ENTREGA JUDICIAL DE BENS
PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
SUSPENSÃO DE EXECUÇÃO
Sumário

I. A Lei 9/2022, de 11 de Janeiro, que alterou, entre outros preceitos, a redacção do artigo 17.º-E do CIRE, veio, conforme expressa, estabelecer medidas de apoio e agilização dos processos de reestruturação das empresas e dos acordos de pagamento, transpondo a Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, o que convoca, na sua interpretação, para além dos critérios consagrados no artigo 9.º do CC, também o princípio da interpretação conforme – a norma nacional terá de ser interpretada conforme ao instrumento normativo transposto.
II. A Directiva (EU) transposta versa sobre “os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas”, alterando a Diretiva (UE) 2017/1132 (Diretiva sobre reestruturação e insolvência).
III. Visando as medidas adoptadas reforçar as condições de reestruturação das empresas, promovendo uma intervenção precoce em ordem a evitar a liquidação, o que passa por manter a sua actividade, tal finalidade precípua resultaria irremediavelmente comprometida se se permitisse que os credores da empresa devedora lograssem obter, mediante procedimentos cautelares de entrega judicial, a restituição dos bens locados.
IV. O n.º 1 do artigo 17.º-E do CIRE deve ser interpretado no sentido de abranger na sua previsão todas as medidas executivas, incluindo portanto as entregas judiciais requeridas no âmbito dos procedimentos cautelares a que alude o artigo 21.º do DL n.º 149/95, de 24 de Junho, o que encontra ainda expressão na letra da lei quando alude a crédito.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo n.º 382/22.3T8ETZ.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Évora
Juízo de Competência Genérica de Estremoz


I. Relatório
Banco (…), SA instaurou contra (…), Transportes, SA procedimento cautelar especificado de entrega judicial de bem locado, nos termos do artigo 21.º do DL 149/95, de 24 de Junho, requerendo a final a entrega dos veículos que identificou, a fixação de sanção pecuniária, a suportar pela requerida, de valor não inferior a € 100,00 por cada dia de atraso na entrega, mais requerendo a antecipação do juízo sobre a causa principal, fazendo valer o direito acautelado pela providência, tudo com dispensa da audição da requerida.
Em fundamento alegou, em síntese, ter celebrado com a requerida em 7 de Junho de 2017 e 11/1/2016, contratos de locação financeira no âmbito dos quais cedeu a esta o gozo dos veículos que identificou, mediante o pagamento das rendas acordadas.
Mais alegou que a requerida entrou em incumprimento contratual, o que motivou a resolução de ambos os contratos, a qual lhe foi comunicada mediante cartas datadas de 23 de Junho de 2022, devidamente recepcionadas, sendo que até ao momento não procedeu ao pagamento das quantias em dívida nem à entrega dos veículos, apesar de para tal ter sido expressamente interpelada. As viaturas são pertença da requerente, continuando a ser abusivamente utilizadas pela requerida, existindo o fundado receito de que tal utilização ocorra sem quaisquer cuidados de manutenção, como o comprovam a existência de multas e falta de pagamento de portagens que àquela foram comunicadas, o que justifica a presente providência.
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Presentes os autos à Sr.ª juíza, após ter facultado à requerente o exercício do contraditório, considerando a pendência dos autos de processo especial de revitalização no mesmo Juízo de Competência Genérica de Estremoz do TJ da Comarca de Évora, foi proferido despacho a determinar a suspensão do procedimento cautelar nos termos do artigo 17.º-E, n.º 1, do CIRE.

Inconformada, apelou a requerente e, tendo desenvolvido nas alegações apresentadas os fundamentos da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
“A) O presente recurso tem por objecto o douto despacho proferido no dia 06.01.2023,referência Citius 32511329, o qual, em suma, determinou, nos termos do artigo 17.º-E, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (C.I.R.E.), a suspensão do presente procedimento cautelar;
B) Visando obter uma Decisão que substitua a decisão recorrida por uma decisão de prosseguimento do presente procedimento cautelar, com vista a que venha a ser decretada a providência cautelar de entrega judicial dos veículos aqui em causa, face à resolução desde 23.06.2022, ou seja, em momento anterior ao do PER da Requerida, dos contratos de locação financeira aqui em causa;
C) Não se peticionando, neste procedimento cautelar, reconhecimento de uma eventual dívida da Recorrida para com o Recorrente, deveria ter sido decidido que a suspensão prevista no artigo 17.º-E, n.º 1, do C.I.R.E. não se poderia aplicar nesta concreta providência cautelar, violando, por isso, o douto despacho aqui em causa o disposto no artigo 17.º-E do C.I.R.E., artigo 21.º, nºs 1 a 4, do Decreto Lei n.º 149/95, de 24 de Junho de 1995, na sua redação vigente, artigo 272.º do Código de Processo Civil (C.P.C.) e artigos 362.º e 363.º, ambos do C.P.C.;
D) O presente procedimento cautelar destina-se à entrega judicial de 3 viaturas (matrícula …, matrícula … e matrícula …), face à resolução, por incumprimento, dos respectivos contratos de locação financeira, desde 23.06.2022, tudo ao abrigo do disposto no artigo 21.º do Decreto Lei n.º 149/95, de 24 de Junho de 1995, na sua redação vigente;
E) Não tendo até hoje a Recorrida entregue as viaturas em causa;
F) Gerando e acumulando, ao invés, multas, faltas de pagamento de portagens e dos seguros dos carros e, ainda, a notificação do Banco Recorrente, no passado dia 10.01.2023, 16/19 quanto à viatura com a matrícula (…), por parte do MAI, PSP, CT Évora, para proceder à identificação do condutor por motivo de intervenção em acidente e abandono do local de sinistro com outro veículo sem apresentação de identificação;
G) Verifica-se um gritante descuido por parte da Recorrida quanto às viaturas em causa nos contratos de locação financeira, fazendo um uso abusivo e reprovável das mesmas, não podendo colher que, com esta conduta, a Recorrida tenha uma efectiva necessidade destes veículos para a sua actividade, estando, ao invés, a aproveitar-se de, até esta data, não existir nenhuma decisão judicial que ordene a entrega das viaturas para continuar a usar essas viaturas de forma ilegítima e abusiva e em claro prejuízo do direito do aqui Recorrente;
H) Cabendo ao Tribunal pôr um termo a esta realidade;
I) A pendência de um Processo Especial de Revitalização da aqui Recorrida que corre os seus termos neste Tribunal Judicial da Comarca de Évora, Juízo de Competência Genérica de Estremoz, sob o processo n.º 258/22.4T8ETZ, não é impeditiva do presente procedimento cautelar nem motivo de suspensão, face ao disposto no artigo 17.º-E, n.º 1, do C.I.R.E., na sua redação actual, que determina que a decisão de nomeação de administrador judicial (apenas) obsta à instauração de quaisquer acções executivas (já não se reportando a acções para cobrança de dívidas como previsto na redação anterior);
J) Já à luz da redação anterior, a jurisprudência entendia que o procedimento cautelar que aqui nos ocupa não era, nem se equiparava, à acção (declarativa ou executiva) “para cobrança de dívidas” aludida no artigo 17.º-E, n.º 1, do CIRE, na sua redacção anterior;
K) Não procurando o Recorrente, com o presente procedimento cautelar, como resulta do seu pedido, a condenação da Recorrida no pagamento de qualquer quantia (nem mesmo aquando da antecipação do juízo sobre a causa principal) mas sim e tão só a restituição/entrega judicial das viaturas que lhe pertencem, mas permanecem de forma ilegítima e abusiva na posse da Recorrida;
L) Determina o artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 149/95, na sua redação atual, o seguinte:
Se, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este, após o pedido de cancelamento do registo da locação financeira, a efectuar por via electrónica sempre que as condições técnicas o permitam, requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente;
M) Resulta deste normativo que não estamos, em sede do procedimento cautelar nele em causa, perante um pedido de devolução de um bem qualquer pertencente à locatária, e nem estamos perante um pedido de condenação da Recorrida no pagamento de qualquer prestação pecuniária;
N) À luz da antiga redação do artigo 17.º-E, n.º 1, do CIRE, só se mandavam suspender as ações e procedimentos em curso que tivessem por finalidade “a cobrança de dívidas contra o devedor”;
O) E, à luz da redação actual, apenas se manda suspender as acções em curso com idêntica finalidade, leia-se, às acções executivas para cobrança de créditos, ou seja, as que tenham por objecto uma prestação pecuniária, o que, no caso concreto, não se verifica;
P) Se o legislador quisesse incluir outro tipo de acções, nessa previsão de suspensão, tinha tido a oportunidade de o fazer expressamente, aquando da última revisão feita e que deu azo à redação vigente desta norma, não o tendo, porem, feito;
Q) Ora, por via da presunção estabelecida no artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil, devemos concluir que o legislador soube exprimir corretamente o seu pensamento, não incluindo, assim, na previsão de suspensão prevista no artigo 17.º-E, n.º 1, do C.I.R.E., na sua redação vigente, outras acções para além das ações executivas para pagamento de quantia certa;
R) Constando, ainda, dos presentes autos, a existência de um processo de insolvência da recorrida (que o Recorrente desconhecia), o qual encontra-se suspenso por força do PER, é, ainda, convicção do Recorrente que a Recorrida apenas lançou mão de um PER com o 9intuito de travar o processo de insolvência/prolação da sentença de insolvência e não com a real intenção de uma reestruturação;
S) Toda a argumentação vertida no douto despacho, de que ora se recorre, assenta, na verdade, em fundamentos à luz da redação anterior à redação actual do artigo 17.º-E, n.º 1, do C.I.R.E.;
T) Fundamentos estes que, à luz da redação actual, não vencem, porquanto o presente procedimento cautelar de entrega judicial de bens não se enquadra nas acções executivas e/ou outras acções com idêntica finalidade previstas no actual artigo 17.º-E, n.º 1, do CIRE, porque não se destina à cobrança de prestações pecuniárias, não podendo, por isso, o presente procedimento cautelar ser suspenso à luz de uma norma legal que não lhe é aplicável;
U) Nem colhendo, ainda, o derradeiro argumento vertido no douto despacho aqui em crise reportado ao disposto no artigo 272.º, n.º 1, do C.P.C., já que, como é consabido, uma eventual suspensão por causa prejudicial não se aplica aos casos de providências cautelares por tal ser incompatível com a natureza urgente destas;
V) Ainda que se entenda (o que não se concede) que, de uma forma genérica, em caso de PER, as providências cautelares em curso deverão ser suspensas face ao disposto no artigo 17.º-E, n.º 1, do C.I.R.E., sempre deveria o Tribunal atender ao caso concreto que lhe é submetido, devendo analisar a conduta da Requerida e ponderar os interesses em causa;
W) Tratando de forma diferente situações diferentes e, nessa senda, face ao caso concreto, deveria ter o Tribunal a quo decidido que a pendência do PER da Recorrida não deveria ser, por si só, motivo de suspensão do presente procedimento cautelar, face aos interesses em causa e ao claro prejuízo (já não simples receio) que o não decretamento da providência cautelar está a gerar junto do aqui Recorrente, como resulta do todo o antes exposto”.
Conclui pelo provimento do presente recurso, pedindo a revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que ordene o prosseguimento do procedimento cautelar nos seus trâmites normais.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, constitui única questão a decidir determinar se os procedimentos cautelares a que alude o artigo 21.º do DL 149/95, de 24-06 (na redação dada pelo DL 30/2008, de 25-02) se encontram incluídos na previsão do artigo 17.º-E do CIRE, devendo ser decretada a sua suspensão.
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II. Fundamentação
Interessado à decisão os factos relatados em I., deles resulta que a requerente veio a juízo requerer a entrega das viaturas que identificou, em poder da requerida por terem sido objecto de contratos de locação financeira entretanto resolvidos por incumprimento imputável à locatária, sem que esta tenha procedido à respectiva restituição, apesar de para tal ter sido interpelada. O procedimento foi suspenso ao abrigo do artigo 17.º-E do CIRE, decisão impugnada pela requerente que agora cumpre sindicar.
Mercê das alterações introduzidas pela Lei 9/2022, o artigo 17.º-E, agora epigrafado de “Suspensão das medidas de execução” (em substituição da mais lata anterior epígrafe “Efeitos”) dispõe no seu n.º 1 que “A decisão a que se refere o n.º 5 do artigo 17.º-C [despacho de nomeação do AJP] obsta à instauração de quaisquer ações executivas contra a empresa para cobrança de créditos durante um período máximo de quatro meses, e suspende quanto à empresa, durante o mesmo período, as ações em curso com idêntica finalidade”.
Argumenta a recorrente que não visando a condenação da recorrida no pagamento de qualquer quantia, mas apenas a entrega das viaturas que lhe pertencem, o procedimento instaurado não se encontra incluído na previsão do citado artigo 17.º-E, impondo-se o prosseguimento dos autos. Diversamente, entendeu-se na decisão recorrida, com apoio em doutrina e jurisprudência ali citadas, que, atendendo às finalidades do PER, centradas na recuperação do devedor em detrimento da liquidação, o que pressupõe a manutenção em actividade da empresa recuperanda, satisfazendo, do mesmo passo, razões de interesse público, estando em causa uma diligência executiva, os procedimentos de entrega judicial recaem na previsão do artigo em referência, cabendo, pois, decretar a respectiva suspensão que, em todo o caso, ainda que outro fosse o entendimento perfilhado, sempre deveria ser decretada ao abrigo do disposto no artigo 272.º, n.º 1, do CPC.
A questão colocada, tal como resulta do confronto da fundamentação do despacho impugnado com as alegações produzidas pela recorrente, suscitou controvérsia doutrinária e jurisprudencial no âmbito da anterior redacção do preceito, que entendemos não ter sido resolvida pelas alterações introduzidas pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, versão aqui aplicável.
Antes de mais, afigura-se clara a intenção do legislador excluir da previsão legal e, assim, ao efeito suspensivo, as acções declarativas, deste modo resolvendo as divergências jurisprudenciais existentes a este respeito. Mais difícil, contudo, se afigura encontrar a resposta à concreta questão colocada nos autos, uma vez que estamos perante diligência com natureza executiva, conforme foi reconhecido no recente aresto deste mesmo TRE de 25 de Janeiro de 2023, no processo 245/22.2T8ETZ.E1, acessível em www.dgsi.pt, no qual se consignou que “Visando o presente procedimento cautelar a entrega judicial de determinado bem, dúvidas não há sobre a natureza executiva da providência requerida, dado que é peticionada a realização coativa da restituição do bem em causa, consistindo a finalidade pretendida na entrega de coisa certa”. Remanesce portanto a questão de saber se a referência legal a “quaisquer ações executivas contra a empresa para cobrança de créditos” remete apenas e só – interpretação acolhida no acórdão vindo de citar e pela qual se bate a recorrente – para as acções executivas para pagamento de quantia certa, excluindo as ações executivas para entrega de coisa certa ou para prestação de facto (salvo em caso de conversão da execução, se vier a seguir os termos do processo de execução para pagamento de quantia certa), ou se também estas se devem considerar abrangidas pela previsão do preceito.
Conforme é sabido, e matéria de interpretação da lei rege o artigo 9.º do CC, preceito que “(…) disciplinou aspectos fundamentais da interpretação.
Nomeadamente, marcou a prevalência do espírito sobre a letra da lei, mas colocou expressamente a letra como limite à busca do sentido, ao estabelecer «Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso».
Fica, assim, marcado o limite, vasto, à busca do sentido. Por razões de certeza jurídica, esse limite não poderá ser excedido.
Ainda que sejam persuasivas as razões avançadas em contrário, tendentes a provar ilogismo, desacerto ou mesmo lapso do legislador.”[1].
Também a propósito da interpretação da lei, discorreu relevantemente o STJ no AUJ 4/2015, de 24 de Março de 2015, que a mesma “(…) há-de levar-se a efeito seguindo uma metodologia hermenêutica que, levando em conta todos os elementos de interpretação – gramatical, histórico, sistemático e teleológico (este a impor que o sentido da norma se determine pela ratio legis) –, permita determinar o adequado sentido normativo da fonte correspondente ao "sentido possível" do texto (letra) da lei."
E prossegue “Com efeito, resulta do artigo 9.º do Código Civil que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (n.º 1), não podendo, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (n.º 2); na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (n.º 3).
Refere Baptista Machado [Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1996, págs. 188 e ss.] a propósito da posição do nosso Código Civil perante o problema da interpretação:
«I - O artigo 9.º deste Código, que à matéria se refere, não tomou posição na controvérsia entre a doutrina subjectivista e a doutrina objectivista. Comprova-o o facto de se não referir, nem à "vontade do legislador", nem à "vontade da lei", mas apontar antes como escopo da actividade interpretativa a descoberta do "pensamento legislativo" (artigo 9.º, 1.º). Esta expressão, propositadamente incolor, significa exactamente que o legislador não se quis comprometer.
(...)
II - Começa o referido texto por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra mas reconstituir a partir dela o "pensamento legislativo". Contrapõe-se letra (texto) e espírito (pensamento) da lei, declarando-se que a actividade interpretativa deve - como não podia deixar de ser - procurar este a partir daquela. A letra (o enunciado linguístico) é, assim, o ponto de partida. Mas não só, pois exerce também a função de um limite, nos termos do artigo 9.º, 2: não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) "que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso». Pode ter de proceder-se a uma interpretação extensiva ou restritiva, ou até porventura a uma interpretação correctiva, se a fórmula verbal foi sumamente infeliz, a ponto de ter falhado completamente o alvo. Mas, ainda neste último caso, será necessário que do texto "falhado" se colha pelo menos indirectamente uma alusão àquele sentido que o intérprete venha a acolher como resultado da interpretação.
(…)
III - Ainda pelo que se refere à letra (texto), esta exerce uma terceira função: a de dar um mais forte apoio àquela das interpretações possíveis que melhor condiga com o significado natural e correcto das expressões utilizadas. Com efeito, nos termos do artigo 9.º, 3, o intérprete presumirá que o legislador "soube exprimir o seu pensamento em termos adequados". Só quando razões ponderosas, baseadas noutros subsídios interpretativos, conduzem à conclusão de que não é o sentido mais natural e directo da letra que deve ser acolhido, deve o intérprete preteri-lo.
IV - Desde logo, o mesmo n.º 3 destaca outra presunção: "o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas". Este n.º 3 propõe-nos, portanto, um modelo de legislador ideal que consagra as soluções mais acertadas (mais correctas, justas ou razoáveis) e sabe exprimir-se por forma correcta”.
Todavia, conforme se reconhece no aresto que vimos citando, “Pode, porém, acontecer que a interpretação mais natural e directamente condizente com a fórmula verbal não corresponda à solução mais acertada. Nesta hipótese, as duas presunções entrarão em conflito”, a ser resolvido, em primeira linha, pelo recurso aos demais elementos interpretativos referidos no n.º 1 do artigo 9.º, a saber, a "unidade do sistema jurídico", "as circunstâncias em que a lei foi elaborada" e as "condições específicas do tempo em que é aplicada".
As circunstâncias do tempo em que a lei foi elaborada remetem para “aquilo a que tradicionalmente se chama a occasio legis”, fazendo apelo aosfactores conjunturais de ordem política, social e económica que determinaram ou motivaram a medida legislativa em causa”, ao passo que “as circunstâncias vigentes ao tempo em que a lei é aplicada”, tem “uma conotação actualista”, o que reforça a asserção de que “uma lei só tem sentido quando integrada num ordenamento vivo e, muito em especial, enquanto harmonicamente integrada na "unidade do sistema jurídico", terceiro e último elemento a atender.
Tomando como referência quanto vem de se dizer, verifica-se, da evolução sofrida pelo preceito em referência que a primeira alteração, introduzida pelo DL 79/2017, de 30 de Junho, operou a substituição da expressão “cobrança de dívidas contra o devedor” por “cobrança de dívidas contra a empresa”, consagrando ainda a proibição de suspensão de serviços essenciais[2] com fundamento na falta de pagamento, medida claramente destinada a permitir que a empresa se mantivesse em actividade.
A Lei 9/2022, de 11 de Janeiro, por seu turno, conforme expressa, “Estabelece medidas de apoio e agilização dos processos de reestruturação das empresas e dos acordos de pagamento, transpõe a Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, e altera o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o Código das Sociedades Comerciais, o Código do Registo Comercial e legislação conexa”, o que convoca o princípio da interpretação conforme – a norma nacional terá de ser interpretada conforme ao instrumento normativo transposto.
A Directiva (EU) transposta versa sobre “os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas”, alterando a Diretiva (UE) 2017/1132 (Diretiva sobre reestruturação e insolvência).
Dos seus considerandos 1.º, 2.º e 3.º, extrai-se, designadamente, que “tem por objetivo contribuir para o bom funcionamento do mercado interno e eliminar os obstáculos ao exercício de liberdades fundamentais como a livre circulação de capitais e a liberdade de estabelecimento, os quais resultam das diferenças entre as legislações e processos nacionais de reestruturação preventiva, de insolvência, de perdão de dívidas e de inibições”, visando “eliminar esses obstáculos assegurando: o acesso das empresas e empresários viáveis que estejam em dificuldades financeiras a regimes nacionais eficazes de reestruturação preventiva que lhes permitam continuar a exercer a sua atividade; a possibilidade de os empresários honestos insolventes ou sobre endividados beneficiarem de um perdão total da dívida depois de um período razoável, permitindo-lhes assim terem uma segunda oportunidade; e uma maior eficácia dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas, nomeadamente com vista à redução da sua duração” (Considerando 1.º).
“A reestruturação deverá permitir que os devedores com dificuldades financeiras continuem a exercer, na totalidade ou em parte, a sua atividade, através da alteração da composição, das condições ou da estrutura dos seus ativos e dos seus passivos ou de qualquer outra parte da sua estrutura de capital (…)”, sendo que “Os regimes de reestruturação preventiva deverão, acima de tudo, permitir que os devedores se reestruturem efetivamente numa fase precoce e evitem a insolvência, limitando assim a liquidação desnecessária de empresas viáveis” (Considerando 2.º).
(…) O regime de reestruturação deverá proteger os direitos de todas as partes envolvidas, incluindo os trabalhadores, de uma forma equilibrada (Considerando 3.º).
E com directa incidência na questão que nos ocupa:
“(32) Um devedor deverá poder beneficiar de uma suspensão temporária das medidas de execução, quer seja concedida por uma autoridade judicial ou administrativa quer por força da lei, no intuito de apoiar as negociações de um plano de restruturação, a fim de continuar a exercer a sua atividade ou, pelo menos, preservar o valor do seu património, durante as negociações. (…) No entanto, os Estados-Membros deverão poder prever que as autoridades judiciais ou administrativas possam recusar a concessão de uma suspensão das medidas de execução quando tal suspensão não seja necessária ou quando não satisfaça o objetivo de apoiar as negociações. Os motivos de recusa poderão incluir a falta de apoio pelas maiorias de credores exigidas ou, se o direito nacional assim o previr, a incapacidade efetiva do devedor de pagar as suas dívidas na data de vencimento.
(33) A fim de facilitar e acelerar o desenrolar do processo, os Estados-Membros deverão poder estabelecer, numa base ilidível, presunções para a presença de motivos de recusa da suspensão (...)”.
(34) A suspensão das medidas de execução poderá ser de caráter geral, na medida em que afete todos os credores, ou poderá aplicar-se apenas a alguns credores individuais ou algumas categorias de credores. Os Estados-Membros deverão poder excluir certos créditos ou categorias de créditos do âmbito de aplicação da suspensão em circunstâncias bem definidas, tais como os créditos que são garantidos por ativos cuja eliminação não comprometa a reestruturação da empresa ou os créditos de credores cuja suspensão causaria prejuízos injustos, por exemplo devido à falta de compensação por perdas sofridas ou à depreciação das garantias.
(35) A fim de encontrar um justo equilíbrio entre os direitos do devedor e dos credores, a suspensão das medidas de execução deverá aplicar-se por um período máximo que pode ir até quatro meses (…).
(36) A fim de assegurar que os credores não sejam desnecessariamente lesados, os Estados-Membros deverão dispor que as autoridades judiciais ou administrativas podem levantar a suspensão das medidas de execução se esta deixar de cumprir o objetivo de apoiar as negociações, por exemplo se se verificar que a maioria de credores exigida não apoia a continuação das negociações. A suspensão também deverá ser levantada se os credores forem por ela injustamente prejudicados, caso os Estados-Membros prevejam essa possibilidade. Os Estados-Membros deverão ser autorizados a limitar a possibilidade de levantar a suspensão às situações em que os credores não tenham tido a possibilidade de ser ouvidos antes da sua entrada em vigor ou antes de ter sido prorrogada.
Os Estados-Membros deverão também ser autorizados a fixar um período mínimo durante o qual a suspensão não pode ser levantada. Para determinar se os credores são ou não injustamente prejudicados, as autoridades judiciais ou administrativas deverão poder equacionar se a suspensão preservará o valor global do património em causa, e se o devedor está a agir de má-fé ou com dolo ou se, em termos gerais, está a agir contra as expectativas legítimas do conjunto dos credores”.
Na prossecução dos objectivos fixados, a Directiva veio estabelecer regras relativas:
“a) Aos regimes de reestruturação preventiva à disposição dos devedores com dificuldades financeiras, caso exista uma probabilidade de insolvência, destinados a evitar a insolvência e a garantir a viabilidade do devedor;
b) Aos processos conducentes a um perdão das dívidas contraídas por empresários insolventes; e
c) Às medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas” (cfr. artigo 1.º, n.º1).
O artigo 4.º, incluído no Cap. I do TÍTULO II, dedicado aos regimes de reestruturação preventiva, dispõe, no seu n.º 1, que “1. Os Estados-Membros asseguram que, caso exista uma probabilidade de insolvência, os devedores tenham acesso a um regime de reestruturação preventiva que lhes permita proceder a uma reestruturação, para evitar a insolvência e garantir a sua viabilidade, sem prejuízo de outras soluções destinadas a evitar a insolvência, protegendo desta forma os postos de trabalho e mantendo a atividade empresarial”.
Os artigos 5.º e 6.º, inseridos no CAPÍTULO II, contêm medidas destinadas a “Facilitar as negociações dos planos de reestruturação preventiva”, interessando aos presentes autos em especial o artigo 6.º, epigrafado de “Suspensão das medidas de execução”, com o seguinte conteúdo:
“1. Os Estados-Membros asseguram que os devedores possam beneficiar da suspensão das medidas de execução para apoiar as negociações do plano de reestruturação num regime de reestruturação preventiva.
Os Estados-Membros podem prever que as autoridades judiciais ou administrativas possam recusar a concessão de uma suspensão das medidas de execução caso tal suspensão não seja necessária ou caso não alcance o objetivo estabelecido no primeiro parágrafo.
2. Sem prejuízo dos n.ºs 4 e 5, os Estados-Membros asseguram a possibilidade de a suspensão das medidas de execução abranger todos os tipos de créditos, incluindo os créditos garantidos e os créditos preferenciais.
3. Os Estados-Membros podem prever que a suspensão das medidas de execução possa ser geral, abrangendo todos os credores, ou possa ser limitada, abrangendo um ou mais credores a título individual ou categorias de credores. No caso de uma suspensão limitada, esta só é aplicável aos credores que tenham sido informados, em conformidade com o direito nacional, acerca das negociações sobre o plano de reestruturação ou acerca da suspensão a que se refere o n.º 1.
4. Os Estados-Membros podem excluir certos créditos ou categorias de créditos do âmbito de aplicação da suspensão das medidas de execução em circunstâncias bem definidas em que essa exclusão seja devidamente justificada e se:
a) As medidas de execução não forem suscetíveis de comprometer a reestruturação da empresa; ou
b) A suspensão prejudicar injustamente os credores de tais créditos.
(…)
6. A duração inicial de uma suspensão das medidas de execução é limitada a um período máximo não superior a quatro meses.
7. Não obstante o n.º 6, os Estados-Membros podem permitir que as autoridades judiciais ou administrativas prorroguem a duração da suspensão das medidas de execução ou concedam uma nova suspensão das medidas de execução, a pedido do devedor, de um credor ou, se for caso disso, de um profissional no domínio da reestruturação.
A concessão da prorrogação ou de uma nova suspensão das medidas de execução apenas deve ocorrer em circunstâncias bem definidas que demonstrem que tal prorrogação ou nova suspensão são devidamente justificadas, como por exemplo, nos seguintes casos:
a) Ocorreram progressos significativos nas negociações do plano de reestruturação;
b) A continuação da suspensão das medidas de execução não prejudica injustamente os direitos ou interesses das partes afetadas; ou
c) Ainda não foram abertos processos de insolvência contra o devedor suscetíveis de terminar na liquidação desse devedor, nos termos do direito nacional.
8. A duração total da suspensão das medidas de execução, incluindo as prorrogações e renovações, não pode exceder doze meses.
(…)
9. Os Estados-Membros asseguram que as autoridades judiciais ou administrativas possam levantar uma suspensão das medidas de execução nos seguintes casos:
a) Caso a suspensão deixe de cumprir o objetivo de apoiar as negociações sobre o plano de reestruturação, por exemplo se se verificar que uma parte dos credores que, nos termos do direito nacional, pode bloquear a adoção do plano de reestruturação não apoia a continuação das negociações;
b) A pedido do devedor ou do profissional no domínio da reestruturação;
c) Se o direito nacional assim o previr, caso um ou mais credores ou uma ou mais categorias de credores sejam, ou viessem a ser, injustamente prejudicados pela suspensão das medidas de execução; ou
d) Se o direito nacional assim o previr, caso a suspensão dê origem à insolvência de um credor.
(…)”.
Verifica-se do que vem de se expor que a directiva visa reforçar as condições de reestruturação das empresas, promovendo uma intervenção precoce em ordem a evitar a liquidação, o que passa por manter a sua actividade. Sendo esta a finalidade precípua da intervenção legislativa que, de resto, se extrai com facilidade das soluções consagradas nos n.ºs 10 e 11 do preceito, temos para nós que a mesma resultaria irremediavelmente comprometida se se permitisse que os credores da empresa devedora lograssem obter, mediante procedimentos cautelares de entrega judicial, a restituição dos bens locados.
Com efeito, sendo o PER um instrumento de revitalização de empresas, não podia o legislador nacional desconhecer que os contratos de locação financeira constituem meio privilegiado de acesso aos bens e equipamentos necessários à actividade empresarial. Deste modo, permitir que, na pendência do processo de revitalização, ainda que em virtude de resolução feita operar anteriormente por falta de pagamento de rendas vencidas, o locador obtenha a entrega judicial dos bens locados – muitas vezes o imóvel onde funciona a unidade empresarial, as máquinas da linha de produção ou os equipamentos do estabelecimento ou ainda, como no caso vertente, os veículos sem os quais a requerida, empresa dedicada ao transporte rodoviário de mercadorias, não poderá continuar a sua actividade – será inviabilizar desde logo qualquer possibilidade de recuperação da devedora, o que contraria de forma clara os fins tidos em vista com este instrumento, reforçados na Directiva transposta.
Dir-se-á, retomando os critérios interpretativos antes convocados, que assim interpretado o n.º 1 do artigo 17.º-E não encontra na letra da lei um mínimo de correspondência que apoie o sentido conferido. Não cremos, porém, que assim seja.
Explica o Prof. Almeida e Costa, no seu “Direito das Obrigações”, que os direitos de crédito (por oposição aos direitos reais, se traduzem no “(…) simples direito a uma prestação a efectuar pelo devedor, a qual pode consistir um “dare”, num “facere” ou num “non facere”, o credor tem, pois, direito a uma coisa (ius in rem).
Por outro lado, o n.º 10 do preceito alude ao “período de suspensão de medidas de execução a que se referem os n.ºs 1 e 2” (é nosso o destaque), designação mais ampla do que a suposta pela interpretação mais restritiva, que interpreta os preceitos em causa como limitando a suspensão ali prevista às acções executivas para cobrança de quantia certa.
É certo que o transcrito n.º 3 do artigo 6.º da Directiva confere aos Estados Membros a possibilidade de restringirem os credores atingidos pela suspensão, obrigando no entanto a definirem com rigor as circunstâncias que determinam tal exclusão e expressando que apenas “se as medidas de execução não forem suscetíveis de comprometer a reestruturação da empresa” ou “se a suspensão prejudicar injustamente os credores de tais créditos” (vide alíneas a) e b)). E o legislador português não deixou de fazer tal opção, subtraindo ao regime da suspensão os créditos emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação (cfr. n.º 4 do artigo 17.º-E).
Ora, não excluindo que o caso dos autos fosse um daqueles em que, atendendo às circunstâncias concretas, se apresentaria como justificada a exclusão do credor recorrente ao regime da suspensão, a verdade é que o legislador português não consagrou tal excepção, não podendo entender-se, pelos motivos antes indicados, que tenha querido sujeitar ao regime-regra da suspensão das acções executivas apenas os credores de prestações pecuniárias.
Acresce, por último, que a fixação de um prazo máximo de quatro meses de suspensão, que pode ser antecipadamente levantada em caso de prorrogação, caso se verifique algum dos fundamentos elencados no n.º 3, visando equilibrar os direitos dos credores com a finalidade do procedimento de revitalização, reforça, em nosso entender, a interpretação que aqui se perfilha no sentido de o n.º 1 do artigo 17.º-E abranger na sua previsão todas as medidas executivas (cfr., neste mesmo sentido, ainda que no âmbito da anterior redacção, acórdãos do TRC de 12 de Julho de 2017, no processo n.º 3582/16.1T8LRA-A.C1, do TRG de 27 de Maio de 2021, no processo n.º 330/21.8T8VCT.G1, do TRC de 18 de Janeiro de 2022, no processo n.º 193/200T8MMV.C1, todos acessíveis em www.dgsi.pt; em sentido contrário, o acórdão deste TRE proferido no processo n.º 245/22.2T8ETZ.E1 já antes citado, com recenseamento de variada doutrina e jurisprudência num e noutro sentidos).
Improcedem, pelo exposto, os argumentos recursivos.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo da recorrente (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
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Sumário:
(…)
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Évora, 16 de Março de 2023

Maria Domingas Simões (Relatora)

Ana Margarida Leite (1º Adjunto)
Voto vencida o acórdão.
Conforme exposto no acórdão desta Relação de 25-01-2023, que relatei, proferido no processo n.º 245/22.2T8ETZ.E1, entendo que a nomeação de administrador judicial provisório no âmbito de processo especial de revitalização não tem como efeito a suspensão de procedimento cautelar especificado de entrega de bem dado em locação financeira, deduzido ao abrigo do disposto no artigo 21.º do Decreto-lei n.º 149/95, de 24-06, contra a devedora.
A previsão do n.º 1 do artigo 17.º-E do CIRE (na redacção da Lei n.º 9/2022, de 11-01) – nos termos do qual a decisão de nomeação de administrador judicial provisório no âmbito de PER obsta à instauração de quaisquer acções executivas contra a empresa para cobrança de créditos durante um período máximo de quatro meses, e suspende quanto à empresa, durante o mesmo período, as acções em curso com idêntica finalidade – apenas abrange as acções executivas para pagamento de quantia certa e não as acções executivas para entrega de coisa certa ou para prestação de facto.
Visando o procedimento cautelar a entrega judicial de determinados bens, dúvidas não há sobre a natureza executiva da providência requerida, dado que é peticionada a realização coactiva da restituição desses bens findo o contrato de locação financeira, consistindo a finalidade pretendida na entrega de coisa certa.
Considerando que a providência de natureza executiva requerida consiste na entrega de coisa certa, verifica-se que o procedimento cautelar não se encontra abrangido pela previsão do n.º 1 do artigo 17.º-E do CIRE (na indicada redação).
Pelos motivos expostos, na procedência da Apelação, revogaria a decisão e determinaria o prosseguimento dos autos”.

José Manuel Barata (2º Adjunto)


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[1] Prof. Oliveira Ascensão, “Interpretação da lei. Integração de lacunas. Aplicação do princípio da analogia” acessível em https://portal.oa.pt/upl/%7B0a2c7ef5-b0a3-449f-bee8-88db3fc0335f%7D.pdf
[2] Introduzindo o n.º 8 do preceito, com a seguinte redacção:
“A partir da decisão a que se refere o número anterior e durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, não pode ser suspensa a prestação dos seguintes serviços públicos essenciais:
a) Serviço de fornecimento de água;
b) Serviço de fornecimento de energia elétrica;
c) Serviço de fornecimento de gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados;
d) Serviço de comunicações eletrónicas;
e) Serviços postais;
f) Serviço de recolha e tratamento de águas residuais;
g) Serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos.