VELOCIDADE EXCESSIVA
JUÍZOS CONCLUSIVOS
FACTOS
Sumário

I- A velocidade excessiva – condução a uma velocidade não adequada para as condições da via – é um juízo conclusivo que deve resultar de factos materiais concretos relativos às circunstâncias do local e da dinâmica do acidente ou quaisquer outras circunstâncias, como por exemplo, as condições atmosféricas.
II- Um facto não provado é um “nada”, não significa a prova do contrário.
III- Se um dos factos essenciais ou nuclear para a decisão foi alegado mas não teve consagração na selecção dos factos para a decisão, impõe-se a anulação da decisão para assegurar o contraditório, já que podia ter sido oferecida prova se essa matéria constasse inequivocamente dos temas de prova.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 - Relatório.

O FGA - FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, NIF (…), com sede na Avenida da (…), n.º 59, 4.º andar, 1050-189 Lisboa, veio instaurar a presente ação declarativa de processo comum, contra (…), residente no Largo das (…), n.º 9, (…), titular do Cartão de Cidadão n.º (…)/NIF (…)/NISS (…), pedindo, na sua procedência, a condenação do mesmo a pagar-lhe o montante global de € 6.508,67, assim discriminado:
a) € 6.496,67 – valor das indemnizações que suportou;
b) € 12,00 – relativos a encargos de gestão;
c) Despesas de gestão posteriores, a liquidar em execução de sentença;
d) Juros vincendos à taxa legal contados sobre € 6.508,67 desde a data da primeira interpelação, ocorrida a 04-10-2018, até integral e efetivo pagamento.
Para tanto alegou que o R., conduzindo um veículo que não estava coberto por seguro obrigatório de responsabilidade civil, foi o único e exclusivo culpado de um acidente pelo que o A. FGA foi obrigado a pagar a reparação do outro veículo à respetiva oficina, bem como o valor da reparação de um muro no qual esse veículo embateu, tendo, ainda, suportado o custo de € 12,00 para obtenção de certidão do acidente, tudo no valor global de € 6.508,67, que o R. deve ser condenado a reembolsar-lhe.
O R. contestou, impugnando a descrição do acidente, concluindo pela culpa exclusiva do condutor do outro veículo no que concerne à produção do acidente, e, consequentemente, pela total improcedência da ação.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento da causa.
Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou o R. (…) a pagar ao A. Fundo de Garantia Automóvel o valor de € 3.254,34 (três mil, duzentos e cinquenta e quatro euros e trinta e quatro cêntimos), acrescido de juros de mora contados, à taxa de 4%, desde 04 de outubro de 2018 até efetivo e integral pagamento, absolvendo-o do demais peticionado.

Inconformado com a sentença, o A. interpôs recurso contra a mesma, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
«1. A douta sentença de fls. condenou o Réu em 50% do valor peticionado, com entendimento de que não se apurou que qualquer dos veículos sinalizou a manobra que indica que ia invadir ou ocupar a hemifaixa da esquerda.
2. Em consequência, concluiu pela culpa, em igual medida, dos condutores de ambos os veículos intervenientes.
3. Sucede, porém, que resultou provada matéria de facto da qual decorre a responsabilidade exclusiva do Réu na produção do acidente, a saber:
a) O Réu saiu de marcha-atrás do quintal da sua habitação, após o que imobilizou o seu veículo no espaço de estacionamento que no local existe – à direita da via.
b) Encontrando-se no dito espaço do estacionamento e não visualizando qualquer veículo, iniciou a entrada na via pública, pela qual circulou cerca de 20 metros, pois pretendia inverter a marcha dentro das bombas de gasolina que aí existem da (…), para o que aproximou o veículo do centro da via e começou a virar o mesmo para a esquerda, para atravessar a hemifaixa da esquerda e entrar no Posto da (…).
c) O condutor do veículo (…), pela baixa velocidade do Réu, pretendeu ultrapassar este e passou a circular também nesse momento pela faixa esquerda da via.
d) Veio a ocorrer o embate da lateral frente esquerda do veículo do Réu na lateral direita do veículo (…).
e) Por força deste embate lateral, o (…) foi projetado para a esquerda e para diante, indo embater num muro ali existente, e num sinal vertical de trânsito, que derrubou.
4. Não era exigível ao condutor do veículo (…) que agisse de modo diverso daquele que assumiu, quando avistou o Réu no lugar de estacionamento existente do lado direito da via.
5. Saliente-se que o (…) terá percorrido os cerca de 20 metros antes do embate em escasso segundo e meio (admitindo que circulasse à velocidade de 50 km/hora).
6. Era impossível ao seu condutor ter tempo de reação, travar e desviar-se, de modo a evitar a colisão do veículo do Réu no seu veículo.
7. Donde decorre que os factos provados demonstram que o Réu (1) saiu da sua habitação em marcha-atrás, (2) ocupou com o seu veículo o espaço de estacionamento que no local existe, (3) retomou a marcha por cerca de 20 metros, (4) efetuou uma manobra de mudança de direção à esquerda, (5) embateu no veículo (…).
8. Competia ao Réu certificar-se de que o podia fazer em segurança as manobras (3) e (4).
9. Não o tendo feito, terá o Réu de ser sido considerado o único responsável pela produção do acidente e, consequentemente, condenado na totalidade do pedido.
10. A douta sentença violou o preceituado no Código Civil, mormente nos seus artigos 503.º, n.º 3, 562.º a 564.º e 566.º.
Termos em que deverá ser dado provimento ao recurso.
Com o que se fará Justiça!»
O Réu pede a ampliação do objecto do Recurso, nos termos do artigo 636.º do CPC e nas contra-alegações conclui da seguinte forma (transcrição):
«1. Interpõe o A. recurso por discordar com o entendimento do Tribunal a quo que condenou o Réu em 50% do valor peticionado, com base no seguinte entendimento de que não se apurou que qualquer dos veículos sinalizou a manobra que indica que indica que ia invadir ou ocupar a hemifaixa da esquerda, há que concluir pela culpa, em igual medida, do (…) e do (…) na produção do embate e de todos os danos dele advenientes.»
2. Entendendo que dos factos provados sob os pontos 7 a 12, decorre a exclusiva responsabilidade do réu, por competir a este certificar-se de que ao efectuar a manobra de mudança de direcção a esquerda, o podia fazer em segurança.
3. Que sendo a velocidade permitida para o local de 50km/hora, o veículo … ( que aqui se indica como o A.), terá percorrido 20 metros em 1,5 segundos, e que nesse espaço era de todo impossível ao seu condutor reagir, travar e desviar-se, de modo a evitar “ser colidido” pelo veículo … (do R.).
4. Com tal entendimento discorda o recorrido, requerendo a Ampliação do objecto do Recurso, nos termos do artigo 636.º do CPC.
5. De acordo com os factos provados sob os pontos 8, 9, 10,11 e 12 e ao contrário do que aqui o recorrente quer fazer crer, resulta que o R. tomou todas as medidas necessárias á manobra que efectuava – saiu do estacionamento; verificou que a via se encontrava desocupada; não visualizou qualquer veiculo; entrou na via publica; dentro da mesma, após circular 20 metros aproximou o veiculo do centro da via e começou a virar para a esquerda, foi surpreendido pelo veículo (…), o qual, pela baixa velocidade do (…) pretendeu ultrapassar o mesmo, vindo a ocorrer o embate da lateral esquerda do (…) na lateral direita do (…).
6. Acrescem os pontos 15 e 16 que indicam que o limite de velocidade para o local é de 50 km; e que o Réu circulava a velocidade não superior a 50 km.
7. Assim como a reapreciação da prova, no que ao depoimento da testemunha (…), Agente da GNR que foi ao local, se refere.
8. Esta testemunha no seu depoimento de forma clara e imparcial refere que:
Gravação Audio: Depoimento prestado no dia 04.10.2021 aos 10h28m33s.
Testemunha: (…);
Aos-11m18s – “ Eu acho que há velocidade excessiva … da parte do Volkswagen (o …), que ia fazer uma ultrapassagem naquele local sem se certificar que o podia fazer”.
Test.- 12m20s – … existe um inquérito contraordenacional por velocidade excessiva.
Aos 15m10s Adv- o que lhe foi descrito como sendo a dinâmica do acidente?
Test- 15m20s - O … (Réu) ia no sentido (…) – (…) e que iria dar a volta dentro das Bombas para voltar para trás …. apareceu o Volkswagen (…) quando ele vai fazer a manobra, tanto que o embate está do lado esquerdo da faixa … não há embate traseiro na faixa contrária.
Aos 19m36s Test- O Corsa (do R.) não tinha grandes danos, em relação ao Volkswagen foi projectado para uma grande distância…
Aos 19m58s Test- Era isso que eu estava a responder. O … (o A.) tinha muitos danos porque embateu no muro.
Adv- E embateu no muro com que parte do veículo?
Test- De frente.
Adv -Direita ou esquerda?
Tes - Com a frente, frente mesmo. O muro é grande e ele bateu mesmo com a frente. O muro estava bem danificado e estava num ponto alto... ele subiu lancis e tudo… tinha que haver velocidade ali, por isso é que foi levantado o auto de contraordenação, pois que foi uma grande distância do local que eles os dois forneceram … esse local que ai está (croqui) não fui eu que o disse… foram eles os dois.
9. Este depoimento permite assim concluir, a ele se associando a experiência comum, que o veículo … (do A) circulava em velocidade excessiva.
10. Prova disso são os próprios danos causados; o percurso que o veículo efectuou, que acabou por ir contra um muro… num ponto alto… subindo lancis e tudo.
11. Circulasse o mesmo á velocidade legal para a zona (50km/h) e certamente, no alegado percurso percorrido pelo veiculo do R., os referidos 20 metros, e este teria parado o seu veículo, ou quanto muito batido no veículo do Réu, sem causar tão grandes danos.
12. Assim e em conformidade com o exposto e a prova produzida, devem os pontos E), F) e G) dos factos não provados, ser considerados como factos provados.
13. Tal permite assim a decisão que só o condutor do veículo (…) é o responsável pelo acidente e como tal o único responsável pelo ressarcimento dos valores pagos pelo aqui A. Fundo de Garantia Automóvel, pelo que assim deve ser proferida decisão que absolva o Réu da acção.
14. Por todo o exposto e nos termos do disposto nos artigo 640.º, nºs 1 e 2 e 662.º, n.º 1, deve ser reapreciada tal prova, que permita concluir por decisão diversa.
15. Caso assim se não entenda, sempre se dirá que, tendo por base a apreciação do tribunal a quo, a responsabilidade do acidente deve ser repartida entre os dois veículos na proporção de 50% para cada um, como assim decidiu a douta sentença.
Nestes termos e nos mais de direito, que V. Exªs doutamente suprirão, deve revogar-se a douta sentença e proferir-se decisão:
A) que considere que só o condutor do veículo (…) é o responsável pelo acidente e como tal o único responsável pelo ressarcimento dos valores pagos pelo aqui A. Fundo de Garantia Automóvel, e assim absolva o Réu da acção;
B) Ou caso assim se não entenda, manter-se a decisão recorrida.
Essa será, Senhores Desembargadores, a verdadeira expressão da JUSTIÇA»
Em resposta o A. defende que o alegado pelo R. não traduz uma ampliação do recurso mas sim um recurso subordinado inadmissível pois o R. não ficou vencido.
Foi proferida decisão que admitiu como recurso subordinado o alegado pelo R.
Na sequência dessa admissão o A. apresentou contra alegações, concluindo que (transcrição):
« 1. A douta sentença de fls. condenou o Réu em 50% do valor peticionado, considerando igual a medida de culpa dos condutores de ambos os veículos intervenientes.
2. Da prova produzida resulta a responsabilidade exclusiva do Réu, nunca a do outro condutor.
3. Foi o Réu que ingressou na via pública, onde circulou cerca de 20 metros, aproximando o seu veículo do centro da via e começando a virar o mesmo para a esquerda, para atravessar a hemifaixa da esquerda e inverter a marcha dentro das bombas de gasolina da (…).
4. Já o condutor do veículo (…), vendo a sua trajetória cortada pelo veículo do Réu, pretendeu evitá-lo e passou a circular pela via da esquerda.
5. A colisão deu-se entre a lateral frente esquerda do veículo do Réu e a lateral direita do (…).
6. Não era exigível ao condutor do veículo (…) agir de modo diverso daquele que assumiu.
7. Era-lhe impossível ter tempo de reação, travar e desviar-se, de modo a evitar a colisão do veículo do Réu no seu veículo.
8. Pelo exposto, é inequívoco que o Réu saiu da sua habitação em marcha-atrás, ocupou o espaço de estacionamento existente no local, retomou a marcha por cerca de 20 metros, efetuou manobra de mudança de direção à esquerda e embateu no veículo (…).
9. Competia ao Réu certificar-se de que podia ingressar na via em segurança, o que não fez.
10. Deve o Réu ser sido considerado o único responsável pela produção do acidente, que não o inverso!
Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso subordinado do Réu.
Assim se fará JUSTIÇA!»
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
São os seguintes os factos dados como provados na 1.ª instância:
1. - No dia 26.06.2018, pelas 23:26, ocorreu um acidente de viação na Estrada de (…), junto ao posto de abastecimento da (…), na União de Freguesias de (…), (…) e (…), concelho de Ponte de Sor, distrito e comarca de Portalegre.
2. - Nele foram intervenientes:
a) O veículo ligeiro de passageiros de matrícula (…), um Volkswagen Golf cinzento prata, adiante designado (…);
b) O também ligeiro de passageiros (…), um Opel Corsa branco.
3. - O (…) era, à data, propriedade e na ocasião conduzido pelo Réu.
4. - Do veículo (…) era proprietário e condutor (…).
5. - O local é configurado por uma reta, com dois sentidos de trânsito, com pavimento betuminoso e a berma pavimentada.
6. - O (…) circulava no sentido (…) - (…).
7. - No dia e hora em questão, o Réu, ao volante do seu veículo, matrícula (…), saiu do quintal da habitação sita na Estrada de (…), n.º (…), efetuando manobra de marcha atrás, tendo, e após saída do portão do quintal, com o veículo, ocupado o espaço de estacionamento que no local existe.
8. - Após se encontrar no espaço do estacionamento, verificando que a via se encontrava desocupada de momento, não visualizando qualquer veículo, iniciou a sua entrada na via pública, no sentido (…) – (…).
9. - Já dentro da via pública, e após circular cerca de 20 metros, pois que pretendia efetuar inversão de marcha dentro das bombas de gasolina que aí existem da (…), aproximou o veículo do centro da via e começou a virar o mesmo para a esquerda, a fim de atravessar a hemifaixa da esquerda e entrar no Posto da (…).
10. - Foi, então, surpreendido pelo veículo (…), o qual, pela baixa velocidade do (…), e pretendendo ultrapassar o mesmo, passou a circular também nesse momento pela faixa esquerda da via.
11. - Com esta trajetória imprimida, respetivamente, pelos condutores do (…) e do (…), veio a ocorrer o embate da lateral frente esquerda do veículo (…) na lateral direita do veículo (…).
12. - Por força deste embate lateral, o (…) foi projetado para a esquerda e para diante, indo embater num muro ali existente, de vedação do stand de automóveis (…), bem como num sinal vertical de trânsito, que derrubou.
13. - Em consequência direta e necessária do acidente, resultaram danos materiais no veículo (…), bem como no muro e no sinal de trânsito supra referidos.
14. - Os veículos circulavam dentro de localidade.
15. - O limite de velocidade permitido para o local é de 50 Km./h.
16. - O Réu circulava a velocidade não superior a 50 km./h.
17. - O condutor do (…) era um jovem de apenas 20 anos, com carta há apenas 1 ano; que tinha comprado o veiculo (…) há apenas 1 mês, o qual tinha seguro há apenas 8 dias.
18. - À data do acidente o veículo (…) não se encontrava coberto pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
19. - Inexistindo seguro válido para o (…), os vários lesados reclamaram junto do Fundo de Garantia Automóvel o ressarcimento dos danos sofridos em virtude do acidente.
20. - No veículo (…) ficaram danificados:
a) o canto frontal direito por força da colisão do (…) e do (…) entre si, e
b) a frente e o canto frontal esquerdo, por força do embate no muro.
21. - Toda a frente do (…) ficou irrecuperável: o pára-choques, a grelha, os faróis D+E, o spoiler, o radiador, a cablagem do motor, as rodas da frente, o amortecedor, os frisos, a matrícula, entre outros. Tais danos foram avaliados e reparados pelo valor de € 6.121,66.
22. - O A. FGA pagou diretamente à oficina a reparação do veículo (…), liquidando o citado montante de € 6.121,66.
23. - No que concerne ao muro do Stand (…), foi destruído o murete e a respetiva cobertura e projetados os materiais para o interior do pátio da empresa.
24. - A reparação consistiria em proceder à reconstrução e pintura do muro, para além do vazamento do entulho inerente.
25. - O gerente da empresa proprietária reclamou inicialmente o sinistro junto da Companhia de Seguros (…), para a qual se encontrava transferida a responsabilidade civil automóvel do (…), veículo que efetivamente colidiu com o muro.
26. - A (…) Seguros começou por solicitar a averiguação do sinistro à (…), empresa especializada em avaliação e averiguação automóvel.
27. - O respetivo relatório concluiu pela responsabilidade do R. na produção do sinistro, bem como de todos os danos dele decorrentes.
28. - O proprietário do muro obteve dois orçamentos, bem díspares, para a reparação do mesmo: de € 780,00 e € 375,00, respetivamente.
29. - De forma a não protelar a situação, a (…) adiantou o pagamento da reparação do muro, pelo valor do orçamento mais baixo – de € 375,00.
30. - Após o pagamento, interpelou o FGA, ora Autor, para o respetivo reembolso, já que havia concluído que fora o veículo sem seguro (…) que dera causa ao acidente.
31. - A 17.09.2018 o FGA reembolsou a (…) Seguros pelo valor de € 375,00.
32. - O A. suportou, ainda, despesa de gestão no valor de € 12,00, relativa ao custo de cópia do auto de Participação de Acidente de Viação que obteve junto da GNR em 09.08.2018.
33. - A ASF – Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões emitiu certidão de dívida, atestando que o Fundo de Garantia Automóvel se encontra desembolsado de € 6.508,67 desde o dia 03.10.2018, data do último pagamento.
34. - O Autor interpelou extrajudicialmente o Réu para proceder o pagamento em 04.10.2018.
35. - Remeteu ao mesmo insistência em a 07.11.2018.
Matéria de Facto Não Provada
Da prova produzida em audiência de discussão e julgamento não resultou como provada a seguinte matéria de facto:
A) - O (…), ato contínuo após sair do estacionamento, ocupou parcialmente a via de trânsito no sentido do (…), o que fez no exato momento em que o (…) transpunha o local.
B) – O (…) estava quase parado, obstruindo parcialmente a sua hemifaixa de rodagem.
C) - O Réu fez o sinal de pisca para sinalizar a sua pretensão de entrada na via pública.
D) - O Réu fez sinal de pisca para a esquerda quando se preparava para virar à esquerda para entrar no Posto da (…).
E) - O (…) circulava em velocidade excessiva.
F) - Não fora a velocidade excessiva com que circulava o (…) e teria tido tempo de parar ou contornar qualquer obstáculo, não indo embater no muro.
G) - Os danos do (…) foram devidos ao excesso de velocidade com que circulava.


2 – Objecto do recurso.

As questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelos recorrentes nas conclusões da sua alegação, nos termos do artigo 684.º, n.º 3, do CPC, são as seguintes:
1.ª Questão – Saber se os factos das alíneas E), F) e G) não provados deverão ser considerados provados (recurso subordinado).
2.ª Questão – Saber a quem deve ser imputada a culpa do acidente (ambos os recursos).


3 - Análise do recurso.

1.ª Questão - Saber se os factos das alíneas E), F) e G) não provados deverão ser considerados provados (recurso subordinado).

É o seguinte o teor dos factos não provados, que são impugnados:
«E) - O (…) circulava em velocidade excessiva.
F) - Não fora a velocidade excessiva com que circulava o (…) e teria tido tempo de parar ou contornar qualquer obstáculo, não indo embater no muro.
G) - Os danos do (…) foram devidos ao excesso de velocidade com que circulava.»
É a seguinte a motivação da sentença
«Para dar como provada a matéria de facto supra elencada o Tribunal teve em consideração todos os elementos de prova produzidos nos autos, confrontados devidamente entre si de uma forma crítica e global.
O Tribunal assentou, sobretudo, a sua convicção no teor de todos os documentos juntos aos autos, nomeadamente o teor da participação do acidente elaborado pelo Guarda (…), o qual confirmou o seu teor, mais tendo esclarecido como chegou à identificação dos veículos intervenientes do acidente, já que os condutores do (…) e do (…), em conluio entre si, tentaram fazer-lhe crer, inicialmente, que o veículo interveniente seria um Mercedes, que tinha seguro válido, e não o (…), que não tinha seguro válido.
Este seu depoimento arrasou, desde logo, a credibilidade do depoimento do condutor do (…) – testemunha (…) – e do condutor do (…) – declarações de parte do R. (…).
O depoimento prestado pela testemunha (…) foi, igualmente, desvalorizado, porquanto a testemunha (…) esclareceu que não assistiu ao acidente, apenas tendo prestado declarações nesse sentido na fase da investigação extrajudicial pois foi pressionado pelo (…), então seu namorado, para prestar depoimento nesse sentido.
Do mesmo modo, foi por nós desvalorizado o depoimento prestado pela testemunha (…) porquanto a mesma, enquanto esposa do R., admitiu que participou na tentativa de conluio inicial no sentido de indicar como interveniente no acidente um outro veículo, objeto de seguro válido.
Saliente-se, aliás, que não sendo a mesma à data detentora de carta de condução, que só tirou 1 ano apos o acidente, o seu depoimento acerca da manobra realizada e da sinalização dessa manobra, que a mesma fez questão de frisar desde logo, não nos mereceu qualquer credibilidade.
O depoimento prestado pela testemunha (…) permitiu comprovar os estragos provocados no muro do stand, o custo da reparação e o pagamento dessa quantia ao mesmo.
Os documentos junto aos autos permitiram comprovar os danos apurados e a sua liquidação pelo FGA.
Consigna-se que não se determina a extração de certidão para eventual instauração de inquérito por crime de burla relativa a seguros porquanto, em nosso entender, tal crime exige atos de execução, como sendo a efetiva participação do sinistro à Seguradora, e o certo é que esta participação no caso não veio a ocorrer, por intervenção do Guarda da GNR (…), saliente-se.»
O recorrente argumenta que pontos E), F) e G) dos factos não provados, devem ser considerados como factos provados, com base no depoimento de (…), GNR que foi ao local.
Não tem razão desde logo porque a matéria em causa é conclusiva (e só por uma técnica jurídica incorrecta consta dos factos não provados).
Impõe-se, deste modo, uma apreciação da matéria de facto fixada sob a perspectiva real, não se podendo incluir na mesma a valoração jurídica de factos, mas apenas as circunstâncias de vida subjacentes a essas valorações que as possam vir a sustentar, na apreciação jurídica que sobre as mesmas venha a ser realizada, integrando, já estas, matéria de direito.
O juízo relativo à circulação ou não com velocidade excessiva deve resultar de factos materiais concretos relativos às circunstâncias do local e da dinâmica do acidente.
A velocidade excessiva é um juízo de valor para apurar quando se conduz a uma velocidade não adequada para as condições da via, do veículo ou de quaisquer outras circunstâncias, como por exemplo, as condições atmosféricas (aliás, é por a matéria ter esse teor conclusivo que, a testemunha indicada – sem ter assistido ao acidente, sem qualquer apoio factual, apenas com base na versão transmitida pelos condutores – acaba por expor apenas a sua “opinião” que aliás parece basear-se no facto de existir um inquérito contraordenacional).
No actual regime processual, tal como no pretérito, na decisão sobre a matéria de facto apenas devem constar os factos provados e os factos não provados, com exclusão de afirmações genéricas, conclusivas (que são que a lógica ilação de premissas) e que comportem matéria de direito pois são os factos que o n.º 4 do artigo 607.º do CPC impõe que sejam discriminados e declarados provados e/ou não provados pelo juiz, na sentença.
Sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto da acção, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, o mesmo deve ser eliminado- neste sentido Miguel Teixeira de Sousa, ‘Estudos sobre o Novo Processo Civil’, Lex, 1997, pág. 312 e Paulo Faria, “A reforma da base instrutória: uma regressão, A Reforma do Processo Civil-Contributos”, Revista do Ministério Público, Cadernos II, 2012, págs. 37-48.
(Embora o n.º 4 do artigo 646.º do CPC anterior não tenha sido mantido no NCPC, ante a sua eliminação, vem-se entendendo, poder manter-se o mesmo entendimento das coisas interpretando, a contrário sensu, o actual n.º 4 do artigo 607.º, segundo o qual, na fundamentação da sentença, o Juiz declara quais os factos que julga provados e mantém-se erecta a orientação jurisprudencial no sentido de que a matéria de facto.
Por exemplo Teixeira de Sousa, ‘Estudos sobre o Novo Processo Civil’, Lex, 1997, pág. 312, refere o seguinte:“(…) não pode conter qualquer apreciação de direito, seja, qualquer valoração segundo a interpretação ou a aplicação da lei, ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica”, devendo as questões de direito que constarem da selecção da matéria de facto considerar-se não escritas. Ou seja, não se suscita, pois, dúvidas, que no actual regime processual, tal como no pretérito, na decisão sobre a matéria de facto apenas devem constar os factos provados e os factos não provados, com exclusão de afirmações genéricas, conclusivas e que comportem matéria de direito).
Pelo exposto, elimina-se do elenco dos Factos Não Provados E), F) e G) e, consequentemente, não se conhece da impugnação da decisão da matéria de facto sobre tais alíneas.


2.ª Questão – Saber a quem deve ser imputada a culpa do acidente (ambos os recursos).

O Réu defende que só o condutor do veículo (…) foi culpado do acidente, pois dos factos provados 7 a 12, decorre que o Réu tomou todas as medidas necessárias à manobra que efectuava não tendo assim qualquer culpa no acidente e que mediante a alteração da matéria de facto que defende, tal acidente se deveu exclusivamente ao condutor do (…) que circulava a uma velocidade excessiva atentas as circunstâncias em causa, baseando-se para tal na alteração da matéria provada por si requerida.
Contrariamente, defende o A. que é ao Réu que deve ser imputada a culpa do acidente, ter efectuado marcha atrás, saindo de um quintal, estacionado na rua e ter feito inversão de marcha sem se certificar que o podia fazer em segurança, sem estar a ser ultrapassado.
Analisando:
Quanto à versão do Réu, uma vez que, julgamos improcedente a sua impugnação a matéria de facto – em que baseava a sua tese do acidente – também esta improcede, já que, no nosso entendimento, a factualidade provada não permite concluir pela velocidade excessiva do (…).
O conceito de excesso de velocidade deve ser aferido pela incapacidade de executar as manobras cuja necessidade seja previsível, uma das quais é a de fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, dependendo o apuramento de excesso de velocidade dos contornos peculiares de cada caso concreto, sendo que não basta embater para se concluir pelo excesso de velocidade.
Quanto à tese do Autor (que defende que o causador do acidente foi o condutor do …, porquanto mudou inadvertidamente de direção à esquerda, de forma repentina, cortando o caminho ao …, quando este estava a efetuar ultrapassagem ao mesmo) verificamos que foi dado como provado o seguinte:
«7 - No dia e hora em questão, o Réu, ao volante do seu veiculo, matrícula (…), saiu do quintal da habitação sita na Estrada de (…), n.º (…), efetuando manobra de marcha atrás, tendo, e após saída do portão do quintal, com o veículo, ocupado o espaço de estacionamento que no local existe.
8. - Após se encontrar no espaço do estacionamento, verificando que a via se encontrava desocupada de momento, não visualizando qualquer veículo, iniciou a sua entrada na via pública, no sentido (…) – (…).
9. - Já dentro da via pública, e após circular cerca de 20 metros, pois que pretendia efetuar inversão de marcha dentro das bombas de gasolina que aí existem da (…), aproximou o veículo do centro da via e começou a virar o mesmo para a esquerda, a fim de atravessar a hemifaixa da esquerda e entrar no Posto da (…).
10. - Foi, então, surpreendido pelo veículo (…), o qual, pela baixa velocidade do (…), e pretendendo ultrapassar o mesmo, passou a circular também nesse momento pela faixa esquerda da via.
11. - Com esta trajetória imprimida, respetivamente, pelos condutores do (…) e do (…), veio a ocorrer o embate da lateral frente esquerda do veículo (…) na lateral direita do veículo (…).
12. - Por força deste embate lateral, o (…) foi projetado para a esquerda e para diante, indo embater num muro ali existente, de vedação do stand de automóveis (…), bem como num sinal vertical de trânsito, que derrubou.»
Não se pode concluir que o condutor, antes de iniciar a manobra não se tenha previamente certificado de que a mesma não comprometia a segurança do trânsito, ou seja, ignoram-se as precauções tomadas pelo recorrido quanto iniciou a inversão de marcha.
A sentença recorrida concluiu pela atribuição da culpa a ambos os condutores dos veículos, (…) e (…), por não se ter apurado que tenham sinalizado a manobra.
Porém, com todo o respeito, tal raciocínio não é correcto, não podendo manter-se tal entendimento.
Vejamos:
Do facto, de não se ter apurado que tenham sinalizado a manobra, não decorre que o não tenham feito, ou seja, a não prova não corresponde aqui à prova do contrário (Um facto não provado é um “nada”, não significa a prova do contrário).
Ora, para que exista culpa é necessário que tenha ficado demonstrada a violação pelo segurado da Ré das regras de conduta estradal.
Como é sabido, em matéria de responsabilidade civil extracontratual, rege a regra do artigo 483.º do Código Civil. Aí se prescreve que “ quem, com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger direitos alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelo dano resultante da violação».
Pressupostos de facto ou requisitos da responsabilidade civil extracontratual subjectiva, são assim: a prática de um facto ilícito, a culpa do lesante (em termos de lhe poder ser subjectivamente atribuído tal facto), a existência de danos que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito e, finalmente, o nexo de causalidade entre aquele facto e estes danos – (cfr. neste sentido, Dario Martins de Almeida, in Manual de Acidentes de Viação, 3º ed., pág. 49).
Na esfera dos acidentes de viação, a culpa emerge, naturalmente, da violação ou omissão das regras ou cautelas que nos termos da lei, disciplinam a circulação rodoviária (neste sentido Ac. RE de 22/07/82, in BMJ n.º 321- 451).
Trata-se pois de saber, se resulta da matéria de facto a violação de qualquer regra estradal.
Quanto ao condutor do (…) nem sequer foi alegada (nem provado ou não provado) a violação estradal que a sentença conclui como verificada: “que não tenha sinalizado a manobra” pelo que nunca poderia concluir dessa forma (quanto a este a violação alegada é a velocidade excessiva).
Da análise da PI constata-se que, em termos de violação da regras estradais, a propósito da culpa do condutor do (…), foi alegado pelo A. que “inopinadamente o Réu iniciou a manobra de mudança de direcção…” (artigo 10º da PI)” (correspondendo “inopinadamente” a “de forma imprevista” nomeadamente sem sinalização) e tal facto, assim formulado, afigura-se relevante para a decisão, pois pode ser revelador da violação da regras estradais.
Porém, tal facto – que competia ao A provar – não consta nem da matéria provada nem da não provada (só o facto positivo se encontra na matéria não provada “Não provado que D) – O R. fez sinal de pisca para a esquerda quando se preparava para virar à esquerda para entrar no Posto da …” o que como já vimos não corresponde ao facto contrário) .
Por corresponder à culpa do Réu trata-se de um facto essencial ou nuclear para a tese do Autor – ex vi do artigo 342.º do CPC, sendo que a falta de cumprimento desse ónus redundará no não reconhecimento dessa realidade e, consequentemente, do não reconhecimento do direito do Autor.
Quid juris?
O artigo 662.° do CPC prevê as hipóteses em que o Tribunal da Relação pode alterar a matéria de facto decidida pelo tribunal da 1.ª instância.
O procedimento há-de ser, então, o de reapreciar a decisão de facto, se constarem todos aqueles elementos probatórios ou o de anular a decisão da primeira instância, se eles não constarem.
No caso dos autos entendemos que se impõe a anulação.
Pelo exposto, ao abrigo do artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC, importa anular a decisão proferida em primeira instância, para, em novo julgamento, após a eventual produção de prova, se proceder à ampliação da matéria de facto, de molde a que seja suprida a não inserção na factualidade seleccionada, proferindo-se, subsequentemente, nova sentença.

Sumário (da relatora):
(…)

4 - Dispositivo.

Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em anular a sentença, determinando a repetição do julgamento, após eventual produção de prova para suprimento da falta, se proceder à ampliação da matéria de facto – julgamento da matéria correspondente ao artigo 10º da PI – de molde a que seja suprida a não inserção na factualidade seleccionada, julgamento que não abrangerá a parte não viciada, podendo, no entanto, o tribunal de primeira instância ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, que considere abrangidos pelo tema de prova a enunciar, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão a proferir, proferindo-se, subsequentemente, nova sentença.
Sem custas.
Évora, 2.03.2023
Elisabete Valente
Ana Isabel Pessoa
José António Moita