INTRODUÇÃO EM LUGAR VEDADO AO PÚBLICO
ELEMENTOS DO TIPO
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
Sumário

I- Dando-se como provado que o arguido sabia que não tinha o consentimento dos moradores para entrar na propriedade e ainda assim transpôs o portão, bem sabendo que aquela já não era a sua habitação, tem que se concluir que o arguido com esta actuação não podia deixar de saber que a sua conduta era proibida e que agiu de forma livre, deliberada e consciente. Impõe-se, assim, transpor este facto para os factos provados.
II- Em recurso, o Tribunal da Relação pode alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido desde que dê cumprimento ao disposto no art.º 424º, n.º 3 do CPP
III- O tipo legal do crime de violação de domicílio tem por elemento objectivo a habitação, entendida como espaço fisicamente fechado. O bem jurídico protegido é a privacidade/intimidade do sujeito ou sujeitos que aí habitam, incluindo-se neste conceito a paz e o sossego dos referidos sujeitos.
IV- Concluímos que o arguido praticou um crime de introdução em lugar vedado ao público p. e p. pelo art.º 191º do CPenal. O arguido acedeu a um lugar vedado e não livremente acessível ao público e que é propriedade privada. O espaço estava devidamente limitado por um muro e o arguido acedeu através do portão. O espaço físico delimitado constitui pressuposto necessário e suficiente para o preenchimento do tipo de crime.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
No âmbito do Processo comum singular com o n.º 668/21.4KRLSB.L1 a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 1 - foi julgado e absolvido o arguido A por sentença de 30.6.2022.
Desta decisão veio o MºPº interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos que constam de fls. 149 a 154 dos autos, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das conclusões seguintes:
“1. O presente recurso tem por objeto a douta sentença que absolveu o arguido pela prática de um crime de violação de domicílio, previsto e punido nos termos do artigo 190.º, n.º 1 do Código Penal por não preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime.
2. A Mma. Juiz a quo considerou como facto provado que “Então, pese embora bem soubesse e não pudesse ignorar que aquela não era já a sua habitação, e que não tinha consentimento de qualquer um dos respetivos moradores, mormente de B, para ali entrar em tais circunstâncias, o arguido, prevalecendo-se de o portão da propriedade não estar ainda fechado, usou tal ponto de acesso para atravessar o mesmo.”
3. Mais considerou como facto não provado que “5. Agiu o arguido com o propósito logrado de se introduzir no domicílio da ofendida B, embora bem soubesse que assim procedia contra a vontade e sem o consentimento da ofendida, e que a tanto não lhe assistia direito, por aquela já não ser a sua habitação, persistindo em permanecer naquele local mesmo após vários pedidos da ofendida para que dali saísse.
4. Mais considerou como não provado que 6. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.”
5. Entende o Ministério Público que se verifica no caso dos autos uma contradição entre os factos provados, nomeadamente o n.º 7, e os factos não provados, nomeadamente o n.º 5 e o 6 e a douta decisão, verificando-se, assim, uma contradição insanável entre a decisão e a fundamentação nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal.
6. Estipula o artigo 190.º, n.º 1 do Código Penal que “Quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias”.
7. O segmento final do facto dado como provado e suprarreferido, integra, por si só o elemento objetivo do tipo de crime de violação de domicílio, nomeadamente a primeira parte do n.º 1 do artigo 190.º, ou seja, “Quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa”.
8. Ora, na decisão a Mma. Juiz a quo afirmou que não se tem por preenchido o elemento objetivo, o que salvo o devido respeito, não se entende.
9. Não só tal facto foi tido por provado, como na fundamentação da decisão não se faz apelo ou se justifica tal entendimento.
10. Quanto ao elemento subjetivo do ilícito em apreço considerou como facto provado a Mma. Juiz a quo que: “Então, pese embora bem soubesse e não pudesse ignorar que aquela não era já a sua habitação, e que não tinha consentimento de qualquer um dos respetivos moradores, mormente de B, para ali entrar em tais circunstâncias, o arguido, prevalecendo-se de o portão da propriedade não estar ainda fechado, usou tal ponto de acesso para atravessar o mesmo”
11. E como não provado que “5. Agiu o arguido com o propósito logrado de se introduzir no domicílio da ofendida B, embora bem soubesse que assim procedia contra a vontade e sem o consentimento da ofendida, e que a tanto não lhe assistia direito, por aquela já não ser a sua habitação, persistindo em permanecer naquele local mesmo após vários pedidos da ofendida para que dali saísse.
12. Na fundamentação da douta sentença a Mma Juiz a quo mencionou que “O que decorre da prova produzida é que existe entre arguido e queixosa um conflito latente relativo aos filhos de ambos”.
13. Ora, são diversas as espécies de dolo previstas nos vários números do art.º 13.º do Código Penal: dolo direto (em que o agente tem a intenção de realizar o facto criminoso), o dolo necessário (quando o agente não quer o facto, mas prevê-o como consequência necessária da sua conduta) e o dolo eventual (quando o agente prevê o facto como consequência possível, conformando-se com o resultado)”.
14. Atente-se que mesmo que se entendesse que o arguido agiu com o propósito de ver os filhos e não com o propósito de se introduziu no domicílio da ofendida, em boa verdade, atendendo a que os filhos do arguido se encontravam no interior da habitação (sentido lato, incluído o logradouro) o mesmo sempre teria de prever como necessária a violação do domicílio daqueles, pelo que sempre se teria por preenchido o dolo nomeadamente necessário.
15. Reitera-se que no caso dos autos a Mma. Juiz a quo ao ter dado como provado que o arguido sabia que não tinha autorização para entrar na habitação e mesmo assim entrou, não poderia dar como não provado a intenção do arguido em nela entrar.
16. O dolo é um conceito jurídico que tem de ser preenchido por factos.
17. A nível probatório, o dolo, enquanto facto interno, deduz-se dos factos externos, objetivos, sob pena de nunca estar preenchido o tipo de crime pelo qual se pretende levar o arguido a julgamento.
18. A Mma. Juiz a quo deu como não provado que “6. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.”
19. Quanto à consciência da ilicitude importa referir que no caso dos autos não estamos perante um crime com pouca relevância axiológica como o arguido se apresenta titular de um grau académico de mestre pelo que não se pode concluir que o mesmo não tenha consciência da ilicitude do seu comportamento e que tal conduta era proibida por lei.
20. Ao absolver o arguido pela prática do crime pelo qual vinha acusado dando como provados e não provados os factos suprarreferidos, o tribunal a quo incorreu numa contradição insanável entre a fundamentação e a decisão nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal.
21. Impõe-se como solução justa uma sentença de condenação.
22. Por tudo o exposto, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que, tendo em conta os factos nela dados como provados e a sua contradição com os não provados, condene o arguido de acordo com o acabado de explanar e, concretamente, pela prática de um crime de violação de domicílio, previsto e punido nos termos do artigo 190.º, n.º 1 do Código Penal.
Termos em que revogando a douta sentença recorrida, V. Ex.ª farão, na opinião da recorrente, como sempre a habitual e costumada JUSTIÇA!”
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O arguido A respondeu a fls. 156 a 161 dos autos ao recurso, sem apresentar conclusões e nos seguintes termos:
“Provou-se tão-só, tal como consta na douta Sentença revidenda, que o Arguido passou o portão que separa a via pública da propriedade que constitui a residência onde habita a sua ex-mulher e os seus filhos, aproveitando-se de o portão da propriedade não estará ainda fechado.
Assim, tendo presente o supra exposto, e no seu confronto com a factualidade provada, importa desde logo concluir que a conduta do Arguido não preenche nenhum dos elementos do tipo base do crime de violação de domicílio, posto que, conforme resulta da matéria factual provada, nunca se introduziu na habitação da Queixosa, limitando-se a passar o portão que separa a habitação da via pública.
Conclui-se, deste modo, que a douta sentença não incorre em qualquer contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, designadamente entre os factos provados, nomeadamente o n.º 7, e os factos não provados, nomeadamente os n.ºs 5 e 6 da douta Sentença, devendo a mesma ser confirmada.”
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Neste Tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu e que se encontra a fls.165 dos autos, pugna pela procedência do recurso.
Cumprido o preceituado no art.º 417.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal, nada mais de relevante veio a ser acrescentado.
Efetuado o exame preliminar e por despacho de 29.1.2023, que aqui se dá por reproduzido, foi determinado pela relatora deste processo o cumprimento do disposto no art.º 424º, n.º 3 do CPP em relação ao arguido.
Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
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II- Fundamentação:
Fundamentação de facto
 São os seguintes os factos dados como provados e não provados pelo Tribunal de 1.ª Instância e ainda a respectiva motivação de facto:
“1. O arguido e a ofendida B casaram um com o outro em 10 de Novembro de 2001, vínculo dissolvido por divórcio em 3 de Maio de 2018.
2. O arguido e B são progenitores comuns de C, nascido em 28 de Fevereiro de 2005, e de D, nascida em 30 de Janeiro de 2012.
3. Por sentença de 20 de Setembro de 2018, foi homologado acordo quanto ao exercício das responsabilidades parentais pertinentes a D e seu irmão C, ficando os mesmos a residir com B, mãe de ambos.
4. Em data não concretamente apurada, mas anterior à dos factos em causa nos autos, o arguido deixou de viver no até então domicílio comum e casa de morada de família, sito na Rua E, em Lisboa, não mais ali habitando, aí permanecendo a residir a vítima B, na companhia dos filhos comuns.
5. No dia 13 de Janeiro de 2021, pelas 18H30, tripulando seu veículo automóvel, e fazendo-se acompanhar de seus filhos ..., a ofendida B abeirou-se de sua casa, sita na Rua E, em Lisboa.
6. B abriu então o portão do muro delimitador do imóvel, conduzindo de seguida o veículo para o interior da garagem contígua à habitação.
7. Então, pese embora bem soubesse e não pudesse ignorar que aquela não era já a sua habitação, e que não tinha consentimento de qualquer um dos respetivos moradores, mormente de B, para ali entrar em tais circunstâncias, o arguido, prevalecendo-se de o portão da propriedade não estar ainda fechado, usou tal ponto de acesso para atravessar o mesmo.
Mais se provou que:
8. O arguido é engenheiro desenvolvendo a sua actividade na área de gestão de projectos, declarando retirar desta actividade cerca de €2.000,00 por mês.
9. É divorciado, vive sozinho em casa arrendada, pagando €700,00 de renda mensal.
10. Tem dois filhos de 17 e 10 anos de idade suportando uma pensão de alimentos de €300 mensais.
11. Ao nível de habilitações literárias completou um mestrado.
12. Consta do certificado de registo criminal do arguido que o mesmo já foi julgado e condenado no âmbito do:
a. Processo n.º 765/19.6PALSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Lisboa- Juízo Local Criminal – Juiz 13, pela prática de um crime de violação de domicílio, por factos ocorridos em 17-12-2020, por decisão transitada em julgado no dia 24-01-2022, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de €10,00.
Matéria de facto não provada
1. Nas circunstâncias referidas em 7., dirigiu-se de imediato para a garagem.
2. B e seus filhos entraram então na habitação, contígua à garagem, sendo de pronto seguidos pelo arguido, que se introduziu assim também na habitação, pese embora bem soubesse e não pudesse ignorar que o fazia sem o consentimento da ofendida.
3. O arguido permaneceu pelos menos quinze minutos na habitação da ofendida, pretextando querer falar com esta, sendo que ao longo desse período a ofendida pediu várias vezes ao arguido para que saísse de sua casa, rogos de que o arguido ficou bem ciente, mas de que não fez caso.
4. O arguido só abandonou o local volvidos alguns momentos, quando ali compareceu efectivo da PSP.
5. Agiu o arguido com o propósito logrado de se introduzir no domicílio da ofendida B, embora bem soubesse que assim procedia contra a vontade e sem o consentimento da ofendida, e que a tanto não lhe assistia direito, por aquela já não ser a sua habitação, persistindo em permanecer naquele local mesmo após vários pedidos da ofendida para que dali saísse.
6. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.
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Consigna-se que não se fez constar dos factos assentes e não assentes factos conclusivos e/ou valorativos, bem como matéria irrelevante para a boa decisão da causa ou meramente instrumental para a mesma, em face dos factos que se consideraram provados.
Fundamentação da matéria de facto
O Tribunal formou a sua convicção na ponderação, à luz das regras da experiência comum e na livre convicção do julgador, da análise crítica e conjugada do conjunto da prova produzida, nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
A livre apreciação da prova não se confunde com apreciação arbitrária da prova, pois que tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios de experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
O arguido prestou declarações, o que fez de forma emotiva e sempre invocando o impedimento que se vem verificando de estar com os seus filhos e cuja responsabilidade atribuiu quer à progenitora, quer à Justiça Portuguesa (sic), afirmando que não está com os mesmos há cerca de 2 anos e meio.
O arguido diz que passou o portão que separa a via pública da propriedade que constitui a residência onde habita a sua ex-mulher e os seus filhos, durante cerca de 1 minuto, após o que saiu aguardando a chegada da autoridade que constatou que havia sido chamada pela queixosa.
A testemunha B, ex-mulher do arguido disse que aquele aproveitando o momento em que ia entrar com o seu carro pelo portão que dá acesso à sua residência, passou pelo mesmo, dirigiu-se à garagem e sentou-se no interior do veículo conduzido pela queixosa, no local onde se encontrava a filha de ambos.
O arguido só se retirou dali quando se apercebeu da chegada da viatura policial.
Depoimento da testemunha C, filho do arguido e da queixosa não se revelou, objectivo nem espontâneo, mas uma “colagem” (e ainda assim não exacta), ao depoimento da testemunha B, sua mãe, não contribuindo assim, para a formação da convicção do Tribunal.
Desde logo uma dúvida se suscita quanto à razão pela qual a testemunha diz que depois de muito tempo sem falar com o seu pai, por sua vontade, toma a iniciativa de falar com o mesmo por telemóvel, numa altura em que a sua mãe não está presente por estar infectada com Covid-19.
Sérias e fundadas dúvidas se suscitam quanto à espontaneidade do depoimento desta testemunha que se revelou antes condicionado pelo da testemunha B, sua mãe.
O que decorre da prova produzida é que existe entre arguido e queixosa um conflito latente relativo aos filhos de ambos.
Relato dos factos feito por um e outro é diverso em alguns pontos específicos e relevantes para a situação em causa nos autos, não sendo possível concluir, com segurança que as declarações de um ou o depoimento de outro, se revelam mais credíveis do que outro, na sua globalidade, atento o conflito existente. Não obstante, as declarações do arguido no que respeita ao local onde se encontrava quando os srs. Agentes da PSPP veio a ser corroborado pelo depoimento destes na medida em que referiram que o arguido se encontrava no exterior da propriedade, na via pública.
Diz a testemunha B que o arguido quando viu as rotativas do carro da polícia saiu do local onde se encontrava, a garagem, e foi para a via pública. Ora, a testemunha Tiago Zambujeiro, agente da PSP, que esteve no local em causa nos autos afirmou de forma peremptória que considerando a configuração da via de onde provinha a viatura policial, estando dentro da garagem, não é possível ver aquela ou a rotativa.
Também a testemunha FJ, agente da PSP, quando chegou ao local, no exercício das suas funções, disse ter falado com o arguido no exterior do perímetro da casa onde a queixosa e os seus filhos habitam.
Arguido e testemunhas B e C, apresentam versões contraditórias, sendo que as do arguido têm mais suporte na demais prova produzida na medida em que os agentes da PSP ao chegarem ao local encontram o arguido na via pública junto ao seu veículo e dizem que estando dentro da garagem não seria possível ver a aproximação da viatura policial ainda que com as rotativas ligadas.
Por este motivo se consideraram não provados os factos supra enunciados.
Atendeu ainda o Tribunal ao teor de fls.49 a 54 e 69 a 90.
Teve-se em conta as declarações do arguido no que respeita à sua situação pessoal e o teor do certificado do registo criminal quanto aos antecedentes criminais.”
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Fundamentos do recurso:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (cf. art.º 412.º do CPP e, entre outros, Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção).
Questão a decidir:
- Se existe contradição insanável entre os factos provados e a decisão, entre a fundamentação e a decisão, nos termos do art. 410, n.º 2, al. b) do CPP.
Decidindo.
Impugnando a matéria de facto, o recorrente invoca os vícios da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
Dispõe o art.º 410º, n.º 2, do CPP:
“2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; 
c) Erro notório na apreciação da prova”.

Os vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, são vícios da decisão que devem ser apreciados à luz do texto da decisão recorrida, devem resultar do texto, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. O seu regime legal não inclui a reapreciação da prova, como sucede com a impugnação ampla da matéria de facto, limitando-se o tribunal de recurso à detecção do defeito que a sentença revela e, não podendo saná-la, determinar o reenvio.
 Como se escreve no Acórdão da Relação de Coimbra de 12.6.2019 (in dgsi.pt):
“I - Os vícios decisórios – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – previstos no nº 2 do art.º 410º do CPP, traduzem defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento e por isso, a sua evidenciação, como dispõe a lei, só pode resultar do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum. (negrito nosso)
II – Existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito ou seja, quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adoptada designadamente, porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria contida no objecto do processo, relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, 2007, Rei dos Livros, pág. 69).
III – E existe erro notório na apreciação da prova quando o tribunal a valorou contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Edição, 2000, Editorial Verbo, pág. 341)”.
Apreciando a invocada contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
O recorrente MºPº invoca nas conclusões 5 e 7 a 16, contradição entre o facto provado 7. e os factos não provados 5. e 6.
Alega o recorrente que tendo-se dado como provado na sentença recorrida o elemento intelectual do dolo, resulta do facto 7. que também se provou o elemento volitivo, que resulta da conduta do arguido que foi dada como provada.
Temos aqui que fazer apelo aos elementos que integram o conceito de dolo.
De entre os elementos do tipo subjectivo de ilícito estão os que se relacionam com o dolo ou a negligência.
Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência (art.º 13.º do CP). A negligência está definida no art.º 15º do CPenal. O dolo vem legalmente definido nos vários elementos que o compõem no art.º 14.º do CPenal. Estes elementos costumam ser referidos, sinteticamente, como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito.
Não há uma fórmula semântica única para a descrição dos factos que integram o tipo de dolo, sendo, naturalmente, livres a redacção e a utilização dos termos que servirão para descrever, para integrar o dolo, não havendo uma fórmula que, não sendo utilizada ipsis verbis, conduza à absolvição do arguido.
Analisando mais detalhadamente no que ao dolo diz respeito, e simplificando para não entrarmos no tratamento das diversas teses doutrinárias, o dolo desdobra-se num elemento intelectual e num elemento volitivo. O elemento intelectual do dolo implica, desde logo, o conhecimento - previsão ou representação - por parte do agente, dos elementos materiais constitutivos do tipo objectivo do ilícito. O outro elemento do dolo, o elemento volitivo, consiste na vontade, por parte do agente, de realizar o facto típico, depois de ter representado – ou previsto- as circunstâncias ou elementos do tipo objectivo do ilícito.
Analisando a sentença no que respeita aos factos provados, mormente para o que aqui interessa, o ponto 7., conclui-se que existe, efectivamente, uma contradição entre este facto provado e o facto não provado n.º 6. Com efeito, o arguido sabia que não tinha o consentimento dos moradores para entrar na propriedade e ainda assim transpôs o portão, bem sabendo que aquela já não era a sua habitação. Da fundamentação de facto resulta que este facto foi dado como provado com fundamento nas declarações do arguido. E assim, o arguido com esta sua actuação não podia deixar de saber que a sua conduta era proibida (pois não consentida por quem lá vivia) e que agiu inequivocamente de forma livre, deliberada e consciente.
Ou seja, o arguido quis atravessar o portão e atravessou-o, sabendo que não podia entrar naquela propriedade que já não era a sua habitação e que as pessoas que legitimamente usufruíam da habitação e do espaço de acesso à mesma não consentiram em que aquele ali entrasse. Não vemos que, dando-se como provado o ponto 7. se possa dar como não provado o ponto 6.
Já o mesmo não se pode dizer em relação ao ponto 5. (factos não provados), uma vez que este ponto adiciona matéria de facto, quer quanto ao domicílio, quer quanto à persistência do arguido em ali permanecer, apesar dos vários pedidos da ofendida para que dali saísse. A apreciação deste facto impunha que tivesse havido uma impugnação alargada da matéria de facto, nos termos do art.º 412º, n.º 3 e 4 do CPP e que fossemos ouvir a prova gravada, o que manifestamente extravasa o âmbito do recurso. Sublinhe-se que na fundamentação dos factos a M.ma juíza esclarece que os agentes da PSP encontraram o arguido na via pública e como tal foi entendido que as declarações do arguido mereciam mais credibilidade do que as declarações da ofendida que disse que o arguido estava dentro do seu carro, na garagem.

Analisemos, agora questão diferente.
Como se escreve no acórdão do STJ de 8.2.2001:
“ O acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/95, de 7.6.95 (DR IS-A de 6-7-95 e BMJ n.º 448 pág. 107) que decidiu: "o Tribunal Superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus", e o assento n.º 2/93 do STJ, em cuja senda aquele se situa, reformulado, na seguinte forma (Assento n.º 3/2000, 15-12-1999, DR IS-A de 11-2-2000.): "Na vigência do regime dos Códigos de Processo Penal de 1987 e de 1995, o tribunal, ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta existisse, podia proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente desse conhecimento e, se requerido, prazo, ao arguido, da possibilidade de tal ocorrência, para que o mesmo possa organizar a respectiva defesa." fundam-se na ideia de que constitui núcleo essencial da função de julgar, o enquadramento jurídico dos factos apurados, a determinação do direito, pelo que não está limitada por errado enquadramento que haja sido feito pelos interessados ou pelas partes.
2 - Ideia reafirmada no mencionado acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/95 com redobrado valor, tratando-se já não de pronúncia, mas de sentença penal condenatória que potencia o exame e crítica em via de recurso e que ganha ainda maior sentido tratando-se, como se trata, de um recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça, cuja natureza e funções tornariam incompreensível que, detectado um erro de direito em relação a uma condenação submetida a recurso, se abstivesse de o corrigir, mesmo tratando-se de fazer respeitar a sua jurisprudência obrigatória, defesa cuja importância justifica, só por si, a existência de um recurso extraordinário próprio - o do art.º 446.º do CPP.
3 - Ainda que o recorrente não ponha concretamente em causa a incriminação definida pelo Colectivo (no caso, o objecto do recurso circunscreve-se à questão da medida da pena aplicada), não pode nem deve o STJ - enquanto tribunal de revista e órgão, por excelência e natureza, mentor de direito - dispensar-se de reexaminar a correcção das subsunções.”
Também no Acórdão da Relação de Coimbra de 13.11.2013 (in dgsi.pt):” 1.- O tribunal de recurso deve pronunciar-se sobre todas as questões de conhecimento oficioso;
2.- Os poderes de cognição dos tribunais superiores em matéria de indagação e aplicação do direito só sofrem a limitação da reformatio in pejus e como tal, a matéria de indagação e aplicação do direito, designadamente, a qualificação jurídica, é de conhecimento oficioso;
3.- Do que antecede resulta que a reformatio in melius é sempre possível, mesmo sobre aspetos não especificados no recurso, já que não devem ser colocados obstáculos meramente formais à eliminação do erro judiciário, pois no processo penal está, ou pode estar, em causa a liberdade, e a inocência do arguido se presume até ao trânsito da sentença condenatória;”

Em recurso, o Tribunal da Relação pode alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido.
Vejamos então.
Como vem sendo entendido doutrinária e jurisprudencialmente o tipo legal do crime de violação de domicílio tem por elemento objectivo a habitação, entendida como espaço fisicamente fechado (de forma estereotipada: quatro paredes e um telhado), efectivamente reservado ao alojamento (permanência, descanso, convívio, alimentação, pernoita) de uma ou várias pessoas, nomeadamente de uma família.
O crime de violação de domicílio mostra-se contemplado no art.º 190.º, n.º 1, do Código Penal, e determina que quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.
O bem jurídico protegido é a privacidade /intimidade do sujeito ou sujeitos que aí habitam, incluindo a paz e o sossego que estão envolvidos nesse conceito.
Quanto ao elemento objectivo, importa considerar que “habitação é o espaço físico fechado onde o ofendido se aloja e pernoita. Pode tratar-se de um local de alojamento temporário, periódico ou intermitente. Assim, são exemplos de habitação um quarto de hotel (acórdão do TRE, de 15.4.1986, in BMJ, 358, 625) ou um quarto arrendado a um hóspede numa casa particular (acórdão do STJ, de 2.6.1993, in BMJ, 428, 257). (...) Condição essencial é a de que o espaço físico seja efectivamente ocupado pelo ofendido, nele fazendo a sua vida e nele tendo os seus pertences. (...)” – Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, p. 513.
Além disso, “é irrelevante a natureza jurídica do título de ocupação do espaço físico, podendo consistir num direito real ou obrigacional ou numa situação de direito público. Por exemplo, cometem o crime o arrendatário de um andar que invade os aposentos ocupados pelas subarrendatárias, contra a vontade destas (acórdão do TRL, de 15.2.1989, in CJ, XIV, I, 152) ou o agente que invade a casa da ofendida, mesmo que ela aí habite por mera tolerância (acórdão do TRG, de 3.5.2004, in CJ, XXIX, 3, 289).”  – Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., p. 513.
Como exemplarmente se escreve no acórdão da RL de 15.5.2018, no processo n.º 346714.0PEAMD, in dgsi.pt:
«Analisando-se o bem jurídico numa dupla dimensão:
- Uma dimensão formal (a ultrapassagem de um espaço fisicamente assegurado e hoc sensu a violação da posição de domínio que confere ao portador concreto o direito de admitir e excluir);
- Uma dimensão material, correspondente aos valores ou interesses pertinentes à privacidade/intimidade.
Para Nelson Hungria, citado por Simas Santos e Leal Henriques, o que se protege com esta incriminação “não é o domicílio civil, isto é, o lugar de residência com ânimo definitivo, o centro de ocupações habituais ou o ponto central de negócios…, mas a casa de moradia, o home, o chez soi, a habitação particular, o local reservado à vida íntima do indivíduo ou à sua actividade privada, seja ou não coincidente com o domicílio civil. É o mesmo domicílio cuja inviolabilidade a nossa constituição assegura… O direito penal, aqui, é sancionador do direito constitucional e não do direito privado. Tutelando a casa de habitação, está a lei penal defendendo um dos redutos da liberdade individual”.
O Tribunal Constitucional tem arredado integrar no conceito de domicílio, para efeitos do disposto no art.º 34.º, n.º 1, da C.R.P., o conceito técnico de domicílio, como este vem definido no Código Civil, v.g., art.º 80.º, por ser demasiado restrito, tendo em vista o sentido e a função da tutela constitucional. Daí que nesse conceito se venha abarcar qualquer local de habitação, seja ela principal, secundária, ocasional, em edifício ou em instalações móveis.
E dimensionando e moldando o domicílio a partir da observância do respeito pela dignidade da pessoa humana, na sua vertente de reserva da intimidade da vida familiar – como tal conjugado com o disposto no n.º 1 do artigo 26.º da CR – assim acautelando um núcleo íntimo onde ninguém deverá penetrar sem consentimento do próprio titular do direito.
Entendendo-se que o bem protegido com a inviolabilidade do domicílio e o étimo de valor que lhe vai associado têm a ver com a subtracção aos olhares e ao acesso dos outros da esfera espacial onde se desenrola a vivência doméstica e familiar da pessoa, onde ela, no recato de um espaço vedado a estranhos, pode exprimir livremente o seu mais autêntico modo de ser e de agir.
Daí que a protecção legal recaia sobre a liberdade individual no âmbito habitacional e não sobre a posse ou a propriedade do habitáculo em si.
Face ao conceito alargado de domicílio aí se deve incluir qualquer construção utilizada, permanente ou transitoriamente, para moradia individual ou familiar, e também os espaços fechados integrados fisicamente na morada, como sejam as garagens e os anexos, mas já não os pátios, os jardins ou similares desde que não fechados e, portanto, não integrados na construção em si que serve de habitação.
O crime em apreço nestes autos prende-se com a primeira parte do n.º 1, do art.º 190.º, do Cód. Pen., introdução na habitação de outra pessoa sem consentimento.
O que cabe decidir é quem é o portador do bem jurídico, no dizer do Professor Costa Andrade, no caso vertente.
Como ensina este Insigne Professor, o portador do bem jurídico tutelado pelo crime de violação de domicílio é aquele a que assiste o domínio e a disposição sobre o espaço da habitação, seja qual for o seu fundamento jurídico (…). Decisivo é apenas que aquela posição tenha sido adquirida de forma conforme ao direito.
O que se entende, porquanto o domicílio tem de ser visto como uma projecção espacial da pessoa que reside em certa habitação, uma forma de uma pessoa afirmar a sua dignidade humana, e só a ela, pois, assistir o domínio e a disposição sobre o espaço da habitação.»
Mas assim sendo, parece-nos medianamente claro que os factos dos autos não podem integrar o crime de violação de domicílio, uma vez que não se provou que o arguido tenha entrado dentro de casa, mas apenas que entrou na propriedade, transpondo o portão do muro que dá acesso à garagem- cfr. pontos 6. e 7. dos factos provados. Com efeito, não nos parece que o bem jurídico protegido por aquela incriminação seja violado quando se acede a espaços abertos, ainda que ligados, conexos ou contíguos à casa de habitação, como seja in casu o portão de um muro, que dá acesso a uma garagem.
Estamos, sim, perante um crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto no art.º 191º do CPenal que prevê que: “Quem, sem consentimento ou autorização de quem de direito, entrar ou permanecer em pátios, jardins ou espaços vedados anexos a habitação, (…) ou em qualquer outro lugar vedado e não livremente acessível ao público, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias.”
 Como se escreve no sumário do Acórdão da RL 11.7.2013, in proc. n.º 1208/10.6GCALM.L1-3 (dgsi.pt):
“II- Em ambos os ilícitos (previstos nos artigos 190º e 191º do Código Penal), “a entrada arbitrária no espaço físico delimitado constitui pressuposto necessário e suficiente para o preenchimento da factualidade típica”. Acontece que art.º 190º, nº 1, tem como elemento do tipo a introdução na habitação de alguém, e o bem jurídico tutelado é a privacidade e intimidade do núcleo mais reservado da vida privada, consistente na habitação, no sentido de edificação dentro de quatro paredes e um teto onde se desenrola a intimidade da vida pessoal de cada um.
III- Esse especialíssimo núcleo de privacidade não se estende a espaços abertos, ainda que ligados, conexos ou contíguos à casa de habitação, como é o caso do alpendre, daí que a introdução não autorizada no alpendre da casa seja de subsumir na previsão do art.º 191º, do Código Penal.”
E permitindo-nos transcrever parte significativa deste douto Acórdão que em nosso entender tem plena aplicação ao caso concreto:
“E aqui, no que ao caso interessa, há que dilucidar, desde logo, se um alpendre integra ou não o espaço "habitação".
 (…) Significa isto que um alpendre não integra a "casa" enquanto espaço fechado, reservado ao desenrolar do núcleo mais íntimo e privado da vida doméstica dos seus detentores. É um anexo à casa, ainda que inserido da estrutura do edifício que, consoante a sua arquitectura, abriga ou não espaços abertos e fechados ao nível de qualquer piso. Um alpendre tem uma relação com a casa de habitação semelhante a um pátio, terraço ou varanda. Não é pelo facto de estar inserido na estrutura do edifício que perde a sua autonomia funcional.
Ora, o que se protege no tipo em análise, nas esclarecedoras palavras de Costa Andrade, é a privacidade da intimidade «que só é protegida face a agressões qualificadas pela exigência de violação de uma esfera pessoal espacialmente limitada e fisicamente assegurada: a habitação. E isto num duplo e complementar sentido. Em primeiro lugar, a factualidade típica esgota-se na entrada ou permanência arbitrárias, não pressupondo a perturbação ou a frustração dos interesses em geral levadas à conta da função social do domicílio (...). Em segundo lugar, avulta a atipicidade das agressões ou perturbações que não se reconduzam à entrada ou permanência não consentidas. Como acontece quando alguém espreita para a casa de outrem (...). Na pertinente síntese de RUDOLPHI, o que aqui está em causa é a "tutela formalizada de uma esfera privada ou de segredo, eminentemente pessoal e espacialmente limitada" (SK § 123 3; no mesmo sentido, M/ S / MAIWALD I 304).
(. . .) § 14 O objecto da acção é a habitação. A habitação é o espaço fisicamente fechado (de forma estereotipada: quatro paredes e um telhado) efectivamente reservadas ao alojamento (permanência, descanso, convívio, alimentação, pernoita) de uma ou várias pessoas, nomeadamente de uma família. A habitação está normalmente associada à casa, sua forma paradigmática. Mas não se identifica necessariamente com ela.
(…) Diferentemente, já cairão no âmbito do art.º 191 º os jardins, os pátios ou demais espaços anexos e vedados mas não "fechados" no sentido aqui pressuposto (designadamente, não cobertos)».
Ressalta da análise do Prof. Costa Andrade que o objecto da protecção da norma se reporta ao especialíssimo núcleo de privacidade adstrito à habitação, no sentido de edificação dentro quatro paredes e um tecto onde se desenrola a intimidade da vida pessoal de cada um. Esse especialíssimo núcleo de privacidade não se estende a espaços abertos, ainda que ligados, conexos ou contíguos à casa de habitação, porque ainda que adstritos à vida privada - ao laser, normalmente - tais espaços têm características distintas do núcleo fechado onde o essencial dos actos próprios da vida doméstica se praticam. Não é indiferente, ao sentimento de devassa de uma pessoa, saber que alguém se sentou no seu sofá, deitou na sua cama, comeu na sua louça, mexeu nas suas gavetas ou nos seus livros ou saber que alguém lhe entrou, pura e simplesmente, no alpendre.
(…) Ora, essa é, quanto a nós, a grande diferença que distingue os tipos do art.º 190º e do 191º, do CP. E, nesta precisa medida, entende-se que os actos praticados pelo arguido não se subsumem ao tipo do art.º 190º/CP, mas ao tipo do art.º 191º, do mesmo diploma.
Em face do entendimento atrás fundamentado, de que a conduta do arguido integra a previsão da norma do art.º 191º/CP, constituindo o alpendre onde se introduziu e praticou o crime de ofensas, analisemos o tipo em causa. Como referiu já o STJ «o crime de introdução em lugar vedado ao público não é um crime contra o património, mas sim um crime contra as pessoas, visando-se, através dele tutelar ainda a intimidade pessoal a que todo o cidadão tem direito». Ou, como refere Costa Andrade «As diferenças e descontinuidades assinaladas não impedem que entre as duas incriminações subsistam igualmente decisivos elementos de comunicabilidade. Que se espelham na contiguidade sistemática e na pertinência comum ao capítulo dos crimes contra a reserva da vida privada. Que só apressadamente poderia levar-se à conta de uma daquelas assistemicidades (...) nas codificações penais. Entre os elementos comuns avultam os que contendem com elementos nucleares e estruturais da factualidade típica como o objecto da acção e a conduta típica.
Num caso e noutro, há-de tratar-se de um espaço fisicamente demarcado e delimitado ou, na formulação de AMELUNG, de um "território fisicamente assegurado" (ZStW 1986 403 s.). O que, por sua vez, imprime cunho à conduta típica. Que, para além de configurar uma entrada ou permanência arbitrárias, terá, em ambos os casos, de actualizar-se pela via da ultrapassagem de uma "barreira física" (Id. ibidem). Resumidamente, tanto o art.º 190º como o art.º 191º asseguram uma protecção formalizada aos pertinentes bens jurídicos: em ambos os casos a entrada arbitrária no espaço fisicamente delimitado constitui pressuposto necessário e suficiente para o preenchimento da factualidade típica. (...)”

Concluímos, assim, que o arguido A praticou um crime de introdução em lugar vedado ao público p. e p. pelo art.º 191º do CPenal. Com efeito, o arguido acedeu a um lugar vedado e não livremente acessível ao público e que é propriedade privada. O espaço estava devidamente limitado por um muro e o arguido acedeu através do portão. O espaço físico delimitado constitui pressuposto necessário e suficiente para o preenchimento do tipo de crime. E é irrelevante o facto de o portão estar aberto, pois o tipo de crime não exige que se verifique escalamento e não foi dado consentimento para que o arguido ali entrasse.
Vimos já que este crime é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa.
Atento o disposto no art.º 70º do CPenal entendemos que a pena de multa satisfaz de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, uma vez que o crime praticado reveste-se de escassa gravidade.
Dispõe o artigo 71.º, n.º 1, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”; o n.º 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, dispondo o n.º 3, que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, injunção com concretização adjectiva no artigo 375.º, n.º 1, do CPP, ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.
Na determinação da medida concreta da pena deve o Tribunal, em conformidade com o disposto no artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, atender a todas as circunstâncias que deponham a favor ou contra o agente, abstendo-se, no entanto, de considerar aquelas que já fazem parte do tipo de crime cometido.
O limite mínimo da pena a aplicar é determinado pelas razões de prevenção geral que no caso se façam sentir; o limite máximo pela culpa do agente revelada no facto; e servindo as razões de prevenção especial para encontrar, dentro daqueles limites, o quantum de pena a aplicar – cfr. Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, págs. 227 e seguintes.
As razões de prevenção geral in casu são muito diminutas e escassamente relevantes.
Tendo em conta os elementos dos autos, sendo que à data em que praticou os factos destes autos o arguido não tinha antecedentes criminais, pois a condenação em pena de multa no processo n.º 765/19.6PALSB data de 10.12.2021 e transitou em julgado a 24.1.2022, a escassa gravidade dos factos e a situação económica do arguido constante dos pontos 8. a 10 da matéria de facto, entende-se adequado, proporcional e suficiente condená-lo na pena de 30 dias de multa à taxa diária de € 6, o que perfaz a quantia de € 180 (cento e oitenta euros).

III- Decisão
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente o recurso e em:
- dar como provado o ponto 6. da matéria de facto não provada da sentença recorrida (que passará a facto 7-A):
“7- A. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.”
- condenar o arguido pela prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público p. e p. pelo art.º 191º do CPenal, na pena de 30 dias de multa à taxa diária de € 6 (seis), o que perfaz a quantia de €180 (cento e oitenta euros).
DN.

Lisboa, 9 de Março de 2023
Lídia Renata Goulart Whytton da Terra
 Maria José Cortes
 Paula de Sousa Novais Penha