ABUSO DE DIREITO
CONHECIMENTO OFICIOSO
Sumário

Embora o abuso de direito (artigo 334.º do CC) possa ser objecto de conhecimento oficioso e, por conseguinte, o seu conhecimento não esteja vedado ao Tribunal, ainda que a sua invocação constitua questão nova (artigo 608.º, n.º 2, do NCPC) esse conhecimento oficioso do abuso de direito não é ilimitado pois a oficiosidade não pode ir para além dos factos que foram alegados e controvertidos e que constituem o objecto do processo pois é dentro dos limites traçados pelos articulados que se desenvolve a actividade cognitiva e decisória do tribunal, o que traduz aquilo a que podemos chamar uma espécie de “vinculação temática” decorrente da autonomia e auto responsabilidade das partes.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.

(…), portador do NIF (…), com domicílio na Quinta do (…), Rua do (…), (…), instaurou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra (…) e (…), casados no regime da comunhão de adquiridos, com domicílio na Rua (…), Condomínio (…), fração (…), Rio Maior, alegando que, assim como os Réus, é proprietário de fração em prédio urbano constituído em propriedade horizontal, tendo estes, na sua fração, procedido à construção de uma estrutura coberta em alumínio e vidro, com cerca de 15 metros de comprimento por 3 metros de largura, servente de anexo à cozinha e churrasqueira, que prejudica a linha arquitetónica e o arranjo estético do condomínio, alterando o estilo e características visuais do próprio edifício, destoando da sua traça geral, não tendo sido objeto de autorização prévia da assembleia de condóminos, de comunicação prévia à Câmara Municipal de Rio Maior ou de autorização do autor do projeto de arquitetura, pelo que deverá ser destruída.
Termina peticionando:
a) que os Réus sejam condenados na demolição da obra/construção que erigiram na parte posterior da fracção repondo-a no estado anterior ao que se encontrava antes da construção daquela, no prazo de 30 dias a contar da data do trânsito da sentença;
b) Serem os Réus condenados a pagar a título de sanção pecuniária compulsória a quantia de 100 euros por dia a título de sanção pecuniária compulsória, caso não procedam à referida demolição no prazo referido na alínea anterior.
Contestaram os Réus, defendendo-se por exceção invocando a ilegitimidade processual do Autor, por entender que a legitimidade para a presente ação cabe ao condomínio e por impugnação, e a sua atuação em abuso de direito, por ter realizado obras similares, tacitamente ter aceitado a estrutura por si erigida e se opor a esta, apenas como retaliação, pela oposição dos Réus à manutenção de escritório na sua fração e negando que a estrutura por si construída afete a linha arquitetónica do prédio e o seu arranjo estético.
O presente processo foi apensado aos autos do processo n.º 194/20.9T8RMR, passando a correr termos sob o apenso B daqueles.
Realizou-se a audiência prévia e foi julgada improcedente a exceção de ilegitimidade processual ativa.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento.
Veio então a ser proferida sentença que julgou totalmente improcedente a presente ação e, consequentemente, absolveu os Réus (…) e (…) de todos os pedidos formulados pelo Autor (…).

Inconformado com a sentença, o Autor interpôs recurso contra a mesma, apresentando as seguintes as conclusões (transcrição):
«1. Vem o presente recurso interposto da Douta sentença notificada às partes por ofício eletrónico de 27/06/2022, e que decidiu julgar totalmente improcedente a presente ação e consequentemente, absolver os Réus de todos os pedidos formulados pelo Autor.
2. A sentença recorrida é nula por excesso de pronúncia, atenta a impossibilidade de o Tribunal conhecer da exceção de abuso de direito não deduzida pelos RR.
3. A mesma sentença claudicou quanto à solução de Direito que adotou, designadamente pela não verificação dos pressupostos do abuso de direito assentido.
4. O Tribunal recorrido violou ainda normas processuais imperativas relativas à apensação de ações, assim como desrespeito normas da mesma natureza tocantes à produção de prova, e mais concretamente à inquirição de testemunhas. Que inquinam o julgamento da presente causa, ferindo-o de nulidade que se arguiu.
5. Caso não se reconheça tal nulidade, sempre a violação das mesmas normas tem de ter-se como irregularidades que afetaram, com gravidade a descoberta da verdade obstando à boa decisão da causa.
6. A sentença recorrida encerra ainda errada apreciação da prova carreada para os autos, pelo que, tomou errada decisão sobre a matéria de facto que teve como provada., devendo ter tido como não assente o facto que elencou naquela matéria sob o Ponto 12, e ter dado como provados os factos alegados pelo A. em sede de réplica por não terem tido oposição/impugnação pelos RR. e por vir a mesma sobejamente provada por suporte nas declarações de parte do A. e do depoimento da testemunha (…), indevidamente desvalorizado pelo Tribunal.
7. Nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 608.º do Código do Processo Civil, “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
8. Os RR. não deduziram na sua contestação exceção de abuso de direito por parte do A. com fundamento na violação por este, ao exercer o seu direito previsto no artigo 829.º/2, do Código Civil, violar o fim social e económico daquele seu direito.
9. Assim como não alegaram, em qualquer momento processual, factos tendentes a conduzir à verificação dos respetivos pressupostos, daí que em audiência prévia, não tenha sido elencado tema de prova, destinado à verificação da aludida exceção com aquele fundamento.
10. Ora, como bem ensina o Prof. Menezes Cordeiro, “a aplicação do abuso do direito depende de terem sido alegados e provados os competentes pressupostos – salva a hipótese de se tratar de posições indisponíveis. Além disso, as consequências que se retirem do abuso devem estar compreendidas no pedido feito ao Tribunal, em virtude do princípio dispositivo. Verificados tais pressupostos, o abuso do direito é constatado pelo juiz, mesmo quando o interessado não o tenha expressamente mencionado: é, nesse sentido, de conhecimento oficioso (cfr. estudo com o título “Do abuso do direito: estado das questões e perspetivas“, disponível em www.oa.pt).
”11. Não se verificando alegação e prova dos competentes pressupostos, não podia o Tribunal recorrido ter conhecido do abuso de direito nos termos em que o fez, constituindo a sentença recorrida quanto a esta matéria a decisão surpresa.
12. Há excesso de pronúncia se o tribunal conheceu de pedidos, causas de pedir ou exceções de que não podia tomar conhecimento.
13. No caso em apreço o tribunal recorrido ultrapassou os seus limites de pronúncia a que está vinculado, acarretando a nulidade da sentença recorrida, prevista na línea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código do Processo Civil, que se deixa arguida para os devidos efeitos.
14. Quanto ao erro na decisão de direito contida na sentença recorrida, corresponde o mesmo, desde logo, à não verificação, dos pressupostos do abuso de direito acolhido pela mesma., designadamente a violação pelo A. do fim social e económico do seu direito.
15. O pedido de demolição pelo A., das obras realizadas pelos RR. por constituir sanção legalmente estatuída para a reação contra as obras ilícitas no condomínio (artigo 829.º/1, do CC) , não pode nunca constituir abuso de direito.
16. O exercício pelo Autor do seu direito a ver demolidas as estruturas sub judice, não acarreta para os RR. consequência alguma, diferente ou adicional, da prescrita na lei, como sanção para a ilegalidade da sua conduta, pelo que não extravasa ou viola o fim social e económico daquele seu direito.
17. O exercício do seu direito pelo aqui Autor não se traduz na não – realização dos interesses de que é instrumento, mas antes na realização efetiva desses interesses.
18. O seu exercício é feito dentro dos limites estabelecidos na lei, não é suscetível de clamorosa censura pela consciência social dominante, não colide com os bons costumes que aqui relevam, e não defraudou as legítimas expectativas dos RR., que por sua própria vontade, quiseram violar a linha arquitetónica do condomínio.
19. Violador da consciência social seria a manutenção e proliferação de construções no condomínio onde se insere a fração do A., realizadas numa clara violação da lei, e coartar-se o direito do A. de obter a sua demolição, dando acolhimento à manutenção e proliferação da ilegalidade.
20. Deve ser julgada improcedente a exceção perentória do abuso de direito acolhida pela sentença recorrida.
21. Caso assim não se entenda, o só por mero dever de patrocínio se equaciona, a mesma conclusão se impõe porque circunstâncias supervenientes motivaram o exercício pelo Autor do seu direito, designadamente a proliferação de construções e verificação da desvalorização do seu imóvel em 2020, tendo suplantado qualquer “desejo de vingança” do Autor querido retirar data de condomínio de Fevereiro de 2019..
22. Veja-se a este propósito o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (RL199303250048616) disponível em www.dgsi.pt, de onde resulta que (numa situação de abuso de Direito pela aceitação tácita, mas aqui aplicável “mutatis mutandis”) uma ocorrência superveniente prejudicial aos ali Autores justificaria o facto de recorrer a juízo e exigir a demolição da obra.
23. A ocorrência superveniente prejudicial ao aqui Autor (verificação da desvalorização do seu imóvel e proliferação de obras ilegais no condomínio) justifica, o seu recurso a juízo com a presente ação, à data da interposição da mesma.
24. Não podendo proceder a exceção perentória do abuso de direito com o fundamento aduzido pela sentença sindicada.
25. O Tribunal recorrido cometeu violação das regras processuais relativas à apensação de ações.
26. Apos ter decidido a apensação das ações (estes autos e aquele a que é apensa), o Tribunal a quo procedeu a duas audiências prévias, duas audiências, com produção de prova distinta e subsequente, proferiu .duas sentenças, em vez de tratar as ações apensadas como uma única, apesar da salvaguarda das suas especificidades.
27. O Tribunal a quo violou, assim, regras da tramitação processual imperativas aplicáveis às ações apensadas, a cujo cumprimento se mostrava adstrito, que acarretam a nulidade da audiência de discussão e julgamento e da prova produzida no âmbito da mesma que se deixa arguida.
28. O Tribunal recorrido violou normas legais imperativas relativas à inquirição de testemunhas, designadamente o artigo 496.º do CPC, inquirindo nestes autos, como testemunha o R. na ação principal. E na ação principal, inquiriu como testemunha, o R. nestes autos.
29. Os depoimentos das partes como se testemunhas fossem, estão feridos de nulidade, importando a sua impossibilidade de valoração.
30. Por fim, mas não menos importante, o Tribunal recorrido violou o disposto no artigo 512.º do Código do Processo Civil, uma vez que nos julgamentos sucessivos levados a cabo, as testemunhas de uma ação (principal) assistiram aos depoimentos das mesmas testemunhas e partes, ouvidas na outra ação (apensada) e vice-versa, inquinando a espontaneidade e credibilidade dos depoimentos prestados, impondo-se a sua não valoração.
31. Esta “promiscuidade” resulta espelhada, sem margem para dúvida, designadamente no depoimento da testemunha (…) que aos minutos 4:31 e 9:11 do seu depoimento, gravado sob a ref.ª 20220503165353-2978380- 2871763.
32. Naquelas duas passagens a testemunha reconheceu ter ouvido os depoimentos das testemunhas e partes que haviam deposto na audiência de julgamento ocorrido imediatamente antes e respondeu afirmativamente a pergunta reconhecidamente condicionado por aquelas respostas.
33. Daquelas assunções da testemunha, gravadas, e transcritas não resta margem ara dúvida de que foram violadas as garantias legalmente impostas para a recolha dos depoimentos das testemunhas.
34. A sentença recorrida encerra deficiente apreciação da prova produzida e do consequente erro da decisão sobre a matéria de facto, devendo o facto elencado sob o n.º 12 da matéria assente ser dado como não provado.
35. A sentença recorrida fez errada apreciação da matéria de facto carreada para os autos, por ter incorrido em incorreta apreciação das provas oferecidas pelas partes, designadamente, tendo dado como provado sob o n.º 12.
36. Não pode o Autor ora Recorrente aceitar a decisão sufragada quanto ao facto em causa, por ter como inadmissível a motivação aventada pelo Tribunal Recorrido.
37. O tribunal recorrido funda a sua convicção sobre quele facto prova nos depoimentos das testemunhas (…), (…), na ata da assembleia de condomínio de 09/02/2019; e nas declarações de parte do Autor.
38. Quanto ao depoimento de (…), este é parte na ação (dada a apensação) e não testemunha, pelo que foi o seu depoimento obtido em violação de dispositivo legal imperativo, impondo-se declarar a nulidade do mesmo.
39. Sem prescindir, se como testemunha pudesse ter sido ouvido, sempre o seu depoimento tinha de ter sido desvalorizado pelo tribunal, atento o seu interesse no desfecho da causa sub judice e bem assim a falta de credibilidade que o mesmo ofereceu, insuscetível de contribuir para ter como provado o facto n.º 12 daquela seleção de matéria.
40. Perguntado e insistido sobre se alguma vez alguém, designadamente o A., manifestou oposição às estruturas em causa nos autos, foi perentório insistente em responder negativamente, em clara oposição ao que resulta da ata de 9 de Fevereiro de 2019.
41. Confrontado com quele documento e perguntado diretamente se naquela assembleia o A. não se manifestou contra as estruturas, negou, dizendo desconhecer a ata em apreço.
42. Das suas declarações é forçoso concluir que o mesmo não estabelece qualquer relação entre a manifestação de alguns condóminos contra a manutenção do escritório do Autor e a reação deste, deixando expressa a sua manifestação contra as estruturas em causa nos autos.
43. O depoimento do Réu (…) não acolhe a tese sufragada pela sentença recorrida, não sendo por isso suscetível de suportar o juízo de prova positivo sobre o facto dado como provado sob o n.º 12.
44. A testemunha (…) não fez sequer referência à existência e/ou oposição à manutenção de escritório de advogados do A., a não ser por referência à ata de assembleia de condóminos de Fevereiro de 2019, na sequência de a ter acabado de ler,.
45. Pelo que, muito menos fez qualquer declaração no sentido de concluir que a poição assumida pelo A., materializada no pedido deduzido nos presentes autos, constituísse represália ou vingança em consequência da oposição dos condóminos à manutenção do seu escritório. ao contrário do consignado pela sentença recorrida.
46. Não se alcança como pode o Tribunal a quo referir que o mesmo foi coerente no seu discurso revelando convincente persistência na tese apresentada que, de resto tem sustentação na própria ata n.º 5 da reunião da assembleia de condóminos levada a cabo em 2019/02/09.
47. Acresce que aquele depoimento não foi prestado com cumprimento das regras processuais que visam garantir a sua espontaneidade e verdade, conforme já se alegou.
48. E que não fez o Tribunal recorrido análise e valoração rigorosa do mesmo, já que a testemunha reduz a meras manifestações de opinião, sem qualquer carater vinculativo, o deixado escrito no ponto 5 da ata de 09/02/2019, quer o manifestado pelo Autor, quer o manifestado pelos 5 condóminos.
49. A testemunha não faz uma única referência a uma relação de causa consequência ou sequer de ordem cronológica, entres as posições ali assumidas,.
50. Todas as referências feitas pela testemunha, sobre a assembleia de fevereiro de 2019 são feitas por referência à respetiva ata, acabara de ler, e não por memória ou conhecimento direto do ocorrido naquela assembleia de condomínio.
51. Sem necessidade de maior escrutínio, é evidente que o depoimento da testemunha (…) não é suscetível de conduzir à prova do facto 12 da matéria assente.
53. Quanto à ata da assembleia de condomínio de 09/02/2019, é manifesto que a sentença recorrida extravasa o seu conteúdo para retirar da mesma a conclusão de que o A. apenas se posicionou contra a preservação da estrutura construída pelos Réus após estes e os demais condóminos (com exceção dos proprietários das frações D, E, e H) terem manifestado a sua discordância à manutenção pelo Autor de escritório de advocacia na sua fração.
54. A relação causa/consequência construída pela sentença recorrida extrapola completamente o conteúdo da ata em causa, sendo absolutamente destituído de rigor e até de sentido, considerar que a pretensão do A. trazida aos presentes autos constitui reação ou represália pela oposição do R. (entre outros condóminos), apenas porque no mesmo ponto da ordem de trabalhos, a referência à oposição daqueles, antecede a manifestação de opinião e vontade do A.
55. Tanto mais que no mesmo ponto daquela ata se faz menção a assembleia anterior onde o desagrado de alguns condóminos relativamente ao funcionamento do escritório de advogados do A. fora já manifestado em assembleia anterior.
56. Desconhecendo-se, por nenhum aprova ter sido feita nesse sentido, se o A. já manifestara também a sua oposição quanto à manutenção das estruturas ilicitamente erigidas no condomínio, em momento anterior ou posterior ao “desagrado” expresso pelos condóminos (5) na assembleia anterior ou em qualquer outro momento.
57. Como é evidente, a simples sucessão de pontos, temas, registo de posições, deixados consignados em ata de reunião, não podem ter-se como causa/consequência uns dos outros.
58. O documento acolhido pela sentença recorrida para motivar a sua decisão sobre o facto dado como provado sob o n.º 12 é claramente insuscetível, isolada ou em conjunto com os demais meios de prova considerados, de suportar a conclusão retirada pelo decidindo ora em crise.
59. Quanto às declarações de parte do Autor, com o devido respeito, o tribunal recorrido vai mesmo longe de mais na falta de rigor emprestada.
60. O Autor não diz em qualquer momento das suas declarações o que a sentença recorrida lhe atribui; o tribunal recorrido deturpa o que foi dito pelo Autor, já que o Autor declarou precisamente o contrário do consignado pelo Tribunal a quo.
61. Da audição das declarações de parte do A. é inequívoco que não há qualquer correspondência entre o que por ele foi dito efetivamente e o que o Tribunal recorrido fez constar na sentença sindicada, como tendo sido dito pelo mesmo.
62. Explicou que a decisão de alguns condóminos de não permitir a continuidade do seu escritório na sua fração não o ofendeu uma vez que sempre soube que a sua permanência era provisória.
63. Afirmou e reafirmou que o que o ofendeu e teve como deslealdade brutal, que o levou a cortar relações com os vizinhos foi a forma como manifestaram aquela decisão – nas suas costas, sem a hombridade de lhe dizerem frontalmente.
64. Disse que: se tivesse continuado a viver no condomínio talvez não tivesse interposto a presente ação em virtude das relações de vizinhança que teria de manter.
65. Mas foi perentório a afirmar que, a partir do momento em que perdeu interesse pessoal na mesma, passando a ter interesse meramente económico correspondente à sua venda, a sua posição se alterou.
65. Mais afirmou que por ter sido alertado para a desvalorização da sua fração em virtude da existência e proliferação de construções ilegais feitas no condomínio não teve dúvidas sobre a interposição das ações.
66. Em momento algum o ser referiu à posição por si assumida na assembleia de condomínio de fevereiro de 2019 como tendo sido o momento em que decidiu pela interposição das presentes ações.
67. As declarações do Autor conduzem indubitavelmente à não prova do facto elencado sob o n.º 12 dos factos provados.
68. As declarações de parte prestadas pelo A. foram, no que toca ao motivo pelo qual decidiu intentar a(s) presente(s) ação(ões) corroboradas pelo depoimento da testemunha (…), mediadora imobiliária há 24 anos, avaliadora imobiliária certificada e antiga administradora do condomínio onde se situam as frações de A. e RR.
69. São flagrantemente destituídas de fundamento as motivações aventadas pela sentença ora crise para não acolher o depoimento da testemunha (…).
70. A mesma depôs sobre a matéria alegada em sede de réplica, designadamente sobre a decisão do Autor de vender a sua fração e a sua constatação ou tomada de consciência da desvalorização no mercado imobiliário do seu imóvel em virtude da violação da linha e harmonia arquitetónicas do condomínio, levada a cabo pelos RR.
71. Tais factos não são, de todo, estranhos à ação, assumindo especial importância, por constituírem contraprova da versão que o Tribunal, erradamente, preferiu adotar, a teoria da vingança, com base na qual decidiu pela improcedência da ação por alegado abuso de direito do A. .
72. Ora, a testemunha confirmou, com credibilidade e espontaneidade, e deu nota de que a moradia do Autor lhe foi entregue, na qualidade de mediadora.
73. Referiu que a mesma se insere num condomínio único no concelho de Rio Maior, destinado a clientes de classe média-alta atento o seu preço, a sua arquitetura e a sua singularidade enquanto condomínio fechado.
74. Referiu que alguns clientes, pelo menos 2, ao visitarem o imóvel fizeram referência às estruturas dos RR., tendo perguntado o que eram e se constavam do projeto, denotando desagrado pelas mesmas.
75. E que os negócios com aqueles clientes não se concretizaram por perda de interesse dos mesmos.
76. Confirmou ainda que, na sequência das visitas ao imóvel, informou o Autor da forma como haviam decorrido e chamou a atenção do A. para o facto de as estruturas constituírem fator de desvalorização do seu imóvel, com base nas suas competências de avaliadora imobiliária.
77. Não é aceitável que opiniões avalizadas pelas competência e experiência profissional da testemunha sejam mal aceites pelo Tribunal.
78. Do que se deixou transcrito e alegado, impõe-se valorizar o depoimento da testemunha Gisela Germano, aceitando o seu válido contributo na prova dos factos alegados pelo Autor afastando o juízo de prova incido sobre a matéria tida como assente sob o ponto 12. e contribuindo para que a matéria da réplica (identificada) seja aditada à matéria assente.
79. Mostra-se ofensivo e absolutamente destituído de sentido a afirmação ínsita na sentença recorrida de que “foram variando estrategicamente as justificações do Autor para a instauração da presente ação, sobretudo quando estamos perante uma contestação totalmente construída com factos que se revelaram, face à prova produzida, absolutamente inverdadeiros.
80. O A. intentou ação deduzindo pedido de demolição das estruturas ilegalmente erguidas pelos RR. pela sua violação da linha arquitetónica do condomínio sem autorização do condomínio e alegou os factos tendentes a instruir aquele pedido.
81. Naturalmente, e no estrito cumprimento das regras processuais, só após a dedução de contestação pelos RR., com dedução da exceção de abuso de direito, entre outras, é que surgiu a necessidade do Autor, alegar factos impeditivos da procedência daquela exceção.
82. Não se enxerga pois que ardil ou habilidade pode constituir a posição do Autor que numa primeira fase alega os factos constitutivos do seu direito e, no momento próprio para o efeito, vem alegar factos impeditivo da procedência das exceções alegadas pelo Réu.
83. Por fim, diga-se: a tese da vingança acatada pela sentença recorrida além de não resultar provada pelos motivos apontados, é destituída de sentido lógico, não podendo ter sido rececionada se tivesse merecido “olhar mais atento” por parte do Tribunal a quo.
84. As ações propostas pelo A, quer os presentes autos quer aquela a que a mesma vem apensa, foram intentadas em 04/11/2020 e 27/07/2020, respetivamente, ou seja, um ano e meio e dois anos após a manifestação formal da oposição por parte dos seus vizinhos (Fev. 2019) e 2 anos e 2 anos e meio após a primeira assunção daquela posição pelos mesmos, em 2018.
85. O Tribunal recorrido tinha de se ter perguntado porque esperaria o A. mais de um ano e meio o a dois anos para se vingar? Não encontrando resposta com motivo atendível, havia de ter abandonado a tese da vendeta do Autor.
86. Mais resultou demonstrado que ainda antes do Autor ter mudado o seu escritório para o local onde hoje se situa, entre 2019 e 2020, este veio a colocar no mercado imobiliário para venda; a sua fração, tendo contratado a empresa mediadora imobiliária (…), da qual a testemunha (…) é gerente.
87. A proximidade entre as datas da perceção ou tomada de consciência por parte do Autor da desvalorização da sua fração e a data da interposição das ações (2020) , tinha de ter-se apresentado ao Tribunal recorrido como mais tendente a encontrar aqui a motivação do A. para agir contra os RR?
88. Este são fatores que o tribunal a quo descurou mas nos quais deveria ter atentado por constituindo indícios inequívocos da verdadeira motivação do A. na interposição da presente ação.
89. A mesma evidência resulta do facto de não fazer sentido à luz de critérios de razoabilidade, que o A. pretendesse vingar-se dos vizinhos com a interposição das presentes ações, com o fito de ver demolidas as construções sub judice, e tivesse colocado no mercado, para venda, a sua fração em momento anterior às mesmas, bem sabendo que tal acarretaria a sua ilegitimidade para o efeito.
90. O que abona, naturalmente ao afastamento da tese da vingança do Autor.
91. Ficou sobejamente demonstrado e evidente que o “intento” do Autor foi/é tão só repor a identidade e harmonia do condomínio e a alteração da sua linha arquitetónica, impedindo a sua descaracterização ilegal progressiva, perpetrada pelos Réus e inspiradora dos demais condóminos, com reflexos económicos na sua esfera jurídica, pela desvalorização da sua fração.
92. Os meios de prova em que o Tribunal recorrido fez assentar, a título de motivação, da sua decisão de ter como provado o facto assim elencado sob o ponto 12, foram indevidamente valorados.
93. Os mesmos são insuscetíveis de, conduzir às conclusões alcançadas pela sentença recorrida e, consequentemente, de conduzir ao juízo de prova sobre aquela factualidade.
94. Os meios de prova considerados pela sentença recorrida conduzem mesmo a solução oposta à preconizada por aquela, ou seja, à conclusão de ter como não provado o facto tido como tal sob o ponto 12 da matéria assente, abonando ainda a favor da mesma, o depoimento da testemunha (…), injustificadamente desvalorizado pelo tribunal recorrido.
95. Assim como o recurso a parâmetros da lógica do homem médio e as regras da experiência, na avaliação dos indícios supra elencados, redundam no mesmo sentido.
96. O julgador é livre, ao apreciar as provas, e tal constitui princípio de Direito que os Tribunais Superiores, e bem, muito prezam.
97. No entanto, tal apreciação tem de ser “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório”, não podendo constituir um poder absoluto meramente discricionário.
98. A livre convicção não pode confundir-se com a íntima convicção do julgador.
99. Impõe a lei que o Tribunal extraia das provas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso, e valoradas segundo parâmetros da lógica do homem médio e as regras da experiência.
100. E no caso dos autos, o Tribunal recorrido claudicou nesse julgamento, o que se impõe corrigir dando como não provado que “a presente ação é retaliação do Autor contra os Réus pelo facto de se terem oposto à instalação por aquele, na sua fração, de um escritório de advocacia aberto ao público”.
101. Caso se entenda de forma diferente, o que não se aceita e meramente se equaciona, sempre importaria aditar a seleção de factos alegados em sede de réplica pelo Autor.
102. Da concatenação das declarações de parte do A. do depoimento da testemunha (…) resulta provada toda aquela factualidade.
103. Os mesmos factos assumem relevância para a boa decisão da por serem a motivação que acresce à vontade do A. de ver reposta a linha arquitetónica do condomínio.
104. Sendo os mesmos extintivos da exceção do abuso de direito decidida pelo Tribunal de 1.ª instância.
Nestes termos e nos demais de direito aplicáveis, deve ser dado provimento ao presente Recurso, revogando-se, a sentença recorrida substituindo-se a mesma por Acórdão que condene os RR. nos termos peticionados pelo A., como é de Direito e de JUSTIÇA!»
Não há contra-alegações.
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:
1. A fração autónoma designada pela letra D, composta por rés-do-chão e primeiro andar para habitação e logradouro, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, denominado Condomínio (…), sito na freguesia e concelho de Rio Maior, encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial de Rio Maior sob o número (…), da freguesia de Rio Maior.
2. (…) com registo de aquisição por compra pelo Autor datado de 2005/12/09.
3. A fração autónoma designada pela letra G, composta por rés-do-chão e primeiro andar para habitação e logradouro, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, 1 Seguindo de perto entendimento propugnado pelo Ac. TRL de 2016/05/12, proc. n.º 272/13.0YXLSB.L1-2, in www.dgisi.pt/ os factos instrumentais servem para a prova indiciária dos factos essenciais, porquanto através deles se poderá chegar, por via de presunção judicial, à demonstração dos factos essenciais correspondentes desempenham pois, em exclusivo, uma função probatória e não uma função de preenchimento e substanciação jurídico-material das pretensões e da defesa os factos a discriminar em sede de fundamentação da sentença, nos termos do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, são somente os factos essenciais denominado Condomínio Vilas Oito, sito da freguesia e concelho de Rio Maior, encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial de Rio Maior sob o número (…) da freguesia de Rio Maior.
4. (…) com registo de aquisição por compra pelos Réus datado de 2017/09/29.
5. O referido “Condomínio (…)” foi projectado e construído como um condomínio fechado, composto por oito moradias, em banda, iguais e a que cada uma corresponde uma fração autónoma.
6. (…) com o mesmo mapa de acabamentos.
7. Em data não concretamente apurada, mas situada no ano de 2017, Os Réus ergueram, na parte posterior da sua fração, uma estrutura coberta, em alumínio e vidro, com cerca de 15 metros de comprimento por 3 metros de largura, que serve de anexo à cozinha e churrasqueira da fração.
8. Antes dessa obra/construção existia no local um exterior descoberto tal como aliás resultava do projecto de arquitectura do edifício.
9. A fracção dos Réus é a primeira moradia do condomínio e por isso a moradia mais exposta e mais visível para quem entra no “Condomínio (…)”.
10. O Autor opõe-se à existência da estrutura referida em 7) supra na fracção dos Réus como forma de retaliação pelo facto de estes se terem oposto, previamente à manutenção pelo Autor na sua fração, de um escritório de advocacia aberto ao público.
B Factos não provados
Com relevância para a boa decisão da causa, nada ficou por provar.


2 – Objecto do recurso.

Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações, nos termos do artigo 684.º, n.º 3, do CPC, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso:
1ª Questão – Saber se há nulidade processual relativa à apensação de acções e à inquirição de testemunhas.
2ª Questão - Saber se a sentença é nula por excesso de pronúncia, atenta a impossibilidade de o Tribunal conhecer da exceção de abuso de direito, não deduzida pelos RR.
3ª Questão – Saber se o Ponto 10 provado deve ser considerado não provado e serem dados como provados os factos alegados pelo A. em sede de réplica.


3 - Análise do recurso.

1ª Questão – Saber se há nulidade processual relativa à apensação de acções e à inquirição de testemunhas.

O recorrente invoca a nulidade, decorrente da apensação de acções e da inquirição de testemunhas, pelo facto de, o tribunal não ter efectuado um só julgamento e uma só inquirição de testemunhas (mas um em cada processo), na sequência da apensação que ordenou.
Ou seja, vem arguir uma nulidade processual, alegadamente cometida, pelo tribunal a quo, em sede de tramitação dos autos, vício este que não arguiu directamente junto do tribunal a quo, mas antes suscitado directamente junto deste tribunal da Relação.
É a alegação de uma nulidade processual e não da sentença.
As nulidades processuais derivam de actos ou omissões, que foram praticados antes de ser proferida sentença, traduzindo-se em desvios ao formalismo processual prescrito na lei, quer por se praticar acto proibido, quer por se omitir um acto prescrito na lei, quer por se realizar um acto imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.
Tais nulidades, constituindo anomalia do processo, devem ser suscitadas e conhecidas no Tribunal onde ocorreram e, discordando-se do despacho que as conhecer, poderia ele ser impugnado através de recurso.
Fora das situações enunciadas nos artigos 193.º a 200.º CPC, que integram as nulidades principais, dispõe o n.º 1 do artigo 201.º CPC, que a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influenciar a decisão da causa (nulidades secundárias ou atípicas).
As nulidades secundárias não são do conhecimento oficioso, estando dependente de arguição da parte interessada, como decorre da parte final do artigo 202.º do CPC.
A ter sido cometido tal nulidade, estar-se-ia sempre perante uma nulidade secundária, de conhecimento não oficioso, estando a mesma dependente de arguição da parte interessada (cfr. artigo 197.º, n.º 1, in fine, do CPC), razão porque se impunha que tivesse sido ela arguida [pois que não está a mesma – a nulidade – coberta por um despacho judicial, caso em que o meio adequado de reacção seria então a imediata interposição de recurso do mesmo despacho] perante o tribunal a quo (que in casu não foi) e, após, do despacho que a apreciasse/decidisse, negando-a, então sim justificava a interposição do competente recurso de apelação .
É que, em causa está a conhecida doutrina tradicional corporizada na velha máxima “dos despachos recorre-se; das nulidades reclama-se” cfr. José Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, vol. II, pág. 507 e ss. e Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, 1979, Coimbra Editor, pág.. 183.
Por outro lado, tais nulidades devem ser arguidas no prazo geral do artigo 149.º, n.º 1, do CPC, ou seja, no prazo de 10 dias.
E nos termos do artigo 199.º ( Regra geral sobre o prazo da arguição) devem ser arguidas: se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar; se não estiver, o prazo para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência.»
Ainda que se possa aceitar que essa nulidade pudesse influir no exame e na decisão da causa a que se reportava, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC, devia ter surgido reclamação da parte interessada, e não havendo reclamação atempada a nulidade tem que considerar-se sanada (por não se tratar de uma situação de nulidade principal do conhecimento oficioso prevista na lei).
Nestes termos, conclui-se que o recorrente deveria ter reclamado contra a realização dos julgamentos e inquirições autónomos, logo que dos mesmos teve conhecimento.
Não o tendo feito, e permitido que o processo prosseguisse sem que nada se dissesse a esse respeito, renunciaram tacitamente a arguir essa nulidade (cfr. artigo 199.º do CPC), e esta tem agora que considerar-se sanada.
Ou seja, no caso dos autos, o recorrente não arguiu a nulidade na altura própria, pelo que, sempre se encontraria sanada.
Improcede, assim, nesta parte, o recurso.

2ª Questão - Saber se a sentença é nula por excesso de pronúncia, atenta a impossibilidade de o Tribunal conhecer da exceção de abuso de direito não deduzida pelos RR.

O recorrente invoca ainda a nulidade da sentença prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código do Processo Civil, por ter ultrapassado os seus limites de pronúncia a que está vinculado, uma vez que os RR. não deduziram na sua contestação a exceção de abuso de direito por parte do A. nem foram alegados factos tendentes a conduzir à verificação dos respetivos pressupostos.
Nos termos do artigo 615.º do CPC, sob a epígrafe de “Causas de nulidade da sentença”:
“1 - É nula a sentença:
a) Quando não contenha a assinatura do juiz;
b) Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão;
d) Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) Quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido...”.
Em coerência e de forma prévia, lê-se no actual artigo 608.º, n.º 2, do C.P.C. que, o juiz não “pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras” e lê-se no actual artigo 609.º, n.º 1, do C.P.C. que a “sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir”.
Esta nulidade colhe o seu fundamento quer no princípio do dispositivo (que atribui às partes a iniciativa e o impulso processual), quer no princípio do contraditório, com isso significando que – em sede de processo civil, onde se discutem e dirimem conflitos de natureza privada, e não pública – o tribunal não pode resolver o conflito de interesses sem que a resolução lhe seja pedido por uma das partes, e sem que a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
Ou seja, o “juiz não pode conhecer, em regra, senão das questões suscitadas pelas partes; na decisão que proferir sobre essas questões, não pode ultrapassar, nem em quantidade, nem em qualidade, os limites constantes do pedido formulado pelas partes” (Alberto dos Reis in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, págs. 67 e 68).
O excesso de pronúncia gerador da nulidade em apreço, refere-se aos pontos essenciais de facto e de direito que constituem o centro do litígio, quer seja no que respeita ao pedido como às excepções. Ou, como se decidiu nos Acórdãos do STJ de 8.01.2004 e 5.02.2004, in www.dgsi.pt, “essas questões centram-se nos pontos fáctico-jurídicos que estruturam as posições das partes na causa, designadamente os que se prendem com a causa de pedir, o pedido e as excepções”.
O abuso do direito está consagrado como figura geral no artigo 334.º do CC que preceitua “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico desse direito”.
“Cada direito subjectivo tem os limites da sua própria definição, isto é, os limites decorrentes das faculdades e outras situações jurídicas cujo conjunto integra o conteúdo do direito, desenhado pela lei ou pelo negócio jurídico” (in Pessoa Jorge, Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, 196).
A atribuição de um direito subjectivo pelo direito objectivo não concede que o beneficiário da atribuição possa exercê-lo de qualquer modo.
Os membros da comunidade jurídica devem agir segundo a boa fé, isto é, devem adoptar um comportamento de correcção e probidade, tanto na constituição das relações entre eles como no desempenho das relações constituídas (cfr. artigos 227.º, 334.º e 762.º, do CC).
A boa fé a que se refere o preceito do artigo 334.º do C. Civil traduz-se na regra de conduta segundo a qual “o sujeito de direito deve actuar como pessoa de bem, honestamente e com lealdade” (Cunha de Sá, Abuso do Direito, 171).
A boa-fé (normativa), referida no artigo 334.º citado, não é mais que uma regra de conduta, que impõe às pessoas um dever de agir com lealdade, correcção e honestidade ou, por outras palavras, é uma regra que impõe aos sujeitos o dever de lealdade nas relações, procedimento honesto, evitando causar lesão na esfera jurídica alheia e colaborando na realização ou, ao menos, não frustrando a satisfação das legítimas expectativas de outrem que fundadamente confiou em determinada conduta e nela assentou a sua actuação e investimento (protecção da confiança).
Os bons costumes traduzem-se “no conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e correctas aceitam comumente” (in Almeida Costa, Dir. Obrigações, 3ª Ed./págs. 62 e 63); constituem o “conjunto de regras morais aceites pela consciência social” (in Manuel Andrade, Teoria Geral Direito Civil, II/341) de certa comunidade jurídica, consciência essa variável e contingente por natureza.
Para determinar se certa pessoa agiu de boa fé e sem ofensa dos bons costumes há que fazer apelo às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade, em determinado espaço e tempo e no círculo social em que o direito é exercido.
“Com a reprovação do abuso do direito procura-se que se não desvirtue o verdadeiro sentido da norma abstracta” (Pessoa Jorge, Ob. Cit., 198) que o confere; procura evitar-se o exercício anormal, em termos reprováveis, do direito próprio, só formalmente adequado ao direito objectivo.
O abuso de direito é do conhecimento oficioso.
Mas o conhecimento oficioso do abuso de direito não é ilimitado.
Tal conhecimento tem sempre o limite da realidade factual dos autos, ou seja, do objecto do processo.
É dentro dos limites traçados pelos articulados que se desenvolve a actividade cognitiva e decisória do tribunal, o que traduz aquilo a que podemos chamar uma espécie de “vinculação temática” decorrente da autonomia e auto responsabilidade das partes.
Sabemos que, o objeto do processo corresponde ao conjunto das questões jurídicas sobre as quais o tribunal é chamado a pronunciar-se e identifica-se por referência aos factos a que se reportam as questões submetidas a julgamento e à qualificação que as normas de direito fazem desses factos.
Os limites nessa temática estão presentes na delimitação dos factos passíveis de levar em conta, na medida em que, os factos não alegados pelas partes podem ser considerados pelo juiz, desde que sejam factos instrumentais que resultarem da instrução da causa (n.º 2, alínea a), do artigo 5.º), ou sejam complementares ou concretizadores dos que as partes alegaram, quando resultarem da instrução causa.
Ou seja, o limite é sempre o alegado pelas partes, a forma como “desenharam” o litígio.
Como referem, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, em Anotação ao Código de Processo Civil, pág. 41, «o conhecimento oficioso da norma jurídica está dependente da introdução na causa dos factos aos quais o tribunal a aplica, devendo sempre distinguir-se o plano dos factos, em que vigora, mesmo em matéria de direito processual, o princípio do dispositivo, e o plano do direito, em que a soberania pertence ao juiz, sem prejuízo ainda, no que ao direito material se refere, de o conhecimento oficioso se circunscrever no domínio definido pelo objeto do processo».
Embora o abuso de direito (artigo 334.º do Código Civil) possa ser objecto de conhecimento oficioso e, por conseguinte, o seu conhecimento não esteja vedado ao Tribunal, ainda que a sua invocação constitua questão nova (artigo 608.º, n.º 2, do NCPC) a oficiosidade não pode ir para além dos factos que foram alegados e controvertidos, pois a menção de novas razões de facto constituiria grosseira violação do princípio do contraditório, conjugado com o princípio da preclusão que resulta do artigo 489.º/1, do C.P.C. vide neste sentido, Acórdão do STJ de 28 de novembro de 2013, proc. n.º 161/09.3TBGDM.P2.S1, Relator: Salazar Casanova, Ac. RG, 04-Out.-2018 proc. n.º 1047/14.5TBGMR-A.G1 Relator: Jorge Teixeira e Ac. STJ de 23.10.2014, proc. n.º 5567/06.7TVLSB.L2.S1, Relator: Granja da Fonseca, onde se pode ler com muita pertinência para o nosso caso, o seguinte:
«Mas há uma limitação a este princípio do conhecimento ex officio do abuso de direito.
Muito embora o abuso de direito (artigo 334.º do Código Civil) possa ser, como é, de conhecimento oficioso, não estando, por conseguinte, vedado o seu conhecimento ao Tribunal, isso não significa que este considere ocorrido o abuso de direito à luz de factos que não foram alegados nem se possam considerar adquiridos nos autos.
Ou seja, “mesmo que se considere que esse fundamento (abuso de direito) é de conhecimento oficioso, será sempre necessário que esteja demonstrada a respectiva factualidade para que o mesmo possa ser apreciado”.
Com efeito, “a aplicação do abuso de direito depende de terem sido alegados e provados os competentes pressupostos, salva a hipótese de se tratar de posições indisponíveis. Além disso, as consequências que se retirem do abuso de direito devem estar compreendidas no pedido feito ao tribunal, em virtude do princípio dispositivo”.
Significa isto que, não obstante ser o abuso de direito de conhecimento oficioso, não pode tal instituto ser apreciado à luz de factos não provados e de factos novos ou documentos novos que visam a alteração da matéria de facto, vedada, como vimos, à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça.
Neste mesmo sentido, se decidiu no Acórdão do STJ de 28/11/2013[8], considerando que “o abuso de direito (artigo 334.º do CC) pode ser objecto de conhecimento oficioso e, por conseguinte, o seu conhecimento não está vedado ao Tribunal, ainda que a sua invocação constitua questão nova (artigo 660.º do CPC/artigo 608.º, n.º 2, NCPC) mas isso não significa que o Tribunal considere ocorrido o abuso de direito à luz de factos que não foram alegados nem se podem considerar adquiridos nos autos”.
Poder-se-á, pois, dizer que o abuso de direito pode ser oficiosamente conhecido, ainda que, apenas, invocado nas alegações para o STJ, mas a verdade é que o conhecimento oficioso não prescinde da alegação e prova da factualidade que se integre em tal conceito jurídico”, pelo que, para esse feito, é necessário que o tribunal disponha da factualidade pertinente, alegada pelas partes nos respectivos articulados.»
Significa isso que, para que se possa conhecer o abuso de direito será sempre necessário que esteja alegada e demonstrada a respectiva factualidade.
O facto de ser do conhecimento oficioso não significa prescindir da alegação dos factos que o integre – vide Ac. STJ de 21.04.2010, revista n.º 634/05.7.
Repare-se que, da análise dos autos resulta que, nunca foi levantada a questão da “motivação do Autor para intentar a acção”, apreciada na decisão recorrida: O tribunal afasta o direito (que até reconhece que existe) por razões que se prendem com a motivação eticamente censurável para propor a acção.
É certo que, como refere Daniel Bessa de Melo, “O abuso do direito: contributos para uma hermenêutica do artigo 334.º do…”Online, Outubro de 2020 in “Julgar” pág. 31 “o abuso de direito implica que não possa ser ultrapassado o limite ético-jurídico imprescindível ao Direito”.
Porém, tal não pode significar a averiguação, pelo tribunal, dos motivos que levaram ao Autora intentar a acção e à sua qualificação ética para afastar um direito.
Esta posição conduziria ao absurdo de, o abuso de direito poder ser decorrente de uma valorização subjectiva na esfera da ética com a inerente, ilimitada e de perigosa arbitrariedade.
Mais uma vez, citando Daniel Bessa de Melo, Ob. Cit. P. 61:
« Seria prejudicial para a interação societária – além de ser mais um eflúvio de litígios para um sistema judiciário já sobrecarregado – que, numa reevocação do direito pretoriano, cada atributo jurídico pudesse e devesse ser escalpelizado pelo juiz à luz de valorações poucas vezes transparentes e objetivas; em tal caso, indesejado resultado de uma hipertrofia da atividade judicativa, a lei geral e abstrata apenas se tornaria num indício de juridicidade carente de ser infirmada ou corroborada pelo aplicador do Direito. Não é este o sentido do instituto do abuso – não se pretende cometer ao juiz, para além da tradicional função jurisdicional, uma espécie de para-função ética (no que respeita aos bons costumes e à boa fé) e política (no que diz respeito à função económica ou social dos direitos) (…) o legislador sapientemente introduziu várias cautelas: a segurança jurídica – ela mesma condição para o exercício da autonomia privada – só poderá ceder perante exigências de justiça material quando a injustiça proveniente do exercício for clamorosa, indeclinável e evidente, ou seja, quando bulir com a axiologia imanente do sistema jurídico e não com o zelo pessoal do juiz; a autoridade formal do legislador apenas deverá ser levantada naqueles casos atentatórios da própria razão de ser da sua autoridade. Ao contrário do que alguns possam achar, não há uma verdadeira oposição entre Direito e Ética, mas sim uma contenda entre a generalidade e abstração dos comandos jurídicos, por um lado, e os próprios cânones sistemáticos do ordenamento jurídico, por outro»
Voltemos ao caso concreto:
O facto provado nº 10 – (10. O Autor opõe-se à existência da estrutura referida em 7) supra na fracção dos Réus como forma de retaliação pelo facto de estes se terem oposto, previamente à manutenção pelo Autor na sua fração, de um escritório de advocacia aberto ao público) – que sustenta o abuso de direito – resulta da acta que tem por base as declarações do réu sendo por isso um facto novo, surgido em julgamento – não antes alegado, que não fazia parte do objecto do processo.
De acordo com o supra exposto, conhecer desse facto corresponde ao conhecimento inadmissível de matéria que extravasa o objecto dos autos, devendo o mesmo ser eliminado da matéria de facto, por não ter sido objecto de alegação.
Para além disso, importa ainda referir que, no nosso entender, o exercício de um direito não deixa de ser legitimo apenas pelas motivações subjectivas inerentes ao seu exercício.
De resto, o abuso de direito não se confunde com o aspecto moralmente incorrecto da motivação para propor a acção.
Tem que ser mais do que isso.
Com a acção limitou-se o A. a exercer um direito, em face de uma conduta ilícita dos RR, direito esse exercido de acordo com a finalidade da sua atribuição.
Em suma: ao contrário do entendimento da sentença recorrida, não se pode concluir que o A. esteja a exercer um direito de modo manifestamente abusivo e ao julgar dessa forma a sentença incorreu em excesso de pronúncia, com base na alegada violação da alínea e) do n.º 1 do artigo 615.º do C.P.C., verificando-se a nulidade da sentença por ter havido condenação em objecto diferente do pedido, o que se decide.
Tanto basta para a procedência da invocada nulidade.
Nos termos do disposto no artigo 715.º, n.º 1, do CPC, “ainda que declare nula a decisão que põe termos ao processo o tribunal de recurso deve conhecer o objecto da apelação” e, antes de ser proferida decisão, o relator ouve cada uma das partes pelo prazo de 10 dias (vide n.º 3 do preceito).
No caso dos autos, embora o tribunal a quo tenha decido em objecto diferente do pedido, como anteriormente decidido daí, resultando a nulidade da decisão e, por força do artigo 715.º, n.º 1, do CPC, a obrigação de este Tribunal da Relação conhecer do objecto da apelação, não se impõe que se devam ouvir as partes por tal, no caso, se tratar de uma manifesta desnecessidade salvaguarda no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, considerando que tal decisão não constitui surpresa alguma, uma vez que a decisão a proferir está implícita já na decisão proferida pelo tribunal a quo e de que constitui pressuposto.
Nesta conformidade, entende-se que a acção só pode proceder nos limites dos pedidos formulados pela A. (já que no recurso só é posta em causa a condenação que vai além dos limites dos pedidos e não a condenação per si) e como tal, se decide o desfecho da acção.
Ora a sentença recorrida – antes de concluir pelo abuso de direito – entendeu que o direito invocado na PI existia “a marquise em apreço erigida pelos Réus na parte posterior da sua fração, pela sua colocação no perfil externo da fachada do edifício, e com as características do mesmo, seja pelo tamanho, seja pelos materiais utilizados, constitui um prejuízo para a linha arquitetónica do condomínio e que os Réus não alegaram e provaram a obtenção de autorização da assembleia de condóminos» e isso não foi objecto de recurso.
E entendeu que a sanção para a realização da obra em apreço é a sua destruição, reconhecendo assim o invocado na PI., pelo que, afastado o abuso de direito (por traduzir um conhecimento inadmissível) expurgada a sentença da nulidade deve esta limitar-se ao pedido que foi reconhecido.
Pelo exposto fica prejudicada a análise da 3ª questão.


Sumário (da autoria da relatora):
(…)

4 – Dispositivo.

Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação interposto, revogando-se a sentença na parte em que declarou o abuso de direito e, mantendo-se no mais, condenando-se os Réus a) na demolição da obra/construção que erigiram na parte posterior da fracção repondo-a no estado anterior ao que se encontrava antes da construção daquela, no prazo de 30 dias a contar da data do trânsito da sentença;
b) E a pagar a título de sanção pecuniária compulsória a quantia de 100 euros por dia a título de sanção pecuniária compulsória, caso não procedam à referida demolição no prazo referido na alínea anterior.

Custas em ambas as instâncias pelos recorridos.
Évora, 16.03.2023
Elisabete Valente
Ana Isabel Pessoa
José António Moita