez qualquer reclamação, enfim, não arguiu qualquer irregularidade ou qualquer nulidade a esse respeito.
Improcede, pois, o recurso do arguido quanto a este aspecto, sendo certo que, como veremos mais adiante, também carece de fundamento válido a afirmação do recorrente segundo a qual as “declarações da vítima FF são a única prova que permitiu ao Tribunal a quo concluir pela existência de factos suscetíveis de integrar um (ou vários) crimes”.
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3.3. Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada / do erro notório na apreciação da prova / e do erro de julgamento

De acordo com o disposto no Artº 428º, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.
Há que referir, porém, que os poderes conferidos às Relações em termos da matéria de facto apurada em 1ª instância não se traduzem num conhecimento ilimitado dessa mesma factualidade.
Para isso concorre, basicamente, a concepção adoptada no nosso ordenamento adjectivo que concebe os recursos como "remédio jurídico" para os vícios de julgamento ou, noutra perspectiva, o seu entendimento como juízos de censura crítica e não como "novos julgamentos", e ainda as decorrências do princípio da livre apreciação da prova, ínsito no Artº 127º do C.P.Penal, segundo o qual “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente”.
Por outro lado, há que sublinhar que, ao apreciar a matéria de facto, o Tribunal da Relação está condicionado pela circunstância de não ter com os participantes do processo aquela relação de proximidade comunicante que lhe permite obter uma percepção própria do material que há-de ter como base da sua decisão, sendo certo que os princípios da oralidade e da imediação [7] permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido e com os demais intervenientes processuais, nomeadamente com as testemunhas, permitindo-lhe uma melhor avaliação da credibilidade das declarações e depoimentos prestados.
E exactamente porque o Tribunal da Relação não beneficia destes princípios (da oralidade e da imediação) - e, nesta medida, escapa-lhe, por insindicável, toda uma panóplia de informações não verbais e não documentadas, imprescindíveis para a valoração da prova produzida -, entende-se que a reapreciação das provas gravadas só pode abalar a convicção acolhida pelo tribunal de 1ª instância caso se constate que a decisão sobre a matéria de facto não tem qualquer fundamento nos elementos de prova constantes do processo ou está profundamente desapoiada face às provas produzidas.
Nesta perspectiva, o Tribunal da Relação não procede a um segundo julgamento de facto, pois que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 1ª instância, nem pressupõe a reanálise pelo tribunal de recurso do conjunto dos elementos de prova produzida, mas tão-somente o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido mencionados no recurso e bem assim das provas, indicadas pelo recorrente, que imponham (e não apenas, sugiram ou permitam) decisão diversa, traduzindo-se, pois, numa reapreciação restrita aos concretos pontos de facto que o mesmo entende incorrectamente julgados e às razões dessa discordância.
Assim, os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um instrumento a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inquestionavelmente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância, e já não naqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando dos já supra aludidos princípios da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou em parte de cada uma delas) que se apresentou como mais plausível e coerente.
Sublinhe-se, por outro lado, que não raras vezes os recursos, quanto a esta questão concreta, de impugnação da credibilidade dos elementos de prova, demonstram um evidente equívoco, o da pretensão de equivalência entre a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e o exercício, ilegítimo, do que corresponde ao princípio da livre apreciação da prova, a que já se aludiu, exercício este que, face ao transcrito Artº 127º do C.P.Penal, apenas ao tribunal incumbe.
O que não é legítimo é a convicção do recorrente sobrepor-se à do julgador.
Evidentemente que, como sublinha o mencionado Mestre, [8] o princípio da livre apreciação da prova não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imutável e incontrolável – e, portanto, arbitrária – da prova produzida.
Com efeito – diz –, se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente esta discricionariedade (como já dissemos que a tem toda a discricionariedade jurídica) os seus limites, que não podem ser licitamente ultrapassados; a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material –, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo, possa embora a lei renunciar à motivação e o controlo efectivos.
Noutra vertente, há que relembrar que a matéria de facto pode ser sindicada junto dos Tribunais da Relação por duas vias: a primeira, no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal, no que se convencionou chamar de “revista alargada”; e a segunda através da “impugnação ampla” da matéria de facto, a que alude o Artº 412º, nºs. 3, 4 e 6, do mesmo diploma.
Ora, no primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do citado Artº 410º, cuja indagação, como se extrai do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento.
Ao passo que, na segunda situação, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs. 3 e 4 do citado Artº 412º.
Acresce que, nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Ou seja, o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, pois, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa [9].

Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, conforme determina o Artº 412º, nº 3, do C.P.Penal:

“3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”.

Ora, a especificação dos “concretos pontos de facto” traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
Ao passo que a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida.
E, finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. Artº 430º do C.P.Penal).
E, para dar cumprimento a estas exigências legais tem o recorrente de especificar quais os pontos de facto que entende terem sido incorrectamente julgados, quais os segmentos dos depoimentos que impõem decisão diversa da recorrida e quais os suportes técnicos em que eles se encontram, com referência às concretas passagens gravadas.

Ora, no caso vertente, como se viu, nesta sede sustenta o arguido, num primeiro momento, em síntese, e fazendo apelo ao Artº 410º, nº 2, que deverão ser dados como não provados os factos constantes dos pontos 4., 5., 6., 7., 8., 9., 10. e 11. “dado que se verifica insuficiência dos meios de prova para a decisão de facto proferida e (...) erro notório na apreciação da prova”.
Vejamos, pois.

Sob a epígrafe “Fundamentos do recurso”, prescreve o Artº 410º:
“(...)
2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
(...)
c) Erro notório na apreciação da prova.
(...)”.
Como logo flui do transcrito preceito legal, neste âmbito dos vícios da decisão (que são do conhecimento oficioso, conforme Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19/10/1995, já supra citado), não está em causa a possibilidade de se discutir a bondade do que se considerou provado ou não provado, a maior ou menor abundância de prova para sustentar um facto.
Com efeito, os vícios a que alude o Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal, pressupõem uma outra evidência na justa medida em que correspondem a deficiências na construção e estruturação da decisão e ou dos seus fundamentos, maxime na sua perspectiva interna [10].
Em termos breves, tomemos em consideração cada um dos aludidos vícios.
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando a decisão proferida não cabe, não se ajusta aos factos (àqueles factos) dados como provados, ou, num sentido mais amplo, quando ocorre um vício de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que torna impossível uma decisão logicamente correcta, justa e conforme à lei e, assim, na justa medida em que a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito correcta, legal e justa.
Como se expendeu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06/10/2011, proferido no âmbito do Proc. nº 88/09.9PESNT.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt, “A insuficiência da matéria de facto para a decisão (art. 410º, nº 2, al. a), do CPP), implica a falta de factos provados que autorizam a ilação jurídica tirada; é uma lacuna de factos que se revela internamente, só a expensas da própria sentença, sempre no cotejo com a decisão, mas não se confunde com a eventual falta de provas para que se pudessem dar por provados os factos que se consideraram provados.”
Exige-se, então, uma omissão de pronúncia, pelo tribunal, relativamente a factos alegados por algum dos sujeitos processuais ou resultantes da discussão da causa, que sejam relevantes para a decisão, como será dizer, ainda, o tribunal não dá como “provado” nem como “não provado” algum facto necessário para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição, tornando-se necessário que a matéria de facto tida por provada não permite uma decisão de direito, por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para tal.
Ora, no caso vertente, tem o recorrente por verificado o vício ou, de alguma forma, concretizou-o?
De modo algum.
Na verdade, analisadas quer a motivação, quer as conclusões de recurso, constata-se que o arguido/recorrente não concretizou, a partir do texto da decisão sob recurso, a existência de um qualquer fundamento para se poder dizer que a decisão proferida não cabe, não se ajusta aos factos dados como provados ou não provados, para se poder dizer, enfim, que uma tal decisão padece de uma insuficiência e/ou de uma qualquer ilogicidade intrínseca que torna impossível uma decisão justa e conforme à lei.
Não indicou, nem este tribunal logra vislumbrar onde se possa comprovar tal vício.
Pretenderia o recorrente falar em insuficiência de prova para a decisão de facto tomada pelo tribunal a quo?
É possível, tanto mais que, quer na motivação, quer nas conclusões, faz alusão expressa à “insuficiência dos meios de prova para a decisão de facto proferida” (sublinhado nosso).
Porém, de modo algum, como se disse, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada se confunde com uma suposta insuficiência e/ou divergência dos meios de prova para a decisão de facto, sendo certo que, como veremos mais adiante, os factos dados como provados no acórdão recorrido permitem a ilação jurídica tirada, ou seja, a condenação do arguido pela prática dos crimes que lhe foram imputados.
Nestas circunstâncias, tendo em consideração os contornos do apontado vício, previsto no Artº 410º, nº 2, al. a), que se deixaram explanados, não se antolha qualquer insuficiência ou lacuna do acervo factual provado para a decisão de direito proferida, improcedendo, pois, também este fundamento do recurso.
E quanto ao invocado erro notório na apreciação da prova?
Entende-se que ocorre erro notório na apreciação da prova quando se dá como provado algo que normalmente e/ou notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, ou quando usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou quando, ainda, as provas revelam claramente um sentido e a decisão extraiu ilação contrária, impossível.
Trata-se, nas palavras do Exmo. Conselheiro Pereira Madeira (ibidem, pág. 1275), do erro evidente, escancarado, escandaloso, de que qualquer homem médio se dá conta.
Outrossim, tal como se referiu relativamente ao vício a que alude o Artº 410º, nº 2, al. a), cumpre assinalar que o erro notório na apreciação da prova não tem a ver com a eventual desconformidade/discordância entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido proferida pelo próprio recorrente.
Ora, no caso vertente, é precisamente uma situação redutível à mera discordância que se entende verificada.
Porém, lida e analisada a fundamentação do acórdão impugnado, não se vislumbra que, dos seus próprios termos, se evidencie qualquer erro na apreciação da prova, sendo certo que, tal como em relação ao sobredito vício da insuficiência, também neste segmento o arguido/recorrente não logra concretizar uma qualquer falha relativamente à factualidade dada como provada que impusesse a existência do erro notório.
Tudo se resumindo, afinal, e como já se salientou, a uma mera divergência de análise da prova produzida por banda do arguido, visando este colocar em crise a convicção que o Tribunal recorrido formou perante as provas produzidas em audiência, e substituir essa convicção pela sua própria convicção.

Na verdade, resulta da motivação e das conclusões do seu recurso, que o arguido recorrente tem essencialmente em vista o erro de julgamento a que alude o Artº 412º, nºs. 3 e 4, do C.P.Penal, traduzido numa errónea valoração das provas produzidas em julgamento no que tange à aludida factualidade, constante dos pontos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 11.
Sendo que, quanto às concretas provas que, na sua perspectiva, impõem decisão diversa e que concretizou por referência aos respectivos minutos das passagens das declarações, trouxe o recorrente à liça, no essencial, alguns excertos do depoimento ou das declarações prestadas pela ofendida na audiência de discussão e julgamento, bem como o relatório de perícia de natureza sexual em processo penal datado de 02/07/2019, o relatório de perícia médico-legal (relatório psicológico) datado de 28/02/2020, e o relatório pericial de criminalística biológica de fls. 239, datado de 06/01/2021.
Porém, salvo o devido respeito, toda a alegação do recorrente ao longo das considerações que vai adiantando e repisando em abono da sua tese resume-se à sua discordância relativamente à forma como o tribunal a quo valorou a prova, limitando-se a avançar a sua ponderação acerca da prova produzida, notoriamente distinta daquela que ficou estabelecida no acórdão recorrido, visando que este tribunal a adopte.
Sendo certo que em momento algum o recorrente explicita o que é que nos meios probatórios que indica, maxime nos produzidos oralmente em audiência de julgamento, não sustenta os factos dados como provados que impugna, ou seja, não relaciona o conteúdo específico desses meios de prova com cada um desses factos, de modo a demonstrar que se impõe uma decisão diversa quanto a eles, explicitando as razões desse entendimento.
Pois que a imposição de decisão diversa terá de advir da circunstância dos meios probatórios invocados não comportarem ou não consentirem aquilo que o tribunal deles retirou, designadamente porque os depoentes ou declarantes disseram algo diverso ou contraditório daquilo que o tribunal apreendeu, ou porque os documentos não permitem extrair o que deles foi retirado pelo tribunal e com base no qual veio a formar a sua convicção.
Dito de outro modo, na situação em apreço, o que o recorrente pretende é, no fundo, que este tribunal de recurso proceda a um novo julgamento acerca de tais factos, analisando toda a prova produzida na primeira instância a fim de fixar depois a matéria de facto de acordo com a convicção do próprio recorrente, considerando os factos em causa como não provados.
E olvidando que, para que este tribunal de recurso pudesse levar a cabo a pretendida alteração da matéria de facto, tornava-se necessário que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento não apenas aconselhasse, ou permitisse, ou consentisse uma tal alteração, mas antes impusesse essa alteração da decisão a que o tribunal recorrido chegou, fundamentadamente, sobre a matéria de facto (cfr. o disposto no citado Artº 412º, nº 3, al. b), do C. P. Penal) [11].
Sendo certo que, como assertivamente se refere no acórdão da Relação de Évora de 19/05/2015, proferido no âmbito do Proc. nº 441/10.5TABJA.E2, disponível in www.dgsi.pt, “Se, perante determinada situação, as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis, e o Juiz, fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável: o recorrente, ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efectuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que opte por ela.”.
Não obstante isso, há que referir que, tendo este tribunal procedido à audição da gravação da prova na sua integralidade [e não apenas das declarações da ofendida FF] [12], o certo é que da simples audição de tais declaração e depoimentos, conjugada com a demais prova, e com as regras da experiência comum e da normalidade das coisas, leva-nos a concluir que o tribunal a quo cumpriu a sua missão com êxito.
Na verdade, a análise de toda a prova (gravada, documental e pericial) não nos dá qualquer indício de que aquele tribunal decidiu mal. Antes pelo contrário, confirma o raciocínio coerente, lógico e racional prosseguido pelo tribunal a quo para dar como provados os factos em discussão, ora questionados pelo arguido.
E não se objecte que a convicção do tribunal a quo, no que tange a tais factos, assentou única e exclusivamente nas declarações da ofendida / assistente FF, pois que os depoimentos das testemunhas DD e EE não podem ser utilizados, pelas razões anteriormente aduzidas [questão essa já apreciada], e que tais declarações (da ofendida) não foram prestadas de forma espontânea e genuína, mas sim obtidas através de “métodos enganosos” [questão essa também já anteriormente abordada e decidida].
Antes de mais, há que referir que as declarações do assistente contam-se como um dos meios de prova previstos no C.P.Penal (cfr. 145º do C.P.Penal), e que ao prestá-las, contrariamente ao que sucede com o arguido, o declarante fica sujeito ao dever de verdade e a responsabilidade penal pela sua violação (cfr. Artºs. 346º e 145º, nº 2, do C.P.Penal).
O que significa que as declarações do assistente prestadas em audiência em consonância com o disposto nos citados Artºs. 145º e 346º do C.P.Penal serão apreciadas, também, de acordo com o disposto no Artº 127º do mesmo diploma legal.
Ou seja, a prova por declarações do assistente é livremente valorada pelo tribunal, e a lei em parte alguma proíbe que possa, por si só, conduzir à condenação do arguido.
Assim, dúvidas não há de que o tribunal pode formar a sua convicção com base apenas nas declarações do assistente, ou mesmo tendo em conta o depoimento de uma única testemunha, no pressuposto, obviamente, que os mesmos o prestem de forma isenta, sincera a credível, e que o tribunal, de uma forma clara e assertiva, explicite as razões do seu convencimento.
Sucede que, no caso sub-judice, como se viu, e contrariamente ao que alude o recorrente, o tribunal a quo não fundamentou a sua decisão sobre a matéria de facto unicamente nas declarações da assistente.
Com efeito, o tribunal colectivo alicerçou a sua convicção, de modo expresso e claro, não só na credibilização de tais declarações, que mau grado o quadro de deficiência intelectual que apresenta descreveu com suficiente assertividade os factos que relatou ao tribunal, mas também noutros elementos probatórios, de índole pericial, documental e testemunhal, nos termos descritos na respectiva fundamentação.
Ressaltando da decisão recorrida uma imagem lógica e coerente do que realmente aconteceu, sem que subsistam dúvidas de que o ora recorrente, nas circunstâncias de tempo e de lugar descritos, cometeu os factos tidos por provados, por ele ora colocados em crise.
É certo que ao recorrente assistia o direito de apresentar a versão que lhe aprouvesse e que tivesse por mais adequada à sua defesa, o que fez nos termos que constam das respectivas conclusões recursórias.
Porém, em bom rigor, o recorrente, ao alegar em tais moldes, sem apontar argumentos ou provas impositivas de uma decisão diversa da que foi tomada pelo tribunal nos segmentos aludidos, e socorrendo-se de pormenores desgarrados (com transcrição cirúrgica e descontextualizada de partes das declarações da ofendida) da visão global que sempre deve existir, em boa verdade o recorrente está, em síntese, a impugnar a convicção adquirida pelo tribunal a quo sobre determinados factos, em contraposição com a que sobre os mesmos aquele adquiriu em julgamento, olvidando a regra da livre apreciação da prova ínsita no Artº 127º do C.P.Penal, a que já por diversas vezes aludimos.
Pelo que, não se detectando na decisão recorrida qualquer vício e ou violação de nenhuma das normas a este propósito invocadas pelo recorrente, ou nulidades que não se encontrem sanadas, tem-se a matéria de facto definitivamente assente, soçobrando o recurso nesta parte.
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3.4. Da violação dos princípios da livre apreciação da prova, da presunção de inocência e do in dubio pro reo
           
Mas, como se viu, e ainda relacionado com a temática anterior, sustenta também o recorrente AA que, ao decidir como decidiu, violou o tribunal a quo os princípios da livre apreciação da prova, da presunção de inocência e do in dubio pro reo.

Porém, nenhuma razão lhe assiste.
Desde logo não se mostra violado o princípio da livre apreciação da prova, previsto no Artº 127º, segundo o qual “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Sendo, aliás, curioso que o recorrente invoque a violação de tal princípio quando, em bom rigor, o que faz é precisamente o contrário, ou seja, insurgir-se contra o modo como o Tribunal a quo apreciou livremente a prova, em estrita obediência ao invocado princípio legal.
Com efeito, cumpre referir, uma vez mais, que a discordância do recorrente, neste particular aspecto, se limita a questionar a valoração da prova pelo Tribunal, valoração essa livremente formada e devidamente fundamentada.
Ora, como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 198/2004, de 24/03/2004, in DR, II Série, nº 129/2004, de 02/06/2004, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção.
Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”.
Ora, quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum.
Sucede que, como resulta da fundamentação do acórdão impugnado relativamente à matéria em causa, não é esse claramente o caso.
Pois, como já se referiu anteriormente, ficou patente que o tribunal a quo recorreu às regras de experiência comum e apreciou a prova de forma objectiva e motivada, e os raciocínios a esse propósito expendidos merecem a concordância deste tribunal de recurso.
Com  efeito, foi atendendo à globalidade da prova produzida, às suas contradições e coincidências, que os Mmºs. Juízes reconstruiram os acontecimentos, a que não assistiram, mas sobre os quais tiveram de decidir, fazendo uma conjugação lógica dos elementos probatórios, e que os fizeram chegar à conclusão de que o arguido levou a cabo os factos em causa, por ele ora impugnados, maxime no que tange ao número de vezes em que se relacionou sexualmente com a vítima, nos moldes descritos na factualidade dada como assente.
Não se vislumbra, pois, que tenha sido violada qualquer regra da experiência comum, tendo sido observado o princípio da livre apreciação da prova consagrado no Artº 127º do C.P.Penal, no qual cabe também o recurso à prova indirecta.
Na verdade, convém relembrar que a prova dos factos, ou de todos os factos, não tem que assentar, necessariamente (e muitas vezes assim não acontece, como sucede na situação em apreço), em prova directa e imediatamente percepcionada, podendo assentar na chamada prova indirecta ou por presunção, ou seja, em indícios ou circunstâncias conhecidas e provadas que, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, permita a conclusão segura e sólida de outro facto, como sua consequência necessária [13].
Tratando-se, ainda aqui, obviamente, como se disse, da aplicação do princípio da livre apreciação da prova consagrado no já supra citado Artº 127º do C.P.Penal.

Veja-se, aliás, a este propósito, e visando contrariar a por vezes exagerada exigência probatória dos nossos tribunais, que não raras vezes levou à consideração da “prova directa” como único fundamento válido de decisões condenatórias - exigência essa que aqui, ao fim e ao cabo, é defendida pelo arguido recorrente, como claramente decorre das conclusões do seu recurso -, o que escreve Euclides Dâmaso Simões, num interessante e valioso texto intitulado “Prova Indiciária – Contributos para o seu estudo e desenvolvimento em dez sumários e um apelo premente”, considerações que subscrevemos inteiramente [14]:

“A mais de século e meio de distância são, ainda, de Mittermayer (...) as mais impressivas palavras sobre o tema:
(iii) “… o talento investigador do Magistrado deve saber encontrar uma mina fecunda para o descobrimento da verdade no raciocínio, apoiado na experiência e nos procedimentos que adopta para o exame dos factos e das circunstâncias que se encadeiam e acompanham o crime. Estas circunstâncias são outras tantas testemunhas mudas, que a Providência parece ter colocado à volta do crime para fazer ressaltar a luz da sombra em que o criminoso se esforçou por ocultar o facto principal; são como um farol que ilumina o entendimento do juiz e o dirige até aos vestígios seguros que basta seguir para chegar à verdade”.

Ora, no caso vertente, vistos os factos provados e a respectiva fundamentação, afigura-se-nos que o Tribunal a quo reconstruiu os factos segundo esse ecléctico esquema de investigação complexa, que juntou vários dados objectivos e aspectos indiciários, os quais, segundo as regras da experiência comum, levam à conclusão atingida, que não merece reparo por banda deste tribunal de recurso, como anteriormente se referiu.
Por outro lado, também não se vislumbra em que medida o tribunal a quo violou o princípio da  presunção de inocência / in dubio pro reo.

O princípio in dubio pro reo [15] funda-se constitucionalmente no princípio da presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença (Artº 32º, nº 2, da CRP), impondo ao tribunal que, em situações de dúvida quanto à ocorrência de determinado(s) facto(s) daí deva retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido.
Porém, como se afigura evidente, o princípio in dubio pro reo não se traduz em dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos, como sucede no caso sub-judice com o arguido e recorrente AA. É, antes, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.
O que não significa, obviamente, que tendo havido versões diferentes ou até contraditórias sobre determinados factos, o arguido deva ser absolvido em homenagem a tal princípio.
Na verdade, a violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma manifesta e evidente, que o tribunal, numa situação de dúvida, decidiu contra o arguido.
Ora, no caso sub-judice, não se vislumbra no acórdão recorrido, quer na matéria de facto dada como provada, quer na respectiva fundamentação, que, ao fazer esta opção fáctica, o tribunal a quo tenha tido qualquer hesitação quanto à valoração da prova, tal como não fixou qualquer facto que pudesse colocar em causa a autoria de tais factos.
Ou seja – e repetindo-nos –, o tribunal recorrido não teve qualquer dúvida, tendo retirado directamente as conclusões que tirou da prova produzida em audiência, pelo que não poderia nem deveria fazer uso de tal princípio.
Nenhuma violação ocorre, pois, de tais princípios, maxime da norma constante do Artº 32º da Constituição da República Portuguesa.
Nestas circunstâncias, improcede, também, esta questão recursória.      
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3.5. Da qualificação jurídica dos factos / do “trato sucessivo”

Como claramente resulta das suas conclusões, a pretensão do recorrente, no sentido de ser absolvido dos trinta e seis crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p. e p., pelo Artº 165º, nºs. 1 e 2, do Código Penal, pressupunha, face ao modo como o mesmo estruturou a sua peça recursória, que tivesse tido êxito alguma das questões anteriormente abordadas, designadamente que este tribunal superior tivesse dado provimento ao recurso, dando como não provada a matéria de facto por ele impugnada.
Porém, como se viu, improcedeu totalmente a impugnação da matéria de facto efectuada pelo recorrente, considerando-se definitivamente provados os factos dados como assentes no acórdão sub-judice.
Pelo que, não havendo dúvidas de que se mostram inteiramente preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos dos ilícitos em causa, nos termos correcta e devidamente explicitados no acórdão recorrido, neste âmbito resta-nos averiguar se o arguido, como preconiza, praticou apenas um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, por apelo à figura do “trato sucessivo”.
Questão que, no entanto, está votada ao insucesso, pois que constitui actualmente jurisprudência pacífica a rejeição da aplicação do “trato sucessivo” aos crimes contra liberdade e autodeterminação sexual, em que estão em causa bens eminentemente pessoais.
Com efeito, como lapidarmente se referiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27/11/2019, proferido no âmbito do Proc. nº 1257/18.6SFLSB.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt, “Nos crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual não têm cabimento categorias doutrinárias como o denominado crime prolongado, crime exaurido ou crime de trato sucessivo, figuras nas quais se convenciona (ficciona) que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, cada uma, em si mesma, isoladamente preenche todos os elementos constitutivos da infração.”.

Entendimento este que, mais à frente, é justificado nos seguintes moldes:

“O tratamento penal dos crimes sexuais registou assinalável evolução sociológica e politico-criminal de modo que hodiernamente se enquadram dogmática e sistematicamente no âmbito dos crimes contra a pessoa individual, concretamente contra a sua liberdade e autodeterminação sexual. Consequentemente, a vítima e a sua perspetiva, quando não validamente expressa, assume relevância decisiva. Pode que esta evolução ainda não estivesse perfeitamente traduzida na tutela jurídico-penal. E, por isso, talvez, uma reiteração sucessiva de agressões sexuais não tivesse obtido o mesmo tratamento doutrinário e jurisprudencial que é dispensado à conduta que atenta contra a vida da mesma pessoa (duas ou três tentativas de homicídio não são tratadas como um crime prolongado ou reiterado) ou que ofende a integridade física do mesmo ser humano (bater meia dúzia de vezes na mesma pessoa em datas diferentes não constitui um só crime de trato sucessivo) ou ainda que atenta contra a liberdade pessoal (privar da liberdade todos sábados durante meio ano a mesma pessoa também não constitui um crime continuado nem um crime prolongado ou protraído). Nenhum fundamento jurídico razoável se deteta, no tipo objetivo nem no tipo subjetivo, para que deva dispensar-se tratamento diverso a agressões à liberdade e autodeterminação sexual. À insistência ou persistência da resolução criminosa do agente contrapõe-se e sobrepõe-se a necessidade de, perante cada atentado ao bem jurídico pessoal tutelado, reafirmar a sua validade e importância para garantir o exercício livre e autêntico da identidade e da expressão sexual da vítima. Cada vez que o agente força ou implica uma pessoa sem o consentimento desta ou com o consentimento viciado ou legalmente inadmissível, a ter de suportar atos lascivos, agride o direito pessoal à liberdade e autenticidade da sua expressão sexual. Na perspetiva da vítima, que deve ter-se por decisiva, cada agressão sexual, independentemente de o agente ser o mesmo ou diverso, está dotada de um sentido negativo de valor jurídico-penal. A reiteração sucessiva e mais ou menos prolongada no tempo de agressões sexuais não é nem se pode transformar, para a vítima, num empreendimento ou numa atividade do agressor que tenha de suportar. Identicamente ao que sucede nos demais crimes contra as pessoas e, designadamente nos crimes contra a liberdade, não há nem se pode ficcionar a existência de quaisquer circunstâncias que propiciem a reiteração de agressões sexuais. Na prática sexual forçada ou não livremente consentida com outra pessoa dotada de maioridade sexual, cada vez implica uma abordagem destinada a obter a sua anuência ou a adesão ao ato sexual, na certeza de que o agente não pode estar seguro de qual seja a sua reação da pessoa visada e, consequentemente se consente ou adere. Muito diversamente das coisas móveis ou imóveis em que a situação criada com o primeiro atentado pode permanecer imutável ou mais favorável à repetição, aquele que pretende praticar noutra pessoa atos sexuais de relevo não saberá qual vai ser de cada vez a aceitação, ou não, da outra pessoa. Como identicamente não saberá como vai reagir se quiser voltar a agredi-la, sequestrá-la, ou ameaçá-la. Por isso sempre que queira voltar a ofendê-la tem de renovar, adaptar e atualizar a estratégia. Consequentemente, cada agressão singular, repetida sucessivamente, indiferentemente do tempo que entre elas medeia, preenchendo todos os elementos do mesmo tipo (objetivo e subjetivo), constitui um crime autónomo, estabelecendo entre si uma relação de concurso real ou efetivo crimes e como tal deve ser punida.”.

Nesse sentido pronuncia-se a generalidade da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, como sucedeu com os acórdãos de 23/05/2019, proferido no âmbito do Proc. 134/17.2JAAVR.S1, de 27/11/2019, proferido no âmbito do Proc. nº 784/18.0JAPRT.G1.S1, de 17/06/2020, proferido no âmbito do Proc. nº 91/18.8JALRA.E1.S1, e de 25/06/2020, proferido no âmbito do Proc. 227/16.3T9VFR.P1.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt).

Bem como a generalidade jurisprudência dos demais tribunais superiores, de que são exemplo o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 09/04/2014, proferido no âmbito do Proc. nº 2/11.1GDCNT.C1, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 17/06/2020, proferido no âmbito do Proc. nº 1994/18.5T9PRT-A.P1, o acórdão da Relação de Lisboa, de 08/02/2023, proferido no âmbito do Proc. nº  1504/21.7PLLSB.L1-3, ou o acórdão deste TRG, de 27/09/2021, proferido no âmbito do Proc. nº 869/18.2JABRG.G1 [ relatado pela Exma. Desembargadora Cândida Martinho, e no qual o ora relator interveio como adjunto], em cujo sumário se afirma:

“I) Estando em causa crimes de abuso sexual de crianças a pluralidade de condutas deve ser integrada na figura do concurso efetivo de crimes, afastando-se a possibilidade de subsunção a outras figuras, designadamente do crime de trato sucessivo.
II) Só de acordo com os critérios gerais de distinção entre unidade e pluralidade de crimes é que situações de multiplicidade de atos homogéneos, praticados contra a mesma vítima, numa mesma ocasião e local, poderão enquadrar-se num único crime de abuso sexual de crianças e não por apelo à caraterização daqueles crimes como crime de trato sucessivo, que o respetivo tipo legal não consente.”.
Ora, acolhendo-se, perfilhando-se e reiterando-se tal entendimento, tendo sido identificadas e individualizadas, na situação em apreço, as concretas situações de abuso sexual descritas na factualidade dada como assente, há que concluir que as mesmas configuram uma pluralidade de crimes (trinta e seis) pelos quais o arguido foi condenado, a punir em concurso real e efectivo, e de acordo com a respectiva qualificação jurídica, nos moldes em que o fez o tribunal recorrido.
Uma observação final para dizermos que se deve manter a condenação do recorrente no pagamento da quantia arbitrada a favor da demandante, a título de indemnização cível, já a pretensão do arguido, no sentido da respectiva absolvição, pressupunha a sua absolvição da parte criminal, o que não sucedeu.
Apenas se dizendo que a factualidade constante dos pontos 43 a 45 dos factos dados como provados não foi alvo da impugnação por banda do recorrente, nos termos anteriormente explanados, devendo considerar-se definitivamente assente. E que é inócua a alegação que o arguido faz na conclusão 71º quanto às despesas de deslocação, no valor de € 500,00 pois, se bem analisar o acórdão impugnado, nessa parte o tribunal a quo julgou improcedente o pedido, por ter considerado que as mesmas (despesas), mau grado constituírem danos patrimoniais, “foram suportadas por quem não é ofendida nestes autos.”.

Pelo que, sem necessidade de outras considerações, soçobram também estes segmentos do recurso.
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3.6. Da medida da pena

Não questionando o quantum das penas parcelares que lhe foram aplicadas em relação a cada um dos crimes cometidos, insurge-se, porém, o recorrente relativamente à pena única resultante do respectivo cúmulo jurídico, que reputa de “manifestamente exagerada e desproporcional”, preconizando que a mesma seja fixada em não mais de cinco anos de prisão, suspensa na sua execução, “subordinada a um regime de prova, com imposição de regras de conduta tendentes a salvaguardar relapsos ou recidivas.”.
As regras de punição do concurso de crimes estão consignadas no Artº 77º do Código Penal.
Estatuindo o seu nº 1 que, na opção da medida da pena conjunta devem ser considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, e o seu nº 2 que a pena aplicável tem como limite superior a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicáveis aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão.
Assim, no caso em apreço, e de acordo com as regras supra enunciadas, a moldura da pena única a determinar quanto ao arguido oscila entre um mínimo de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses e 25 (vinte e cinco) anos de prisão.
Segundo a lição do Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, 3ª Reimpressão, Coimbra Editora, 2011, págs. 290/292, para além dos critérios gerais de determinação da medida da pena contidos actualmente no artigo 71º do Código Penal, e dentro dos limites da moldura do concurso, a medida da pena conjunta deve ser encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção.
Sublinhando o mesmo Autor, no § 421:
“Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”.

Este modo de encontrar a pena conjunta de entre várias penas parcelares, é descrito de forma paradigmática no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/10/2007, proferido no âmbito do Proc. nº 07P3223, relatado pelo Exmo. Conselheiro Simas Santos, in www.dgsi.pt, em cujo sumário se escreve:

“1 – Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é aplicada uma pena única conjunta determinada atendendo, em conjunto, aos factos e à personalidade do agente, mas são também atendíveis os elementos a que se refere o art. 71º do C. Penal.
2 – Importa, então, ter em atenção a soma das penas parcelares que integram o concurso, atento o princípio de cumulação, a fonte essencial de inspiração do cúmulo jurídico em que são determinadas as penas concretas aplicáveis a cada um dos crimes singulares, construindo-se depois uma moldura penal do concurso, dentro do qual é encontrada a pena unitária, mas não esquecer, no entanto, que o nosso sistema é um sistema de pena única conjunta em que o limite mínimo da moldura atendível é constituído pela mais grave das penas parcelares, numa concessão minimalista ao princípio da exasperação ou agravação.
3 – Nessa lógica, há que partir da pena parcelar mais grave e, considerando as circunstâncias do caso, a personalidade do agente, as suas condições de vida, caminhar em direcção ao somatório das restantes penas parcelares "comprimidas" em função do limite máximo a ter em conta e da imagem global dos factos unificados pelo concurso.
(...)”.

Ora, na situação em análise, há que atentar desde logo à acentuada ilicitude do conjunto dos factos relativos aos crimes em causa, em elevado número, bem como ao mudus operandi que subjaz à prática de tais ilícitos, tendo o arguido agido – como se diz no acórdão recorrido a propósito da determinação da medida concreta das penas, argumento que transpôs para a determinação da pena única – “de uma forma insidiosa – aproveitando a proximidade física da incapaz, estudando os seus hábitos, “aliciando-a” com uma cerveja”.
Como é sabido, os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual geram grande alarme social, dadas as nefastas consequências para as vítimas e para a sociedade em geral, revelando os factos praticados uma personalidade de certa forma propensa para o crime por banda do arguido AA.
São, pois, elevadas as necessidades de prevenção geral sentidas, atenta a frequência com que ocorrem factos semelhantes aos supra descritos, impondo-se, assim, reforçar a validade das normas violadas aos olhos da comunidade.
Da factualidade provada ressalta que o arguido agiu com dolo directo em cada uma das apontadas condutas, apresentando-se num elevado nível o grau de culpabilidade demonstrado nesses factos, sendo que tinha consciência plena da ilicitude e da forte censurabilidade das suas condutas.
Não obstante isso, a factualidade apurada demonstra existir conexão relevante entre todos os ilícitos, quer em termos temporais, quer em termos motivacionais.
Sobre a personalidade do arguido, importa salientar que estamos claramente perante uma personalidade deformada, a carecer de socialização.
Na verdade, não revelou qualquer postura de colaboração e/ou de arrependimento ao longo do processo, arrependimento esse que bem poderia ter passado quer pela assunção sincera dos factos em audiência de discussão e julgamento, quer pela reparação, moral e/ou material, ainda que parcial, dos danos que provocou à ofendida.
Porém, o recorrente nada disso fez, tendo-se, aliás, remetido ao mais puro silêncio perante o tribunal colectivo, silêncio esse que, mau grado não o poder desfavorecer, também não o pode beneficiar, designadamente nesta sede.
Sendo ademais paradigmática a afirmação constante do seu relatório social segundo a qual o arguido “em abstrato (...) verbaliza reconhecer a ilicitude dos comportamentos tipificados na acusação, em cujo teor não se revê, tendendo, “no entanto, a legitimá-los apresentando crenças de que os ofensores poderão atuar por provocação/sedução das vítimas.”.
Em suma, e dito de outo modo, a postura do arguido perante os factos revela total falta de autocensura, e até escassa vontade de contenção, constituindo factores de risco na reiteração da mesma atividade delituosa.
No entanto, e em benefício do arguido há que relevar as suas condições pessoais, estando socialmente inserido, e o facto de se ter apresentado em Juízo sem antecedentes criminais, circunstâncias estas devidamente ponderadas pelo tribunal a quo.
Em face do exposto, considerando o número e a natureza das infracções, valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto os factos e personalidade do arguido, tendo em conta a gravidade dos factos, a personalidade do arguido projectada nos factos e perspectivada por eles, as exigências de prevenção geral sentidas, as exigências de prevenção especial de forma a dissuadir reincidência, os efeitos previsíveis da pena a aplicar no comportamento futuro do arguido, e, sem prejuízo do limite da culpa que é intensa, tendo em conta os limites das penas aplicáveis  [cuja moldura legal, como se disse, está balizada entre os 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão e os 25 (vinte e cindo) anos de prisão], julgamos inteiramente justa, adequada e proporcional para o arguido a pena única de 7 (sete) anos de prisão aplicada pela 1ª instância.
Consequentemente, não se vislumbrando a existência de qualquer nulidade, nem de qualquer distorção na escolha e na determinação da medida da pena levada a cabo pelo tribunal a quo, nem, concomitantemente, se mostrando violada nenhuma das normas legais ou constitucionais trazidas à liça pelo recorrente, improcede também o recurso neste segmento.
Pelo que, aqui chegados, fica liminar e inexoravelmente prejudicada a apreciação da pretensão do recorrente, no sentido da aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do disposto no Artº 50º do Código Penal, ainda que sujeita “a um regime de prova, com imposição de regras de conduta tendentes a salvaguardar relapsos ou recidivas”, pois que falece desde logo a verificação do pressuposto comtemplado no nº 1, que exige que a pena aplicada não seja superior a cinco anos de prisão.
Improcede, também nesta parte, a argumentação do recorrente.
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III. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando-se, consequentemente, o acórdão recorrido.

Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se em 4 (quatro) UC a taxa de justiça (Artºs. 513º e 514º do C.P.Penal, 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, do Reg. Custas Processuais, e Tabela III anexa ao mesmo).

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos, contendo as assinaturas electrónicas certificadas dos signatários - Artº 94º, nº 2, do C.P.Penal)
 
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Guimarães, 6 de Março de 2023

António Teixeira (Juiz Desembargador Relator)
Florbela Sebastião e Silva (Juíza Desembargadora Adjunta)
Paulo Correia Serafim (Juiz Desembargador Adjunto)



[1] Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.
[2] Conclusões corrigidas/sintetizadas a fls. 396/407, na sequência do despacho proferido pelo relator em 19/10/2022, exarado a fls. 394/395.
[3] Ao qual se reportam todas as disposições legais a seguir citadas, sem menção da respectiva origem.
[4] Cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e sgts., e o Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém actualidade.
[5] Cfr., neste sentido, o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, no seu “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª edição actualizada, Universidade Católica, 2011, pág. 364, em anotação ao Artº 129º
[6] O que, no entanto, não tem a virtualidade de levar à exclusão dos pontos 4 a 11 dos factos dados como provados no acórdão recorrido, como pretende o recorrente, já que, como veremos mais adiante, o conjunto e a concatenação de toda a (demais) prova produzida suporta devidamente a convicção do tribunal colectivo e a conclusão a que chegou acerca de tal factualidade.
[7] Como relembra o Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, primeiro volume, reimpressão, Coimbra Editora, 1984, a págs. 229 e sgts., a oralidade e a imediação são dois princípios gerais do processo penal, sendo considerados como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual português. Acrescentando que o processo é dominado pelo princípio da oralidade quando o juiz profere a decisão com base em uma audiência de discussão oral da matéria a considerar, e consistindo a imediação como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão.
[8] Ibidem, pág. 201 e sgts..
[9] Sobre estas questões, cfr., entre outros, o Acórdão do S.T.J., de 23/05/2007, proferido no âmbito do Proc. nº  07P1498 (relatado pelo Exmo. Sr. Conselheiro Henriques Gaspar), disponível in www.dgsi.pt.
[10] Como impressivamente refere o Exmo. Sr. Conselheiro Pereira Madeira, in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2016, 2ª Edição Revista, págs. 1272/1273 -, porque aqui se trata (na detecção dos vícios do Artº 410º, do C.P.Penal), essencialmente, de uma tarefa de direito, os tribunais superiores procedem oficiosamente a essa indagação de vícios na matéria de facto, provada e não provada, atendo-se imperativamente, apenas e só, ao teor do texto da decisão recorrida e, se necessário, também às regras da experiência comum, nunca a outro tipo de provas.
[11] Neste sentido, também, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, como o atestam, v.g., o acórdão de 25/03/2010, proferido no âmbito do Proc. nº 427/08.OTBSTB.E1.S1, disponível in www.dgsi.pt, quando, a propósito da possibilidade de sindicância da matéria de facto pelos tribunais da Relação, afirma: “- há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento integral, mas antes um reexame necessariamente segmentado, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo;
- e a reapreciação só pode determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitam uma outra decisão.” (sublinhado nosso).
[12] Com efeito, cumpre esclarecer que, sem darmos por “perdido” o tempo despendido, ouvimos a gravação integral da audiência de discussão e julgamento. O que, como facilmente se concederá - e mau gado não beneficiarmos da imediação com que puderam contar os Mmºs. Juízes que compuseram o tribunal colectivo -, nos permitiu ter uma visão mais ampla e mais fiel do que nela ocorreu, designadamente ao nível da produção da prova, melhor nos habilitando a suportar a conclusão que acabamos de expender.
[13] Como lapidarmente se sublinha no Acórdão do S.T.J., de 15/10/2013, in CJ AcSTJ XXI-III-100, “Presunções, nos termos do Artº 349º do Código Civil são ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido. Trata-se de um método de valoração da prova a que se deita mão em condições particularmente árduas na formação da convicção do julgador quando não há acesso à prova directa dos factos, restando o recurso a indícios claros e seguros e a regras da experiência e normalidade, livremente apreciados”.
[14] In Revista “Julgar” nº 2, 2007, pág. 205.
[15] Como refere Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português”, Universidade Católica Editora, Volume I, 2ª Edição, 2017, págs. 96/97, “A presunção de inocência é identificada por muitos autores com o princípio in dubio pro reo, no sentido de que um non liquiet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. Este princípio denomina-se também «benefício de dúvida» e significa que o arguido tem o direito de ser absolvido, a ser declarado inocente (direito à inocência), se não for feita prova plena da sua culpabilidade (...). A dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a admissão da responsabilidade sem prova, fruto do azar do arguido que por qualquer razão se viu suspeito da prática de um crime, sem que o tribunal tenha logrado provar a sua culpabilidade (...). Em  rigor, o princípio in dubio pro reo é simplesmente um princípio lógico de prova. Se o tribunal não lograr a prova dos factos que constituem o objecto do processo deve considerar a acusação não provada e como consequência lógica não aplicar qualquer sanção ao arguido porque falta o necessário pressuposto, ou seja, que a acusação é fundada (...).