LOCAÇÃO DE ESTABELECIMENTO
PRESUNÇÃO DE CULPA DO ARRENDATÁRIO
TUTELA DA CONFIANÇA
PRINCÍPIO DA INDEFESA
Sumário

I - A denominada cessão de exploração ou concessão de exploração de estabelecimento comercial, hoje denominado de locação de estabelecimento (art° 1109.° do C. Civil) não é senão um contrato de locação do estabelecimento como unidade jurídica, isto é, um negócio jurídico pelo qual o titular do estabelecimento proporciona a outrem, temporariamente e mediante retribuição, o gozo e fruição do estabelecimento, ou seja, a sua exploração mercantil.
II - O art. 1109.º, n.º 1 do CCivil, regula as duas realidades tomadas como inseparáveis pela norma: a realidade empresarial- o negócio de locação do estabelecimento - e a realidade imobiliária - disponibilidade ad tempus do gozo do prédio fundada na locação do estabelecimento, seja ele próprio ou arrendado, sendo que, a ambas se aplica a disciplina do arrendamento não habitacional, desde que compatível com o regime e os interesses em jogo na locação empresarial, em conformidade com o objecto de incidência de cada uma das normas dessa disciplina.
III - A jurisprudência maioritária do STJ inclina-se uniformemente no sentido do artigo 1044.º do CCivil consagrar uma presunção de culpa do arrendatário pela deterioração da coisa locada, o qual tem de provar que a causa não lhe é imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a sua utilização.
IV - Provando o locatário do estabelecimento comercial que foram as condições climatéricas adversas (tempestade Gisele) que provocaram a queda parcial de um tecto falso no posto de abastecimento de combustível, fica eximido de indemnizar o locador arrendatário do imóvel pelos danos aí sofridos em consequência desse fenómeno atmosférico.
V - O princípio da tutela da confiança é um dos valores fundamentais que subjazem à boa fé, sendo que é justamente, a tutela da confiança e da boa fé que está na base da proibição do venire contra factum proprium, uma das situações de abuso do direito que mais frequentemente é invocada, categoria onde se incluem os comportamentos contraditórios, o dar dito por não dito, o agir contra o seu próprio acto.
VI - Não actua nessa modalidade a Ré que tendo celebrado um contrato de seguros multi-riscos, tendo como objecto o estabelecimento comercial invoca depois, em sede de contestação, a excepção peremptória inominada invocando causa que lhe não é imputável para a exclusão do sinistro.
VII- Julgar verificado o citado comportamento contraditório seria violar o princípio da indefesa enquanto direito constitucionalmente consagrado (cfr. artigo 20.º da CRP), no sentido de que todo aquele que seja interpelado para aquiescer à pretensão de outrem seja dada a possibilidade de discutir a validade dessa pretensão perante um juiz.

Texto Integral

Processo nº 14373/20.5T8PRT.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Central Cível do Porto-J7
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO

A..., S.A., com sede na Travessa ..., Vila Nova de Gaia, instaurou a presente acção de processo comum contra B..., Lda., com sede na Rua ..., ..., 3.º andar, sala ..., Viana do Castelo, pedindo que a mesma seja condenada a pagar-lhe a quantia de 50.748,47 €, acrescida de juros de mora à taxa legal vencidos no valor de 5.100,91 € e vincendos até integral pagamento.
Para o efeito, alegou, em suma, que celebrou com a R. um contrato de cessão de exploração de posto de abastecimento de combustíveis, instalado em dois imóveis que havia arrendado cujas instalações em consequência de uma intempérie e a prévia deficiente intervenção por parte da R., ficaram danificadas, importando num custo de reparação suportado por si que a R. não pagou, o mesmo sucedendo com facturas no valor total de 5.355,32 € pela execução do contrato de exploração.
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Citada, a Ré começou por defender que com a cessão da exploração do estabelecimento comercial não foi transferida para si a posição de arrendatária e que de entre os bens fornecidos pela C... para o funcionamento do posto de abastecimento, em relação aos quais havia o dever de vigilância e manutenção por parte de quem o explorava não se contam a cobertura danificada pela intempérie, cujos custos de reparação não podem ser considerados custos de manutenção do posto devidos ao regular funcionamento.
Alegou ainda que as obras realizadas, substituição de todo o tecto falso, não eram necessárias e foram realizadas no exclusivo interesse da Autora e do senhorio, seu administrador único, na medida em que, estando o contrato de cessão de exploração em curso a terminar, as obras realizadas serviram o propósito de renovação do estabelecimento necessário à exploração por uma outra entidade já contratada para o efeito e sob uma outra marca de combustíveis.
Por fim, requereu a intervenção principal da D..., S.A. como sua associada, que, admitida como tal, contestou dizendo, em suma, que já atribuiu à Ré um valor indemnizatório pelos danos no imóvel decorrentes da tempestade em causa.
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A Autora respondeu contrariando a versão dos factos apresentada pela Ré e pela interveniente acessória.
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Entretanto foi admitida a redução do pedido no montante de 3.843,75 € e foi julgado procedente o pedido relativo às facturas no valor de 5.355,32 €.
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Identificado o objecto do processo e enunciados os temas de prova, não houve qualquer reclamação.
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A final, foi proferida decisão que julgou a acção totalmente improcedente, na parte não conhecida no despacho saneador.
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Não se conformando com o assim decidido veio a Autora interpor o presente recurso rematando com extensas conclusões que aqui damos por reproduzidas para todos os legais efeitos.
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Devidamente notificada contra-alegou a Ré concluindo pelo não provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são duas as questões que importa apreciar:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b)- saber se, seja em resultado de uma alteração factual que se imponha, seja em face dos factos considerados provados, deverá ser outra a solução jurídica do litígio.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1. A Autora celebrou, a 01 de Março de 2013, um contrato que designou como “Contrato Promessa de Arrendamento”, com AA.
2. Na sua execução, o senhorio deu de arrendamento à aqui Autora o imóvel com frente para a Estrada ..., sito nos limites do lugar ..., freguesia ..., concelho do Porto, a confrontar do norte com Estrada ..., do sul e nascente com caminho de servidão e do poente com BB, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número ..., do livro ... e inscrito na respetiva matriz da freguesia ... sob o artigo ... no concelho do Porto.
3. Assim como o imóvel com frente para a Estrada ..., sito nos limites do lugar ..., freguesia ..., concelho do Porto, a confrontar do norte com Estrada ..., do sul com herdeiros de CC, do nascente com BB e do poente com ribeiro, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número ... do livro ... e inscrito na respetiva matriz da freguesia ... sob o artigo ... na cidade do Porto.
4. O referido arrendamento iniciou-se a 07 de Maio de 2013, terminando a 07 de Maio de 2018 e tinha “um fim exclusivo de exploração e funcionamento de um posto de abastecimento de combustíveis e utilização das instalações destinadas à exploração e manutenção do mesmo”.
5. Para a concretização desse referido fim, a Autora celebrou com a sociedade C..., S.A.–doravante, C...–a 1 de Abril de 2013, um CONTRATO PARA VENDA DE COMBUSTÍVEIS E OUTROS PRODUTOS PETROLÍFEROS.
6. Foi também celebrado, como complemento ao supra referido contrato, um CONTRATO SOLRED QUOTA-SÓCIO, um CONTRATO SERVIÇO SOLRED e
7. um ACORDO DE COMPARTICIPAÇÕES E PAGAMENTOS CONTRATUAIS.
8. Os referidos contratos tinham como objeto a guarda e subsequente venda de combustíveis petrolíferos da C..., pela Autora, no seu estabelecimento comercial, mediante o pagamento de determinadas comissões.
9. Os referidos contratos teriam o início da sua execução na data de 07 de Maio de 2013.
10. A Autora decidiu não efetuar a exploração do referido posto, optando por entregar à Ré, com autorização da C..., a exploração da referida atividade, nas mesmas condições a que se tinha obrigado.
11. Foi celebrado, a 12 de Abril de 2013, um contrato de cessão de exploração com a duração de 5 anos, que visava a cedência da exploração do posto de abastecimento de combustível da Autora à Ré.
12. Com data de 02 de Maio de 2013 foi ainda celebrado entre a Autora, a Ré, o supra id. AA-administrador único da A. e proprietário dos imóveis supra ids.-e a C... um ACORDO DE CESSÃO DE POSIÇÕES CONTRATUAIS, através do qual a primeira cedeu à segunda as posições que ocupava nos contratos supra ids. em 5) e 6).
13. Autora e AA comprometeram-se a não praticar qualquer ato que pudesse pôr em causa a efetiva exploração do posto de abastecimento pela Ré (Cláusula 3ª, nº 3).
14. O pagamento da renda ao senhorio manteve-se como responsabilidade da A.
15. No dia 14 de Março de 2018, na sequência das más condições climatéricas ocorridas nesse dia–a passagem de um pequeno tornado na zona denominado como tempestade “Gisele”–o imóvel, objeto do arrendamento, sofreu vários danos.
16. Foi destruída uma parte do teto falso da cobertura do posto de abastecimento do lado nascente.
17. No fim de semana anterior, na noite de 10 para 11 de Março, as mesmas condições climatéricas haviam provocado a queda de duas chapas do lado Poente do tecto falso, sobre as bombas GPL, o que foi comunicado à R. e exigiu a intervenção imediata da C...–que para o efeito deu conhecimento ao proprietário do posto- que verificou e garantiu a segurança da instalação de gás e das placas adjacentes àquelas que caíram.
18. As chapas que caíram na noite de 10 para 11 de Março não foram recolocadas porque as condições atmosféricas que se verificavam não o permitiram.
19. No dia 14 de Março, por razões de segurança, dado o risco de colapso do teto falso do posto de abastecimento, com a anuência da C..., o posto foi encerrado.
20. Tendo a C..., por via informática e central, encerrado/bloqueado as bombas de abastecimentos que estavam no posto.
21. Tendo o mesmo permanecido encerrado até que estivessem asseguradas todas condições de segurança dos clientes e funcionários do posto.
22. Num primeiro momento, foi solicitada a intervenção imediata da empresa E..., LDA., que providenciou a remoção dos escombros, remoção de parte da cobertura que se encontrava em risco de queda, bem como a retirada de outros objetos trazidos pela tempestade, conforme fatura no montante de 590,04€ (quinhentos e noventa euros e quatro cêntimos).
23. Os referidos trabalhos possibilitaram o início da avaliação dos danos provocados, bem como possibilitou o início dos trabalhos de recuperação que começou pela retirada da totalidade do teto falso.
24. As partes–Autora e C...–encetaram diálogos no sentido de iniciar os trabalhos de reparação dos danos, por forma a retomar a atividade do posto.
25. A inatividade do posto impedia que todas as supra mencionadas partes pudessem auferir um valor diário avultado.
26. Daí ser do interesse de todos os intervenientes a maior celeridade possível na resolução dos danos provocados pela tempestade.
27. Foi necessária a intervenção de uma empresa externa, denominada como F..., LDA. contratada pela Autora para a desmontagem e retirada do teto falso e demais trabalhos necessários à reabertura do posto, cujo custo foi de 3.075,00€ (três mil e setenta e cinco euros).[1]
28. A remoção da totalidade do tecto falso destinou-se a permitir a rápida reabertura do posto em condições de segurança.
29. No dia 24 de Março de 2018, o posto de abastecimento logrou reabrir mediante um relatório técnico da empresa supra mencionada, em que garantia a segurança do posto, no estado em que se encontrava.
30. A empresa supra mencionada na data de 10 de Abril de 2018, apresentou à Autora orçamento que foi também emitido em nome da Ré, e comunicado à mesma.
31. A Ré não assumiu o pagamento dos referidos trabalhos no posto.
32. De acordo com os números 6, 7 e 8 da Cláusula 6ª do contrato para venda de combustíveis e outros produtos pretrolíferos celebrado com a C..., competia à Ré a manutenção dos materiais e equipamentos em cada momento entregues “em bom estado de funcionamento e sem outras deteriorações que não sejam as derivadas do seu uso normal e prudente”.
33. Nos termos da cláusula 8º nº 2 do mesmo contrato “Serão da responsabilidade da A... todos os encargos relacionados com a manutenção, conservação e reparação das infraestruturas integrantes do Posto de Abastecimento (…)”.
34. A Autora, com a anuência do Senhorio, solicitou à empresa F..., LDA. que iniciasse os trabalhos de reparação do posto de combustíveis que consistiram no fornecimento e colocação da totalidade do tecto falso o que lhe conferiu maiores garantias de segurança do que aquelas que se verificavam antes da intempérie de Março de 2018.
35. Os contratos supra mencionados terminaram em Maio de 2018, tendo a Ré devolvido o imóvel à aqui Autora, que consequentemente o devolveu ao senhorio num estado inacabado.
36. Os trabalhos de reparação do posto terminaram em meados de Julho de 2018, continuando a A., após a entrega do imóvel pela R., a suportar os custos dos referidos trabalhos.
37. Após a conclusão dos trabalhos, foi emitida fatura em nome da Ré pelos trabalhos de reparação no posto.
38. Acontece que a Ré nunca efetuou o pagamento da referida fatura.
39. Mediante o não pagamento, a empresa credora emitiu nova fatura, agora em nome da sociedade “G..., S.A.”, doravante “G..., S.A.”.
40. Isto porque a Autora solicitou a intervenção da sociedade “H..., Lda.”, no intuito da mesma suportar as despesas tidas pela Autora na reparação do posto.
41. Nesse sentido, Autora e “H..., Lda.” celebraram um acordo, cuja cláusula primeira estabeleceu que a “H..., Lda.” comprometeu-se, por si ou através de terceiro, a proceder ao pagamento das despesas decorrentes dos danos ocorridos devido à intempérie no dia 14 de Março de 2018.
42. No âmbito do referido acordo, a “H..., Lda.” providenciou para que a “G..., S.A.”, como atual exploradora do posto de abastecimento, procedesse ao pagamento dos danos, conforme nota de pagamento nº ….
43. Tal pagamento foi posteriormente totalmente ressarcido pela Autora, em diferentes fases, e através de pagamentos de várias sociedades distintas.
44. A Sociedade “G..., S.A.” pertence ao “Grupo I...”, grupo societário ao qual pertence também a sociedade “J..., S.A.”.
45. No cumprimento do referido acordo, a “H..., Lda.” pagou o montante de 40.959,00€ (quarenta mil, novecentos e cinquenta e nove euros), relativo à fatura n.º ..., à sociedade “J..., S.A.”
46. A Autora cumpriu com a obrigação contraída no âmbito do referido acordo.
47. A 15/05/2018, a Ré foi interpelada para o pagamento das despesas de reparação supra referidas.
48. Em 16/02/2017 a R. transmitiu a AA a existência de um buraco na zona de abastecimento.
49. A R. não deu origem ao buraco decorrente da queda de placas do tecto falso ocorrida na noite de 10 para 11 de Março de 2018.
50. Quando foram celebrados os contratos dos autos, o posto de abastecimento já existia e dispunha da cobertura e do tecto falso em que se registaram os danos.
51. Não era necessário proceder à substituição da integralidade do teto falso da cobertura do posto de modo a restituí-la ao estado de conservação em que se encontrava antes da intempérie de Março de 2018.
52. Este propósito era alcançável com a substituição das chapas afetadas, o que importaria o dispêndio de uma verba de 5.511,00 €.
53. Foi a A. quem se opôs à renovação do contrato de cessão de exploração por missiva de 6/03/2018.
54. A apólice de seguro n.º ... titula um contrato de seguro Multirisco Estabelecimento–Opção Valor celebrado entre a Companhia de Seguros interveniente e a R., a pedido desta, que se mantinha válido e em vigor na anuidade decorrida entre 24/05/2017 e 23/05/2018.
55. À data do sinistro dos autos, o indicado contrato de seguro tinha como objecto seguro o imóvel e o recheio do local de risco descritos nas condições particulares da apólice, a Estrada ..., ..., ..., Porto.
56. O contrato de seguro supra descrito tem por objecto, entre outros, a cobertura dos danos causados aos bens seguros, identificados nas Condições Particulares, pela ocorrência de “Tempestades”.
57. Nos termos da Cobertura de “Tempestades”, estão garantidos os danos causados aos bens seguros nos seguintes termos:
“Cláusula 1.ª –Âmbito da Cobertura
1. A presente Condição Especial garante os danos sofridos pelos bens seguros em consequência directa de Tempestades.
2. A garantia abrange os danos resultantes de:
a) Tufões, ciclones, tornados e toda a acção directa de ventos fortes ou choque de objectos arremessados ou projectados pelos mesmos (sempre que a sua violência destrua ou danifique vários edifícios de boa construção, objectos ou árvores num raio de 5 km envolventes dos bens seguros);
b) Alagamento pela queda de chuva, neve ou granizo, desde que estes agentes atmosféricos penetrem no interior do edifício em consequência de danos causados pelos riscos mencionados em a), e na condição de que estes danos se verifiquem nas 48 horas seguintes ao momento da destruição parcial do edifício.
3. São considerados como um único e mesmo sinistro os estragos ocorridos nas 48 horas que se seguem ao momento em que os bens seguros sofram os primeiros danos.
Cláusula 2.ª –Exclusões
Sem prejuízo das exclusões previstas nas Condições Gerais aplicáveis à presente cobertura, não ficam garantidas as perdas ou danos:
a) Causados pela acção do mar e outras superfícies marítimas, mesmo que estes acontecimentos resultem de temporal;
b) Em bens móveis existentes ao ar livre;
c) Em dispositivos de protecção (tais como persianas e marquises), muros, vedações, portões, toldos, estores exteriores, os quais ficam, todavia, cobertos se forem acompanhados da destruição total ou parcial do edifício onde se encontram os bens seguros;
d) Provocados por entrada de água das chuvas através de telhados, portas, janelas, clarabóias, terraços e marquises, e ainda o refluxo de águas provenientes de canalizações ou esgotos não pertencentes ao edifício;
e) Que resultem em infiltrações através de paredes, tectos, humidade ou condensação, excepto quando se trate de danos resultantes desta cobertura.”
58. A respeito da formação do capital estabelecido na apólice para a cobertura de “Tempestades” contratada pela ré, bem como para as demais, o contrato refere o seguinte:
Cláusula 18.ª –Capital Seguro
1. A determinação do capital seguro, no início e na vigência do contrato, é sempre da responsabilidade do Tomador do Seguro, devendo atender, na parte relativa ao bem seguro, ao disposto nos números seguintes.
2. A definição do capital seguro do contrato é determinado em função das declarações do Tomador do Seguro e obedece aos seguintes critérios:
Capital do Imóvel:
Deverá corresponder ao custo da respectiva reconstrução, devendo para o efeito ser tomados em consideração todos os elementos constituintes ou incorporados pelo proprietário, bem como o valor proporcional das partes comuns.
Somente o valor dos terrenos não deve ser considerado no capital.
No caso de edifícios para expropriação ou demolição o capital corresponderá ao seu valor matricial.
Capital do Recheio:
a) Seguro de mercadorias: O capital seguro deverá corresponder ao preço corrente de aquisição para o Segurado ou, no caso de se tratar de produtos por ele fabricados, ao valor dos materiais transformados e/ou incorporados, acrescidos dos custos de fabrico.
b) Seguro de mobiliário e equipamento: O capital seguro deverá corresponder ao custo do equipamento em novo, deduzido da depreciação inerentes ao seu uso e estado.
Outros Capitais:
Para as coberturas constantes das respectivas Condições Especiais e para as quais não seja aplicável o capital do contrato, conforme é definido nas alíneas anteriores, serão considerados como capitais seguros os valores mencionados nas Condições Particulares.
3. Quando contratada a cobertura de Fenómenos Sísmicos, quer em relação ao capital do imóvel, quer em relação ao capital do recheio, poderá ficar a cargo do Segurado uma quota parte do capital seguro, consoante a percentagem fixada para o efeito nas Condições Particulares.
4. Sempre que ocorrerem novas aquisições de bens ou benfeitorias, o Tomador do Seguro deverá alterar o capital do contrato.
5. Mediante convenção expressa nas Condições Particulares, o capital seguro no presente Contrato para mobiliário e equipamento poderá ser determinado pelo valor de substituição em novo dos bens seguros.
6. Os bens de terceiros existentes no local de risco para fins inerentes à actividade do Segurado, nomeadamente os bens à consignação, para reparação ou depósito deverão ser expressamente descritos e valorizados nas Condições Particulares exclusivamente nos termos previstos no n.º 2 da presente cláusula.
7. Relativamente às coberturas constantes das respectivas Condições Especiais para as quais não seja aplicável o capital do contrato, conforme referido no n.º 2 da presente cláusula (“Outros Capitais”), ficará garantido o ressarcimento integral dos prejuízos sofridos pelos bens seguros ao abrigo das respectivas coberturas, até ao limite do capital seguro, independentemente do facto de, na ocasião do sinistro, o valor dos bens seguros ser superior ao declarado no contrato.”
59. Aquando da celebração do contrato de seguro dos autos, e no que se refere ao imóvel seguro, a ré indicou à interveniente que pretendia estabelecer os seguintes capitais, tal como plasmado nas condições particulares da apólice: “COBERTURAS, CAPITAIS E/OU LIMITES DE INDEMNIZAÇÃO E FRANQUIAS ASSISTÊNCIA AO ESTABELECIMENTO CAPITAL: Conforme Cond. Gerais e/ou Especiais: TEMPESTADES CAPITAL: €22.510,17 Franquia: € 100,00”
60. Os danos causados pela tempestade “Gisele” cingiam-se a uma parte do tecto falso da platibanda de cobertura da zona de abastecimento de combustível, com uma área de 167 m2.
61. Toda a restante área do referido tecto falso, bem como todo o revestimento da cobertura não foram afectados pela tempestade que se verificou no local de risco.
62. O objecto seguro na apólice era, como ainda é, constituído por três zonas distintas, a saber, o edifício da loja de conveniência, o edifício de lavagem de viaturas e a construção existente na área de abastecimento, que lhe serve de cobertura.
63. Essas três zonas distintas tinham as seguintes áreas e custos de reconstrução associados, segundo os valores médios de mercado praticados pela actividade de construção civil, para cada uma das referidas estruturas:
-Descritivo da construção Superfície Custo Reconstrução
-Edifício: loja conveniência 70,00 m2 52.500,00€
-Edifício: lavagem de viaturas 70,00 m2 49.000,00€
-Área de abastecimento 608,00 m2 425.600,00€.
64. O valor do capital estabelecido na apólice para o risco de “Tempestades” é de 22.510,17€.
65. O capital seguro pelo contrato para a condição especial de “Tempestades” era, na data do sinistro, inferior ao determinado nos termos definidos na Cláusula 18.ª das condições gerais da apólice.
66. Nos termos do n.º 1 da Cláusula 20ª, o contrato de seguro dos autos refere expressamente que “salvo convenção em contrário, se capital seguro pelo presente Contrato for, na data do sinistro, inferior ao determinado nos termos definidos na Cláusula 18.ª, o Segurador só responde pelo dano na respectiva proporção, respondendo o Tomador do Seguro ou o Segurado pela restante parte dos prejuízos como se fosse Segurador.
67. O fornecimento e colocação de um tecto falso igual ao que existia na platibanda de cobertura da área de abastecimento do local de risco (ou seja, com 608 m2 de área), incluindo o respectivo sistema de fixação, tinha o custo associado de 20.064,00€.
68. O custo de fornecimento e colocação de um tecto falso na área danificada pelo sinistro dos autos (167 m2) importava na quantia total de 5.511,00€.
69. A Companhia de Seguros interveniente disponibilizou à ré a quantia indemnizatória global de 807,49€ (5.511,00€ x 16,46% - 100,00€).
70. Em 13 de Abril de 2018, a interveniente remeteu à ré uma carta cheque (cheque n.º ...) no montante de 807,49€, como completa indemnização pelos danos sofridos na estrutura em apreço nos autos, ao abrigo da condição especial da apólice de “Tempestades”.
71. A ré aceitou receber a referida importância como completa indemnização pelos referidos danos, fazendo sua a dita quantia em 19.04.2018.
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Factos não provados
Não se provou que:
- A A. tenha cedido a sua posição à R. no contrato de arrendamento que celebrou com o proprietário das instalações do posto de abastecimento.
- A extensão dos danos provocados pela intempérie de 14/03/2018 tenha tido origem no buraco resultante da queda das chapas na noite de 10 para 11 do mesmo mês.
- Tenha sido a R. a, nesta data, remover do tecto falso qualquer chapa.
- Tenha havido, nesta data, uma deficiente intervenção no tecto falso.
- Tenha havido uma intervenção sem autorização do senhorio.
- No dia 14/03/2018 tenha sido destruída metade da cobertura.
- A R. nunca se tenha interessado em participar das reuniões para a resolução dos danos no posto de abastecimento.
- A R. tenha sido convocada para diversas reuniões.
- Nunca se tenha feito representar nas mesmas.
- O posto de abastecimento tenha reaberto sem qualquer identificação da marca C....
- O tecto falso tenha sido fornecido pela C... à A.
- O custo da reconstrução da loja de conveniência seja de 28.000,00 €, do edifício de lavagem de viaturas seja de 17.500,00 € e da área de abastecimento seja de 91.200,00 €.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir consiste em:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como resulta do corpo alegatório e das respectivas conclusões o apelante impugna a decisão da matéria de facto dado cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640.º, nº 1 als. a), b) e c) do CPCivil.
Cumpridos aqueles ónus e, portanto, nada obstando ao conhecimento do objecto de recurso nesse segmento, o apelante não concorda com a decisão sobre a fundamentação factual relativa aos pontos 16., 17., 18., 27., 33., 49., 51., 52., 60., 61., 63., 67. e 68. da resenha dos factos provados, e com os seguintes factos do elenco dos não provados:
• “A A. tenha cedido a sua posição à R. no contrato de arrendamento que celebrou com o proprietário das instalações do posto de abastecimento;
• A extensão dos danos provocados pela intempérie de 14/03/2018 tenha tido origem no buraco resultante da queda das chapas na noite de 10 para 11 do mesmo mês;
• Tenha havido, nesta data, uma deficiente intervenção no tecto falso;
• Tenha havido uma intervenção sem autorização do senhorio.
Quid iuris?
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.[2]
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[3]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[4]
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[5]
Importa, porém, não esquecer que, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.[6]
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão à Autora apelante, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto, nos termos por ele pretendidos.
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O ponto 27. da resenha dos factos provados tem a seguinte redacção:
“Foi necessária a intervenção de uma empresa externa, denominada como F..., LDA. contratada pela Autora para a desmontagem e retirada do teto falso e demais trabalhos necessários à reabertura do posto, cujo custo foi de 6.672,75€ (seis mil seiscentos e setenta e dois euros e setenta e cinco cêntimos)”.
Propugna a apelante que o citado ponto devia antes ter a seguinte redacção:
“Foi necessária a intervenção de uma empresa externa, denominada como F..., LDA. contratada pela Autora para a desmontagem e retirada do teto falso e demais trabalhos necessários à reabertura do posto, cujo custo foi de 3.075,00€ (três mil e setenta e cinco euros)”.
Tem, de facto, razão a apelante.
Efectivamente, nas respostas às excepções peremptórias deduzidas pela Ré, a apelante nos artigos 148º a 156º daquela peça processual, confessa que o seu pedido teria um decaimento de 3.843,75€ (três mil oitocentos quarenta e três euros e setenta e três cêntimos, decaimento que foi, aliás, acolhido pelo Tribunal a quo, quando em despacho saneador, a 06-12-2021, admitiu a redução do pedido no montante de 3.843,75€.
Como assim, a redacção do citado ponto factual passa a ter a redacção propugnada pela apelante e acima transcrita.
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O tribunal recorrido deu como não provado que:
“A A. tenha cedido a sua posição à R. no contrato de arrendamento que celebrou com o proprietário das instalações do posto de abastecimento”.
Alega a recorrente que, não obstante o tribunal recorrido tenha dado tal facto como não provado, dá como provado e em contraponto que:
“Foi celebrado, a 12 de Abril de 2013, um contrato de cessão de exploração com a duração de 5 anos, que visava a cedência da exploração do posto de abastecimento de combustível da Autora à Ré”.
Como assim, alega, devem ser dados como provados os seguintes factos:
11-A: Autora cedeu, à Ré B..., a sua posição no contrato de arrendamento que celebrou com o proprietário das instalações do posto de abastecimento.
11-B: As obrigações constantes na Cláusula 9º do Contrato de arrendamento foram cedidas à Recorrida B..., ou seja, cederam as obrigações de “manter o locado em boa conservação e limpeza, fazendo à sua custa as obras de reparação e limpeza que para o efeito se tornem necessárias” e de entregar o locado “nas condições em que se encontrava”, conforme a Cláusula 6º do mesmo contrato.
Como nos parece evidente o citado ponto factual do elenco dos factos não provados, não constitui um facto, mas uma mera conclusão e, como tal, nem sequer devia constar do citado elenco.
Com efeito, essa era a conclusão que devia ser retirada a partir de outros factos “tout court”, ou mesmo por recurso às regras interpretativas da declaração negocial, ancoradas no ponto 11. da resenha dos factos provados.
Ora, o artigo 607.º, nº 4 do CPCivil[7] dispõe que na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
No âmbito do anterior regime do Código de Processo Civil, o artigo 646.º, nº 4 do CPCivil, previa, ainda, que: têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes”.
Esta norma não transitou para o actual diploma, o que não significa que na elaboração da sentença o juiz deva atender às conclusões ou meras afirmações de direito.
Ao juiz apenas é atribuída competência para a livre apreciação da prova dos factos da causa e para se pronunciar sobre factos que só possam ser provados por documento ou estejam plenamente provados por documento, admissão ou confissão.
Compete ao juiz singular determinar, interpretar e aplicar a norma jurídica (artigo 607.º, nº 3 do CPCivil) e pronunciar-se sobre a prova dos factos admitidos, confessados ou documentalmente provados (artigo 607.º, nº 4).
Às conclusões de direito são assimiladas, por analogia, as conclusões de facto, ou seja, “os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados e exprimindo, designadamente, as relações de compatibilidade que entre eles se estabelecem, de acordo com as regras da experiência”[8].
Antunes Varela considerava que deve ser dado o mesmo tratamento “às respostas do colectivo, que, incidindo embora sobre questões de facto, constituam em si mesmas verdadeiras proposições de direito”[9].
Em qualquer das circunstâncias apontadas, confirmando-se que, em concreto, determinada expressão tem natureza conclusiva ou é de qualificar como pura matéria de direito, deve continuar a considerar-se não escrita porque o julgamento incide sobre factos concretos.
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Isto dito, no caso concreto, torna-se evidente que os factos que apelante pretende que sejam considerados provados têm, manifestamente, um cariz conclusivo, razão pela qual não podem constar da fundamentação factual.
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O ponto 33. dos factos provados tem a seguinte redacção:
“Nos termos da cláusula 8º nº 2 do mesmo contrato “Serão da responsabilidade da A... todos os encargos relacionados com a manutenção, conservação e reparação das infraestruturas integrantes do Posto de Abastecimento (…)”.
Alega a recorrente que o citado ponto factual devia ter antes a seguinte redacção:
Nos termos da cláusula 8º nº 2 do mesmo contrato “Serão da responsabilidade da A... todos os encargos relacionados com a manutenção, conservação e reparação das infraestruturas integrantes do Posto de Abastecimento (…)”, obrigação que também foi cedida à Ré B...”.
Tal redacção, alega a apelante, justifica-se para eliminar a ambiguidade que pode resultar entre esse ponto e o antecedente, ou seja, o ponto 32.
Todavia, salvo o devido respeito, não se divisa onde exista a referida ambiguidade entre os dois citados pontos factuais.
Com efeito, os referidos pontos apenas reproduzem cláusulas contratuais do contrato de venda de combustíveis mencionado no ponto 6. da fundamentação factual e que foi junto como documento nº 2 com a petição inicial, nada mais que isso.
Ora, a parte final que a apelante pretende ver acrescentada ao referido ponto extravasa o conteúdo das cláusulas em questão, para além de que, como já supra se referiu a propósito da impugnação do ponto 27. é, manifestamente, conclusiva.
Acresce que, mesmo que houvesse ambiguidade entre os citados pontos, a sua consequência nunca seria a nulidade da decisão como advoga a apelante.
De acordo com a alínea c) do nº 1 do citado artigo 615º a sentença é nula “quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
A respeito da obscuridade e ambiguidade da sentença, dizia o Professor Alberto dos Reis[10], que a “(…) sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes”, explicitando que “(…) num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos”, mencionando ser “(…) evidente que em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade” por “(…) se a determinado passo da sentença é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo, qual o pensamento do juiz”.
Ora, é obscuro o que não é claro, aquilo que não se entende. E é ambíguo o que se preste a interpretações diferentes.
Mas não é qualquer obscuridade ou ambiguidade que é sancionada com a nulidade da sentença pela alínea c) do nº 1 do citado artigo 615.º, mas apenas aquela que faça com que a decisão seja ininteligível. A ambiguidade ou obscuridade que possam ocorrer na sentença só integrarão a nulidade decisória prevista neste normativo se algum desses vícios tornarem a decisão incompreensível, por inacessível ao intelecto, impedindo a compreensão da decisão judicial por fundadas dúvidas ou incertezas.
Isto dito, é por demais evidente que a referida ambiguidade ou obscuridade como vício geradora da nulidade é por referência à decisão em si.
Acontece que, a ambiguidade invocada pela apelante contende, não com a decisão “tout court”, mas com a impugnação da matéria de facto.
Mas quando a assim seja, isto é, quando existe ambiguidade ou obscuridade ou mesmo contradição na decisão da matéria de facto, a consequência é anulação da decisão proferida pela primeira instância [cfr. 662.º, nº 2 al. c) do CPCivil),[11] o que pode ser feito mesmo oficiosamente, ou seja, tal vício nunca gera a nulidade da decisão.
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Nestes termos e por não haver qualquer ambiguidade a redacção do citado ponto factual deve continuar idêntica.
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Os pontos 17., 18. e 49. dos factos provados têm, respectivamente, a seguinte redacção:
“17. No fim de semana anterior, na noite de 10 para 11 de Março, as mesmas condições climatéricas haviam provocado a queda de duas chapas do lado Poente do tecto falso, sobre as bombas GPL, o que foi comunicado à R. e exigiu a intervenção imediata da C...–que para o efeito deu conhecimento ao proprietário do posto-que verificou e garantiu a segurança da instalação de gás e das placas adjacentes àquelas que caíram.
18. As chapas que caíram na noite de 10 para 11 de Março não foram recolocadas porque as condições atmosféricas que se verificavam não o permitiram.
49. A R. não deu origem ao buraco decorrente da queda de placas do tecto falso ocorrida na noite de 10 para 11 de Março de 2018”.
Por sua vez os factos não provados e impugnados pela apelante têm a seguinte redacção:
“-A extensão dos danos provocados pela intempérie de 14/03/2018 tenha tido origem no buraco resultante da queda das chapas na noite de 10 para 11 do mesmo mês;
-Tenha havido, nesta data, uma deficiente intervenção no tecto falso; e
-Tenha havido uma intervenção sem autorização do senhorio”.
Alega a recorrente que devia antes ter sido dado como provado que:
14-A: A Ré B... não deu conhecimento ao proprietário do posto de que as caleiras do locado se encontravam entupidas, bem como, que existia uma enorme acumulação de detritos de vegetação na estrutura.
14-B: Cabia à Ré B... o desentupimento das caleiras do locado e a limpeza dos detritos de vegetação na estrutura do locado.
17. No fim de semana anterior, na noite de 10 para 11 de Março, as mesmas condições climatéricas haviam provocado a queda de duas chapas do lado Poente do teto falso, sobre as bombas GPL, o que foi comunicado à R. e exigiu a intervenção imediata da C... que verificou e garantiu a segurança da instalação de gás e das placas adjacentes àquelas que caíram.
18: A Recorrida B... não deu conhecimento ao proprietário do posto da existência do buraco resultante da queda das chapas na noite de 10 para 11 mês de Março.
18-A: Houve uma deficiente intervenção no buraco do teto falso sobre o GPL.
18-B: Os sinistros de 10/11 de Março 2018 e 14/03/2018 deram-se em consequência do peso de elementos estranhos aos suportes e respetivas fixações de teto.
18-C: Os sinistros de 10/11 de Março 2018 e 14/03/2018 só se deram porque as caleiras do locado se encontravam entupidas, bem como, existia uma enorme acumulação de detritos de vegetação na estrutura do locado.
18-D: A extensão dos danos provocados pela intempérie de 14/03/2018 tenha tido origem no buraco resultante da queda das chapas na noite de 10 para 11 mês de Março.
Em sentido contrário, devem ser dados como não provado:
• As chapas que caíram na noite de 10 para 11 de Março não foram recolocadas porque as condições atmosféricas que se verificavam não o permitiram.
• Foi dado conhecimento ao proprietário do Posto da existência do buraco sobre o GPL”.
Analisando.
Relativamente ao ponto 17. dos factos provados refere a apelante que o tribunal recorrido cometeu um erro de julgamento, ao considerar provado que foi dado conhecimento ao proprietário do Posto da existência do buraco sobre o GPL, propondo, portanto, a sua eliminação.
Mas pergunta-se qual a relevância jurídica desse suposto conhecimento?
Na verdade, mesmo dando-se como provado o citado conhecimento, ele está desprovido de qualquer relevância jurídica.
É certo que, conforme decorre do artigo 1038.º al. h) do CCicil é obrigação do locatário, avisar imediatamente o locador, sempre que tenha conhecimento de vícios na coisa, ou saiba que a ameaça algum perigo (…), desde que o facto seja ignorado pelo locador.
Acontece que, a falta do referido aviso tem como consequência não poder considerar-se incumprido pelo locador o contrato–cfr. arts. 1032.º e 1033.º d) do CCivil-, ou seja, não cumprindo–ou não provando que cumpriu–o inquilino esse dever de comunicação dos vícios de que o arrendado está afectado e não se provando que o senhorio conhecia esses vícios, este não pode ser por eles responsabilizado.
Repare-se, porém, que nada disso está em causa nos presentes autos, pois que é o eventual locador, no caso a apelante, que reclama o pagamento de danos sofridos na coisa locada durante a vigência da suposta relação arrendatícia, mas não decorrentes dessa falta de comunicação.
Ora, atento o carácter instrumental da reapreciação da decisão da matéria de facto, no sentido de que a reapreciação pretendida visa sustentar uma certa solução para uma dada questão de direito, a inocuidade da aludida matéria de facto justifica que este tribunal indefira essa pretensão, em homenagem à proibição da prática no processo de actos inúteis (artigo 130.º do CPCivil).
Como refere Abrantes Geraldes,[12] “De acordo com as diversas circunstâncias, isto é, de acordo com o objecto do recurso (alegações e, eventualmente, contra-alegações) e com a concreta decisão recorrida, são múltiplos os resultados que pela Relação podem ser declarados quando incide especificamente sobre a matéria de facto. Sintetizando as mais correntes: (…) n) Abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum com a solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados”.
No mesmo sentido cfr. os Acórdãos da Relação de Coimbra de 24.4.2012, processo n.º 219/10.6T2VGS.C1, e da Relação de Guimarães de 10.09.2015, processo n.º 639/13.4TTBRG.G1.[13]
Por esse motivo, abstemo-nos de reapreciar a decisão da matéria de facto relativamente ao ponto em questão.
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Alega depois a apelante que o tribunal recorrido cometeu um erro de julgamento, ao não considerar como provado que a extensão dos danos provocados pela intempérie de 14/03/2018 tenha tido origem no buraco resultante da queda das chapas na noite de 10 para 11 mês de Março.
Sob este conspecto o tribunal recorrido discorreu do seguinte modo:
“Nesta medida, nenhuma prova foi produzida no sentido de que foi a R. quem retirou as chapas situadas por cima do GPL, assim como também não ficou esclarecido se a falta daquelas chapas contribuiu para que no dia 14 seguinte ocorresse novamente queda de chapas devido ao temporal que, nesta data, se mantinha.
Na realidade, pese embora se admita, sem esforço, que a ausência daquelas primeiras chapas possa ter fragilizado a estrutura do tecto falso, deixando-a mais exposta às intempéries, a verdade é que, dos depoimentos tão diversos como os de DD, gestor comercial da A., filho do seu legal representante, EE, da empresa que procedeu à reparação, FF, engenheiro mecânico amigo do legal representante da R. que se deslocou ao local para avaliar os danos e as possibilidades de reparação, e GG, responsável nacional pela rede de distribuição da C..., resultou a idade do posto de abastecimento de que o tecto falso em causa faz parte, segundo o primeiro com perto de 30 anos, como factor condicionante da respectiva segurança (cfr. relatório de fls. 50 v. e ss. da PC)”.
Para contrariar a referida fundamentação convoca a apelante, os depoimentos das testemunhas HH, II, AA e ainda Relatório elaborado pela empresa K..., unipessoal, Lda.
Acontece que, de nenhum dos referidos elementos probatórios, e mesmo quando concatenados entre si, se retira que a destruição da estrutura ocorrida do dia 14/03/2018 foi provocada pelo existência do buraco adveniente da queda de duas chapas na noite do dia 10 para 11 desse mesmo mês.
Efectivamente, dos referidos elementos probatórios, o que se retira são simples conjecturas sobre essa possibilidade nada mais que isso, sendo que, mesmo o referido Relatório pericial, não retira semelhante conclusão como, aliás, a própria apelante o reconhece nas suas alegações.
É certo, tal como refere o tribunal recorrido na sua motivação, que a ausência daquelas primeiras chapas possa ter fragilizado a estrutura do tecto falso, deixando-a mais exposta às intempéries, a verdade é que nenhum dos elementos probatórios convocados pela apelante, nos permite afirmar de forma conscienciosa e para além de toda a dúvida razoável, que não fora a existência do buraco resultante da queda das chapas na noite de 10 para 11 mês de Março, os danos ocorridos no dia 14 desse mesmo mês não se teriam produzido.
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Como assim, deve o citado ponto factual continuar a constar da resenha dos factos não provados.
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Alega a apelante que também o que o Tribunal a quo cometeu um erro de julgamento, ao não considerar como provado que a Recorrida B... não deu conhecimento ao proprietário do posto da existência do buraco resultante da queda das chapas na noite de 10 para 11 mês de Março.
Ora, a propósito do ponto 48. dos factos provados que apelante propugna que devia ter sido dado como não provado, valem aqui, mutatis mutandis, as mesmas considerações expostas na impugnação do ponto 17., ou seja, tal facto não tem, face ao “thema decidendum” da acção, qualquer relevância jurídica em termos das várias soluções plausíveis que se possam colocar.
Como assim, também aqui nos abstemos de conhecer do objecto da impugnação do citado ponto factual.
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Como já supra se referiu alega a apelante que o tribunal recorrido devia ter dado como provados os seguintes factos:
14-A: A Ré B... não deu conhecimento ao proprietário do posto de que as caleiras do locado se encontravam entupidas, bem como, que existia uma enorme acumulação de detritos de vegetação na estrutura;
14-B: Cabia à Ré B... o desentupimento das caleiras do locado e a limpeza dos detritos de vegetação na estrutura do locado;
18-B: Os sinistros de 10/11 de Março 2018 e 14/03/2018 deram-se em consequência do peso de elementos estranhos aos suportes e respetivas fixações de teto.
18-C: Os sinistros de 10/11 de Março 2018 e 14/03/2018 só se deram porque as caleiras do locado se encontravam entupidas, bem como, existia uma enorme acumulação de detritos de vegetação na estrutura do locado.
Importa, desde logo, referir que os pontos 18-B e 18-C que a apelante pretende ver aditados estão em manifesta contradição com os pontos 15., 16. e 17. dos factos provados (mesmo que se altere a redacção dos pontos 16. como propugna a apelante mais à frente nas suas alegações recursivas e 17.).
Com efeito, o ponto 15. não foi objecto de impugnação e nele dá-se como provado que: “No dia 14 de Março de 2018, na sequência das más condições climatéricas ocorridas nesse dia–a passagem de um pequeno tornado na zona denominado como tempestade “Gisele” –o imóvel, objeto do arrendamento, sofreu vários danos”.
Por sua vez no ponto 16. mesmo admitindo a redacção proposta pela apelante dá-se como provado que: Caiu uma parte do teto falso da cobertura do posto de abastecimento do lado nascente”.
Não restam dúvidas de que os referidos danos, face ao que consta dos referidos pontos factuais, se deveram às más condições climatéricas ocorridas nesse dia–a passagem de um pequeno tornado na zona denominado como tempestade “Gisele”.
Da mesma forma que foram também as mesmas as mesmas condições climatéricas que provocaram a queda de duas chapas do lado Poente do tecto falso, sobre as bombas GPL (ponto 17.).
Como assim e sob pena de contradição não se poderiam dar como provados os pontos 18-B e 18-C que apelante pretende que sejam aditados à matéria de facto.
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Mas, mesmo que assim não se entenda, importa atentar no seguinte.
Todos os citados pontos factuais acima transcritos, não foram alegados por qualquer das partes nos articulados que apresentaram e, concretamente, pela apelante, ou seja, terão, como alega a recorrente, resultado da instrução da causa.
É certo que o n.º 2 do citado artigo 5.º acrescenta que além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
Resulta desta norma que o tribunal deve considerar na sentença factos não alegados pelas partes. Não se trata, contudo, de uma possibilidade sem limitações.
Desde logo, não cabe ao juiz supor ou conceber factos que poderão ter relevo, é necessário que estejamos perante factos que resultem da instrução da causa, isto é, factos que tenham aflorado no processo através dos meios de prova produzidos e, portanto, possuam já alguma consistência prática, não sejam meras conjecturas ou possibilidades abstractas.
Por outro lado, o juiz só pode considerar factos instrumentais e, quanto aos factos essenciais, aqueles que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado. E isto é assim porque mesmo no novo Código de Processo Civil o objecto do processo continua a ser delimitado pela causa de pedir eleita pela parte [artigos 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, alínea d), 581.º e 615.º, n.º 1, alínea d), segunda parte] e subsistem ainda as limitações à alteração dessa causa de pedir (artigos 260.º, 264.º, 265.º).
Acontece que, no caso concreto, os factos em causa não são instrumentais, antes se tem de considerar factos essenciais no âmbito do thema decidendum trazido aos autos, e, como tal, incumbia a Autora a respectiva alegação, (artigo 5.º, nº 1 do CPCivil atrás citado) estando, pois, vedado a este tribunal a sua consideração.
Aliás, mesmo considerando tais factos como complemento ou concretização dos que a Autora alegou, a sua consideração oficiosa, não pode ser feita sem que as partes se pronunciem sobre ela, ou seja, o juiz, ante a possibilidade de tomar em consideração tais factos, tem que alertar as partes sobre essa sua intenção operando o exercício do contraditório e dando-lhe a possibilidade de arrolar novos meios de prova sobre eles.
Ora, não tendo o Sr. juiz do processo feito uso desta possibilidade, teria de ter sido a parte, em momento oportuno, a impetrar requerimento com vista a que tal facto fosse considerado pelo tribunal.
Como assim, não o tendo feito, esta Relação não pode substituir-se à 1.ª instância e valorar já em termos definitivos a prova produzida quanto aos novos factos, ampliando em 2.ª instância a matéria de facto sem que previamente, em fase de audiência de julgamento, as partes estejam alertadas para essa possibilidade e lhes seja facultado produzir toda a prova que entenderem.
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Resulta, assim, do exposto não poder este tribunal da Relação aditar à fundamentação factual os citados pontos.
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Alega a recorrente que o tribunal recorrido cometeu um erro de julgamento, ao não considerar como provado que tenha havido, nesta data, uma deficiente intervenção no teto falso.
Como se torna evidente não estamos também aqui perante qualquer facto, mas sim perante uma mera conclusão.
Na realidade a conclusão de que tenha havido uma deficiente intervenção tinha que advir de outros factos concretos que tivesse sido alegados, o que manifestamente não ocorreu.
Desta forma, valem aqui as mesmas considerações supra feitas a propósito da impugnação do ponto de facto não provado de “A A. tenha cedido a sua posição à R. no contrato de arrendamento que celebrou com o proprietário das instalações do posto de abastecimento”.
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Refere também a recorrente que o tribunal recorrido cometeu um erro de julgamento, ao não considerar como provado que tenha havido uma intervenção sem autorização do senhorio.
Alega a apelante que do depoimento da testemunha HH se retira que, de facto, houve uma intervenção, mas que não existe prova de que alguém tenha solicitado autorização ao senhorio para a realização daquela obra deficitária.
Ora, não se divisa que resulte do depoimento da indicada testemunha que tenha havido qualquer intervenção.
Com feito, o que a apelante alega é que “a grande extensão dos danos teve como origem, principalmente, a prévia remoção de duas chapas do teto falso do lado poente, sobre a bomba GPL, no âmbito de uma intervenção deficiente, e sem autorização do senhorio, pela Ré” (cfr. artigo 28º da petição inicial).
Acontece que, está dado como provado, como acima já se frisou e que não foi objecto de impugnação, “no fim de semana anterior, na noite de 10 para 11 de Março, as mesmas condições climatéricas haviam provocado a queda de duas chapas do lado Poente do tecto falso, sobre as bombas GPL (…)” (cfr. ponto 17. dos factos provados).
Desta forma, não podia o tribunal de dar como provado o citado ponto factual.
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Alega depois a apelante que o tribunal a quo cometeu um erro de julgamento, ao considerar provado que as chapas que caíram na noite de 10 para 11 de Março não foram recolocadas porque as condições atmosféricas que se verificavam não o permitiram.
Como decorre da motivação da decisão da matéria de facto o tribunal recorrido, sob este conspecto, valorou o depoimento da testemunha HH, responsável de operações e sistemas na C..., Lda.
A própria apelante, nas suas alegações recursivas, também refere que a testemunha em causa prestou depoimento nesse sentido.
Assim sendo, é inócuo para efeitos probatórios que a mesma testemunha, no âmbito da providência cautelar, como alega a apelante, nunca tenha referido que não pôde efetuar intervenções por conta das condições climatéricas.
Para além disso, não resulta dos autos que intervenção que foi feita no dia 14/03/de 2018 era similar à que era necessário efectuar, em decorrência das condições climatéricas da noite de 10 para 11 do mesmo mês, sendo que, seguramente, não pode, para esses efeitos, ser considerado o que consta do ponto 22. da fundamentação factual, que consistiu apenas na remoção dos escombros, remoção de parte da cobertura que se encontrava em risco de queda, bem como a retirada de outros objetos trazidos pela tempestade.
Ora, não era isso que se impunha naquilo que foram os danos provocados na noite de 10 para 11 do mesmo mês.
Efectivamente, o que aí se impunha fazer era a recolocação das placas que havia caído, sendo que, não vem provado nos autos nem isso vem sequer alegado, que as referidas placas depois de terem caído estavam emprestáveis para a sua recolocação.
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Desta forma deve o citado ponto factual permanecer no elenco dos factos provados.
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Impugna depois a apelante os pontos 16., 51., 52., 60., 61., 67. e 68. da resenha dos factos provados.
Esses pontos têm, respectivamente, a seguinte redacção:
“-Foi destruída uma parte do teto falso da cobertura do posto de abastecimento do lado nascente;
-Não era necessário proceder à substituição da integralidade do teto falso da cobertura do posto de modo a restituí-la ao estado de conservação em que se encontrava antes da intempérie de Março de 2018.
-Este propósito era alcançável com a substituição das chapas afetadas, o que importaria o dispêndio de uma verba de 5.511,00 €;
-Os danos causados pela tempestade “Gisele” cingiam-se a uma parte do tecto falso da platibanda de cobertura da zona de abastecimento de combustível, com uma área de 167 m2.;
-Toda a restante área do referido tecto falso, bem como todo o revestimento da cobertura não foram afectados pela tempestade que se verificou no local de risco;
-O fornecimento e colocação de um tecto falso igual ao que existia na platibanda de cobertura da área de abastecimento do local de risco (ou seja, com 608 m2 de área), incluindo o respectivo sistema de fixação, tinha o custo associado de 20.064,00€;
-O custo de fornecimento e colocação de um tecto falso na área danificada pelo sinistro dos autos (167 m2) importava na quantia total de 5.511,00€”.
Entende a apelante que os pontos 60., 61., 67. e 68. deviam ter sido dados como não provados e os restantes deviam ter a seguinte redacção:
“16.-Caiu uma parte do teto falso da cobertura do posto de abastecimento do lado nascente;
51.-Era necessário proceder à remoção dos escombros, desmontagem de todo o teto falso e da telha da cobertura do posto, bem como, à substituição da integralidade dos mesmos de modo a restituí-la ao estado de conservação em que se encontrava antes da intempérie de Março de 2018;
52.-Este propósito era apenas alcançável mediante os trabalhos realizados pela empresa F..., Lda. e pela empresa E..., LDA., o que importaria o dispêndio de uma verba de 40.959,00€ (quarenta mil novecentos e cinquenta e nove euros), constante do Doc. 16 junto com a petição inicial e uma verba de 590,04€ (quinhentos e noventa euros e quatro cêntimos) constante do Doc. 10 junto com a PI”.
Para a pretendida alteração convoca apelante, desde logo, o relatório elaborado pela empresa F....
É verdade que nesse relatório se refere além do mais que: “(…) de forma a reestabelecer o normal funcionamento e criar condições de segurança para os clientes do Posto de abastecimento de combustível decidiu-se retirar o restante teto falso, pois poderia também este estar afetado, trabalho este, que foi executado durante os dias 15 e 16 de março”.
Ou seja, não há dúvida que se procedeu à retirada de todo o tecto falso como o demonstram as fotografias juntas aos autos pela apelante com a petição inicial.
Repare-se, todavia, que se procedeu à retirada desse tecto falso, afirmando-se apenas que todo ele poderia estar afectado, porém, nenhum elemento probatório constante dos autos atesta que todo o tecto falso ficou afectado em consequência das adversas (más) condições climatéricas que ocorreram no dia 14 de Março de 2018 e na noite de 10 para 11 desse mesmo mês.
Ora, como nos parece evidente, impunha-se que, antes de se proceder à retirada da totalidade do tecto falso, se tivesse averiguado se todo ele tinha sido danificado em consequência das ocorridas condições climatéricas adversas, tanto mais, que logo nesse dia 14/03 o posto de abastecimento foi encerrado (cfr. ponto 19. dos factos provados).
Significa, portanto, que não está demonstrado nos autos que devido às citadas condições climatéricas todo o tecto falso tenha ficado danificado e que, por isso, se impunha a sua retirada por questões de segurança para os clientes do Posto de abastecimento, ou seja, o relatório apresentado pela referida F..., revela-se inócuo em termos probatórios para os efeitos pretendidos.
E o mesmo se diga do orçamento apresentado pela empresa L..., Lda..
Efectivamente, a citada empresa limitou-se a apresentar um orçamento para os trabalhos que lhe foram solicitados, nada mais que isso, sem, portanto, ter opinado se os mesmos eram ou não necessários na dimensão pedida.
Também o relatório da empresa “K..., unipessoal, Lda”, apenas faz referência aos riscos no que se refere tecto falso e à sua estrutura de suporte, mas nunca refere que todo o tecto falso estava em risco de colapsar, aliás, o que nele se refere é que por razões de segurança eram apologistas de que deveria a mesma manter-se assim até que fosse levada a efeito toda a necessária intervenção técnica de estabilidade do tecto falso restante e de reparação dos danos, ou seja, nele não se refere que era necessário proceder à remoção da totalidade do referido tecto, era necessário, isso sim, estabiliza-lo e reparar os restantes danos.
Por outro lado, do depoimento da testemunha DD, filho do representante legal da Autora, nada se retira de relevante sobre se havia ou não necessidade de proceder à remoção da totalidade do tecto falso.
Com efeito, para além da referida testemunha não ter a equidistância necessária para prestar um depoimento isento e credível face à relação de parentesco com o representante legal da Autora, sob este conspecto, limita-se a afirmar, mas sem qualquer consistência e de forma confusa que: “até porque à depois uma parte que vai desde parte do GPL até à parte onde caiu que depois também foi acabando por cair com o correr do tempo”, ou seja, nem sequer se percebe o que a final caiu.
Como então retirar do depoimento desta testemunha, como afirma apelante, que a restante estrutura se encontrava em risco e ia colapsando ao logo do tempo?
No que se refere ao depoimento da testemunha EE, valem aqui as mesmas considerações feitas supra a propósito do relatório que ele subscreveu da empresa F..., ou seja, apenas partiu da suposição que todo o tecto falso podia estar afectado sem, todavia, ter, efectivamente, confirmado essa sua suposição.
A testemunha GG, apenas refere que se fosse ele a dicidir também teria retirado todo o tecto falso, afirmando que ficaria mais confortável com uma solução dessas.
Repare-se, porém, que a testemunha nunca afirma que o tecto falso estava, todo ele, em riso de colapsar, dizendo que tão só, que do relatório fotográfico apresentado pela empresa K..., se notava que havia alguns problemas estruturais, alguns suportes que já estavam enfraquecidos e que, por isso mudaria tudo.
Da mesma forma que do depoimento da testemunha HH, se não retira de forma cristalina, como afirma a apelante, que havia a necessidade da substituição total do teto falso e da cobertura do locado.
Na verdade, a referida testemunha cinge-se apenas às questões de segurança, mas sem nunca afirmar que havia o risco de toda a estrutura colapsar.
Aliás, quando lhe foi perguntado se era possível colocar no tecto falso as placas que tinham caído respondeu que não (também admitimos que tal não seria viável a nível técnico pois seguramente que terão ficado danificadas), mas já respondeu afirmativamente se era possível colocar placas novas, não obstante tenha afirmado que não era seguro.
Acresce que, a referida testemunha também ancora o seu depoimento no relatório apresentado pela F... no se refere às questões de segurança, quando como já supra se referiu este elemento probatório se revela inócuo para se poder afirmar que era necessário proceder a remoção total do tecto falso.
Alega depois a recorrente que não poderia o tribunal a quo considerar a factualidade descrita pela testemunha FF, porque essa testemunha nem sequer esteve no local no dia do sinistro (14/03).
Mas mesmo que assim fosse, importa salientar que o tribunal recorrido, relativamente ao ponto em questão, não valorou apenas o citado depoimento, mas o de outras testemunhas como o evidencia a sua motivação da decisão da matéria de facto.
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Isto dito quanto à remoção da totalidade do tecto falso, analisemos agora a questão da remoção também da totalidade da cobertura.
Com nos parece evidente as condições climatéricas adversas nos citados dias, noite de 10 para11 e 14 de Março de 2018, afectaram apenas o tecto falso, mas não a cobertura do Posto de abastecimento.
Isso mesmo é visível no registo de imagem que a apelante juntou com a petição inicial como documento nº 11 bem como com os registos de imagem juntos pela interveniente com a sua contestação.
Com efeito, desse documento não se vê que, no limite da visibilidade humana, a estrutura de cobertura tenha ficado afectada em consequência das referidas condições climatéricas.
Importa, aliás, enfatizar a este respeito que a testemunha GG, acaba no seu depoimento por confirmar isso mesmo referindo ipsis verbis que: “havia problemas estruturais alguns suportes que já se estavam enfraquecidos estar a substituir só parcialmente só uma parte da cobertura e deixar outra onde eventualmente num futuro vendaval ou com outro mal tempora (…) a probabilidade de eventualmente poder cair era grande, ou seja eu em consciência, se fosse eu a tomar a decisão mudaria tudo”.
Deste depoimento retira-se, sem margem para qualquer tergiversação que, admitindo ser verdade o que aí se afirma, ou seja, que havia alguns problemas estruturais, isso não se deveu às condições climatéricas adversas supra referidas, mas sim, seguramente, à idade que tinha a mesma estrutura (cerca de 30 anos) sujeita, portanto, à erosão do tempo com o consequente desgaste dos materiais nela aplicados.
Portanto, respigando a prova produzida a este respeito, o que dela se retira e perpassa é que, na sequência dos sinistros ocorridos pelas condições climatéricas adversas, se aproveitou para renovar toda a estrutura, ou seja, quer o tecto falso quer a própria cobertura.
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Diante do exposto, nada temos a censurar à decisão recorrida quando dá como provados os pontos 51., 60., 61. e 68. da fundamentação factual.
Analisemos agora o ponto 52. do elenco dos factos provados.
Refere a apelante que o tribunal a quo, fundamentou a decisão sobre este facto no depoimento da testemunha FF.
Ora, percorrendo a motivação da decisão da matéria de factos não se divisa que, o tribunal recorrido tenha estribado a sua decisão quanto a este facto no depoimento da indicada testemunha.
Como assim, importa atentar, sob este conspecto, nos elementos probatórios constantes dos autos.
Alega a recorrente que contrariamente ao que se dá como provado no facto provado 67., a cobertura metálica, medida pelos doutos peritos, tem 770 m2 e 5 metros de altura.
Todavia, aquilo que foi facturado pela empresa F... foi apenas 607,01m2 de fornecimento e colocação de tecto falso em caneletes 400x40, com 0.8mm de espessura, incluindo sistema de fixação (cfr. documento nº 16 junto com a petição inicial), sendo que, no orçamento junto pela apelante com requerimento probatório de 29/10/2020 da autoria da L..., Lda. também aí apenas se referem 608,00 m2 quer do revestimento da cobertura quer da colocação de tecto falso.
No que se refere à questão do preço por m2 também ambos os citados documentos são convergentes, isto é, 19,85 € para a cobertura e 33,00 € para o tecto falso, ou seja, fazendo a multiplicação desse valor pelos m2 de placas caídas facilmente se chega ao valor de 5.511,00 €.
E quanto à volumetria de placas caídas facilmente se constata que, pela observação da fotografia junta pela apelante como documento nº 9, não podia ser muito mais dos que os referidos 167 m2, pois que, a área total da zona de abastecimento tem, como referido, 608,00 m2, sendo que, pela análise da imagem referida, não se pode afirmar que tenha caído um terço de tecto falso dessa área total.
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No que tange à impugnação do ponto 67. não se vislumbra o porque da sua impugnação quando, como já se referiu foi facturado e orçamentado esse valor pela empresa F... relativamente à colocação do tecto falso, como também foi orçamentado pela empresa L..., Lda.
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Relativamente à alteração da redacção do ponto 16. dos factos provados, para além de a apelante não concretizar onde estriba a pretendida alteração, o certo é que o apontado ponto corresponde à redacção do artigo 29º da sua petição inicial.
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Desta forma, devem os pontos 16., 51., 52., 60., 61., 67. e 68. da resenha dos factos provados aí permanecer com a mesma redacção.
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Impugna por último a apelante o ponto 63. dos factos provados.
Acontece que, o citado ponto factual do ponto de vista da solução jurídica do litígio é completamente inócua para a pretensão da apelante.
Na verdade, o citado ponto factual apenas revestia interesse para a Ré, já que ele contende com os cálculos feitas pela interveniente para pagamento da indemnização pelos danos sofridos decorrentes do sinistro àquela, no âmbito do contrato de seguro entre ambas celebrado.
Como assim, também aqui e pelas mesmas razões já atras expostos a propósito da impugnação de outros factos, nos abstemos de conhecer da impugnação do citado ponto factual.
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Diante do exposto, temos de convir, salva outra e melhor opinião, que as discordâncias que a apelante convoca para que se imponha uma decisão diversa sobre a impugnação da matéria de facto em causa, não são de molde a sustentar a tese que vem por ela expendida, pese embora se respeite a opinião em contrário veiculada nesta sede de recurso, havendo que afirmar ter a Mmª juiz captado bem a verdade que lhe foi trazida ao processo, com as dificuldades que isso normalmente tem.
Numa apreciação distante, objectiva e desinteressada esta é a única conclusão lícita a retirar, reflectindo a fundamentação dos factos os meios probatórios trazidos aos autos que não podiam conduzir a conclusão diversa, que sempre teria de ser alicerçada em certezas e sem margem para quaisquer dúvidas.
Conclui-se, por isso, que o tribunal de forma fundamentada, fez uma análise crítica e ponderada todos os meios probatórios, e, reavaliada essa prova, apenas haverá que sufragar tal decisão.
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Desta forma, procede a conclusão formulada pela apelante e improcedem as conclusões 2ª a 89ª por ela também formuladas.
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Permanecendo inalterada a fundamentação factual excepto no que toca à alteração do ponto 27. Nos termos decididos, a segunda questão que cumpre apreciar consiste em:
b)- saber se a sua subsunção jurídica deve, ou não, ser alterada.
Importa, porém, antes de avançar na referida análise que o que releva, para estes efeitos, é apenas a matéria factual que consta da fundamentação supra elencada e não qualquer outra.
Feita esta precisão para que dúvidas não restam a este respeito, passemos ao enquadramento jurídico da relação negocial que se estabeleceu entre Autora apelante e a Ré apelada.
Está provado nos autos que foi celebrado, a 12 de Abril de 2013, um contrato de cessão de exploração com a duração de 5 anos, que visava a cedência da exploração do posto de abastecimento de combustível da Autora à Ré (cfr. ponto 11. dos factos provados).
Sob a epígrafe “Locação de estabelecimento”, dispõe o artigo 1109.º, nº 1, do CCivil que “[a]transferência temporária e onerosa do gozo de um prédio ou de parte dele, em conjunto com a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado, rege-se pelas regras da presente subsecção, com as necessárias adaptações”.
A propósito do contrato de cessão de exploração de estabelecimento, dispunha o nº 1 do artigo 111.º do RAU que “não é havido como arrendamento de prédio urbano ou rústico o contrato pelo qual alguém transfere temporária e onerosamente para outrem, juntamente com o gozo do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado”.
Donde, a usualmente denominada cessão de exploração ou concessão de exploração de estabelecimento comercial não é senão um contrato de locação do estabelecimento como unidade jurídica, isto é, um negócio jurídico pelo qual o titular do estabelecimento proporciona a outrem, temporariamente e mediante retribuição, o gozo e fruição do estabelecimento, ou seja, a sua exploração mercantil. O cedente ou locador demite-se temporariamente do exercício da atividade comercial e quem o assume é o cessionário ou locatário.[14]
Constituem pontos de contato e de comunhão entre estas duas figuras (arrendamento comercial e locação de estabelecimento), “a existência de uma transferência com carácter oneroso e de feição temporária, mas ocorre uma distinção essencial e definidora que se radica no seguinte facto: enquanto no arrendamento comercial o locador transfere para o locatário o direito de gozo de um prédio, na locação de estabelecimento o detentor do estabelecimento transfere para o cessionário o gozo e fruição de uma unidade comercial, com todas as marcas e feições distintivas que acompanham esta figura de direito comercial”.[15]
Importante, por isso, precisar o conceito de estabelecimento comercial.
A lei refere-se em várias normas ao estabelecimento, mas não o caracteriza expressamente. É indubitável, porém, que lei trata o estabelecimento comercial unitariamente, quando permite que seja objeto de trespasse e de locação, de penhora e de penhor e até de hipoteca. A reivindicação do estabelecimento, então muito discutida, acabou por ser admitida e é hoje pacífica.
Dir-se-á, então, que o estabelecimento comercial ou industrial é a estrutura material e jurídica integrando, em regra, uma pluralidade de coisas corpóreas e incorpóreas, coisas móveis e/ou imóveis, incluindo as próprias instalações, direitos de crédito, direitos reais e a própria clientela ou aviamento, organizados com vista à realização do respetivo fim. O estabelecimento é, assim, um bem mercantil. Na sua globalidade funcional, é um bem “a se”, que se distingue de cada um dos seus componentes.
Neste sentido, considera a doutrina “o estabelecimento comercial como um conjunto organizado de bens e direitos afectados a um fim específico, que é o de suportar o exercício da empresa e que o direito trata unitariamente para certos efeitos, sem prejuízo da individualidade e autonomia dos seus componentes”.[16]
Por isso, na locação do estabelecimento, há uma transmissão global unitária, para o mesmo ramo do comércio, sem prejuízo de alguns dos bens que compõem o estabelecimento poderem ser excluídos da transmissão por estipulação das partes. Aliás a penhora do estabelecimento comercial (artigo 782º do Código de Processo Civil) abrange, em princípio, todos os bens que o integram, sem afetar a penhora dos que já o tiverem sido anteriormente.
Pode assim definir-se “o estabelecimento comercial como um bem mercantil, que engloba o complexo de bens e de direitos que o comerciante afecta à exploração da sua empresa, que tem uma utilidade, uma funcionalidade e um valor próprios, distintos de cada um dos seus componentes e que o direito trata unitariamente”.[17]
Deste modo afigura-se-nos adequado o critério proposto por Ferrer Correia[18], no sentido de que haverá arrendamento se o titular do local se limitar a pôr à disposição do locatário o gozo e fruição da instalação, por esta não ter mais do que “a marca do seu destino”, ou seja, uma configuração física apta ao exercício da atividade mercantil visada; e já haverá cessão de exploração se o prédio já se encontrar provido dos meios materiais indispensáveis á sua utilização como empresa, designadamente móveis, máquinas, utensílios que tornem viável, mediante a simples colocação de mercadoria, o arranque da exploração comercial.
Expostos estes princípios, analisando o conteúdo do contrato celebrado entre o exequente e a sociedade executada, pode-se seguramente concluir que estamos perante uma cessão de exploração do estabelecimento comercial (exploração da Estação de Serviço), o que resulta, nomeadamente, dos respetivos considerandos.
A questão que agora importa dilucidar é se na referida cessão de exploração ficou também abrangida a posição de arrendatário que a apelante detinha na posição relativamente aos imóveis descritos nos pontos 2. e 3. dos factos provados.
É que, seguindo a posição de Antunes Varela, o que há de característico nos contratos de locação de estabelecimento não é a cedência da fruição do imóvel, nem a do gozo do mobiliário ou do recheio que nele se encontra, mas a cedência temporária do estabelecimento como um todo, como uma universalidade, como uma unidade económica mais ou menos complexa.[19]
Deste modo, na locação do estabelecimento, para além do carácter temporário da cedência, não há locação do imóvel, nem transmissão do arrendamento, pois o cedente, sendo o arrendatário, mantém a titularidade do direito.
Como se salienta no acórdão do STJ, de 2 de Março de 2004 (relator Pinto Monteiro)[20], a cessão importa somente uma mudança de sujeito no que respeita à exploração do estabelecimento, continuando o cedente a manter o arrendamento existente. O arrendatário permanece com os mesmos vínculos, direitos e obrigações. O senhorio em nada vê alterada a sua posição relativamente ao locatário.
Como se evidencia das alegações recursivas a apelante propugna que a referida posição de arrendatário que a mesma ocupava relativamente aos imóveis em questão ficou também abrangida pela citada cessão de exploração do estabelecimento.
Estriba esta asserção no ponto a) dos considerandos do contrato de cessão de exploração do seguinte teor: “Primeira Outorgante sob sua exclusiva responsabilidade, afirma e garante que é legítima arrendatária de uma Estação de Serviço Automóvel, conforme Anexo I, que faz parte integrante deste contrato, na mais completa e ampla acepção do termo, incluindo uma área destinada à instalação e operação de bombas abastecedoras de combustíveis, de um ou mais postos para venda de gás liquefeito, de petróleo em garrafas, uma zona para instalação e operação de serviços de abastecimento de ar e água, loja de conveniência com zona de comida rápida, bem como de um serviço de lavagem automática e manual de veículos automóveis, com previsão de espaço de fila de espera, tudo adiante designado por Estação de Serviço, sito na Estrada ..., nº ...- ..., ... Porto”.
Com base no citado considerando conclui, assim, a apelante que quando o texto do contrato refere que o contrato “promessa” de arrendamento é parte integrante do contrato de cessão, isso não pode deixar de se interpretar que também esse contrato está a ser cedido à cessionária.
Mas, salvo o devido respeito, não se pode sufragar esse entendimento.
Na verdade, com essa referência apenas quis significar que, efectivamente, a apelante era arrendatária dos referidos espaços, como decorria do “contrato de promessa de arrendamento” junto ao contrato de cessão de exploração como Anexo I, o qual (Anexo I) fazia parte integrante deste contrato.
Portanto, daí não se pode retirar, como pretende a apelante, que o referido contrato promessa de arrendamento também estava a ser cedido à Ré apelada como cessionária.
E que assim não é, basta atentar na Cláusula Primeira sob o título “Cedência de Exploração” do citado contrato, onde apenas se faz referência à cedência da exploração da Estação de Serviço.
Portanto, se fosse intenção das partes que a cedência da referida posição de arrendatário também ficasse abrangida por tal contrato, não se vê então razão plausível para que aí não tivesse sido contemplada.
Portanto, aquele (o por nós defendido) sentido seria o que um declaratário normal podia deduzir do comportamento do declarante, supondo-se aquele uma pessoa normalmente diligente e experiente (cfr. artigo 236.º, nº 1, do Código Civil).
Obtempera, porém, a apelante que mesmo que não se entenda que existiu uma cedência da posição de arrendatário, por acordo da Recorrente e da Recorrida, a posição de arrendatária foi cedida à Recorrida B... por via da própria natureza da locação de estabelecimento–vide artigo 1109.º nº 2 do CCivil.
Ora, sob este conspecto, como já supra se deu a entender, acompanhamos a posição do Prof. Jorge Manuel Coutinho de Abreu em detrimento da posição sustentada por Pinto Furtado.[21]
Efectivamente, como refere este Mestre a propósito do contrato de cessão de exploração “[T]ambém não é um contrato misto, associando o arrendamento de prédio ou fracção e o aluguer de estabelecimento ou dos móveis componentes do estabelecimento. O enunciado do n.º 1 do art. 1109.º sugere em alguma medida essa perspectiva. Não obstante, a locação de estabelecimento prevista no art. 1109.º é negócio unitário com objecto (mediato)também unitário: o estabelecimento, feito embora de elementos vários. O gozo do prédio-elemento do estabelecimento é transferido para o locatário a título não autónomo (absorvido no negócio locativo global), não há específico negócio incidindo no prédio (ou em outros elementos); o prédio não é dado em arrendamento nem subarrendado (salvo acordo m contrário)–o locador de estabelecimento e proprietário do imóvel não passa a senhorio (com referência ao prédio), o locador de estabelecimento e arrendatário do imóvel não cede a sua posição arrendatícia nem subarrenda”.[22]
Efectivamente, num juízo meramente perfuntório, parece que o nº 1 do artigo 1109.º do CCivil, o direito que ao locatário cabe relativamente ao uso do local em que se encontra instalado o estabelecimento-entendido, à primeira vista, como propriedade do locador-o coloca na posição de arrendatário. Não se quer com isto dizer que existe uma conversão legal da propriedade do imóvel em arrendamento, mas parece que a lei faz uma espécie de “convolação” ex vi legis da cedência do gozo do imóvel empresarial em arrendamento para o fim de aplicação do seu regime e enquanto durar essa cedência.
Mas será que é assim?
Dúvidas não existem de que, o artigo 1109.º, n.º 1, levado à letra, coloca a tónica na transferência do gozo do prédio-ao contrário do artigo 111.º do RAU, que acentuava a transferência da exploração do estabelecimento.
Quer-nos parecer que assim não é.
Na verdade, a negociação do prédio não surge isolada, mas conjuntamente com outros elementos, em termos de todos eles constituírem um estabelecimento; o direito ao uso-gozo do prédio usufruído pelo locatário da empresa é um reflexo puro e simples do gozo pro tempore da empresa, incluído no negócio locativo global.
Neste contexto, o que se regula nesta disposição é o regime aplicável à locação de estabelecimento (tal como no art. 111.º do RAU), ainda que, a sua disciplina seja firmada em função do prédio como elemento integrante do estabelecimento locado.
Como refere Ricardo Costa[23] “[a]inda que se não deva ignorar o elemento gramatical do preceito, a lei do arrendamento concebeu sempre a locação (“cessão de exploração”) de estabelecimento “como a transferência de um direito sobre o todo” que a empresa é. Esse direito à exploração da empresa envolverá o direito de gozo do prédio onde a empresa funciona mas não se confunde com esse direito. Pelo que não se pôde entender que “a aquisição do direito ao local tem por fonte um contrato de arrendamento”, nem que o próprio negócio sobre o estabelecimento fosse um contrato de arrendamento: o centro de gravidade de tal operação não recai no imóvel, a não ser que houvesse intuito fraudulento das partes, caso em que haveria que desvendar a aparência inventada pelas partes.
As estatuições do artigo 1085.º, n.º 1, na versão de 1966 do Código Civil, e do artigo 111.º, n.º 1, do RAU depreendiam que o estabelecimento locado implicava o gozo de bens imóveis. Sendo transferido temporariamente o gozo do estabelecimento, seria automática a aplicação das normas restritivas do arrendamento e tais disposições afastavam-na
O NRAU (na continuidade do RAU depois de reformado em 1995) deixou cair tais restrições em nome do primado da vontade das partes (em particular, na duração do contrato): não há, por isso, a preocupação em subtrair da locação um regime que com ele deixou, em princípio, de ser incompatível.
Porém, a locação do estabelecimento mantém o seu lugar na economia legal do arrendamento apenas e exclusivamente em razão do prédio. Só a protecção da circulação do estabelecimento tem a responsabilidade de chamar o prédio enquanto seu bem integrante-ainda será o valor dinâmico da exploração da empresa que convoca o valor estático do imóvel.
É esta indissociabilidade que me leva a entender que o art. 1109.º, n.º 1, regula as duas realidades tomadas como inseparáveis pela norma: a realidade empresarial-o negócio de locação do estabelecimento-e a realidade imobiliária-disponibilidade ad tempus do gozo do prédio fundada na locação do estabelecimento, seja ele próprio ou arrendado (ou fruído com base em direito que contenha nas suas faculdades a cedência do seu gozo, como o usufruto pelo locador do estabelecimento.
A ambas se aplica a disciplina do arrendamento não habitacional, desde que compatível com o regime e os interesses em jogo na locação empresarial, em conformidade com o objecto de incidência de cada uma das normas dessa disciplina”.
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Daqui decorre, que a apelada manteve a sua posição de arrendatária relativamente aos imóveis onde funcionava o estabelecimento objecto de cessão de exploração.
Como assim, as relações entre a Autora apelada enquanto locadora e a Ré enquanto locatária do estabelecimento em causa, regem-se pelas regras da subsecção VIII, com as necessárias adaptações, pelo que lhe são aplicáveis as normas da locação não específicas dos arrendamentos prediais.[24]
Aplicação que se mantém mesmo tendo havido cessão da posição contratual da apelante para a apelada relativamente aos contratos referidos nos pontos 5. e 6. (cfr. ponto 12. dos factos provados) e às cláusulas 6ª e 8ª neles insertas (cfr. pontos 32. e 33. dos factos provados).
Com efeito, essas cláusulas mais não são de que um mero decalque do preceituado nos artigos 1043.º e 1044.º do CCivil.
Assente esta premissa na decisão recorrida, discorreu-se, depois, do seguinte modo:
“Pois bem, o art. 1043.º, n.º 1 do CC dispõe que na falta de convenção, o locatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato. Por seu turno, o art. 1044.º do CC determina que o locatário responde pela perda ou deteriorações da coisa, não exceptuadas no artigo anterior, salvo se resultarem de causa que lhe não seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela. Sobre interpretação deste art. 1044.º do CC, em Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 23/10/2012, relatado pelo Exmo. Desembargador Francisco Matos, entendeu-se que a questão resume-se em saber “a quem incumbe o ónus da prova em caso de perda ou deterioração da coisa locada que não resulte de uma prudente utilização do locatário” (in www.dgsi.pt). Prosseguindo, o mesmo acórdão explica que “Considera o recorrente que é ao locador/cedente (a sua responsabilidade, enquanto locatário/cessionário só poderia ocorrer se se provasse a sua culpa) e, em abono da sua tese, poderá dizer-se que está acompanhado por doutrina autorizada; ensina Pereira Coelho que o locatário “não é responsável se as deteriorações provierem de facto seu mas facto não culposo”, “seria injusto o agravamento excepcional da responsabilidade do locatário a que conduziria a interpretação exposta” (ou seja, da responsabilidade do locatário pela perda ou deterioração da coisa independentemente de culpa); no mesmo sentido se pronuncia Pinto Furtado que, aprofundando, ensina: “Se a obrigação que impende sobre o locatário é de fazer uma utilização prudente, logicamente decorre daqui que a sua responsabilidade estará ligada a um comportamento imprudente–quer dizer negligente, culposo.” Entendimento diferente é defendido por Pires de Lima e Antunes Varela ao considerarem que a expressão do artº 1044º, do CC “imputável ao locatário ou a terceiro … significa apenas devida a facto do locatário ou de terceiro, pois não é necessário que haja culpa do locatário na perda ou deterioração da coisa … É uma espécie de responsabilidade objectiva, que tem alguma justificação, quer por ser o locatário quem utiliza a coisa no seu próprio interesse, quer como estímulo legal a uma utilização prudente da coisa que lhe não pertence.” A jurisprudência do Supremo, por seu turno, inclina-se uniformemente no sentido do artº 1044º do CC consagrar uma presunção de culpa do arrendatário pela deterioração da coisa locada, o qual tem de provar que a causa não lhe é imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a sua utilização. E é esta última a leitura que igualmente fazemos do artº 1044º, do CC, independentemente das boas razões que justificariam regime diferente (sobre estas pode consultar-se Pinto Furtado, na obra e local citado).
O princípio que emerge do preceito é o de que o locatário responde pela perda ou deteriorações da coisa. É isto que ao locador incumbe provar. A coisa perdeu-se, ou deteriorou-se (artº 342º, nº1, do CC). A excepção que comporta é a da perda ou deterioração da coisa resultar de causa que não seja imputável ao locatário, nem a terceiro a quem este tenha permitido a utilização dela. Para se valer da excepção ao locatário incumbe provar que a perda ou deterioração da coisa resultou de uma causa que não é imputável a acto ou omissão sua ou a acto ou omissão de terceiro a quem tenha permitido a utilização da coisa (artº 342º, nº 2, do CC)”.
Volvendo à situação dos autos, o que se verifica é que os danos ocorridos se ficaram a dever a uma intempérie que, devido à sua intensidade, destruiu parte do tecto falso do estabelecimento comercial constituído pelo posto de abastecimento de combustíveis explorado pela R.
Dos factos apurados colhe-se inclusive que dias antes da ocorrência danosa verificada no dia 14 de Março houve um episódio idêntico de menores dimensões em relação ao qual foram tomadas as medidas de segurança possíveis.
Do que vem de se dizer, verifica-se, pois, que os danos em discussão resultaram de uma tempestade, caso de força maior que não pode ser evitado, o mesmo sucedendo com as suas consequências de que aqueles danos são exemplo e para cuja produção a R. em nada contribuiu”.
Concorda-se na íntegra com o supratranscrito ao qual nada mais temos a acrescentar, sob pena de nos tornarmos redundantes na apreciação da questão em causa.
Alega a recorrente na sua conclusão 103ª, sob este conspecto, que existe prova suficiente, nos presentes autos, que demonstra que ambos os sinistros se deram por vários factores, sendo que, grande parte deles, se deveram à omissão da recorrida, numa clara alusão a matéria factual que pretendia ver aditada ao quadro factual que nos autos se mostra assente e, concretamente, aos pontos 14-A, 14-B, 18-C e 18-D que, todavia, não foi acolhida no julgamento da impugnação da matéria de facto.
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Diante do exposto, ao contrário do que afirma a apelante (cfr. conclusão 104ª) a Ré apelada fez prova da excepção peremptória que invocou.
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Nas conclusões 105ª a 113ª invoca a apelante o abuso de direito por banda da apelada na modalidade de venire contra factum proprium.
Estriba esta actuação abusiva na circunstância de que, tendo em conta que era a recorrida que tinha de provar a sua exceção peremptória, a mesma estava impedida de a invocar porque ao fazê-lo actuou com abuso de direito, pois que, tendo contratado um seguro para cobrir danos ocorridos no locado, participa o sinistro que dá causa aos presentes Autos e recebe uma compensação pelos danos sofridos no locado.
Ora, salvo o devido respeito, não se pude sufragar este entendimento.
Há abuso do direito sempre que o seu titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social desse direito (artigo 334.º do CCivil).
A boa-fé, como norma de conduta, significa que as pessoas devem comportar-se, no exercício dos seus direitos e deveres, com honestidade, correcção e lealdade, de modo a não defraudar a legítima confiança ou expectativa dos outros.
O abuso do direito “integra o exercício de posições permitidas em termos tais que são contrariados os valores fundamentais do sistema expressos, por tradição, pela boa fé”.
O princípio da tutela da confiança é um dos valores fundamentais que subjazem à boa fé.
É, justamente, a tutela da confiança e da boa fé que está na base da proibição do venire contra factum proprium, uma das situações de abuso do direito que mais frequentemente é invocada.
Em termos genéricos, pode dizer-se que nesta categoria incluem-se os comportamentos contraditórios, o dar dito por não dito, o agir contra o seu próprio acto.
O venire contra factum proprium postula, pois, dois comportamentos da mesma pessoa (física ou jurídica), lícitos em si e diferidos no tempo, e encontra respaldo nas situações em que uma pessoa, por um certo período de tempo, se comporta de determinada maneira, gerando expectativas na outra de que o seu comportamento permanecerá inalterado. Em vista desse comportamento, existe um investimento, a confiança de que a conduta será a adoptada anteriormente, mas depois de referido lapso temporal, é alterada por comportamento contrário ao inicial, quebrando dessa forma a boa-fé objectiva (confiança).
Isto dito, então não era normal que a Ré contratasse um seguro, com vista a acautelar qualquer sinistro que ocorresse no estabelecimento que explorava tendo, sobretudo, em atenção a natureza da atividade e o risco envolvido?
É que importa, não esquecer, que o estabelecimento explorada pela Ré era nada mais nada menos que um Posto de abastecimento de combustíveis.
Por outro lado, o simples facto de Ré recorrida ter participado o sinistro em discussão nestes autos a Seguradora, nunca poderá ser tido como assunção, de forma automática e necessária, de qualquer responsabilidade na ocorrência dos danos verificados, ou seja, não há, nesta atitude, qualquer comportamento contraditório com a defesa apresentada nestes autos de que a verificação dos danos não lhe podia ser imputada por ser consequência de causa de força maior (tempestade) ocorrido nos dias 10/11 e 14 de Março de 2018.
Aliás, cabe perguntar: se a Ré não tivesse ilidido a presunção constante do artigo 1044.º, isto é, que os danos resultarem de causa que lhe não era imputável, não teria que indemnizar a apelante dos danos por esta sofridos no estabelecimento e peticionados nesta acção?
Portanto, a intervenção da Seguradora nos autos foi apenas a titulo acessório, sendo que, a intervenção da chamada nos autos circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento (artigo 321.º nº 2 do CPCivil), isto é, o incidente permite que se estenda ao chamado, os efeitos do caso julgado da sentença, de modo a que não seja possível nem necessário que, na acção subsequente de indemnização proposta pelo réu contra o dito chamado, se voltem a discutir as questões já decididas no anterior processo.
Diga-se, aliás, que, a seguir-se o entendimento da apelante, isto é, que perante a existência da celebração do contrato de seguro, estava a Ré impedida de invocar nos presentes autos a citada excepção peremptória, seria violar o princípio da indefesa enquanto direito constitucionalmente consagrado (cfr. artigo 20.º da CRP), no sentido de que todo aquele que seja interpelado para aquiescer à pretensão de outrem seja dada a possibilidade de discutir a validade dessa pretensão perante um juiz.
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Destarte, não houve, pois, por parte da recorrida, o exercício ilegítimo de um direito, que tenha excedido manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, não se podendo concluir que a recorrida tenha assumido algum comportamento que se consubstancie em abuso de direito, seja em que modalidade for.
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Improcedem, desta forma, as conclusões 90ª a 114ª formuladas pela Autora apelante e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta improcedente por não provada e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas da apelação pelo Autor apelantes (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 06 de Fevereiro de 2023.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
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[1] Redacção resultante da procedência da impugnação da matéria de facto.
[2] De facto, “é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc.”-Abrantes Geraldes in “Temas de Processo Civil”, II Vol. cit., p. 201) “E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância” (ibidem). “Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores” (Abrantes Geraldes in “Temas…” cit., II Vol. cit., p. 273).
[3] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.
[4] Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[6] Ac. Rel. Porto de 19 de Setembro de 2000, CJ XXV, 4, 186; Ac. Rel. Porto 12 de Dezembro de 2002, Proc. 0230722, www.dgsi.pt
[7] No que diz respeito aos factos conclusivos cumpre observar que na elaboração do acórdão deve observar-se, na parte aplicável, o preceituado nos artigos 607.º a 612.º CPCivil aplicáveis ex vi artigo 663.º, nº 2 do mesmo diploma legal.
[8] José Lebre de Freitas e A. Montalvão Machado, Rui pinto Código de Processo Civil–Anotado,Vol. II, Coimbra Editora, pag. 606.
[9] Antunes Varela, J. M. Bezerra, Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Actualizada de acordo com o DL 242/85, S/L, Coimbra Editora, Lda, 1985, pag. 648.
[10] In “Código de Processo Civil Anotado”, Volume V, pág. 151.
[11] Esta alínea tem a seguinte redacção:
2 - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
(…)
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
(…).
[12] In Recursos em Processo Civil Novo Regime, 2.ª edição revista e actualizada pág. 297.
[13] In www.dgsi.pt.
[14] Cfr. Pupo Correia, Direito Comercial, 10ª edição, p. 72.
[15] Acórdão do STJ de 19.04.2012 in www.dgsi.pt..
[16] Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, Volume I, Almedina 2011, p. 105.
[17] Ibidem.
[18] Citado por Miguel Pupo, in Direito Comercial, 10ª edição, p. 74, o qual é por sua vez citado no Acórdão do STJ de 19.04.2012 (vd. nota 2).
[19] In RLJ, ano 100°, pg.270..
[20] In www.dgsi.pt..
[21] In “Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano”; Edições Almedina; 2ª edição; 2021; anotação 3.I ao artigo
1109; pp. 761.
[22] In “Curso de Direito Comercial”, Vol. I, 12.ª Edição, Almedina, págs. 330/1.
[23] In O Novo Regime do Arrendamento Urbano e os Negócios sobre a Empresa-https://ricardo-costa.com e que aqui seguimos de perto.
[24] Neste sentido Jorge Manuel Coutinho de Abreu, obra citada, pág. 330.