ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
REMUNERAÇÃO
RETRIBUIÇÃO VARIÁVEL
NOVA LEI
Sumário

I - A Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, aplica-se aos processos pendentes, mas não tem efeitos retroativos, nomeadamente no que respeita ao cálculo da retribuição variável devida ao Administrador da Insolvência.
II – Determinado o cálculo dessa retribuição no domínio da lei anterior, a simples entrada em vigor da nova lei não permite que a mesma retribuição seja agora recalculada.

Texto Integral

Processo n.º 10110/17.0T8VNG-E.P1

Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Carlos Gil e Mendes Coelho.

Recorrente - AA



Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório
Por decisão proferida nos autos a 23.03.2021 no apenso de prestação de contas foi decidido, além do mais, o que ora se transcreve e sublinha: “(...) É de considerar assente a seguinte factualidade: 1 - O Dr. AA foi nomeado Administrador da Insolvência por decisão datada de 19 de dezembro de 2017. 2 - A conta corrente apresentada pelo Senhor Administrador da Insolvência menciona as despesas e as receitas, com indicação discriminada da respetiva proveniência.* O Administrador da Insolvência encontra-se obrigado, uma vez finda a respetiva atividade que contempla funções de administração de bens e interesses alheios, a prestar contas da mesma (artigos 62.º e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas). A prestação de contas consubstancia-se no registo, em forma de conta-corrente, das despesas e receitas, realizado pelo Senhor Administrador da Insolvência de forma a retratar sucintamente a situação da massa insolvente (artigo 62.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas). As verbas de despesa e de receita constantes da conta-corrente elaborada pelo Senhor Administrador da Insolvência permitem verificar o estado da massa insolvente. Assim, as contas devem julgar-se validamente prestadas. * Pelo exposto, julgo as contas da administração da massa insolvente de BB apresentadas pelo Senhor Administrador da Insolvência validamente prestadas. Custas a cargo da massa insolvente.
Fixo a remuneração variável do Senhor Administrador da Insolvência em harmonia com o artigo 2.º da Portaria n.º 51/2005, de 20 de janeiro (cf. ainda artigo 23.º, n.º 2, da Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro), quantia a suportar pela massa insolvente”.

A 23.05.2022, o Sr. Administrador da Insolvência (AI) veio juntar aos autos o “cálculo da remuneração variável”, o que justificou o despacho de 20.06.2022 (objeto do presente recurso): “Uma vez que por sentença proferida no respetivo apenso de prestação de contas, a 23.03.2021, devidamente transitada em julgado, foi fixada a remuneração variável do Senhor Administrador da Insolvência em harmonia com o artigo 2.º da Portaria n.º 51/2005, de 20 de janeiro (cf. ainda artigo 23.º, n.º 2, da Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro), deverá a Sra. Contadora efetuar o cálculo da remuneração variável devida nos termos aí determinados”.

A 4.10.2022 foi proferido novo despacho no qual, além do mais, é dito: “Notifique-se o Senhor Administrador da Insolvência do cálculo da remuneração variável efetuado pelo Sr. Contador e, bem assim, do despacho que o precede. Notifique-se o Senhor Administrador da Insolvência para que retire da conta da massa o valor da sua remuneração variável, juntando aos autos o respetivo recibo, em 10 dias”.

II – Do Recurso
A 20.10.2022, o Sr. AI veio interpor o presente recurso, pedindo a revogação da decisão de 20.06.2022 (notificado na sequência do despacho proferido a 4.10.2022) e que se determine, em consequência, “que o cálculo da remuneração variável devida ao administrador da insolvência seja efetuado considerando a redação da Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro, resultante da Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro” e concluindo:
I - O recurso incide sobre matéria de direito e visa impugnar a decisão proferida a 20 de junho de 2022 e que aqui se transcreve por facilidade de exposição: “Uma vez que por sentença proferida no respetivo apenso de prestação de contas, a 23.03.2021, devidamente transitada em julgado, foi fixada a remuneração variável do Senhor Administrador da Insolvência em harmonia com o artigo 2.º da Portaria n.º 51/2005, de 20 de janeiro (cf. ainda artigo 23.º, n.º 2, da Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro), deverá a Sra. Contadora efetuar o cálculo da remuneração variável devida nos termos aí determinados.”
II - O despacho assenta na circunstância de já ter sido tomada posição nesse sentido em momento processual anterior, concretamente na sentença proferida no apenso de prestação de contas, a 23 de março de 2021, e na qual se consignou o seguinte: “Fixo a remuneração variável do Senhor Administrador da Insolvência em harmonia com o artigo 2.º da Portaria n.º 51/2005, de 20 de janeiro (cf. ainda artigo 23.º, n.º 2, da Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro), quantia a suportar pela massa insolvente.” Contudo,
III - No período que mediou entre a sentença proferida no apenso de prestação de contas (23 de março de 2021) e o despacho impugnado (20 de junho de 2022), entrou em vigor a Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro (11 de abril de 2022), sendo certo que esta lei e as alterações que introduz no art. 23.º da Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro, são imediatamente aplicáveis aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor e repercutem-se sobre o cálculo da remuneração variável (sem considerar as alterações introduzidas pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, o administrador da insolvência tem direito à remuneração variável de €13 136,74; considerando essas alterações, a remuneração variável ascende a €20 891,24).
IV - No entender do recorrente, o despacho recorrido incorreu em violação do disposto no artigo 10.º, n.º 1 da Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro.
V - O artigo 10.º, n.º 1 da Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, refere-se a processos pendentes e não a incidentes processuais pendentes.
VI - Ou seja, independentemente de estarem findos parte dos incidentes apensados ao processo de insolvência, pode o processo manter-se pendente para efeitos de aplicação da nova lei.
VII - Os serviços prestados pelo administrador da insolvência não se cingem à liquidação do ativo ou à prestação de contas, abrangendo muitas outras tarefas e competências no contexto do processo de insolvência, designadamente pagamentos ou instrução genérica do processo de insolvência.
VIII - O que significa que não é possível estabelecer uma correspondência direta e exclusiva entre a remuneração e os concretos serviços prestados com a tramitação de certos incidentes, sendo a remuneração o correspetivo de todos serviços prestados e não apenas de algum ou alguns serviços prestados.
IX - Contra o entendimento aqui veiculado, não releva a circunstância de, anteriormente ao despacho recorrido, ter-se feito constar na sentença de prestação de contas a referência genérica à legislação aplicável ao cálculo da remuneração variável.
X - Com efeito, em março de 2021, data em que aquela sentença foi proferida, não vigorava ainda a Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro.
XI - Nessa medida, esse despacho não tomou posição sobre a aplicabilidade da antiga ou da nova redação da lei, não podendo vincular o Tribunal ou os restantes intervenientes a qualquer opção respeitante a essa matéria.
XII - Isto é, o tribunal não pode afastar a aplicação da nova lei (que é expressamente aplicável a processos pendentes) porque em data anterior à sua entrada em vigor proferiu despacho tabelar em que remeteu o cálculo da remuneração para a única legislação que vigorava na data em que esse despacho foi proferido.
XIII - Finalmente, o lapso temporal decorrido entre a sentença que julgou a prestação de contas e a prolação do douto despacho recorrido não é minimamente imputável ao administrador da insolvência.
XIV - Na verdade, o processo esteve pendente a aguardar que fosse efetuado o cálculo da conta de custas pela secretaria, o que apenas veio a ocorrer em maio de 2022, sendo a conta de custas, enquanto dívida da massa insolvente, um elemento indispensável ao cálculo da remuneração variável.
XV - Tendo a conta de custas sido notificada ao administrador da insolvência em maio de 2022, no mesmo mês foi apresentada por este o requerimento com o cálculo da remuneração.

O Ministério Público respondeu ao recurso, defendendo a decisão recorrida e referindo, em acréscimo que “já proferido Acórdão da Relação do Porto, em 8.11.22, no âmbito dos autos 620/09.8TYVNG, cuja junção inclusivamente se requer, de acordo com o qual:
1 - Fixada judicialmente, por despacho que não foi oportunamente impugnado, a remuneração variável do Administrador de Insolvência, à luz dos parâmetros definidos pela portaria n.º 51/2005, de 20 de janeiro, não pode essa remuneração ser ulteriormente atribuída com base noutros critérios e, designadamente, os previstos no artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial, na redação que lhe foi dada pela lei no 9/2022, de 11 de janeiro; 2 - E, a tal não obsta o facto da referida fixação ter sido, neste caso concreto, em termos genéricos, sem quantificação do valor concretamente atribuído, posto que se mostra reconhecido o referido direito remuneratório e, por remissão, os elementos que o delimitam”.

O recurso foi recebido nos termos legais [Por a decisão ser recorrível, o recorrente ter legitimidade e estar em tempo, admite-se o recurso interposto, que é de apelação, sobe imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo - artigo 14.º, n.º 5 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas] e, atenta a natureza dos autos, foram dispensados os Vistos, nada se observando que obste ao conhecimento do mérito do recurso, cujo objeto, tendo em conta as conclusões do apelante, consiste em saber se a remuneração variável fixada ao recorrente devia ter sido recalculada em razão de ter entrado em vigor a Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro.

III – Fundamentação
III.I – Fundamentação de facto
O relatório que antecede mostra-se factualmente bastante para o conhecimento do mérito da apelação, revelando, além do mais as datas em que foi proferida a sentença de aprovação das contas e a do despacho recorrido e sua posterior notificação.

III.II – Fundamentação de Direito
Nas suas alegações, o apelante dá nota, em abono do seu entendimento e da pretensão recursória, do acórdão proferido neste Tribunal da Relação e Secção, a 26.09.2022 [Relator, Desembargador Manuel Domingos Fernandes, Processo n.º 1211/17.5T8AMT. P1, dgsi] com o seguinte sumário: “I - Os serviços prestados pelo administrador da insolvência não se cingem à liquidação do ativo, abrangendo muitas outras tarefas e competências no contexto do processo de insolvência. II - Se o processo se mantém pendente o administrador da insolvência mantém-se em funções. III - Por esse razão e pese embora o apenso de liquidação tenha sido encerrado em 04/01/2022, o cálculo da remuneração variável devida ao administrador da insolvência deve ser feito de acordo com as alterações introduzidas no Estatuto do Administrador Judicial, pela Lei 9/2022, de 11 de Janeiro por força da norma transitória constado do artigo 10.º desse mesmo diploma. IV - O artigo 10.º da referida Lei não viola os princípios constitucionais da não retroatividade, confiança e segurança jurídica, da igualdade e da proporcionalidade (cfr. artigos 13.º e 18.º da CRP)”. Por seu turno, na sua resposta ao recurso, o Ministério Público invoca e junta cópia de acórdão deste mesmo Tribunal da Relação do Porto [proferido a 8.11.2022 no Processo n.º 620/09.8TYVNG-N.P1 e relatado pelo Desembargador João Diogo Rodrigues] com sentido diverso e do qual se retira o seguinte sumário: “1 - Fixada judicialmente, por despacho que não foi oportunamente impugnado, a remuneração variável do Administrador de Insolvência, à luz dos parâmetros definidos pela Portaria n.º 51/2005, de 20 de janeiro, não pode essa remuneração ser ulteriormente atribuída com base noutros critérios e, designadamente, os previstos no artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro. 2 - E, a tal não obsta o facto da referida fixação ter sido, neste caso concreto, em termos genéricos, sem quantificação do valor concretamente atribuído, posto que se mostra reconhecido o referido direito remuneratório e, por remissão, os elementos que o delimitam”.

Importa dizer que este mesmo coletivo já apreciou objeto recursório idêntico ao suscitado na presente apelação. Efetivamente, a 10.10.2022, proferiu-se acórdão no Processo n.º 4335/16.2T8OAZ-O.P1, com o seguinte sumário (da responsabilidade do relator): “1 - A Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, aplica-se aos processos pendentes, mas não tem efeitos retroativos, nomeadamente no que respeita ao cálculo da retribuição variável devida ao Administrador da Insolvência. 2 - Calculada essa retribuição no domínio da lei anterior, a simples entrada em vigor da nova lei não permite que a mesma retribuição seja agora recalculada”.

No acórdão acabado de referir esclarece-se que a Lei n.º 9/2022 entrou em vigor a 11 de abril de 2022, ou seja – e revertendo ao caso presente – posteriormente à decisão que determinou o cálculo da remuneração variável do AI. E deixou-se dito, em sede de aplicação do Direito, o que agora se renova, por se entender pertinente à apreciação deste recurso e por se considerar que aquele entendimento é de manter: “À questão suscitada nos autos é aplicável o disposto no n.º 1 do artigo 10.º da citada Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro. Efetivamente a nova lei aplica-se imediatamente, ou seja, uma vez entrada em vigor, é de aplicar ao cálculo da retribuição do Administrador da Insolvência. Só que, ser (imediatamente) aplicável ao processo não significa ser (imediatamente) aplicável aos atos processuais, naturalmente àqueles que já foram praticados. No encadeado que constitui cada processo, a lei nova, salvo indicação contrária, não se aplica aos atos praticados, mas apenas aos atos futuros, aqueles que ainda não tiveram lugar. Assim, e no cotejo entre o n.º 1 e o n.º 2 do artigo 10.º da Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, no primeiro caso, a nova lei aplica-se, nos processos pendentes, instaurados na vigência da anterior lei, aos atos ainda não praticados e, no segundo caso, a lei antiga continua a aplicar-se aos atos ainda não praticados, nos processos instaurados na vigência da lei anterior. Entendemos, com efeito, que a distinção entre ato processual e processo é fundamental para a compreensão da sucessão de leis, e tal se torna patente no caso presente. Entendimento diverso, salvo melhor saber, levaria a que todos os atos praticados anteriormente, nomeadamente pelos intervenientes processuais (pense-se na reclamação de créditos, por exemplo) fossem suscetíveis de reformulação ou de reapreciação”.

Como decorre, há que distinguir entre ato/decisão processual (praticado/decidida ou ainda não praticado/decidida e processo (pendente ou não), não se aplicando uma (nova) lei ainda não entrada em vigor (e, no caso presente, sequer publicada, aquando da fixação da remuneração variável, em março de 2021) a uma decisão tomada em determinado momento processual em que vigorava, em que era aplicável, legislação com outro conteúdo ou sentido.

E se bem vemos, o recorrente não põe em causa a oportunidade (o momento processual adequado) da fixação do critério remuneratório, dizendo nas suas conclusões (X e XI) “- Com efeito, em março de 2021, data em que aquela sentença foi proferida, não vigorava ainda a Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro. Nessa medida, esse despacho não tomou posição sobre a aplicabilidade da antiga ou da nova redação da lei, não podendo vincular o Tribunal ou os restantes intervenientes a qualquer opção respeitante a essa matéria”.

Ora, a decisão em causa não podia, obviamente, tomar posição sobre a aplicabilidade de uma versão da Lei ainda inexistente; posteriormente, manteve-se a decisão anterior e, como se disse, não havia que recalcular a retribuição variável do apelante com base na Nova Lei, independentemente do processo, considerado no seu todo, continuar pendente, uma vez que a aludida remuneração variável havia sido já fixada.

Pelas razões ditas, o presente recurso revela-se improcedente e o recorrente, atento o seu decaimento, é responsável pelo pagamento das custas.

IV - Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o presente recurso e, em conformidade, confirma-se a decisão proferida em primeira instância.

Custas pelo apelante.

*

Porto, 23.01.2023
José Eusébio Almeida
Carlos Gil
Mendes Coelho