INTERDIÇÃO DE EXERCÍCIO DE DIREITOS
DIREITO DE VOTO
Sumário

As alterações às leis eleitorais consequentes à revogação do instituto da interdição não obstam a que a sentença de acompanhamento determine o impedimento do exercício do direito de voto pelo acompanhado.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

1472/22.8T8STR.E1

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório
1. O Ministério Publico instaurou ação especial de acompanhamento de maiores em benefício de (…), nascida a 24/3/1930, residente no Centro de Repouso e Lazer (…), Rua da (…), (…), (…).

Alegou que a beneficiária apresenta antecedentes de demência vascular e hipertensão arterial e encontra-se totalmente dependente, sem discurso lógico, desorientada e sem capacidade para andar, assinar e tomar quaisquer decisões.

Assim, por razões de saúde física e mental da beneficiária, requereu a medida de acompanhamento de representação especial – retificada posteriormente para acompanhamento com representação geral – e a restrição dos direitos de testar, casar, perfilhar ou adotar e indicou (…), filha da beneficiária, para exercer as funções de acompanhante.

Verificada a impossibilidade da beneficiária receber a citação foi-lhe nomeado defensor oficioso.

Não houve lugar a contestação.

2. Procedeu-se à audição pessoal da beneficiária e após a produção das provas julgadas convenientes seguiu-se decisão em cujo dispositivo designadamente se consignou:

“(…) julga-se a presente ação procedente, por provada e, em consequência, decide-se:

a) Determinar o acompanhamento de (…);

b) Designar como acompanhante da Beneficiária (…), a quem competirá:

- A representação geral da Beneficiária (…), incluindo a administração total dos seus bens;

- Diligenciar para que a Beneficiária compareça às consultas médicas e hospitalares que sejam agendadas, tome a medicação prescrita e adequada à sua patologia e satisfaça as suas necessidades alimentares, de autocuidado, de vestuário e de higiene pessoal.

c) Determinar a proibição do exercício dos direitos pessoais de casar, de constituir situações de união de facto, de procriar, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de testar, de aceitar ou rejeitar liberalidades e de votar pela Beneficiária (…);

d) Determinar a proibição de celebração de negócios da vida corrente pela Beneficiária (…);

e) Determinar que as medidas de acompanhamento decretadas se tornaram convenientes a partir de 03/10/2019;

f) Nomear (…), como primeira vogal e (…), como segundo vogal do Conselho de Família;

g) Consignar que inexiste, em nome da Beneficiária, registo de testamento vital ou procuração para cuidados de saúde;

h) Determinar a revisão da presente decisão no prazo de 5 (cinco) anos, contados do trânsito em julgado da sentença.

3. O Ministério Público recorre da sentença e conclui assim a motivação do recurso:

“1. A douta sentença sob recurso decretou a proibição do direito de votar, ou seja, a perda de capacidade eleitoral da requerida.

2. O direito ao sufrágio consubstancia um direito fundamental e universal, atribuído a todos os cidadãos maiores de dezoito anos.

3. A Lei Orgânica n.º 3/2018, de 17 de agosto, conferiu nova redação aos artigos relativos a incapacidades eleitorais ativas constantes das leis eleitorais do Presidente da República, da Assembleia da República, dos Órgãos das Autarquias Locais e do regime do referendo local, estabelecendo não gozarem de capacidade eleitoral ativa, apenas, “os que notoriamente apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais, ainda que não sujeitos a acompanhamento, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos” e “os cidadãos que estejam privados de direitos políticos, por decisão judicial transitada em julgado.”.

4. Mais revogou a citada lei as alíneas que previam não gozarem de capacidade eleitoral os interditos por sentença com trânsito em julgado.

5. A CNE concluiu mesmo que os cidadãos declarados interditos, à luz do regime anterior, deveriam constar novamente dos cadernos eleitorais, já que as variadas leis eleitorais não referem expressamente a situações de incapacidade decorrentes de decisão judicial em sede de direito civil.

6. Pretendeu pois o legislador que não operasse a restrição da capacidade eleitoral decorrente de sentença proferida no âmbito de processo de acompanhamento de maior.

7. A Lei 14/79, de 16 de maio, na redação na Lei Orgânica n.º 1/2021, de 04 de junho, refere na sua alínea b) do n.º 1, artigo 2.º, que não gozam de capacidade eleitoral ativa, aqueles que notoriamente apresentem limitações ou alteração grave das funções mentais, ainda que não sujeitos a acompanhamento, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos.

8. A requerida não foi internada em estabelecimento psiquiátrico.

9. Não houve lugar a declaração por uma junta de dois médicos relativamente a limitação ou alteração grave das funções mentais da requerida.

10. O Tribunal a quo interpretou a norma constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º da Lei 14/79 no sentido de permitir que se determinasse a perda de capacidade eleitoral ativa a um maior acompanhado, mesmo sem estar internado em estabelecimento psiquiátrico ou como tal declarada por uma junta de dois médicos.

11. O Tribunal recorrido deveria ao invés, interpretar a norma no sentido de não ser permitido decretar a perda de capacidade eleitoral ativa, por sentença, a um maior acompanhado, sem que estivesse internado em estabelecimento psiquiátrico ou como tal declarado por uma junta de dois médicos.

12. Pelo exposto, violou a sentença, a decretar a perda de capacidade eleitoral ativa da requerida, o disposto no artigo 2.º, alínea b), da Lei n.º 14/79, de 16 de maio.

13. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência operou uma mudança de paradigma, através da qual se reconhece a dignidade inerente a todas as pessoas com deficiência, bem como se reconhecem as pessoas com deficiência como sujeitos do direito.

14. A Convenção visa promover as condições e os meios necessários para garantir o acesso e exercício dos direitos humanos, bem como assegurar a participação ativa das pessoas com deficiências em todas as decisões e processos que lhe respeitam.

15. Do artigo 29.º da Convenção decorre a obrigação dos Estados partes garantirem às pessoas com deficiência os direitos políticos e a oportunidade de os gozarem, em condições de igualdade com as demais pessoas, comprometendo-se, mormente a assegurar o direito a votarem e serem eleitas.

16. O Regime Jurídico do Maior Acompanhado foi aprovado à luz da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotando o novo paradigma que privilegia a dignidade inerente a todas as pessoas com deficiência.

17. Dispõe o artigo 145.º, n.º 1, do Código Civil que “o acompanhamento limita-se ao necessário”.

18. A teleologia do artigo citado tem duas vertentes. Num sentido temático, o acompanhamento versa sobre as áreas da vida em que o acompanhado necessita de acompanhamento.

19. Por outro lado, este “limite do necessário” tem um sentido de alcance, de extensão da medida.

20. O regime do maior acompanhado, verdadeiro progresso em relação aos antigos regimes de inabilitação e interdição, passou a colocar no centro das medidas, o auxílio, o acompanhamento, com vista ao bem-estar do beneficiário, a sua recuperação, o pleno exercício dos seus direitos e o cumprimento dos seus deveres.

21. O regime de maior acompanhado visa agora, ao invés de restringir para proteção do inabilitado/interdito, fornecer instrumentos ao acompanhante para que supra as incapacidades do beneficiário, em seu benefício, tentando sempre que possível agir conforme a sua vontade, e sempre no seu melhor interesse, com vista à sua recuperação.

22. Daí que o regime permita ao acompanhante suprir a vontade do beneficiário naquilo que lhe é importante e que este não tenha capacidade para expressar a sua vontade ou prestar o seu consentimento, como questões de saúde ou patrimoniais.

23. O objetivo do Regime do Maior Acompanhado é suprir as incapacidades, em benefício do acompanhado.

24. No presente caso, em função da maleita que atingiu a requerida, esta encontra-se acamada, entubada, sem reação, sem interação, usando fralda diariamente, necessitando que terceiros lhe administrem medicação.

25. A situação da requerida é irreversível.

26. A requerida necessita sem dúvida de amplo acompanhamento, para gestão de questões patrimoniais, questões de saúde e algumas restrições dos seus direitos pessoais, como casar, perfilhar ou procriar.

27. A incapacidade da requerida, física e mental, para votar, é notória.

28. Nenhuma medida de acompanhamento poderá suprir essa incapacidade.

29. O acompanhamento limita-se ao necessário, artigo 145.º, n.º 1, do Código Civil.

30. O acompanhamento que extravase os planos referidos nos pontos anterior vai para além do necessário, violando o artigo 145.º, n.º 1, do Código Civil.

31. O Tribunal a quo, interpretou a norma do artigo 145.º, n.º 1, do Código Civil no sentido de permitir, no caso concreto, restringir a capacidade eleitoral ativa da requerida.

32. A norma do artigo 145.º, n.º 1, do Código Civil deve ser interpretada no sentido de não permitir ou legitimar que se decrete a perda de capacidade eleitoral ativa, por tal medida não se limitar ao necessário, e ser ineficaz no suprimento da incapacidade que no caso se faça sentir.

33. Pelo exposto, ao decidir na forma em que decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 145.º, n.º 1, do Código Civil.

34. O legislador não quis que a instituição do acompanhamento pudesse contemplar, automaticamente, restrições impeditivas ao exercício do direito de voto.

35. A restrição permitida por lei dos direitos pessoais do acompanhado e a celebração dos negócios da vida corrente deve ser interpretada sistematicamente.

36. Desde logo não se encontra expressamente referido o direito de voto, apesar da lista não ser taxativa.

37. Por outro lado, essa restrição tem que ser balizada pela necessidade (artigo 145.º, n.º 1, do Código Civil) e pela proteção que está indiscutivelmente sempre presente nas medidas decretadas, artigo 140.º do Código Civil.

38. O regime do maior acompanhado manteve, indiscutivelmente, razões de proteção do visado, que não é capaz de estar, por si só, no tráfego jurídico.

39. O regime do Maior Acompanhado, visando a eficácia, necessita invariavelmente que se possam restringir alguns direitos pessoais do beneficiário.

40. Sem essas restrições, não poderia o acompanhante tomar medidas necessárias, de que o acompanhado careça, como aquelas de natureza terapêutica ou patrimonial.

41. A figura do voto acompanhado não se confunde com o regime do maior acompanhado.

42. A restrição do direito de voto da beneficiária, não acrescenta absolutamente nenhuma eficácia ao acompanhamento decretado na sentença em crise.

43. A restrição total do direito de voto, capacidade eleitoral ativa, não cumpre os desígnios do Instituto do Maior Acompanhado, não visa a sua proteção nem se apresenta necessário.

44. Além de que nenhum esforço hermenêutico permite concluir que o direito de voto, em concreto a sua restrição, possa ser ancorada no artigo 147.º do Código Civil.

45. O Tribunal recorrido interpretou a norma do artigo 147.º, n.º 2, do Código Civil no sentido de legitimar a restrição da capacidade eleitoral ativa de um maior acompanhado.

46. Deveria ao invés interpretar a referida norma no sentido de não ser desejo do legislador, nem possuir respaldo legal, no contexto descrito, decretar tal perda.

47. Pelo exposto, violou a sentença recorrida o disposto no artigo 147.º, n.º 2, do Código Civil ao decretar a restrição da capacidade eleitoral ativa da requerida.

48. A possibilidade de falta de capacidade eleitoral ativa é um critério de facto que não depende de qualquer medida judicial.

49. Isto é, a verificação da capacidade terá de ser aferida caso a caso, exigindo-se a declaração por uma junta de dois médicos ou em situações de internamento (regra, no âmbito da lei de saúde mental), esteja ou não sujeito a (na versão da lei) a acompanhamento.

50. Em termos de estatuto jurídico, a capacidade eleitoral é igual (princípio da não discriminação) quer seja uma pessoa a beneficiar de uma medida ou não.

51. A revogação operada nas leis eleitorais significa agora que não há norma legal que habilite o Tribunal a restringir a capacidade de eleitoral ativa. Nem tal norma se pode encontrar no artigo 147.º do Código Civil.

52. A possibilidade de restrição, quando em confronto com a proibição de discriminação em razão da deficiência, à luz, designadamente, da Convenção de Nova Iorque, determina que os critérios sejam neutros, ou seja, que o fundamento não seja a mera deficiência, estar expressamente previsto no tipo fechado quais as situações que justificam tal declaração de incapacidade eleitoral, por força, também, do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

53. Quer o Tribunal Constitucional Alemão, quer o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, já se pronunciaram no passado recente, perante questões semelhantes, que apesar de ser em regra possível restringir a capacidade eleitoral ativa, nos casos de “incapacidades” / acompanhamento, não se vislumbra fundamento legal ou constitucional para o efeito.

54. No caso alemão, considerou-se que tal restrição não era adequada para proteger interesses constitucionais equivalentes, pelo que não poderia operar.

55. A Comissão Nacional de Eleições (CNE), na sua Ata de 27 de agosto de 2019 (cujo teor relevante ao presente recurso foi reproduzido na Ata n.º 11, de 30 de agosto de 2022) disponível em www.cne.pt, emitiu um parecer onde defende que “- Os eleitores eliminados da Base de Dados do Recenseamento Eleitoral, com base em sentença de interdição judicialmente decretada e transitada em julgado, até à data de entrada em vigor do regime jurídico do maior acompanhado, devem passar a constar dela, independentemente de nova sentença judicial que decrete o levantamento da interdição”;

56. E ainda que “- Os eleitores que sejam alvo de decisão judicial que decrete o seu acompanhamento, à luz do regime jurídico do maior acompanhado, não podem ser eliminados da Base de Dados do Recenseamento Eleitoral, ainda que a sentença consigne a sua incapacidade eleitoral ativa”.

57. Pelo exposto, violou a sentença recorrida o disposto no artigo 2.º, alínea b), da Lei n.º 14/79, de 16 de maio.

58. Ao decidir na forma em que decidiu, violou o Tribunal recorrido as normas dos artigos 145.º, n.º 1 e 147.º, n.º 2, do Código Civil, assim como o artigo 2.º, alínea b), da Lei n.º 14/79, de 16 de maio, que interpretou no sentido de poder, com respaldo legal, decretar na sentença que aplicou a medida de acompanhamento com representação geral, a perda de capacidade eleitoral ativa por parte da beneficiária, quando não se afigura legalmente admissível, por falta de fundamento legal no Código Civil e por clara violação da alínea b) do artigo 2.º da Lei n.º 14/79, de 16 de maio), decretar essa perda.

Termos em que revogando a douta decisão recorrida no sentido de manter o direito de voto da acompanhada, farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA!..”

Não houve lugar a resposta.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II - Objeto do recurso
Considerando as conclusões da motivação e sendo estas que delimitam o seu objeto (artigos 635.º, n.º 4, 639.º, n.º 1, 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil), importa decidir: i) se a sentença que decreta o acompanhamento de maior pode impedir o acompanhado de votar, ii) na afirmativa, se a proibição do exercício do direito de voto, por desnecessidade, não se deve manter.


III. Fundamentação
1. Factos
A decisão recorrida julgou provados os seguintes factos:
1. A Requerida (…) nasceu em 24 de março de 1930, contando atualmente com 92 anos de idade.

2. É viúva e tem cinco filhos, (…), (…), (…), (…) e (…).

3. Apresenta antecedentes de demência vascular e hipertensão arterial.

4. Atualmente padece de síndrome demencial, em fase avançada.

5. O quadro clínico da beneficiária, descrito em 4., é irreversível.

6. Mercê da sua patologia, a Requerida encontra-se acamada, dependendo do auxílio permanente e total de terceiros para a generalidade das atividades da vida, designadamente para se mobilizar, para tomar as refeições, para se vestir, para tomar medicação e para se higienizar.

7. Não se encontra orientada no tempo e no espaço nem reconhece os seus familiares.

8. Não é capaz de estabelecer comunicação verbal significante nem um discurso lógico, apenas proferindo as palavras “amor” e “filha”.

9. Não consegue ler ou escrever, assinar o próprio nome ou realizar cálculos mentais.

10. Em virtude ao agravamento do seu estado clínico passou a residir no Centro de Repouso e Lazer (…), sito na Rua da (…), (…), (…), tendo a sua admissão tido lugar no dia 03/10/2019.

11. Em momento anterior ao referido em 10. e após ter ficado viúva, a Requerida residiu com a sua filha (…), na habitação desta, situação que se manteve durante mais de 10 anos.

12. É acompanhada por médico especialista em Medicina Interna, no Hospital de Santarém.

13. Toma medicação regularmente, a qual é avaliada por um médico com uma periodicidade semanal.

14. Frequenta sessões de fisioterapia, com o fito de melhorar a sua mobilidade.

15. Aufere de rendimentos que ascendem a cerca de € 500,00 mensais, os quais correspondem à pensão de viuvez e à pensão de reforma por si recebidas.

16. Os montantes referidos em 15. são transferidos para uma conta bancária titulada pela Requerida e pela sua filha (…), a qual é movimentada pela última.

17. As despesas atinentes aos serviços prestados pelo Centro de Repouso e Lazer (…) em que a Requerida se encontra inserida, à medicação que lhe é ministrada e às sessões de fisioterapia que frequenta ascendem a cerca de € 1.500,00 mensais.

18. O pagamento das despesas da Requerida é efetuado e garantido por (…).

19. A Requerida é visitada com uma periodicidade quinzenal pelas filhas (…) e (…).

20. Os demais filhos da Requerida identificados em 2. não residem em Portugal continental, tendo conhecimento do estado de saúde da mãe através do envio de fotografias e vídeos e do estabelecimento de contactos com (…) e (…).

21. A Requerida não outorgou testamento vital ou procuração para cuidados de saúde.

22. (…), indicada como acompanhante, não apresenta antecedentes criminais.


2. Direito

2.1. Se a sentença de acompanhamento pode impedir o acompanhado do exercício do direito de voto

A sentença recorrida decretou o acompanhamento da maior (…) e impediu a beneficiária de exercer direitos pessoais que discriminou e, entre eles, o direito de votar; o Ministério Público, requerente e ora recorrente, não converge com a decisão, argumentando que a sentença de acompanhamento não pode, em qualquer caso, impedir o acompanhado de votar e que a restrição de tal direito é, no caso, desnecessária.

A primeira questão colocada no recurso consiste, assim, em determinar em abstrato, se a sentença que decreta o acompanhamento de maior pode impedir o acompanhado de votar; a resposta a esta questão ditará boa parte da solução do caso concreto.

Seguiremos, de perto, o acórdão desta Relação, relatado pelo ora relator[1].

Determina o artigo 49.º da Constituição da República Portuguesa (CRP):

“1. Têm direito de sufrágio todos os cidadãos maiores de dezoito anos, ressalvadas as incapacidades previstas na lei geral.

2. O exercício do direito de sufrágio é pessoal e constitui um dever cívico”.

Esta norma tem por epígrafe “direito ao sufrágio” e insere-se no capítulo I (direitos, liberdades e garantias pessoais) do título II (direitos, liberdades e garantias) da Parte I (direitos e deveres fundamentais) da Constituição.

O direito ao sufrágio é, a par de outros (v.g. o direito à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação, o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade – artigos 26.º, n.º 1 e 36.º, n.º 1, ambos CRP), um direito fundamental, assiste a todos os cidadãos maiores de 18 anos e constitui um dever cívico.

Tal qualificação não significa que seja um direito absoluto, no sentido de não lhe ser oponível, em caso algum, qualquer restrição ou limitação, uma vez que os direitos, liberdades e garantias podem ser restringidos pela lei nos casos expressamente previstos na Constituição, desde que as restrições se limitem ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (artigo 18.º, n.º 2, da CRP) e também assim o direito ao sufrágio.

A Constituição prevê expressamente restrições ao princípio da universalidade do sufrágio, ao estabelecer que as incapacidades previstas na lei geral excecionam a este princípio [artigo 49.º, n.º 1].

“Embora não seja absolutamente líquido o sentido da expressão «incapacidades previstas na lei», a letra do preceito aponta para o sentido de incapacidades civis (vedando o exercício de sufrágio apenas aos incapazes segundo a lei civil, nomeadamente os interditos) …”.[2]

O legislador infra constitucional veio estabelecer nos diplomas que regulam, respetivamente, a eleição do Presidente da República (artigo 3.º do D.L. n.º 319-A/76, de 3/5), as eleições para a Assembleia da República [alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 14/79, de 16/5, aplicável supletivamente ao regime do referendo (artigo 254.º da Lei n.º 15-A/98, de 3/4)], a Eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais [alíneas a) e b) do artigo 3.º da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14/8] e o regime jurídico do referendo local [alíneas a) e b) do artigo 36.º da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24/8], a incapacidade eleitoral ativa – ou o impedimento de participação no referendo – dos (i) interditos por sentença com trânsito em julgado e dos (ii) notoriamente reconhecidos como dementes, ainda que não interditos por sentença, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos.

Vigorava, à data, o instituto da interdição regulado pelos artigos 138.º e segs. do Código Civil, na versão aprovada pelo D.L. n.º 47.344, de 25/11/1966, com as alterações do D.L. n.º 496/77, de 25/11, segundo o qual, no que agora releva, podiam ser interditos dos seus direitos todos aqueles que por anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira se mostrassem incapazes de governar as suas pessoas e bens, caso em que a representação do interdito e a administração dos seus bens era confiada a um tutor, assistido por um conselho de família, ambos sujeitos à fiscalização do tribunal (artigos 139.º, 124.º, 1878.º, n.º 1, 1924.º, n.º 2, 1925.º, n.º 1, todos do Código Civil).

A interdição gerava então “uma incapacidade genérica de exercício, graduada pela menoridade, e suprida por tutela (incluindo conselho de família e protutor).”[3]

Densificando o conceito das incapacidades previstas na lei geral, enquanto ressalva ou limite ao princípio constitucional da universalidade do sufrágio (ativo), as referidas leis eleitorais declaravam como incapazes de exercer tal direito e dever cívico:

- os interditos por sentença com trânsito em julgado; e

- os notoriamente reconhecidos como dementes, ainda que não interditos por sentença, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos.

Situações distintas quanto à forma mas que convergiam na substância: a incapacidade do cidadão eleitor de formar uma vontade livre e de agir de acordo com ela; no primeiro caso judicialmente reconhecida e declarada; no segundo caso, sujeita a duas condicionantes cumulativas, uma subjetiva a apreensão da demência notória do eleitor (v.g. pelos membros da mesa de voto, por qualquer delegado das listas ou até por qualquer eleitor inscrito na assembleia de voto, uma vez que todos têm o direito de suscitar dúvidas e apresentar por escrito reclamações, sobre as quais deverá recair deliberação da mesa de voto, v. g. artigo 99.º da Lei Eleitoral para a Assembleia da República, Lei n.º 14/79, de 16/5,) e uma condicionante objetiva alternativa: (i) mostrar-se o notoriamente demente internado em estabelecimento psiquiátrico ou haver sido, o notoriamente demente, declarado como tal por uma junta de dois médicos.

Solução com razões de fácil apreensão; para além de um direito subjetivo, o sufrágio representa também um dever cívico, ou seja, constitui um “elemento objetivo da ordem democrático-constitucional, assente na responsabilidade cívica dos cidadãos”[4] e a comunidade não pode exigir esta responsabilidade cívica – não lhe seria lícito fazê-lo – a todos aqueles que se mostrem incapazes de governar as suas pessoas e bens, ou seja, a todos aqueles que reconhecidamente não revelam aptidão para tomar decisões consequentes com uma vontade livremente formada, seja porque assim o reconheceu e declarou uma sentença judicial, seja porque a sua notória demência se mostra declarada por uma junta de dois médicos ou levou ao internamento em estabelecimento psiquiátrico. Por razões, para alguns, menos evidentes os que ainda não perfizeram 18 anos também não podem votar.

A Lei n.º 49/2018, de 14/8, veio – decorre da sua epígrafe – criar o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os institutos da interdição e da inabilitação.

Tornou-se então necessário compatibilizar o regime das incapacidades eleitorais previstas nas leis eleitorais com o regime jurídico decorrente da referida Lei n.º 49/2018, mormente na parte em que revogou o instituto da interdição, desiderato prosseguido pela Lei Orgânica n.º 3/2018, de 17/8, que alterou os artigos 3.º do D.L. n.º 319-A/76, de 3/5 (Eleição do Presidente da República), artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), da Lei n.º 14/79, de 16/5 (Lei Eleitoral para a Assembleia da República), artigo 3.º, alíneas a) e b), da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14/8 (Lei que regula a eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais) e artigo 36.º, alíneas a) e b), da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24/8 (Regime jurídico do referendo local), por forma a eliminar – revogando as respetivas previsões – a incapacidade eleitoral ativa e o impedimento do direito de participação no referendo, dos interditos por sentença com trânsito em julgado [alínea a) do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 319-A/76, de 3/5, alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 14/79, de 16/5, alínea a) do artigo 3.º da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14/8 e alínea a) do artigo 36.º da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24/8] e a alterar a redação das previsões que estabeleciam a incapacidade eleitoral ativa e impediam o exercício do direito de participação no referendo, dos notoriamente reconhecidos como dementes, ainda que não estejam interditos por sentença, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos [alínea b) do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 319-A/76, de 3/5, alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 14/79, de 16/5, alínea b) do artigo 3.º da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14/8 e alínea b) do artigo 36.º da Lei Orgânica n.º 4/2000, de 24/8], por forma a estabelecer a incapacidade eleitoral ativa e o impedimento do direito de participação no referendo, daqueles que “notoriamente apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais, ainda que não sujeitos a acompanhamento, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos”.

O recurso tem por fundamento estas alterações legislativas e parte do princípio que, por força delas, o legislador pretendeu obstar a que a sentença, proferida no processo de acompanhamento, impedisse o direito ativo ao sufrágio (v. g. conclusões 6ª, 10ª a 12ª, 36ª, 44ª a 47ª e 51ª) dos beneficiários de medida de acompanhamento.

As alterações apontadas não conduzem, estamos em crer, a uma tal solução.

A compatibilização das incapacidades eleitorais, resultantes das alterações da Lei Orgânica n.º 3/2018, de 17/8, com as alterações introduzidas ao Código Civil pelo Regime do Maior Acompanhado, pode esquematizar-se assim: onde se previa a incapacidade eleitoral ativa e impedimento do direito de participação no referendo (i) dos interditos por sentença com trânsito em julgado e (ii) dos notoriamente reconhecidos como dementes, ainda que não estejam interditos por sentença, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos passou a prever-se a mesma incapacidade e impedimento dos que notoriamente apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais, ainda que não sujeitos a acompanhamento, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos.

Pondo de parte a eliminação da interdição por sentença transitada que, por deixar de vigorar na ordem jurídica e expressamente revogada, não suscita quaisquer dúvidas, a comparação da redação dos preceitos – vigente e pregresso – relativamente aos notoriamente reconhecidos como dementes, ou na terminologia atual, aos que notoriamente apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais permite extrair duas conclusões relevantes para a solução do recurso; em primeiro lugar as incapacidades eleitorais ativas dos que notoriamente apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais não foram eliminadas pela lei, mantêm-se desde que, como acontecia de pretérito, ocorra internamento em estabelecimento psiquiátrico ou hajam sido como tais declarados por uma junta de dois médicos; depois, as normas vigentes adotaram técnica legislativa idêntica à das redações alteradas, ou seja, onde se dizia “dos notoriamente reconhecidos como dementes, ainda que não estejam interditos por sentença” passou a dizer-se “dos que notoriamente apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais, ainda que não sujeitos a acompanhamento”.

A expressão “ainda que não estejam interditos por sentença” não suscitava, de pretérito, dúvidas interpretativas, porquanto a interdição por sentença transitada constituía então causa de incapacidade eleitoral ativa, ou seja, o que a norma expressava então com clareza era a incapacidade eleitoral ativa dos interditos e, para além destes, dos notoriamente reconhecidos como dementes desde que internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos.

Idêntica clareza não ocorre com a vigente expressão “ainda que não sujeitos a acompanhamento”, uma vez que a sentença de acompanhamento não constitui causa expressa (e automática) de incapacidade eleitoral ativa como ocorria com a sentença de interdição; não constitui nem, a nosso ver, poderia constituir pois regendo-se o regime do maior acompanhado por princípios da necessidade e da especificação (artigo 145.º do CC) pode muito bem acontecer que a conformação ou âmbito do acompanhamento não justifique qualquer restrição ao exercício do direito de voto. Por isto que não se poderá, sem mais, concluir que o beneficiário do acompanhamento não tenha capacidade eleitoral ativa, ou seja, que a expressão “ainda que não sujeitos a acompanhamento” tem o mesmo alcance da sua correspondente – “ainda que não estejam interditos por sentença” – nas previsões revogadas.

Mas algum sentido há-de o intérprete encontrar-lhe, como prevê e impõe, o artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil e a solução defendida pelo Recorrente, sem bem vemos, nenhuma utilidade lhe atribui; ou seja, não podendo a sentença de acompanhamento, em caso algum, impedir o acompanhado de votar, a notória limitação ou alteração grave das funções mentais, acompanhada de internamento em estabelecimento psiquiátrico ou declarada por uma junta de dois médicos constituiria a única causa de incapacidade eleitoral ativa surgindo, de todo, irrelevante a sujeição, ou não, a acompanhamento e assim desprovida de qualquer alcance a expressão “ainda que não sujeitos a acompanhamento”.

A interpretação suposta pelo Recorrente suprime um segmento das normas eleitorais (incapacidades eleitorais ativas) que lhes resultaram das alterações introduzidas pela Lei Orgânica n.º 3/2018, de 17/8, o que evidencia, estamos em crer, que não pode estar certa.

O sentido útil da expressão, em tais normas, tem, a nosso ver, o alcance oposto daquele que o Recorrente lhe atribui, ou seja, significa que não têm capacidade eleitoral ativa os maiores acompanhados nos casos em que a respetiva sentença assim o declare.

Nesta leitura, o alcance final das normas alteradas, pela referida Lei 3/2018, é o de estabelecer que não são cidadãos eleitores (i) os sujeitos a acompanhamento cuja sentença assim o declare e (ii) aqueles que, não sujeitos a acompanhamento cuja sentença declare o impedimento – “ainda que não sujeitos a acompanhamento” – apresentem notória limitação ou alteração grave das funções mentais quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos.

É este o sentido que, numa aproximação literal, permite uma leitura das normas referentes às incapacidades eleitorais ativas, estabelecidas nas leis eleitorais, sem ablação de nenhum dos seus segmentos, necessariamente significantes.

Acresce um elemento teleológico da interpretação, a nosso ver, não menos impressivo: faltaria justificação ou razão – não faria sentido – que a notória limitação ou alteração grave das funções mentais, acompanhada de internamento em estabelecimento psiquiátrico ou declarada por dois médicos, constituísse causa relevante de incapacidade eleitoral ativa e a sentença de acompanhamento proferida com observância do princípio do contraditório, depois da imprescindível audição do acompanhado e de produzidas as provas, mormente periciais por médicos da especialidade quando for o caso (artigo 139.º, n.º 1, do Código Civil e artigos 891.º a 900.º do Código de Processo Civil) não houvesse de poder concluir por idêntica incapacidade eleitoral, ou seja, que a lei permitisse a incapacidade eleitoral ativa atestada sem formalidades (v. g. perceção da alteração grave das funções mentais e internamento em estabelecimento psiquiátrico) e não permitisse a estatuição de idêntica incapacidade no âmbito de um procedimento judicial, formal por natureza, cujo principal e único desiderato se circunscreve precisamente em assegurar o bem-estar do maior acompanhado, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres (artigo 140.º, n.º 1, do CC).

Em resposta a esta primeira questão dir-se-á que as alterações introduzidas às leis eleitorais pela Lei Orgânica n.º 3/2018, de 17/8, não obstam a que a sentença de acompanhamento determine a incapacidade eleitoral ativa do maior acompanhado.

O recurso improcede quanto a esta questão.

2.2. Se a proibição do exercício do direito de voto, por desnecessidade, não se deve manter

Segundo o artigo 145.º, n.º 1, do Código Civil, “o acompanhamento limita-se ao necessário”.

Fundado nesta estatuição, o Recorrente considera que a proibição do exercício do direito de voto, por desnecessária, não se deve manter e argumenta: a situação da requerida é irreversível; a requerida necessita sem dúvida de amplo acompanhamento, para gestão de questões patrimoniais, questões de saúde e algumas restrições dos seus direitos pessoais, como casar, perfilhar ou procriar; a incapacidade da requerida, física e mental, para votar, é notória [conclusões 25ª a 27ª].

Provou-se que a beneficiária nasceu em 24 de março de 1930, padece de síndrome demencial, em fase avançada, o seu quadro clínico é irreversível, encontra-se acamada, dependendo do auxílio permanente e total de terceiros para a generalidade das atividades da vida, designadamente para se mobilizar, para tomar as refeições, para se vestir, para tomar medicação e para se higienizar não se encontra orientada no tempo e no espaço nem reconhece os seus familiares, não é capaz de estabelecer comunicação verbal significante nem um discurso lógico, apenas proferindo as palavras “amor” e “filha”, não consegue ler ou escrever, assinar o próprio nome ou realizar cálculos mentais [pontos 1 e 4 a 9 dos factos provados].

Contexto factual que apoia a afirmação do recurso segundo a qual a incapacidade da requerida, física e mental, para votar, é notória, mas também serve para afirmar que a mesma incapacidade a impede de casar, perfilhar e – há muito – de procriar, restrições de direitos pessoais que a decisão recorrida estabeleceu e que o Recorrente considera que se devem manter e, assim, necessárias.

Com isto pretende-se evidenciar que as razões de saúde e estado de demência da beneficiária são a causa do acompanhamento não são o seu efeito, ou seja, não é porque a condição de saúde da beneficiária a impedem, de facto, de exercer determinados direitos pessoais que as medidas de acompanhamento se tornam desnecessárias, é o oposto, é porque se mostra impedida de facto, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres que deve beneficiar das medidas de acompanhamento [artigo 138.º, n.º 1, do CC].

Assim, afigura-se-nos contraditório nos seus próprios termos afirmar a um mesmo tempo, como se afirma no recurso, que a incapacidade da requerida, física e mental, para votar, é notória e defender que a decisão que lhe fixou tal restrição, por desnecessária, deve ser revogada.

Acresce redizer que o exercício do direito de sufrágio constitui um dever cívico [artigo 49.º, n.º 2, da CRP], o que “(…) sublinha a importância constitucional do direito ao sufrágio, não apenas como direito subjetivo dos cidadãos (…); mas, também como elemento objetivo da ordem democrático-constitucional, assente na responsabilidade cívica dos cidadãos (…).”[5]

E, pese embora não constitua, hoje, um dever jurídico, uma vez que a lei não estabelece qualquer sanção para a sua inobservância, tal não implica que o legislador infra constitucional não venha a tornar o voto obrigatório; assim, o prof. Jorge Miranda: “o (-) exercício (do sufrágio) constitui um dever cívico - o que não implica, nem tão pouco impede, o chamado voto obrigatório ou obrigação sancionada de votar; a esse dever acrescem o de recenseamento e o de colaboração com a administração eleitoral, nas formas previstas na lei (artigo 116.º, nºs 2 e 4).”[6]

Aqui se encontrando a razão de duas observações finais que, a nosso ver, concorrem, para a improcedência do recurso: primeira, a inexigibilidade do cumprimento de um dever cívico cujo direito não pode ser exercido, ou seja, seria, de todo, injustificável que a comunidade apesar das fragilidades da beneficiária – acamada, com dependência permanente e total de terceiros, desorientada no tempo e no espaço, sem capacidade de estabelecer comunicação verbal com significado, etc. – fizesse perdurar sobre ela o dever de votar correspondente a um direito que está impossibilitada de exercer; em segundo lugar, para afastar a ideia, transposta no recurso, de menorização ou desvalorização do direito/dever ao sufrágio ativo, ou seja, por razões de saúde e demência a beneficiária deve ser impedida – justifica-se a restrição do direito – de v. g. casar, perfilhar, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio e residência, de testar, de aceitar ou rejeitar liberalidades, mas perante as mesmas razões é desnecessário impor-lhe – não se justifica a restrição do direito – uma incapacidade eleitoral ativa.

Não se vê, pois, como dar razão ao Recorrente.

Improcede o recurso, restando confirmar a decisão recorrida.

3. Custas

O processo mostra-se isento de custas (artigo 4.º, n.º 2, alínea h), do Regulamento das Custas Judiciais).

Sumário (da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
(…)

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso, em confirmar a decisão recorrida.
Sem custas.
Évora, 16/3/2023
Francisco Matos
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões

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[1] Ac. da Relação de Évora, de 28/1/2021 (proc. n.º 690/19.0T8SSB.E1), disponível em www.dgsi.pt.
[2] J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. 1º, 4ª ed., pág. 670.
[3] Castro Mendes, Direito Civil, Teoria Geral, volume 1º, 1978, pág. 336.
[4] J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 671.
[5] J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 671.
[6] "Pólis – Enciclopédia Verbo", 2, pág. 898, cit. por Parecer do Conselho Consultivo da PGR, de 24/3/1988, disponível em www.dgsi.pt.